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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro July 2014

 

ARTIGOS

 

Sujeito, corpo e um espelho (cibernético): a memória em imagem e em discurso

 

The subject, the body and a mirror (cybernetic): memory in images and in discourse

 

 

Daniela Giorgenon*; Lucília Maria Abrahão Sousa**; Soraya Maria Romano Pacífico***

Universidade de São Paulo (USP) - Brasil

 

 


RESUMO

O gesto de leitura/interpretação que empreendemos objetiva estudar sujeito e corpo pela via da alteridade. Como dispositivo teórico e analítico elencamos o conceito de memória e de sujeito de Pêcheux – que faz laço com a psicanálise –, o estádio do espelho tal como Lacan o concebe, o conceito de heterogeneidade de Authier-Revuz, os contos "O espelho" de Machado de Assis e "Espelhos" de Veríssimo, a leitura de Foucault ao quadro "Las meninas" de Velasquez e a tela de Romão. Isso para analisarmos sentidos contemporâneos sobre um espelho cibernético. Lançamo-nos a pensar sobre esse espelho contemporâneo, esse acontecimento materializado em imagem e em discurso, e perguntamos o que há de memória que repete, que insiste e que irrompe em outros sentidos?

Palavras-chave: sujeito; corpo; memória.


ABSTRACT

The gesture of reading/interpreting that we have undertaken aimed at studying the subject and the body by means of alterity. As a theoretical and analytical device we have selected the concepts of memory and of subject by Pêcheux, which is linked to psychoanalysis; the mirror stage, as conceived by Lacan; the concept of heterogeneity by Authier-Revuz; the short stories "The mirror" ("O espelho) by Machado de Assis and "Mirrors" ("Espelhos") by Veríssimo; Foucault's interpretation of the painting "The girls" ("Las meninas") by Velasquez and canvas by Romão. This is to analyze the contemporary meanings of a cybernetic mirror. We have taken to thinking about the contemporary mirror, such occurrence materialized into images and discourse, and we have asked what is there of memories that are repeated and that insist and interrupt in other meanings?

Keywords: subject; body; memory.


 

 

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora.

(O buraco do espelho, Arnaldo Antunes)

 

Um gesto de leitura/interpretação

O gesto de leitura/interpretação que empreendemos neste trabalho objetiva estudar sujeito e corpo pela via da alteridade, conforme propõe a Análise de Discurso (doravante AD) fundada por Pêcheux na interface com a psicanálise de Freud e Lacan, abordando (a metáfora do) o espelho. Debruçamo-nos sobre o conceito de memória segundo Pêcheux (2010) para evocarmos alguns sentidos já-ditos sobre o espelho e salientamos que este percurso será marcado por uma costura entre o literário e o científico.

A partir dos contos "O espelho", de Machado de Assis (1996) e "Espelhos", de Veríssimo (1996) faremos uma costura com os seguintes textos e conceitos: O estádio de espelho de Lacan (1998); o conceito de heterogeneidade de Authier-Revuz (2004); a leitura de Foucault (1999) especificamente referida ao quadro "Las meninas" de Velasquez; a "passagem do visível ao nomeado" que Pêcheux (2010) demarca em "O papel da memória"; a "tela" tal qual é apresentada por Romão (2004). Isso para levantarmos algumas questões que têm nos intrigado em torno de um "espelho" contemporâneo, que permite conexão à rede eletrônica, que desliza em acontecimento (Pêcheux, 2008) imagético e discursivo e passa a ser interativo, para além dos contos. E mais precisamente para levantarmos questões sobre a relação do sujeito e de seu corpo com esse objeto, que abarca a virtualidade de uma tela-caleidoscópio que rearranja significantes, imagens, a cada clique, a cada toque.

