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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro dic. 2014

 

ARTIGOS

 

Ideais e perversidades em jogo nas Políticas Públicas de Assistência Social: uma leitura psicanalítica dos valores e práticas1

 

Ideals and perversities in action on Social Work Public Politics: a psychoanalytical look over values and practices

 

 

Carolina Rodrigues Alves de Souza*; Daniel Menezes Coelho I**

I Universidade Federal de Sergipe - Brasil

 

 


RESUMO

O artigo que segue foi desenvolvido a partir de uma dissertação de mestrado em Psicologia Social e pretende fazer uma análise acerca dos valores que permeiam as práticas na Política Pública de Assistência Social, especificamente em um serviço de Execução de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Tendo como público adolescentes que infracionaram e sua família, tal política coloca em ação uma série de práticas que mobilizam, inconsciente e subjetivamente, todos os atores, inclusive os trabalhadores sociais que executam o programa. Agir em prol de um bem comum, buscar e protagonizar ideais de família e infância faz com que nos deparemos com o viés transgressor - ou simplesmente perverso - que age em desacordo com a moral e com as leis. É na tentativa de entender esse encontro que desenvolvemos a análise que aqui se apresenta.

Palavras-chave: políticas públicas; assistência social; ideais; moral.


ABSTRACT

The following article was developed from a master degree term paper in Social Psychology and it intends to analyze the values that permeate the practices in action on Social Work Public Politics, specifically on a service where social-educational measures without liberty restraints are executed. Having as its public teenagers who committed crimes and their families, such politics puts in action a series of practices that mobilizes, unconsciously and subjectively, all of the actors, including social workers that execute the program. To act in sake off common well, to seek and to perform ideals of family and childhood provokes the encounter with the transgressive - or just perverse - side of it which acts in disagreement with the morality and the laws. The attempt to understand this encounter and the practices it originates is the reason why is here developed the analysis here introduced.

Keywords: public politics; social work; ideals; moral.


 

 

Introdução

Para aqueles que vivem a Política Pública de Assistência Social soa redundante afirmar que a instituição "família" ocupe nela um lugar central. Não nos parece óbvio, contudo, compreender que papel ela opera ali dentro e o que produz a ocupação que faz dos serviços da política. Da mesma forma, não é inequívoco o papel das equipes psicossociais ou das ações socioeducativas, carro-chefe da política. Foram, portanto, essas problemáticas as impulsionadoras das reflexões que guiam este artigo.

Falaremos neste trabalho a partir da experiência de execução das medidas socioeducativas em meio aberto, já preconizadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, cujo acompanhamento é realizado mediante avaliação técnica (feita por assistentes sociais e psicólogos) em um serviço municipal de assistência social. Dito isto, nota-se que sua execução se situa num lugar que é, no mínimo, desconfortável: aplica-se a lei de caráter sancionatório no mesmo espaço em que, por princípio, atua-se no sentido da restituição dos direitos violados dos usuários (tal serviço se situa na Proteção Social Especial de Média Complexidade), neste caso, dos próprios adolescentes que cometeram um ato infracional.

Socialmente falando, não parece tão complicado compreender a importância de um trabalho de empoderamento desses adolescentes e de suas famílias, histórica e politicamente marginalizados, com o propósito de redução da violência, do envolvimento com o abuso e tráfico de drogas, dentre outros. É a partir do conceito de inconsciente, no entanto, que entendemos que o olhar torna-se embotado, a história é esquecida, conquanto ainda não elaborada, retornando sub-repticiamente e impondo valores e significados que por vezes nos passam despercebidos.

É o véu que encobre muitos desses valores, especialmente ligados às noções de família e infância, que queremos começar a suspender ao compreender que papéis estes adolescentes e suas famílias ocupam e podem ocupar na política, e, em nosso recorte, em um serviço cujo caráter é protetivo e sancionatório. Em contrapartida, também desenvolveremos um raciocínio acerca do que opera subjetivamente o corpo técnico que executa o serviço (além de outros operadores que dele participam indiretamente) e sobre as possibilidades de transgressão dos atores que participam da política.

