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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro dic. 2014

 

ARTIGOS

 

Freud maçom: a sua loja Wien não seria de fato sua splendid isolation?

 

Freud freemason – His lodge Wien would not be Freud’s splendid isolation?

 

 

Francisco Martins*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A investigação aqui encetada busca mostrar a importante relação de Freud e suas teorias com a maçonaria judia intitulada B'naï B'rith (Os Filhos da Aliança). Elucidamos inicialmente aquilo que levou Freud se filiar à Irmandade: o antissemitismo em voga no Império Austro-húngaro. A história da criação da B'naï B'rith é apresentada e aponta-se sua origem na maçonaria norte-americana, com ajustes para a comunidade judia. A iniciação de Freud na Loja Wien é explicitada através das próprias palavras de Freud. O criador da Psicanálise não foi um mero membro da Irmandade. Seu engajamento com a Loja foi completo, contribuindo tanto intelectualmente como na administração. Apresentamos a lista comentada dos trabalhos de Freud proferidos em Loja. Uma via de mão dupla entramos: Freud influenciando a Loja e esta a Freud. A Psicanálise até 1907 era um assunto principalmente judaico. Isto evidencia o apoio a Freud da BB e a importância desta para a constituição da Psicanálise como teoria, instituição e movimento. A metáfora da splendid isolation da biografia oficial de Freud merece ser reinterpretada, levando-seem conta que o esplêndido para Freud na época era somente a Loja, onde era apoiado e reconhecido. Fora de Loja vivia um ostracismo profissional. Insistimos na conclusão de que Freud nunca se desconectou desta Irmandade nem do pensar judaico.

Palavras-chave: psicanálise; maçonaria; judaísmo.


ABSTRACT

The research hereby undertaken seeks to show the important relationship between Freud and his theories with the Jewish freemasonry entitled B'naï B'rith (Sons of the Covenant). We initially evinced what led Freud to join the Brotherhood: the anti-Semitism in vogue in the Austro-Hungarian Empire. We present the history of the creation of the B'naï B'rith and its origin is indicated in the North American freemasonry, with adjustments for the Jewish community. Freud's initiation in the Wien Lodge is presented in his own words. The creator of Psychoanalysis was not a simple member of the Brotherhood. His engagement with the Lodge was full-hearted, contributing both intellectually and in the administration. For that we introduce an annotated list of Freud's works in the Lodge. A two-way street happened: Freud influencing the B'naï B'rith and the latter influencing the former. Psychoanalysis, until 1907, remianed a mostly Jewish subject. This highlights the support to Freud from the B'naï B'rith and the latter's importance to the constitution of Psychoanalysis as theory, institution and movement. The metaphor of Freud's official biography about his "splendid isolation" deserves to be reinterpreted, taking into account that the splendid to Freud at that time was but the Lodge, where he was supported and recognized. Outside the Lodge he experienced a professional ostracism. We insist on the conclusion that Freud never disconnected from this Brotherhood nor from the Jewish thinking.

Keywords: psychoanalysis; freemasonry; judaism.


 

 

1 . Freud e o antissemitismo vigente na época em que a psicanálise foi criada

Antes de ser amplamente reconhecido, bem depois da publicação do seu opus "A interpretação dos sonhos"(1900), Freud vivia endividado, separado do seugrupamento profissional, recolhido a sua casa coletando sonhos, ditos espirituosos e diferenciando-se como clínico, contando com ajuda de Joseph Breuer. Profissionalmente ele estava mais do que escanteado pelos meios acadêmicos, experimentando o antissemitismo difuso e ativo incrementado por Karl Lueger, prefeito de Viena em abril de 1897 e confirmado pelo Imperador Franz Josef. Clamava este líder Cristão Socialista na sua plataforma antissemita que os judeus se ocupavam dos grandes negócios1. Mais que nunca a imagem de Schylock, o judeu agiota de O mercador de Veneza de Shakespeare, que cobra a dívida do veneziano Antônio, umalibra de carne retirada do peito do cristão bem intencionado, estava presente na mente dos austríacos votantes. Seu ostracismo profissional era crudelíssimo desde 1892. Na teoria especulativa e de acolhimento para suas fantasias, tinha apenas a correspondência com Fliess e encontros esparsos entre os dois quando discutiam teorias e práticas terapêuticas. Lúgubre e isolado era seu local de trabalho parecendo uma tumba de faraó. Malgrado a atmosfera poluída por charutos e a insalubridade de uma penumbra quase permanente nesta câmara pouco saudável para um homem vetusto, Freud qualifica esta época de sua vida como um isolamento esplêndido (splendid isolation). Tal metáfora ressoa hoje como mais uma ironia freudiana.

Sigmund Schlomo Freud corria o risco de, em vez de ser o grande homem aspirado por sua mãe, um Aníbal, um judeu que pudesse ser reconhecido na sociedade cristã e científica, tornar-se um Sigmund Schylock Freud aos olhos de um austríaco mediano. Um pequeno fonema está entre Schlomo, nome de seu pai, para um Schylock. Sabemos que o nome Sigismund de Freud foi-lhe dado em virtude de dois imperadores austríacos que haviam protegido os judeus. Com a pressão do Papa Leão XIII, o Imperador acabou por ceder e a discriminação se efetivava mais ainda. Freud convenceu-se, como grande número de judeus, que era chegada a hora de procurar companheiros judeus para enfrentar o antissemitismo como uma instituição que fazia parte da política de Estado. Desde 1895 ele mantém contacto com outros judeus temerosos da atmosfera discriminatória crescente. A aspiração de vir a ser reconhecido no mundo cristão, a sua insistência em fantasias de ser Aníbal, suas visitas contínuas a Roma, estão agora se esvaindo com a ideia de ser um não-judeu. Freud, o judeu não-judeu2 está no ponto de entender que ele é um judeu e que precisava muito de companheiros judeus. A sua denegação começa a ceder e sua identificação com Jacó, o primeiro não-judeu que se tornou israelita, se fará presente como veremos mais adiante.