Abordaremos essa tela espelhada como tela que reflete uma imagem (do corpo de um sujeito), mas que também oferece "opções", "funções" para que o sujeito interaja com imagens para além da imagem refletida por um espelho comum, ou seja, com imagens e significantes outros da rede eletrônica, que lhe ofertam a possibilidade de compor formatos outros na tela/espelho. Assim, essa tela abarca a movência de uma alteridade caleidoscópica que tomaremos como Romão (2006: 303-304) na associação que faz da tela das tecnologias com a tela do pintor, a partir de Saramago:

"Sobre o cavalete, o pintor colocou uma tela branca. Olha-a como a um espelho. A tela é aquele único espelho que não pode reflectir a imagem do que está diante de si, daquilo que com ele se confronta. A tela só mostrará a imagem do que apenas noutro lugar é encontrável", seguindo esse fragmento de Saramago (1998: 508), a tela, em seu silêncio desejante de tinta, não reproduz a realidade nem a reflete exatamente como um espelho. Ela abrigará imagens do que está vivo em outro lugar e se desloca para a tela quando a mão da memória do artista se deitar no tecido virgem. Então, a corrente migratória de imagens, traços, figuras, ganha corpo, inscrevendo formas e sentidos no vazio do branco, afetados pela "representação de uma memória", como diz o autor. É a memória que se desenha, ao desenhar, no movimento do artista, o mundo que ele suporia digno de pintar, pois "ao pintar, o pintor não vê o mundo, vê a representação dele na memória que dele tem".

Para a autora, a tela do pintor e a tela das tecnologias guardam o que "noutro lugar é encontrável" pelo ato daquele que a toca, evocando uma memória. A partir destas concepções e, pela memória, tentaremos navegar pelos já-ditos sobre o espelho, sobre os quiçá novos ditos sobre este espelho cibernético e o jogo discursivo que convida o sujeito e seu corpo a interagirem com, a se conectarem à tela/espelho.

 

Articulações sobre sujeito e corpo: a memória do/sobre o espelho

Em "O papel da memória", Pêcheux (2010: 51) articula a concepção de memória para a AD e tece sentidos sobre a leitura de imagens colocando em pauta a questão de "uma passagem do visível ao nomeado", o que nos faz pensar na constituição do sujeito e de seu corpo, tal qual nos ensina a psicanálise lacaniana. Constituição que perpassa uma leitura/interpretação de uma imagem pelo infans, ou seja, uma leitura/interpretação de sua imagem especular atravessada pela imagem do outro/Outro e pelos significantes que o antecedem e que o nomeiam.

A concepção do estádio de espelho introduzida por Lacan (1998) abarca a formação da função do eu na medida em que o "filhote do homem" assume uma imagem por intermédio de seus impasses com o espelho. Inicialmente o infans, ao se deparar com a imagem no espelho, procura por alguém atrás deste objeto; posteriormente, passa a reconhecer alguém no espelho e, finalmente, se reconhece no espelho, deslizando assim de um estado de corpo despedaçado até a sua forma de totalidade, como corpo distinto do outro/Outro, mas por ele atravessado. Objeto espelho que é substituído por Lacan (1998), em sua teoria, pelo corpo do semelhante, tela na qual se reflete o infans. Assim, para ele, o espelho é o outro, o Outro que farão advir o sujeito e o corpo, que por meio do espelhamento ganham contornos. Contornos de imagens e contornos de significantes, advindos da nomeação que o infans recebe do outro/Outro passando assim a sujeito fal(t)ante por não ser unificado ao Outro, mas um perpassado pelo Outro.

Constituição do sujeito que na AD é abarcada por Authier-Revuz (2004) no conceito de heterogeneidade. Segundo ela, o sujeito é atravessado por outras vozes, por outros discursos, pelo discurso do Outro em sua constituição e em sua enunciação. A autora aborda tanto a heterogeneidade marcada no discurso, aquela que aparece por marcas "explícitas, da presença do outro significante" (Authier-Revuz, 2004: 20) – como pela indicação de aspas –, quanto à heterogeneidade constitutiva, pois "todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos 'outros discursos' e pelo 'discurso do Outro'" (Authier-Revuz, 2004: 69). Conforme a autora, "O sujeito não é uma entidade homogênea, exterior à linguagem, que lhe serviria para 'traduzir' em palavras um sentido do qual ele seria a fonte consciente" (Authier-Revuz, 2004: 63), ele é marcado pelos significantes que o antecedem, como apontam Lacan (1998) e também Pêcheux (1997).