 

Educabilidade das crianças

Partimos, neste trabalho, da leitura da legislação especializada: ECA (Lei nº 8069/1990), Lei do SINASE (Lei nº 12594/2012) e das normativas que embasam a execução do trabalho (PNAS de 2005, NOB-SUAS de 2005, LOAS de 2010, SUAS de 2012, etc) e, embora o trabalho esteja diretamente vinculado à justiça, aqui especificamente da Justiça Especializada da Infância e da Juventude, além do saber legal, é o saber psicossocial que dá as cartas, referenciando as decisões com base nas avaliações sociais e psicológicas que o caso em questão possibilite.

Partimos do pressuposto de que é a noção de desenvolvimento, bem como a de educabilidade - que lhe está conjugada -, que garante a possibilidade de mudança e, assim, a fundação do trabalho que ali se constitui. O sucesso da empreitada está condicionado à possibilidade de educação daqueles que, tomados em seu caráter de formação, ainda podem ser modelados pelos adultos que se esforçam em ensinar-lhes o caminho da autonomia, embora às vezes isso seja feito de forma contraditoriamente tutelada.

Em se tratando de um serviço que lida com adolescentes que, ao cometerem atos infracionais, descumpriram a lei posta e, assim, não observaram seus deveres sociais no pacto social, a aplicação de medidas que se chamam socioeducativas nos trazem algumas pistas do que se pretende com elas: uma educação social ou cidadã, talvez?

Compreende-se, a princípio, que os adolescentes em questão (e suas famílias) erraram, equívoco este explicado a partir de uma carência educacional. Esta afirmação não é feita, assim, às claras, mas a insistência numa solução socioeducativa nos indica isso. Portanto, embora eles possam agir como delinquentes, assumir como característica mais importante a "condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento", tal qual é feito no 6º artigo do ECA (Brasil, 1990), lhes garante o investimento de trabalho - educativo e moral - para, por sua vez, tentar garantir suas mudanças de perspectivas e de comportamento.

Dadas as nossas prévias exposições, quais seriam as implicações em ter como objeto de intervenção - na execução das medidas socioeducativas (e de investigação) nesta pesquisa - os supostos delinquentes, também supostamente mal desenvolvidos, malcriados ou mal-educados? Qual é o efeito disso nas políticas públicas de assistência social e no trabalho diário que é colocado em ação? O que promovem, afetiva e, assim, efetivamente, os investimentos que deitamos sobre estas figuras, quais os sentimentos que eles fazem emergir em nós?

 

A infância e os laços familiares

Phillip Ariès, em sua obra História social da criança e da família (1975/1981), propõe que há, em relação aos valores de família e de infância, um novo entrelaçamento que não é natural, nem está presente desde suas primeiras formatações. Indica o autor que nem sempre houve tamanha afinidade entre as funções e valores da família e da infância e que a tomada da primeira como a maior e, quiçá, a única responsável pela criação e educação das crianças tem sua base num argumento muito recente. Dessa forma, empreender uma investigação sobre a família moderna faz com que nos deparemos também com o nascimento do conceito de infância, ou do sentimento da infância, como coloca Ariès (1975/1981), e, posteriormente, da adolescência, posta numa espécie de limbo que separa a infância e a idade adulta (Calligaris, 2010).

Ariès (1975/1981) põe os conceitos de família, de infância e mesmo de educação em termos de um sentimento moderno que foi ganhando sentido em uma conjuntura histórica que lhe dava lugar. Ainda que a família já pudesse existir anteriormente enquanto realidade, ela ainda não trazia em si os valores que passaram a associá-la ao sentimento da infância. Foi preciso que se desenvolvesse uma sensibilidade moderna (Sennett, 1943/2001) que articulasse a vida da criança enquanto digna de atenção e cuidados à família e à educação que esta deveria lhe garantir.

Ariès (1975/1981) aponta ainda que até o século XII a criança tinha o aspecto fugaz e desimportante, especialmente pelo alto índice de mortalidade infantil, fazendo com que raramente fosse tomada como parte da família. Foi em meados do século XV que surgiu o entendimento de uma "inocência infantil", o que produziu uma série de procedimentos a serem tomados diante dos infantes e um grande arsenal literário sobre o cuidado pedagógico a lhes ser direcionado. Afirma: "O sentido da inocência infantil resultou, portanto, numa dupla atitude moral com relação à infância: preservá-la da sujeira da vida, e especialmente da sexualidade tolerada - quando não aprovada - entre os adultos; e fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão" (Ariès, 1975/1981, p. 146).