Se não bastasse este clima desfavorável, Freud havia vivido em 1893 um episódio que convenceu-o de vez acerca do antissemitismo. Estando viajando em um trem, diz ele para sua esposa em duas cartas, 92 e 94, de 16 de dezembro de 1883 (Freud, 1982), que sem mais pensar abriu uma janela do trem perturbando os passageiros na sua maioria germânicos. Quase de imediato recebeu a invectiva: "Ele é um judeu sujo!". Os xingamentos prosseguiram com admoestações deprimentes. A época vivida por Freud está longe de ser esplêndida. Talvez tenha sido esplendida realmente por ter encontrado uma irmandade disposta a escutar-lhe com tolerância respeitosa e que lhe apoiou continuamente até que a psicanálise tenha conseguido desabrochar para o mundo. Marca-se 1905 como momento importante neste sentido quando ocorreram os contatos com Bleuler, o notável psiquiatra investigador da esquizofrenia, patrão dos residentes psiquiatras Karl Abraham, Carl Gustav Jung e Ludwig Binswanger. Abraham era judeu e os outros dois residentes eram cristãos, iniciando com estes a abertura da psicanálise, não sem conflitos, para o mundo. Isto se desenrolou principalmente a partir de 1907. Nos dez anos seguintes a 1897, a Psicanálise, como teoria e método terapêutico, foi essencialmente uma atividade de judeus. Martin Freud (citado por Dennis Klein, 1985, p. 72), rememorando a frequência na casa do seu pai por volta de 1900, afirmou que "dificilmente poderia lembrar da presença de uma pessoa não-judia entre os diversos convidados na casa do seu pai".

 

2 . A B'naï B'rith, suas origens maçônicas e sua similaridade com a maçonaria

Dizer que Freud era maçom não seria um exagero? Sim, certamente, caso adotemos uma posição fundamentalista. O desejo da maçonaria de ser uma só ou da psicanálise de ser uma só não corresponde mais aos fatos históricos e às instituições que se desenvolveram e se diferenciaram. Explicitando que a maçonaria não existe como um só corpo, nem a main stream que seria franqueada pela chamada UGLE (United Grand Lodge England), a mais antiga, e que não reconhecia outras correntes como porexemplo: a Prince Hall americana, constituída por negros em virtude da segregação; a maçonaria espanhola Lautaro; a corrente francesa Droit Humain que aceita a participação de mulheres. Se recusarmos que Freud foi maçom, diríamos que todas as principais maçonarias brasileiras, o Grande Oriente do Brasil, as Grandes Lojas, a Confederação Maçônica Brasileira não seriam maçonarias. Esta posição fundamentalista está igualmente presente na história da psicanálise. Assim, Lacan, em julho 1975, no seminário de Caracas pronunciou-se espirituosamente: "Eu venho aqui para lançar a minha causa freudiana. Vocês podem ser lacanianos, se assim quiserem. Eu sou freudiano" (citado por E. Roudinesco, 1988, p. 720).

A B'naï B'rith na origem é marcadamente maçônica. Tal como outras ramificações que surgiram a partir da maçonaria - os Shriners, os Rosacruzes, os De Mollay -, a B'naï B'rith é uma secessão da maçonaria americana do século XIX ajustada às necessidades de judeus segregados. A Ordem Independente de B'naï B'rith (Os Filhos da Aliança em hebraico ou Söhne des Bundes em ídiche) é a mais antigaorganização judaica em todo o mundo (Karesh & Hurvitz, 2006). A B'naï B'rith foi criada em 13 de outubro de 1843 por Henry Jones e outros 11 imigrantes alemães que se reuniam no Café Sinsheimer's em Nova Iorque para lutar contra o que Isaac Rosenbourg, um dos fundadores, chamou de "a deplorável condição dos judeus neste país, nosso novo país adotivo". Pelo menos quatro dos onze fundadores eram maçons e os outros judeus haviam sido cooptados em sinagogas americanas. Inicialmente chamavam-se entre si como Bundes-Brueder (significando "Liga dos Irmãos"); era um título alemão posto que todos os fundadores eram judeus-alemães e só falavam alemão e ídiche. Entre eles chamavam a associação de BB. Guardaram estas iniciais no dia-a-dia, mas na fundação o título oficial passou a ser B'naï B'rith. O dístico da Ordem era "Benevolência, Amor fraternal e Harmonia". O clima antissemita vigente até em Lojas maçônicas americanas provocou a criação de uma maçonaria especificamente judia. A sua organização e ritos são similares aos da maçonaria (Grusd, 1966). Segundo informação oficial disponível na internet3, ela é composta atualmente por mais de 200.000 membros de 50 países e com um orçamento anual de cerca de US$ 14.000.000. Sua sede localiza-se em Washington, e na Europa em Bruxelas. Os americanos compõem 95% dos filiados no mundo e sua influência lobista ultrapassou as fronteiras americanas. Importante notar que este movimento maçônico veio da B'naï B'rith americana na sua expansão visando cuidar e lutar pelo povo judeu no mundo. Segundo o historiador e Mestre Maçom William Carvalho (2014: 50) a participação de Freud faz parte da expansão dessa instituição que inicialmente foi para Toronto, Canadá, em 1875, seguido de Montreal e Berlim. Nesta última Freud visitou Loja em 1882. No Brasil ela existe desde 1931 e foi fechada durante o Estado Novo (1937-1945). Voltou a funcionar em 1969 com permanentes trabalhos filantrópicos e de combate ao racismo com Lojas em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul. A Loja de filiação de Freud foi a Loja Viena, criada em 1894. Posteriormente, ele foi membro fundador da Loja Harmonia que, devido à intolerância vigente em Viena, foi levada para Praga, na Boêmia, atual República Checa. Tal deslocamento mostra a tenacidade do desejo participativo do "Irmão" Sigmund.