Conforme Pêcheux (1997), o sujeito se constitui no entremeio do assujeitamento ideológico e inconsciente que lhe marcam um modo de dizer e não outro, ou seja, uma posição discursiva, afetada pelo Outro, em um dado contexto sócio-histórico. Temos observado que na contemporaneidade as imagens têm desempenhado um forte impacto nas formações discursivas/ideológicas/imaginárias1 que atravessam a voz dos sujeitos e, dadas tais formulações, que veremos nas análises, objetivamos escutar os efeitos desse impacto na constituição do sujeito, do corpo e dos discursos neste contexto sócio-histórico, instigando, sempre com Pêcheux (2010: 51), "uma passagem do visível ao nomeado".

Para avançarmos nesse estudo, que abarca fatos da contemporaneidade, tocamos no conceito de memória, pois que é preciso retomar dizeres tecidos sobre o objeto espelho e, para tanto, é preciso inicialmente nomear o que é memória para Pêcheux (2010: 50), uma memória entendida "[...] não no sentido diretamente psicologista da 'memória individual', mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória do historiador. [...]". Uma memória que implica a retomada dos já-ditos.

Fazendo uma associação com o conto machadiano e com a questão dos já-ditos, já-escritos sobre o espelho, a memória Pecheuxtiana não abarca apenas o resgate de uma memória registrada cronologicamente, como ressalta o personagem Jacobina, de "O espelho", ao rememorar seus 25 anos, mas sim uma memória que perpassa os sentidos de Jacobina atribuídos a sua experiência com o espelho e sua teoria de que o ser humano tem duas almas, uma interior e outra exterior; isso a partir de associações metafísicas, filosofia que o antecede temporalmente. Ocupando-se assim de explicar a natureza da alma, Jacobina anuncia que: "[...] Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora para dentro [...]" (Assis, 1996: 36).

É assim que nomeia a constituição da alma, que tomaremos aqui como metáfora da constituição do sujeito, tal qual estudamos com Lacan (1998), Authier-Revuz (2004) e Pêcheux (1997). E prosseguimos assim com Jacobina, que enuncia que "[...] A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. [...]" (Assis, 1996: 36), ou seja, a alma exterior é deslizante, pode ser coisa qualquer que ocupe uma função de objeto. Entretanto, destacamos que não é um objeto qualquer que Jacobina destaca nesse discurso de memória, é sua relação com o(s) outro(s)/Outro e com o espelho. E podemos ler esse conto com os autores que trouxemos para esta discussão, assinalando que o encontro com a imagem de Jacobina, instituída a partir do olhar e da voz do outro/Outro, retorna para ele, ora de maneira difusa, esfumada, ora de maneira translúcida: "[...] Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. [...]". E é para esse jogo de olhares, de vozes e de imagens que intentamos lançar nossa escuta e também nosso olhar ao jogo de imagens que se refletem no espelho cibernético.

A constituição do sujeito apresentada pelo personagem Jacobina nos faz pensar na banda de Möebius, um interior que é também exterior, figura topológica tão estudada por Lacan e que também é representativa da teoria de Authier-Revuz (2004) e de Pêcheux (1997). Lacan, ao conceber o espelho como metáfora, como representante/significante do outro/Outro que reflete o próprio sujeito, significante marcado de voz e imago, também vai além em sua teoria, utilizando uma outra figura topológica, o nó borromeano. Se o estádio do espelho é predominantemente efeito de imaginário, Lacan traz um enodamento para a constituição do sujeito e (de seu) corpo enlaçando os registros do imaginário, do simbólico e do real.