Na virada no século XIX para o XX, a psicanálise deu sua contribuição à questão. Apesar da subversão que promove ao colocar em pauta o conceito de inconsciente, agenciando grande complexidade dos processos mentais e de toda uma série de mecanismos irreconhecíveis pelos sujeitos nos quais atuam, bem ao gosto do seu tempo, ela produz, junto a outras teorias, suas contemporâneas, uma nova concepção a respeito da infância, da família e do desenvolvimento. Diante do fracasso das respostas da psiquiatria, que impunha definições e resultados que operavam em duas categorias rígidas, quais sejam, a do sujeito diagnosticado enquanto doente, que exigia tratamento e cuidado, e o sujeito não doente e, portanto, delinquente, responsável por suas escolhas a quem cabia punição (Foucault, 1974-1975/2001), Foi a psicanálise, com suas concepções de desenvolvimento, de formação edipiana e, ulteriormente, de cura analítica, que permitiu encontrar outras soluções para uma avaliação da possível mutabilidade e, se quisermos, educabilidade, especialmente em relação aos jovens.

 

O cuidado à infância

A dificuldade de se remeter ao material de sua infância e mesmo de estudá-la atravessaria, de acordo com Freud, a problemática do mecanismo inconsciente do recalque. Freud sugere que o inconsciente é infantil a partir da observação dos neuróticos em sua clínica, em quem os traços e estados infantis são preservados na neurose sob aquele mecanismo (Freud, 1913/1996). Com isso, preserva-se também certa contemporaneidade que faz com que as situações trazidas em análise, ao remeterem a algum elemento inconsciente que pertença à infância, provoquem a atualização do mesmo sentimento, dando à neurose um caráter infantil e regressivo (Freud, 1913/1996)2.

Um indivíduo que passou por uma série de investimentos erógenos, tendo constituído diversas identificações com os objetos externos e submetido seu narcisismo primário, seus pensamentos e seus sentimentos ao recalque, permanece, no entanto, com estes traços intactos, como se fossem monumentos erigidos em seu inconsciente, bastando para seu aparecimento e descoberta a presença de um elemento posterior que faça emergi-los, seja sintomaticamente ou pela via da análise e de sua elaboração (Freud, 1905/1996). É assim que o que remete àquilo que foi afastado da consciência costuma gerar os sentimentos mais desagradáveis, fazendo transparecer em sua emergência o caráter infantil que cada um preserva em si.

Freud também aponta para uma qualidade perversa polimorfa do infante. Isso consiste em dizer que nele ainda não foram levantados diques morais, tornando-os muito propensos às transgressões, já que ainda não há em relação a elas qualquer resistência (Freud, 1913/1996). Assim, a criança exibiria em si os germes de todas as perversões, ainda que as pulsões só emerjam nela com intensidade moderada. Este é o mote a partir do qual Freud afirma que "os neuróticos preservaram o estado infantil de sua sexualidade ou foram retransportados para ele" (Freud, 1913/1996, p. 180), embora o façam de forma reativa. Não nos causa espanto, portanto, que seja tão comum o imperativo de controle da criança - que não apenas carrega o tal germe da perversão a ser evitada pela civilização, mas principalmente que carrega em si o elemento que foi posteriormente recalcado na neurose como um todo, produzindo desconforto e incômodo aos que já realizaram o recalque inevitável (cf. Freud, 1919/2010).

Junte-se a isso o caráter de desamparo que possui a figura da criança. Freud defende, desde o "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1950 [1895]/1996), que faz parte da qualidade primeira do bebê seu desamparo. Ele explica que é pela via dessa dependência inevitável dos cuidadores que ele desenvolve seus primeiros vínculos e faz investimentos em objetos exteriores a si. Além dessa consequência, o caráter de desamparo é que dispara a necessidade da criança de colocar em palavras suas demandas, passando a dispor de outros, seus primeiros objetos, na conquista de suas vontades (Freud, 1950 [1895]/1996). Apoiados em Lacan, Soares, Susin e Warpechowski (2010) indicam como o desamparo constitutivo de qualquer sujeito vai além de sua dependência motora. A condição humana de desamparo estaria mais em sua qualidade de ser desejante cujos desejos não poderão jamais ser completamente satisfeitos.