O cenário social antissemita, racista vivido por Freud, bem expresso no "Sonho com seu tio de barba amarela", se articula com a cena de humilhação de Freud quando viu seu pai sendo obrigado por um Austríaco a pegar um chapéu caído no chão. Sua situação correspondia claramente às ações promissivas que a B'naï B'rith procurava desenvolver: lutar pelos judeus, contra o racismo e apoiar os membros. Seu isolamento, tão citado pelos biógrafos oficiais, encontrou a solução no encontro com uma irmandade que ele nunca deixou de venerar. Katz (1970, p. 164), ao falar sobre a fundação da primeira loja B'naï B'rith na Alemanha, afirma que os fundadores eram todos maçons, presumivelmente pertencentes ao rito Royal York.

Estes maçons tinham renunciado às lojas cuja manifestação de antissemitismo eles consideravam intoleráveis. Segundo informação de Ratier (1993), apresentando fotografias e desenhos, os sinais e toques secretos são como os do rito de emulação ou de York; o ritual é similar, bem como os demais procedimentos em Loja. Convém salientar que no século XIX, na Europa, várias lojas maçônicas convencionais proibiam a entrada de judeus (Schorske, 1989). A defesa do judeus contra a discriminação e injustiça é uma mola propulsora essencial para um judeu como Freud.

Explicitemos que pertencer a uma Loja maçônica implica muito mais que uma simples adesão e exige do maçom que guarde os segredos da Ordem. A maçonaria se caracteriza por ser discreta, senão secreta. Ademais exige o aperfeiçoamento em graus com rituais específicos e estudos principalmente da Torá (Velho Testamento da Bíblia), por vezes da Kabala e conhecimento do mundo antigo, incluindo o Egito, temática maior da obra de Freud, permanentemente interessado em Moisés e no monoteísmo. Uma característica essencial deve ser apontada: essas sociedades são simbólicas e iniciáticas. Sem acesso ao simbolismo e sem a participação no rito, nenhum homem torna-se efetivamente maçom.

 

3 . A iniciação de Freud na Loja Wien

A iniciação de Freud se efetivou "em 29 de setembro de 1897, na Loja Wien - Israelitische Humanitäts-Verein Wien -, com um ritual muito parecido com oritual maçônico da época" (Fourton, 2012, p. 42). Observe-se que a discrição é característica maior pois o título oficial é Sociedade Viena de Humanismo Israelita. Oficialmente a Ordem só abandonou a regra de segredo em 1920, mas até hoje existem as reuniões restritas aos irmãos filiados. Esta Loja tinha sido fundada em 23 de outubro 1895, portanto dois anos antes, sendo constituída por uns cinquenta membros na sua maior parte intelectuais e comerciantes. Freud foi convidado para participar da Loja pelo seu padrinho o Irmão Edmund Kohn, médico ginecologista, pois só se aceitava nestas sociedades pessoas convidadas por membros da Ordem. O Presidente da Loja era Ehrmann, um outro amigo próximo de Freud desde a universidade e que trabalharam no Laboratório de Psicofisiologia do Professor Brück. Freud contava 41 anos e tinha acabado de perder seu pai (1896). Ele não estava bem situado na vida e as possibilidades profissionais eram nebulosas. Tal como um cavalheiro perdido em uma noite chuvosa, ele bate na porta do templo que não era a sinagoga, mas uma outra instituição. Ele está desiludido da possibilidade de ser integrado na sociedade germanista austríaca. Precisa saber onde fica o Oriente, lembrar onde o sol nasce, sair da desorientação. Pensamos que na Loja Viena ele reencontrou a simbólica paterna na forma de um monoteísmo exigente. Eis o início da sua iniciação no rito maçônico ajustado para os judeus, mas bastante semelhante aos praticados atualmente na maçonaria. Senão vejamos:

O Presidente (V: . M: .):
- "Irmãos, eis aqui mais um amigo judeu que solicitou sua admissão na nossa Ordem. Um novo elo será adicionado a nossa corrente fraternal. O candidato gostaria de se aproximar? Chamo vossa atenção de sua Benevolência para com os princípios e propósitos da nossa Ordem. A Ordem do B'naï B'rith tomou como objetivo a tarefa de unir os Israelitas, para promover seus interesses os mais elevados, bem como aqueles da humanidade, para encorajar as ciências e as artes [...]".
O emblema da Ordem é a Menorah, o candelabro com sete ramos dos Hebreus.
Cada ramo simboliza um nobre ideal: Luz - Justiça - Paz - Benevolência - Amor Fraterno - Harmonia - Verdade" (Fourton, 2012, p. 55; tradução nossa).

Três décadas depois da sua transformação de recipiendário em aprendiz, por ocasião do septuagésimo aniversário, em 6 de maio de 1926, Freud agradeceu com um reconhecimento sentido e saudoso por meio de uma carta dirigida aos membros do B'naï B'rith. A carta foi lida pelo seu médico e Presidente da Loja Wien, Ludwig Braun, em virtude de Freud estar cirurgizado do câncer em sua boca. Inicia dizendo seu pertencimento mais de trinta anos passada sua iniciação: "Gostaria de dizer-vos em breves palavras como me tornei um dos vossos e o que procurei de vós" (Freud, 1969: 315).