Assim, segundo Cukiert e Priszkulnik (2002), para Lacan o corpo é marcado pelo significante, é corpo erógeno, singular, permeado de gozo e desejo, podendo ser estudado como imagem a partir do registro imaginário; como significante, a partir do registro simbólico e como sinônimo de gozo do registro do real, como aquilo que escapa à simbolização. No plano imaginário, o eu é construído a partir do outro, da imagem que lhe é devolvida pelo semelhante/espelho. No plano simbólico se estabelece uma relação entre fala-linguagem-corpo. No plano do real, o corpo se distingue do organismo. Com esse enodamento intentamos ler/interpretar os efeitos da imagem no sujeito e em seu corpo na contemporaneidade.

Sinalizamos que é isso que faz Pêcheux (2010: 51) ao demarcar "uma passagem do visível ao nomeado", que temos reiteradamente retomado neste estudo. E para chegarmos ao espelho cibernético, do qual trataremos, prosseguimos com o que Pêcheux (2010) diz sobre a imagem como "um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar", o que associamos ao recorte de Romão (2006: 303) da escrita de Saramago a respeito do que "noutro lugar é encontrável", retorno que perpassa os ditos e os já-ditos sobre o espelho, sobre o outro/Outro e o sujeito e seu corpo.

Neste percurso de memória (e arquivo), prosseguimos resgatando o que Pêcheux (2010) aponta como a estruturação da materialidade discursiva nos meandros da repetição, da regularização e do acontecimento, cadeia que repete o encontrável em outro lugar que, sendo outro lugar, pode sempre reclamar ainda um outro e um outro e um outro lugar, trazendo o acontecimento que desregulariza a série do legível, do repetitório, mas que ao final é absorvido em outra série: "[...] um acontecimento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior) [...] suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória" (Pêcheux, 1999: 49-50), o deslizamento significante (S1 – S2), fazendo jogar o interno e o externo, como na banda de Möebius, como na constituição do sujeito pela alteridade, exterior que é também interior já que o sujeito também constitui a alteridade.

Para articularmos esse jogo de repetição, regularização e acontecimento, trazemos o conto "Espelhos", de Veríssimo (1996). Prosseguindo a passagem do visível ao nomeado, e também adentrando a imagem como um operador de memória social, destacamos que neste conto há uma discursividade em torno da imagem de um homem no espelho em seus 40 anos, que reativa uma série de já-ditos sobre este marco cronológico. E no funcionamento desta memória, repetitória, destacamos o mais importante para este estudo, que é um acontecimento emergente na escrita de Veríssimo (1996), da ordem de um outro espelho, no qual se poderia constituir imaginariamente um outro homem: um espelho/homem digital. Um espelho dentre os espelhos plurais com os quais o autor nomeia seu conto de encanto tecnológico:

Não, não procure consolo no espelho tradicional, esse instrumento diabólico que há séculos destrói todas as nossas fantasias. Nossa esperança é a tecnologia: cedo ou tarde inventarão o espelho digital. Ele não refletirá a imagem, simplesmente. A captará e a transformará em impulsos eletrônicos, que podem ser manipulados pelo usuário. No painel do espelho digital haverá duas teclas: "A Verdade" e "Escolha Você Mesmo". Acionando esta última você terá à sua disposição um menu de opções reconfortadoras para que o espelho lhe mostrará, desde "20 anos menos" até "Richard Gere com outro nariz". Você poderá usar um recurso chamado "Retouch" que lhe permitirá... (Veríssimo, 1996: 201)

E assinalamos que tal espelho digital sai das páginas dos contos para entrar na cadeia discursiva e de imagens contemporâneas e, como acontecimento, irrompe na cadeia repetitória regularizada da memória, materializando-se em 2011, conforme notícia do blogueiro do "Gadgets Info" da revista InfoAbril.