Surge, diante do encontro com o nosso desamparo estampado na representação que temos da criança, um incômodo que nos impulsiona e nos trai, e é preciso advertir sobre o perigo que um cuidado a ser dirigido a ela, tal qual a tarefa de proteção posta aos técnicos e atores da política em questão, pois desse modo incorremos no risco de nos compadecermos de seu desamparo e, não sem indulgência e mesmo violência, impormos uma ajuda não solicitada (Szasz, 1994). Dentro da perspectiva analítica, Soares, Susin e Warpechowski (2010) mostram um desses riscos: atestam que é comum aos sujeitos que procuram os espaços de assistência social, pela história de violência e de marginalização, chegarem ali sem conseguir fazer uma demanda explícita acerca do seu sofrimento; diante disso, a sugestão é a de que o psicólogo assuma uma postura ativa, emprestando seu desejo para que a força desejante daquele sujeito, até então aplacada e amortecida pelas condições sociais de sua vida, ganhe novo ânimo (Soares, Susin & Warpechowski, 2010). O perigo que apontamos aqui é o de que, no auge do nosso narcisismo e no emaranhado dos nossos sentimentos, percamos de vista o que é da ordem do empréstimo - no argumento dos autores, do desejo do psicólogo de postura ativa - e o que é da demanda do sujeito, esta que, diante de nossa suposição de sua impossibilidade em formulá-la, pode acabar sendo impedida de emergir.

A pessoa carente de cuidados torna-se, deste modo, aquele a quem falta autonomia para tomar (boas) decisões e para agir (corretamente). É curioso notar, entretanto, que a leitura da psicanálise aponta um caminho contrário. Se tomarmos, como Lacan (1956-1957/1995), o desamparo como o disparador de uma falta que produz infindáveis e inalcançáveis desejos, temos que a possibilidade mesma do desejar só se dá na medida do desamparo - que, aliás, é generalizado e constitui o sujeito.

O que tentamos destacar aqui é menos uma noção de infância, de família e de desenvolvimento em si mesmas do que a apropriação que se pode fazer delas. Considerando que já aceitamos a premissa de que esse sentimento moderno está presente em nossas vidas, perguntamos agora sobre a possibilidade de positivação do desamparo humano. Partindo de uma leitura que veja tão somente vulnerabilidade, que cobre cuidado e proteção e garanta o controle, seria possível então atravessarmos para a outra margem do desamparo, aquela onde há desejo e ímpeto?

 

Mecanismo perverso e neurose: uma análise psicanalítica

Se a família é a responsável pela prole e garante seu ninho seguro, se a infância é a esperança do futuro, já que a supomos maleável e passível de ser modelada pela família e pela sociedade dentro de um desenvolvimento considerado ótimo ou saudável, e, assim, que a educação funcione tão bem aos propósitos morais e sociais, nada mais justo que uma política pública que está a serviço da sociedade e dos seus valores esteja também a serviço destes ideais.

Diante disso, pairam ainda, especialmente, duas dúvidas: a primeira é sobre o que faz funcionar em termos práticos a colocação de tamanhos ideais na dianteira de ações operadas por profissionais sociais, cujas subjetividades acabariam entrando em jogo na execução do trabalho; a segunda é sobre o propósito mesmo da política ao desencadear suas ações e usar suas ferramentas com fins do atingimento destes ideais.

Como cada sujeito promove estes ideais? Como cada um deles prescreve o caminho para atingi-los? Diante de uma concepção ideal, nunca correspondente à realidade vista ou produzida, e das frustrações do caminho e dos desentendimentos sobre onde se deva chegar, a pergunta que permanece entre os trabalhadores é: o trabalho que é feito pode um dia atingir aquele ideal? E a resposta já está subentendida no desânimo que volta e meia os acomete: sei que não, mas mesmo assim continuamos trabalhando... Não é de espantar que o mecanismo seja o do desmentido3; denega-se um fracasso em prol da manutenção do investimento no trabalho e, ulteriormente, da saúde de cada um. Devemos fazer vistas grossas diante da aparição do mecanismo tipicamente perverso?

Há três formas principais de representação do problema da perversão em psicanálise: a primeira, introduzida nos primeiros escritos de Freud, fala de uma polimorfia perversa sexual que seria alterada no percurso do desenvolvimento, com ajuda da educação e com a passagem e admissão da castração; neste viés, a perversão estava intimamente associada com o problema sexual e era definida a partir da assunção e do desvio do objeto e do objetivo sexuais. A segunda perspectiva da perversão em que se destaca o mecanismo do desmentido implica na existência do registro da castração que foi, no entanto, negado pelo sujeito (Freud, 1927/1996); foi essa configuração conceitual que permitiu a extensão do entendimento da perversão sexual para o campo social, forjando o conceito de perversão social e construindo novas formas de entender tal mecanismo no estabelecimento dos laços sociais. A terceira forma é a da transgressão; ao contrário das outras definições, ela trata de uma forma de perversão que, de fato, impõe riscos (Lacan, 1959-1960/1991), mas que, não obstante, também é a que produz transformação.