Diz então a dura realidade da solidão que o levou a procurar a "comunidade fraterna", ou seja, a conhecida e propalada splendid isolation:

Aconteceu que nos anos a partir de 1895 fiquei sujeito a duas poderosas impressões que se combinaram para produzir o mesmo efeito sobre mim. Por um lado, alcançara minha primeira compreensão interna das profundezas da vida das pulsões humanas; eu vira certas coisas que eram tranquilizadoras e mesmo, de início, assustadoras. Por outro, a comunicação das minhas descobertas desagradáveis teve como resultado a ruptura da maior parte dos meus contatos humanos; senti-me como se fosse desprezado e universalmente evitado. Em minha solidão fui presa do anseio de encontrar um círculo de homens de escol de caráter elevado que me recebesse com espírito amistoso, apesar da minha temeridade. Vossa sociedade foi-me indicada como o lugar onde tais homens deviam ser encontrados (Freud, 1969: 315).

Como vemos ele precisava "de homens de escol de caráter elevado que me recebesse com espírito amistoso" ou seu ideal de pessoas que lhe pudessem acolher. Seria demasiado apontar sua transferência para com a instituição? Explicita então seu engajamento e sua participação ativa:

Assim foi que me tornei um dos vossos, tive minha parcela em vossos interesses humanitários e nacionais, angariei amigos entre vós e persuadi meus próprios e poucos amigos restantes a se filiarem à nossa Sociedade (O Dr . Hitschmann e o Dr. Rie) (Ratier, 1998, p. 67).

Para melhor entendimento transcrevemos em tamanho menor e negrito passagens que constam originalmente na sua carta pronunciada pela primeira vez no jornal mensal do B'naï B'rith da Checolosváquia em abril de 1926. Os dados acrescidos são explicitações de nomes de Irmãos que não constam nas Edições Standard inglesa e da brasileira. Ela confirma que tanto seu médico de cabeceira, Hitschman, médico clínico e depois psicanalista e que migrou para os Estados Unidos, quanto seu amigo permanente o Dr. Oskar Rie, amigo desde os estudos secundários, pediatra de suas crianças. Este publicou um trabalho com Freud sobre as paralisias do cérebro em crianças e jogava cartas de Tarô semanalmente com seu Irmão Sigmund. Ambos faziam parte da "comunidade fraterna":

Não houve absolutamente qualquer dúvida em convencer-vos das minhas novas teorias; mas numa época em que ninguém na Europa me dava ouvidos e ainda não tinha nenhum discípulo mesmo em Viena, vós me concedestes vossa amável atenção. Vós fostes o meu primeiro auditório. Durante cerca de dois terços do longo período que decorreu desde meu ingresso persisti convosco de maneira conscienciosa, e encontrei refrigério e estímulo em minhas relações convosco. Vós tendes sido bastante amáveis hoje para não incriminar-me de que durante a última terça parte do tempo me mantive afastado de vós. Estive sobrecarregado de trabalho e as exigências ligadas ao mesmo pesaram sobre mim; o dia deixou de ser bastante longo para que eu frequentasse vossas reuniões, e logo meu corpo começou a rebelar-se contra uma refeição tomada tarde da noite. Finalmente sobrevieram os anos de minha doença, o que me impede de estar entre vós até mesmo num dia como o de hoje (Ratier, 1998, p. 140).

Seria necessário um reconhecimento da sua dívida não somente para sua vida pessoal: refrigério, estímulo, não recriminação nem quando se afastou por motivo justo. Diz ainda que não foi perfeito, tal como se sabe que os mestres são eternos aprendizes.

Não posso dizer se fui um autêntico Filho da Aliança no vosso sentido da palavra. Estou quase inclinado a duvidar disso; muitas circunstâncias excepcionais surgiram no meu caso. Mas de uma coisa posso assegurar-vos - que vós muito significastes para mim e muito fizestes por mim durante os anos nos quais fiz parte de vós. Peço-vos, portanto, que aceiteis meus calorosos agradecimentos tanto por esses anos como por hoje.
Vosso em W. B. & E. Sigm. Freud
Wohlwollen, Bruderliebe und Eintracht [Benevolência, Amor Fraternal e Harmonia]" (Freud, 1969: 316-317).

 

4. Freud e seu engajamento com a Loja

Como afirmado anteriormente, Freud não foi um mero figurante na sua adesão. Sua adesão foi completa, fazendo ele parte tanto do corpo administrativo como sendo membro importante na constituição do pensar desta Ordem. Tendo a Loja de Freud, a Wien, se estabelecido em 1895, Freud foi uns dos primeiros iniciados em 1897. Uma segunda vertente explicativa do que ele fazia durante sua splendid isolation se funda em uma idealização de Jones, dizendo do prazer que Freud teria auferido do isolamento. Temos então uma suposição fundada largamente no imaginário vindo de fontes populares. Acreditamos que Freud certamente recorre ao devaneio, mas, o mais importante, era que seu isolamento estava quebrado por um clima intimista e tolerante, bem diferente da rejeição dos meios acadêmicos para com as suas ideias. Ademais, as sessões das terças-feiras quinzenais estão bem documentadas na Loja Viena dos "Filhos da Aliança", inclusive com atas de presença e lista de trabalhos apresentados do Irmão Sigmund. Suas apresentações (Freud, 1969: 313-314) em Loja na sequência a seguir nos parece demonstrar de maneira cabal o desejo e o querer de Freud.

Palestras4 de Freud na B'naï B'rith e Lembretes com relação a sua obra e vida

 

Dia
Pranchas
Lembretes com relação a sua obra

7 de dezembro de 1897

 

14 de dezembro de 1897

Acerca de A Interpretação dos Sonhos, seu opus em elaboração.

 

Uma segunda parte de A Interpretação dos sonhos, evidenciando ter sido apreciado e viu-se compelido a mostrar mais.