[..] O Cybertecture Mirror é um espelho que foi desenvolvido pelo designer James Law, da empresa Cybertecture. Ele funciona como uma janela digital [...]. Para funcionar, o espelho deve se conectar à internet. [...] O equipamento é cheio de funções. São tantas que é possível até duvidar que você vai passar tanto tempo no banheiro checando tudo. Um dos atrativos é um aplicativo que monitora a saúde. Ele usa um equipamento auxiliar semelhante a uma balança para obter dados de peso, porcentagem de gordura corporal e massa corporal. Além disso, é possível fazer ginástica em frente ao espelho, que indica exercícios físicos para perder peso e manter a forma. [...] Infelizmente, ele está à venda somente para China, Hong Kong, Índia e Europa2.

Das citações feitas, de Veríssimo (1996) e do blogueiro, destacamos que este(s) espelho(s) de que falam não reflete(m) apenas a imagem, ambos os equipamentos oferecem ao sujeito e ao seu corpo "opções reconfortadoras" e "funções", "tantas". Dizeres que trabalharemos em nossas análises associando-os a algumas imagens e formações discursivas/imaginárias/ideológicas presentes na página oficial da empresa criadora do espelho cibernético.

 

Um método

A análise que empreendemos é alicerçada no método da AD que visa a compreender como um objeto simbólico produz sentidos e a escutar sentidos silenciados. Para tanto, mobiliza a memória, a historicidade, a ideologia e o recalque inconsciente em uma leitura/interpretação que é particular pela própria incompletude do sujeito e da linguagem, somada a incompletude do sujeito analista (de discurso) (Orlandi, 1999; Orlandi, 2007). Assim, o corpus que tomamos para a análise é composto a partir de um dispositivo teórico e um dispositivo analítico (Orlandi, 1999) que confluem e refletem o olhar daquele que le/interpreta algum fato discursivo.

Por confluírem, entendemos que a escrita que empreendemos, pela própria constituição da AD, faz contornos ao impossível de se separar teoria e análise, pois Pêcheux (2008) alicerça seu método de pesquisa em um "batimento", um ir e vir por entre costuras teórico-analíticas, inseparáveis, pois o próprio ato de recortar um conceito teórico já é constituinte do e constituído pelo movimento de analisar. Indursky (2008) delineia um movimento pendular, da teoria à análise, e vice-versa. Por não se basear na noção de "dado", produto pronto e acabado, mas sim na noção de "fato", esse movimento pendular não cessa de significar a cada leitura de cada analista diante do seu corpus, o que implica a análise do processo de produção de sentidos. Gesto que convida o leitor a também tecer suas análises.

Para este trabalho, como dispositivo teórico e analítico elencamos especialmente o conceito de memória, alicerçado por Pêcheux (2010), o estádio do espelho tal como Lacan (1998) o concebe, o conceito de heterogeneidade de Authier-Revuz (2004), o conceito de sujeito Pêcheuxtiano, que faz laço com o sujeito da psicanálise, fazendo costuras com o conto "O espelho" de Machado de Assis (1996), o conto "Espelhos", de Veríssimo (1996), a leitura de Foucault (1999) do quadro "Las meninas" de Velasquez e a tela de Romão (2004). Isso para desvelarmos sentidos contemporâneos sobre o espelho cibernético, nossa análise central, mas não única, pelo próprio efeito de memória, que traz à tona a historicidade do espelho na constituição do ser falante.

Tendo situado de qual posição enunciamos, prosseguimos apontando que no âmbito da leitura/interpretação, emprestamos de Leandro-Ferreira (2003: 203) a definição de que:

Na AD "o que está fora" (o exterior) faz parte integrante do que está dentro (o interior). Não há, pois, dicotomia; há tensão, há contradição. Como se estivéssemos frente a um quadro de um pintor: a moldura, a luz, o ambiente, a parede em que está colocado são elementos que compõem junto com a tela os efeitos de sentido que vão produzir para o observador. Com outra moldura, sob diferente luz, em nova parede, a significação já seria outra.