Maria Cristina Poli (2004) usa o mito de "Totem e tabu" para mostrar a emergência do mecanismo do desmentido na instauração da cultura; ela indica como o surgimento do pai simbólico, o totem4, funciona não apenas para garantir os laços sociais entre os irmãos que, após matarem o pai, por temerem ter o mesmo destino dele, resolvem instaurar uma irmandade em que todos teriam que renunciar a suas pulsões narcísicas em prol da convivência com os outros, mas porque erigir tal objeto de veneração funciona também como um objeto-fetiche, como a constituição de um monumento que encobre a verdade violenta, embora conhecida por todos, que instarou a cultura (Poli, 2004). Desta forma, a constituição de um ideal que garanta simbolicamente a sobrevivência daquele que perdeu seu lugar enquanto objeto de investimento está afim ao mecanismo perverso do desmentido: é uma forma, afinal, de lidar com o desmantelamento de uma fantasia quando já se sabe não ser ela possível de sustentar. Assim, garante a permanência de uma ilusão enquanto ideal que, embora se persiga mesmo assim, já não é possível alcançar.

Em outro caminho, embora tomando como fundo a mesma curiosidade acerca da generalidade de um mecanismo perverso associado à neurose, Calligaris (1991) indica um novo conceito: o de montagem perversa. Em sua tese, ele tenta indicar uma mudança desde a proposta freudiana de que vivemos sob um sintoma social neurótico para a indicação de que vivemos, ao contrário, sob o sintoma social perverso em que a própria configuração do laço é perversa. Com isso ele dispensa a interpretação de um referencial neurótico que se ancora num suposto saber paterno - daquele mesmo pai assassinado na cena fantasística do complexo de Édipo e que retorna simbolicamente como supereu - e supõe que a referência ideal é agora compartilhada e sustentada num semblante desse saber paterno que surge totalizado, dando aos que a ele se referenciam a tranquilidade da certeza que falta aos neuróticos e cuja falta incide como sofrimento (Calligaris, 1991).

O que Calligaris (1991) demonstra é que a montagem perversa é a própria saída da neurose do seu sofrimento, embora a aquisição dessa nova certeza implique em se alienar da própria subjetividade, tornando-se instrumento do Outro - desse semblante, dos ideais forçosamente compartilhados. Nesse sentido, Jurandir Freire Costa (1991, p. 73) afirma que: "pouco importa a renúncia à sua singularidade, se, na orgia burocrática, o sujeito libera-se do fardo do desejo, da falta ou da castração". Costa (1991) adota o conceito de Calligaris para empreender uma análise da psiquiatria burocrática que, como ele indica, acaba se configurando com o mesmo desenho de qualquer burocracia, incluindo aquela do serviço público brasileiro. Ali aponta que o exercício burocrático insere os sujeitos numa espécie de montagem perversa, em que eles não acreditam poder agir ou pensar diferente do que fazem devido à exigência da "máquina". A obediência cega a ordens que emanam de Ninguém, segundo o autor, funciona no lugar assumido pelo oprimido como um recurso para dar sentido a uma existência que parece testemunhar o impossível, enquanto do lado do opressor faz com que se sinta parte de uma engrenagem muito maior, o que lhe dá o sentimento de poder (Costa, 1991).

O que, no entanto, marca o desmentido, conforme colocamos anteriormente, é que tal obediência se faz em prol da justificação de um resultado que sequer se acredita que vai ser atingido. Como se age em obediência a não-sei-que-instância, fica fácil se demitir da responsabilidade pelo fracasso do empreendimento. Diz Jurandir: "[...] o que de modo geral o burocrata ‘sabia’: não adianta, por mais que se faça, tudo é desprezivelmente insuficiente" (Costa, 1991, p. 51).