Certamente trata-se de partes entre o capítulo V e VI, pois o capítulo I foi o último a ser escrito a contragosto de Freud, a chamada revisão Bibliográfica (Martins & Neto: 2013). O capítulo VII foi uma síntese. Os capítulos II, III existiriam com a tese de que o sonho é a realização do desejo. Mas o sonho de Irma, central na análise não havia lhe ocorrido ainda. Na Correspondência com Fliess, Carta 78, Freud afirma a importância de ter sido bem apreciado.
3 de fevereiro de 1899 "A psicologia do esquecimento" Antecipação de tema de capítulo do livro "A psicopatologia da vida cotidiana" publicado em 1901. A escrita para seus irmãos é como se desse movimento ao que tinha na sua cabeça. A exigência de escrita e apresentação formal força Freud a avançar na escrita.
4 de fevereiro de 1900 "A vida psíquica das Crianças" Relação direta com o capítulo IV da "A psicopatologia da vida cotidiana" e com a sua teoria da memória como sendo encobridora, fruto do processo de defesa continuado. Nossa memória é processada continuamente.
Março de 1900 Prancha não especificada; citada na Carta 130 a Fliess. Apresentação cuja temática não encontramos.
27 de abril de 1900 Acerca do livro La fécondité de Émile Zola Zola é autor predileto da B'naï B'rith bastando lembrar o escandaloso caso Dreyfuss, de antissemitismo contra um militar francês e judeu que sofreu discriminação abjeta. Além do gênio de Zola, uma personalidade obsessiva clássica, a temática sobre a sexualidade tornou a prancha um evento. Freud considerava La Fécondité uma obra prima, um dos dez melhores livros já escritos.
26 de fevereiro de 1901 Prancha "Acaso e Superstição" (Fourton diferentemente diz ter sido em 1904 e repete em 1907). Publicado conteúdo similar tanto na Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) quanto nas Conferências Introdutórias (1916-1917).
Entre março de 1901 e 30 de dezembro de 1901 Émile Zola A especialização de Freud não só na biografia mas na pathografia se faz presente. Zola seria um dos tipos psicológicos, obsessivo no caso, pensados por Freud.
Outono de 1901 Prancha "Metas e Propósitos da Ordem da B'naï B'rith" Freud apresenta um o tema eminentemente maçônico e administrativo. Ele já faz parte do corpo executivo da Loja ocupando-se da Biblioteca, do ensino e da publicação. "Meta" (Ziel) é um termo bem freudiano sendo uma das quatro dimensões da Pulsão (Trieb) juntamente com a Fonte (Quelle), Força, (Drang), Objeto. O pensar de Freud está presente também na sua concepção da Ordem.
Entre 14 de janeiro e 4 de março de 1902 Conduziu um curso acerca de "O papel da Mulher na nossa [B'naï B'rith] União" Freud se interessa pelas mulheres da Ordem. Estas eram minoria ou nem faziam parte das Lojas. Vemos Freud como um propugnador de que as mulheres saíssem do regime dito KKK, Igreja (Kirchen), Crianças (Kindern) e Cozinha (Küchen), usual no dia-a-dia daquela época. Não custa lembrar que a Psicanálise foi uma das primeiras profissões liberais praticadas por mulheres, inclusive por ex-pacientes histéricas.
Abril de 1902 Prancha "Sobre os sonhos" O milheiro de livros do seu opus A interpretação dos sonhos (Die Traumdeutung) encalhou e não obteve sucesso nenhum. Com apoio de seus Irmãos e sua determinação Freud fez uma síntese do opus e o publicou (Über Träume). Este resumo foi o primeiro livro de Freud bem-sucedido tanto na venda quanto no reconhecimento intelectual. A praticidade de um comerciante nos parece presente junto com a confiança de um estudioso ciente do valor do seu trabalho.
Abril de 1904 "A debilidade mental fisiológica das mulheres" (Dr. Möbius) Como vemos Freud, histeria e discussões acerca da deficiência das mulheres era o seu prato do dia. O pensar de Freud não aceitará a teoria da deficiência tão em voga. Freud torna possível dar a palavra para mulheres que fazem sintomas por conta da repressão e o discurso cientificista marcando o comportamento humano de um ponto de vista essencialmente moral. Moral obsoleta que Freud pretende modificar na sociedade para tornar a vida possível.
1904 "Hamurabi" A pedra de Susa descoberta na Babilônia por arqueólogos franceses foi um primeiro conjunto de regras existentes antes da Bíblia. O interesse de Freud por Moisés e o monoteísmo lhe incendiou a mente com a descoberta desta pedra. Ela acendeu em Freud a ideia do monoteísmo como ligada ao Deus Sol ditando ordens para o rei Hamurabi. Pela primeira vez Freud discute principalmente acerca da importância de Moisés na constituição do monoteísmo e de leis morais novas diferentes de Hamurabi. Como sair do "olho por olho, dente por dente" para um novo código?
1905 "Sobre a fisiologia do inconsciente" Kline aponta que é um tema genérico mas que Freud possivelmente se centrou nos efeitos do Inconsciente. Sugere que a questão dos ditos espirituosos (Witz), tema de livro importante publicado em 1905, dominou a sessão.
2 de novembro de 1907 "Sobre os ditos espirituosos" É inconcebível um analista curar-se e curar aos outros sem o entendimento de Freud do que seria a ironia fina.
19 de março de 1907 "Psicologia no Serviço da Administração da Justiça" Kline indica que se tratou de uma reapresentação em Loja de apresentações feitas a advogados e outra a criminologistas legistas anteriormente.
1908 "O batismo das crianças" O tema é vago e não encontramos a especificidade da prancha.
1911 "O problema de Hamlet" Hamlet cheio de neurose de dúvida é a tese de Freud. Ele é diferente de Édipo. Édipo não sabe que matou o pai e Hamlet sabe quem foi e sofre de melancolia e escrúpulos. Ernest Jones desenvolveu no futuro boa parte da tese de Freud aqui iniciada.
1912 Prancha sobre "Totem e Tabu". Proferimento referido somente por Fourton (2012). A especulação de Freud acerca da horda primitiva se faz presente na Wien como a necessitar um suporte para as críticas diversas e separações doloridas envolvendo não-judeus, Jung por exemplo.
4 de novembro de 1913 "O que é a psicanálise" Freud procura dar a especificidade da psicanálise. O trabalho, juntamente com "História do movimento psicanalítico", distingue o pensar de Freud dos de Adler, Stekel, Jung. Note-se que apresentar em Loja é como renovar as forças junto a quem ele supõe compreendê-lo.
16 de fevereiro de 1015 "Nós e a morte" Em pleno desenrolar da mais carniceira guerra de todos os tempos Freud faz um libelo mostrando o quanto o nosso Inconsciente contribui para a destrutividade. Na Loja, Kline pensa que a prancha teria outro título "Nós Judeus e a Morte" evidenciando que os Judeus, tanto quanto outros povos, sofrem de repressão de impulsos mortíferos.
Março ou abril de 1915 "Reflexões para os tempos de guerra e morte". Supomos que Fourton (2012) chamou esta prancha de "Por que a guerra?", título de artigo de Freud publicado depois. Seria a continuação da palestra anterior. Segundo Jones (op. cit., 1955, p. 415) Freud estava deveras impressionado com a capacidade destrutiva humana.
15 de fevereiro de 1916 "A revolta dos anjos", de Anatole France, ganhador do Nobel de Literatura. La révolte des anges, de Anatole France, segundo o artigo notável pela concisão e informações fidedignas de H. Knoepfmacher (1979), Freud empolga-se com as potentes fantasias de France acerca da guerra entre Jahwe-Jaldabaoth e Satã, comandando anjos revoltosos. Porém, na origem, Deus é um só. Assim, Deus derrotado vira Satã e Satã vitorioso vira Deus e vice-versa. A origem da interpretação do diabo como um Pai decaído se articula com o magnífico romance analisado. Em que lugar, senão uma Loja aceitaria discussões desta ordem?
1917 "Fantasia e arte", à qual Fourton se referiu com mais detalhe, intitulando-a, em 1917, de "Arte e fantasia na obra de Anatole France e Emile Zola" O interesse de Freud sobre a chamada Psicanálise aplicada pertence portanto aos primórdios no caso da literatura e no caso da Religião e Moral com especulações continuadas acerca de Moisés, Hamurabi. A arte também passa a ter uma interpretação participativa na qual o observador se vê projetado nos personagens através de fantasia. A noção de fantasia inconsciente instala de vez o conceito de Inconsciente.