Assim, os gestos de interpretação se apoiam na báscula do interior e do exterior, movimento que é próprio da constituição de alteridade do sujeito, como vimos com Lacan (1998), com Authier-Revuz (2004), com Pêcheux (1997) e com Assis (1996). Movimento que também constitui a interpretação discursiva. E para efetuarmos nossa leitura pinçamos de Leandro Ferreira (2003) os significantes "quadro" e "tela", que também são mobilizados na leitura de Foucault (1999) e de Romão (2006), leituras que nos auxiliarão na escuta ao espelho cibernético. E assim, prosseguimos nossas análises.

 

O que há no jogo de "opções" e "funções"?

Foucault (1999), ao tecer uma leitura/interpretação sobre o quadro "Las meninas", de Velazquez, mobiliza sentidos do exterior e do interior deste, tal como afirma Leandro Ferreira (2003) ao descrever a postura de um analista de discurso. Foucault (1999) mobiliza também o que está visível e supostamente invisível aos olhos do espectador e dos próprios personagens da tela. Interessa-nos particularmente aqui a escuta que ele faz do jogo de olhares do pintor (que se materializa na tela), do espectador, dos personagens e do espelho ao fundo da tela, abordando a alteridade, sendo esta composta por outros e pelo espelho. Destacamos de sua leitura que Foucault (1999) descreve o objeto espelho como sendo um outro e questionamos: quiçá um espelho-sujeito que olha para além de ser olhado?: "[...] o rosto que o espelho reflete é igualmente aquele que o contempla [...] pura reciprocidade que manifesta o espelho que olha e é olhado [...]" (Foucault, 1999: 13). Interessa-nos este deslizamento de objeto a sujeito e de sujeito a objeto para nossas análises.

Deste autor, partimos para Romão (2006) para explanarmos sobre esse movimento de reciprocidade entre o espelho que olha e é olhado e os personagens/espectador/pintor que também olham e são olhados a fim de mobilizarmos alguns sentidos sobre o espelho cibernético de que tratamos. Como já dissemos, Romão (2006: 303) tece sentidos sobre a tela das tecnologias associando-a à tela do pintor, como descreve Saramago, "desejante de tinta" e que convida "a mão da memória do artista a se deitar no tecido virgem". Abordamos o espelho cibernético a partir desta relação de alteridade em que há algo que fisga, que captura a mão do sujeito para o ato de se conectar à tecnologia, e em sua tela fascinar-se com as "opções" e "funções" marcadas por Veríssimo (1996) e pelo blogueiro.

Imagens da tela e imagens exteriores à tela se mesclam e reiteramos que essa tela da qual falamos muda caleidoscopicamente a cada clique produzindo outras imagens, outros significantes, para além do reflexo da imagem do corpo do sujeito (significantes – interiores – da própria tela, já que nela aparecem ícones; e exteriores à tela, já que o espelho reflete o ambiente em que está o sujeito – dentro/fora da tela). Debruçando-nos sobre este algo que fisga o sujeito na conexão com a tela, questionamos se há algo que repete o deslumbramento que o infans vivência ao se deparar com a imagem no espelho, lançando-se a tentar pegá-la. Deslumbramento acentuado no sujeito, na contemporaneidade, pela evanescência das imagens produzidas, já que cada clique dispara imagens, e imagens que talvez remetam a algo que "noutro lugar é encontrável", como aponta Saramago (citado por Romão, 2006: 303); algo de memorável (que retoma o júbilo?).

Fazendo algumas articulações, apontamos que embora não contemplando as teclas "A verdade" e "Escolha Você mesmo" tal qual Veríssimo (1996) propõe, o espelho cibernético joga com composições-sujeito distintas a cada "opção"/"função" ofertada, o que, pela via do imaginário, cria o efeito de que a cada clique não só a tela muda, mas também o sujeito, que imaginariamente a comanda. É o que podemos ver e escutar no site da Cibertecture Mirror3, conforme as figuras 1 e 2.