 

Pensamos que realmente Freud não mentiu ao dizer que foi esplêndido este período. Foi esplêndido por estar isolado do mundo comum, mas vivendo um mundo em paralelo, de uma sociedade secreta aos estranhos e inimigos. Ele teve acesso ao convívio desfazendo a solidão e dedicado as coisas intelectuais e simbólicas. Acreditamos que ele teve apoio desta Loja judia para prosseguir seus trabalhos, seus atendimentos clínicos, suas especulações. Homem engajado em conjecturas onde tinha suas intuições seguidas de deduções e induções, pois Freud não cessava de especular, bem como de submeter suas ficções e hipóteses à verificação. Acreditamos Freud teria adoecido gravemente se ficasse somente conjecturando e atendendo alguns poucos pacientes vindos do gueto judeu vienense. Afirmamos este caráter altamente especulativo que a maçonaria permite e serviu como um ninho de crescimento para pessoas dedicadas como Freud. Um homem como Freud necessitaria de um público que tivesse um mínimo de tolerância para com suas excentricidades e manias, tal como a comunidade médica o via. Seu narcisismo foi plenamente contemplado.

Segundo seu colega de Escola e secretário da Wien - H. Knoepfmacher -, Freud por razões de saúde e dificuldade de alocução não tomará mais a palavra nas sessões das terças-feiras a partir de 1917. Não obstante, prosseguirá dando consultas, pesquisando, escrevendo, e publicando. E os seus Irmãos da BB continuaram visitando-o. Em 1926, sua Loja e outras austríacas reúnem mais de 500 pessoas para celebrar seu aniversário de 70 anos e Freud não compareceu em virtude de doença; 1931: nova celebração do seu aniversário em Loja. Em 1936, mais uma celebração em Loja de seu octogésimo aniversário. Em 22 de abril do mesmo ano a Loja Harmonia comemorou seu aniversário por ser ele também um de seus fundadores. No dia 16 de maio o Grão-Mestre Braun da B'naï B'rith apresenta uma prancha em Loja sobre Freud, redigida por Freud e já referida; 1937: em setembro, sua Loja comemora o quadragésimo aniversário de sua iniciação como irmão. No seu Passamento, no dia 23 de setembro 1939, seu Irmão de Loja, o grande escritor Stefan Zweig, fez o seu elogio fúnebre.

H. Knoepfmacher (1979) faz correções em biógrafos clássicos como Anzieu, Jones, Bakan, que não observaram a importância ímpar da Loja para a criação da Psicanálise e para a sobrevivência daquele judeu pobre mas dedicado a ser um grande homem. Aponta o envolvimento longo, quase a dizer que uma vez maçom nunca mais deixou de ser maçom, e de maneira participativa, sem nunca pedir quite placet, ou seja, demissão. Assim, Freud desde sua iniciação passou a ser palestrante assíduo e dentro das formalidades do rito. Note-se que, diferentemente da maioria dos iniciados, que produzem trabalhos em geral relacionados com o ritual vivido de iniciação, Freud aprendiz estava apresentando um trabalho bem especializado, diríamos psicanalítico: o tema da Interpretação dos sonhos. Ao contrário da rejeição das suas teorias recebida no mundo externo, ele foi aplaudido e reconfortado, tornando-se palestrante muito querido. Sua participação não se limitou a Loja Viena, pois também participou da vida institucional da congregação B'naï B'rith. Tanto pertenceu a esta ordem iniciática e simbólica que fez apresentações em outras Lojas, além das descritas anteriormente na sua Loja: uma vez na Loja irmã "Concordia" de Viena e também na "Moravia" em Brünn. Knoepfmacher assinala pelo menos duas apresentações altamente significativas, sendo uma delas de sessão aberta ao grande público. Em 9 de fevereiro de 1900, com a presença de senhoras ele pronunciou-se "Sobre a psicologia da criança".

 

5. A psicanálise até 1907 remanesceu um assunto principalmente judaico

A entourage de Freud também fazia parte da Wien. Seu irmão Alexander entrou em 1901, seu melhor amigo ao longo da vida, Oskar Rie, foi iniciado no mesmo ano de Freud, e sucessivamente o sogro de Ernst Kris e Herman Nunberg, conhecidos psicanalistas que emigraram para os Estados Unidos; Leopold Königstein, presente no seu sonho de Irma, foi iniciado em 1898. A lista de irmãos não cessa de crescer ao longo dos anos, alguns se tornaram grandes psicanalistas internacionais como Edward Bibring, Edward Hitschmann, Theodor Reik e Otto Sperling, que se filiaram a outras lojas vienenses coirmãs. Como vemos, Freud estava muito longe de ser uma múmia paralítica bem enfaixada de neurose e trancafiada dentro do sarcófago antissemita austríaco. Não ficou passivo-agressivo face a sua grave situação profissional e de sobrevivência contra o antissemitismo. Existia um mundo paralelo no qual ele podia ficar bem à vontade e criativo. Ousamos dizer que ele recebeu suporte para proceder sua sublimação em forma da obra clínica e intelectual que estava a construir. Além disso, pensamos que ele auferiu um prazer esplêndido, tanto é que frequentou a Loja até antes de sua cirurgia na mandíbula, conforme as listas de conferências dadas em sessões fechadas da Loja.

Explicitaremos a seguir a segunda vertente explicativa do período de splendid isolation, aquela em que, segundo seu biógrafo oficial, Freud apoiou-se somente no seu imaginário e na relação comFliess, desconhecendo as necessidades básicas de Freud como pai de família e que ficou passivamente confinado no seu consultório. Esta versão, pensamos ser uma fachada para sua intensa atividade seja como pesquisador, seja como membro ativo da B'Naï B'Rith. Pensamos que o discurso divulgado por Jones é mais um conteúdo manifesto presente na mídia, enquanto a vida latente de Freud continuou, pensamos, no intimismo da Wien. Deste modo, Freud não ficou inerte como no famoso quadro do Sonho do prisioneiro. Contra a versão semioficial a partir da metáfora do isolamento esplêndido Freud declarou de antemão que o "Vós fostes o meu primeiro auditório" (Freud, 1969, p. 316-317) não pode ser elidido doravante.

 

6. A metáfora da splendid isolation na biografia oficial de Freud merece ser reinterpretada

A expressão splendid isolation teve origem na política exterior inglesa de isolamento em relação ao continente europeu durante o século XIX sob o comando de primeiros ministros conservadores como Disraeli e o Marquês de Salisbury. A ironia foi cunhada por um político canadense apontando o isolamento britânico e as consequências que não sabemos até hoje se foi salutar ou malfazeja. Igualmente, o seu isolamento propiciou-lhe voltar-se para seu imaginário e cortar as ligações com o mundo externo. Freud ama a ideia de ser a Inglaterra rica e sem relação com o estrangeiro. A Inglaterra é sofredora por conta do seu isolamento e sem participação em decisões cruciais nos eventos mundiais. No entanto, aponte-se sua neurose: Freud não estava na mesma situação de riqueza que a Inglaterra, ele não tinha nenhum Império colonial. Finalmente, no outono de 1902 Freud escreve uma carta a quatro amigos analisandos - Max Kahane (primeiro analista a exercer a profissão depois de Freud), Rudolf Reitler, Wilhelm Stekel, Alfred Adler - e começa as reuniões da 'Sociedade das Quartas-Feiras' na sua casa, pondo fim ao seu splendid isolation. Jones (1979, capítulo 17 - "Emergência da Solidão") diz-nos que Freud havia transformado o período em algo bucólico, rosa, tendo dourado a pílula amarga do isolamento posteriormente quando anunciou a metáfora. Pensamos que Freud continuou neuroticamente com dificuldades nas relações de articulação política com seus cooperadores. Não tinha gosto pelo comércio como Jones. Ele iniciou o desenvolvimento de intensas relações pelo mundo afora, delegado por Freud. Assim, Jones é o difusor da psicanálise e quem mais a internacionalizou. Um inglês que sabia comerciar (trading) diferentemente do mestre.