 

Figura 1. Página eletrônica da Cybertecture Mirror

 

Figura 2. Página eletrônica da Cybertecture Mirror

 

Destacamos que a sequência das imagens tais como são apresentadas ao espectador do site criam esse efeito que descrevemos, de uma transformação do sujeito e de seu corpo (pela mudança de roupa, de cabelo, de posição corporal) a cada clique, o que vai ao encontro da opção "Escolha Você mesmo" do conto Veríssimo em que supostamente seria possível ao sujeito criar uma tal imagem em que caiba sempre um "Retouch". Entretanto, no espelho cibernético as "opções"/"funções" são delimitadas como podemos ver: "mirror", "health", "vanity", "entertainment", "exercise". Ou seja, o sujeito não é (tão) livre em sua escolha – como articula Pêcheux (1997) ao apontar o atravessamento ideológico e do recalque na constituição do sujeito – e questionamos se lhe resta re-touch, tocar de novo a tecnologia em busca de outras imagens?

Nesta leitura que estamos empreendendo, destacamos ainda que os significantes "opções" e "funções", os quais estamos mobilizando, nos permitem questionar quais as "funções" desse objeto na contemporaneidade e quais as "opções" do sujeito diante deste. E por que não questionar quais as "funções" do sujeito-objetalizado e quais as "opções" do espelho, que é o aparente detentor das escolhas. Assinalamos aqui uma diferença em relação à leitura que Foucault (1999) empreende acerca do espelho da tela "Las Meninas" de Velasquez, pois que, naquele caso, naquele contexto sócio-histórico, o avivamento do "[...] espelho que olha e é olhado [...]" (Foucault, 1999: 13), o avivamento metafórico não implica na objetalização do sujeito que olha, ao contrário do que temos interpretado acerca das novas tecnologias, nas quais o sujeito é convocado a tocar, a "touch", para avivar a máquina (do consumo).

Podemos articular o que dissemos acima a respeito do jogo de "funções" e "opções" entre sujeito e objeto com as formações discursivas colocadas no verbo imperativo: "Say hello to yourself in your mirror", "Review your state of health", "Made yourself up for a night out", "Watch a TV Program", "See what your friends have been up on your social network", "Check your form and burn a few calories". Interpretamos que há algo que convoca o sujeito ao lugar de objeto, a "just do it" e não questionar. Seria esta a "função" do sujeito e de seu corpo na contemporaneidade? Re-touch incessantemente? Destacamos também a repetição de "your/yourself", "seu/para si", o que ao nosso ver convoca o sujeito a uma posição discursiva em que supostamente escolhe e tem, enquanto recebe ordens imperativas. Ordens que ofuscam o assujeitamento de seu corpo, distanciando o sujeito do desejo, clamando ao gozo.

Em se tratando do imperativo, do gozo contemporâneo marcado no "just do it", no jogo basculante da e com a alteridade, passamos agora a uma análise que leva em conta o estranho e o familiar, o estrangeiro e o brasileiro, e nesta báscula exterior e interior apontamos o interessante jogo de imagens e da língua no site da Cybertecture. Língua, pois o idioma legitimado é o inglês, embora o espelho seja uma produção da Cybertecture de Hong Kong. E se a língua inglesa toma posse da descrição do espelho, por outro lado a imagem do espelho é composta por uma modelo oriental, calada nos vídeos do site e nas fotos, mas que permite que algo discurse com seu corpo. Assinalamos, assim, que há um jogo de imagens e de formações discursivas/ideológicas/imaginárias sustentando esse produto que compõem um campo de alteridade que inscreve tais produtos com funções dadas sócio-historicamente.

Entrando no âmbito do ter ou não ter essa tecnologia, apontamos que nem Brasil nem Estados Unidos aparecem na voz do blogueiro como países importadores do produto. Sublinhamos a heterogeneidade no discurso sustentado na voz do blogueiro, que le/interpreta este espelho cibernético com júbilo, mas também estranhamento, trazendo vozes que se contradizem. Se por um lado afirma que "Infelizmente ele [espelho] está à venda somente para China, Hong Kong, Índia e Europa", por outro indaga a existência do objeto pelo próprio título da reportagem: "Já pensou em usar a internet pelo espelho do banheiro?", causando um efeito de afastamento para pensar neste objeto interativo possível até então somente nos contos (de fadas, literários). E neste movimento de articular o imaginário ao simbólico e ao real, da voz do blogueiro destacam-se as "funções do espelho" que "[...] São tantas que é possível até duvidar que Você vai passar tanto tempo no banheiro checando tudo. [...]", esvaziando um efeito de captura ideológica. Possibilidade esta de o sujeito se circunscrever por um bordejamento simbólico que permite a sustentação da dúvida.

Nesta breve sequência de análise, intentamos escutar algumas posições-sujeito sustentadas diante deste espelho cibernético nos posicionando como leitoras deste acontecimento contemporâneo, que rompe com a série de Espelhos. E desta série, nos aportando na memória discursiva, lembremo-nos da captura ideológica sobre os índios, em terra tupi-guarani, com a formação ideológica estrangeira que sustentou o espelho. Efeitos de um imaginário inflado que os assujeitou, com poucos contornos do simbólico e do real. Prosseguimos com a escuta e com as indagações sobre as "opções"/"funções" desse acontecimento na série da memória, na série de "Espelhos" anteriores a ele e sobre seus efeitos na constituição da alteridade, de sujeitos e de discursos na contemporaneidade.

 

Alguns apontamentos

A leitura/interpretação que efetuamos é uma dentre as possíveis e nosso gesto convoca uma passagem pelo imaginário, pelo simbólico e pelo real, "uma passagem do visível ao nomeado" e, complementamos Pêcheux (2010), uma passagem do visível ao nomeado e ao inominável para tocarmos o que há de real nos efeitos da relação sujeito, corpo e espelho cibernético. Pelo percurso feito pela memória, pela constituição do sujeito via alteridade, levantamos algumas questões que não cessam de mobilizar outros questionamentos, que insistem desde Assis (1996) e muito antes dele com os mitos sobre a constituição da subjetividade e do corpo, que não é apenas organismo, é corpo/linguagem.

Neste efeito de fechamento de uma escrita e de abertura a novas questões, retomamos Assis (1996) e a "alma exterior" como um modo metafórico de dizer sobre a conexão de sujeitos, na contemporaneidade, a telas, a imagens, a rede eletrônica, os quais tomam tais equipamentos como parte de si, como um outro de si. Lançamo-nos a pensar sobre o espelho cibernético e os outros espelhos e perguntamos o que há de memória que repete, que insiste e que irrompe em outros sentidos? Afinal, como afirma Pêcheux (2010: 56), "[...] nenhuma memória é um frasco sem exterior".

 

Referências bibliográficas

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Artigo recebido em: 3 de março de 2013
Aprovado para publicação em: 8 de junho de 2013

 

 

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP/USP.
** Profa Dra do Programa de Pós Graduação em Psicologia da FFCLRP/USP.
*** Profa Dra do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Educação da FFCLRP/USP
1 As formações ideológicas veiculam a ideologia, ou seja, os sentidos dominantes em dado contexto sócio-histórico e seus sentidos são materializados no discurso, nas formações discursivas. Por meio das formações imaginárias o sujeito antecipa o que pode e o que não pode ser dito ao outro, pelo próprio efeito das formações ideológicas. Esse mecanismo de antecipação também é materializado nas formações discursivas.
2 Recuperado em 30 de outubro de 2011 de <http://info.abril.com.br/noticias/blogs/gadgets/miscelanea/ja-pensou-em-usar-a-internet-pelo-espelho-do-banheiro/>.
3 Recuperado em 18 de outubro de 2012 de <http://www.cybertecturemirror.com/main.php?id=features>.