Uma outra fonte inglesa desta metáfora deriva das suas leituras de adolescência de Robinson Crusoé. O livro de Daniel Defoe como prisão imaginária idílica e a metáfora da splendid isolation em uma casa na Bergstrasse de Viena ressoam agora como uma ironia, caso não consideremos a importância da sociedade israelita naquele momento da vida de Freud. Ironia fina de quem aspira muito e foi pouco reconhecido. O marinheiro Crusoé é Freud na sua ilha imaginária sonhadora sobrevivendo neste além-mar que foi levado pelos desastres da sua vida profissional. Muitos anos depois ele utiliza a imagem de um prisioneiro sonhando na masmorra. O sonho do prisioneiro, quadro de Moritz Von Schwind. Na verdade, Freud encontra refúgio noimaginário que protegeu muitos seres humanos de existências virtualmente insuportáveis. Encontra também apoio na sociedade ritualística e simbólica. Existe uma espécie de solução indo à Loja: quebra o isolamento e incrementa seu narcisismo e produção. Na falta de realização efetiva no mundo profano, um mundo onírico e de fantasia desmedida tornou-se um bálsamo contra o isolamento forçado neurótico. Pensamos que as sessões quinzenais tiveram um efeito terapêutico sobre o Freud Robinson Crusoé. Se Freud se identificava com Crusoé, Fliess seria o seu Sexta-Feira...?! Ou os sextas-feiras seriam seus "Irmãos da Aliança", organizados para resistir ao antissemitismo e a fornecer auxílio aos membros da fraternidade? "Vós fostes meu primeiro auditório" e os quarenta e dois anos de pertencimento a esta Ordem maçônica hebreia mostram a efetiva importância da BB para Freud ter se tornado quem veio a ser.

A splendid isolation, esta ilha (isola em latim é ilha) secreta para a história oficial da psicanálise não deve ser mais interpretada somente como uma metáfora douradora da pílula amarga da existência de Freud. A sua Loja mãe foi a montanha principal da cordilheira de montanhas da B'naï B'rith, na qual Freud se sentiu suficientemente apoiado para alçar voo na sua viagem psicanalítica. O impacto da maçonaria judia na vida de Freud nos parece evidente. O suporte material e moral é o mínimo que podemos apontar conhecendo-se quais são os ditames que regem o devenir maçom. Ele tinha sempre ao seu lado pessoas e uma plateia com uma tolerância eterna. Estamos também a pensar como a presença do rito e da tradição oral maçônica influiu na pessoa de Freud, na teoria e na prática freudiana. Infelizmente, o conteúdo das pranchas foi perdido, mas é evidente a utilização de suas apresentações para desenvolver suas teorias ao longo dos anos. A maior parte dos temas foram incorporados nas suas publicações oficiais psicanalíticas, bastando conferir os títulos com os trabalhos constantes na Edição Standard das obras completas.

 

7. Conclusão: Freud uma vez Irmão sempre Irmão

Certamente teremos que voltar ao tema da relação teórica entre o pensar maçônico e o pensar psicanalítico freudiano em outro trabalho. No presente texto estamos a situar a presença indelével da B'naï B'rith na difícil travessia de Freud-médico para Freud-psicanalista até a sua morte. No final de vida de Freud encontra-se a ascensão do nazismo. Havia seis Distritos da B'naï B'rith na Europa. Com a guerra, os nazistas tomaram todas as propriedades desta organização no continente europeu, dissolvendo a B'naï B'rith bem como a maçonaria em geral, que foi proibida de funcionar, tendo sido muitos maçons massacrados. Somente em 1960 a B'naï B'rith ressuscitou em Viena com a Loja Zwi-Peretz-Chage, segundo Fourton (2012). Não obstante, a BB continuou lembrando do seu filho, agora importante: o túmulo dos pais de Freud foi reformado pela B'naï B'rith. Atualmente, temos em Paris a Loja Sigmund Freud, estabelecida em fevereiro de 2004. Pressionado até o fim da vida a ser como Jacob, que fugiu para o Egito no final da vida, Freud migrou para a Inglaterra, o seu Egito moderno. Então, Freud não foi tímido em setembro de 1937 quando a sua Loja festejou o seu quadragésimo aniversário em sessão fechada. Freud enviou missiva aos Irmãos de sua oficina, exprimindo-se Freud-Maçom para a eternidade: Nesta ocasião disse:

"Sou tocado cada vez que escuto que a Associação se lembra de mim e me deseja o bem. Agradeço a Vós, Senhor o Presidente, e a Vós meus caros Irmãos. O que nos une não perecerá com as mudanças de época".
Sigmund Freud se foi para o Oriente Eterno no dia 23 de setembro de 1939 (Fourton, 2012, p. 120).

 

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Endereço para correspondência
Francisco Martins
E-mail: fmartins@unb.br

Artigo recebido em: 01/10/2013
Aprovado para publicação em: 05/01/2014

 

 

* Prof. Dr. Francisco Martins, Psiquiatra, Psicólogo, Psicanalista.
1 Dennis B. Klein; Jewish Origins of the Psychoanalytic Movement, 1985, principalmente o capítulo 3: "The Prefiguring of Psychanalitical Movemente: Freud and the B'naï B'rith", pp. 69-102.
2 Vide o orientado e informado livro de Betty Bernardo Fuks; Freud e a judeidade: a vocação do exílio, 2000.
3 http://www.bnaibrith.org/about-us.html - Página oficial na Internet. Acesso em: 28 de fevereiro de 2014. Vide também "B'naï B'rith". JewishEncyclopedia.com. Acesso em 28 de fevereiro de 2014.
4 O presente quadro foi construído principalmente a partir dos Anexos I e II do livro de Dennis B. Klein; Jewish origins of the psychoanalytic movement, 1985. Quando a informação teve outra fonte (por exemplo Ernest Jones) indicamos no texto concernente. O estudo e listagem de Jean Fourton, Freud Franc-maçon, 2012, mais recente, também nos ajudou a confirmar a participação ativa do Mestre Freud. Em alguns itens existem discordância entre Klein e Fourton, que fez uma lista menos precisa no nosso entender. Utilizamos para dirimir informações contraditórias principalmente sobre datas o artigo de um psicanalista e Irmão da Loja Wien que primeiro divulgou trabalhos acerca do tema que estamos tratando: H. Knoepfmacher, "Sigmund Freud and the B'naï B'rith", 1979.