Ambos os autores apontam que não se trata aqui de crueldade ou violência tal as que se viram nos regimes totalitários, mas de uma disponibilidade da neurose em abrir mão da sua subjetividade em nome da montagem e da exigência do social, tendendo a reificar um "Outro" como mandatário do seu desejo e aliviando assim a carga do seu desejar (Costa, 1991). O perigo é que o semblante tem um funcionamento necessariamente totalitário, já que ele precisa se estender: a recusa dos outros a se tornarem instrumentos da montagem comprometem de forma intolerável sua consistência e por isso ele precisa ser imposto a todos, inexoravelmente (Calligaris, 1991).

O entendimento de uma montagem perversa assumida por neuróticos se aproxima do unheimlich - também tão comum e diretamente ligado às práticas moralistas -, ou seja, aquele que parece figurar em si o que o neurótico precisou transpor topicamente (recalcar) para o inconsciente de forma a não vê-lo. A diferença é que assumir uma montagem em que somos instrumentos de um ente maior não só parece mais conveniente e menos incômodo como, principalmente, devolve-nos a arma - a agressividade que fomos impelidos a abandonar ou a voltar contra nós mesmos na produção da instância superegoica - para que possamos lutar, enfim, contra os supostos males do mundo: ainda que saibamos que este ideal de correção esconda um buraco muito maior o qual nunca poderemos tamponar, mas mesmo assim...

Faz-se necessário apontar, no entanto, que o mecanismo perverso que se vê acontecer é, na maioria das vezes, colocado diante de uma realidade ela mesma bastante perversa e cruel, configurando o desmentir, ulteriormente, como uma tática, seja ela de resistência, de persistência e até mesmo de sobrevivência diante de uma realidade - e sua impossibilidade - imposta tão duramente. E embora esta impossibilidade continue a figurar como a castração denegada, o movimento de resistir a ela ainda pode produzir efeitos analíticos e transformadores.

 

Sobre a possível incidência da transgressão

No seminário A ética da psicanálise (1959-1960/1991), Lacan afirma, muito oportunamente, que a psicanálise voltou a dar à perversão seu direito de cidadania. Esta afirmação está atrelada ao valor, ali, do gozo da transgressão e indica a possibilidade de emergência dela. É a fantasia, diz Lacan, que torna o gozo apropriado ao desejo e permite, por sua via, que também o prazer participe dele (Lacan, 1962/1998). Aqui também se justifica a indicação de que a neurose é o negativo da perversão. A transgressão, para o neurótico, é objeto de suas maiores angústias e, enquanto se permite fantasiar sobre ela - às vezes a angústia invade até mesmo o espaço supostamente seguro da fantasia -, ele sofre diante das incidências transgressivas, suas e de outrem.

Num ensaio intitulado "Nas bordas da transgressão", Joel Birman (2002) indica a diferença entre perversão e transgressão. Em oposição ao recurso teórico que adotamos ao definir a transgressão como uma forma de perversão, já que partimos do pressuposto de que não raro ela seja assim entendida e de que há aí uma afinidade em termos do teor de agressividade do investimento presente em ambas, Birman prefere distinguir os conceitos a fim de enfatizar o valor analítico do ato transgressor. Diz ele que enquanto a transgressão questiona o sistema normativo, a perversão visa a reprodução do sistema de normas instituído, eliminando assim o risco e cedendo ao agente do ato perverso o incremento do seu poder pessoal.

A angústia diante da transgressão implica na própria emergência do desamparo pela exigência de que o sujeito se arrisque a perder a segurança garantida a ele pelo sistema normativo e de que se torne, assim, sujeito à morte no registro da fantasia. Birman (2002) indica que a divisão do sujeito já apontada por Freud (Spaltung) marcaria um conflito entre um polo transgressor e outro normativo.

Finalmente, transgredir é a forma a partir da qual uma subjetividade pode resistir ao imperativo da normalização e da disciplina. A via da transgressão quer a abolição momentânea do sistema normativo; ela não se esforça, em sua ação e incidência, pela instituição de um novo sistema, mas, pelo contrário, faz desabar o que está consolidado e, com isso, produz angústia e, na sua esteira, tanto pode produzir mudanças quanto seu oposto, a paralisia. A pergunta que resta reformular é: na execução de medidas socioeducativas - e na execução de políticas públicas como um todo - há qualquer possibilidade de vazão para o elemento transgressor? É preciso tomar esta questão em duas vias: a primeira pelo lado do corpo técnico que acaba descambando para o viés perverso e a segunda, pelo questionamento do quanto de transgressão - dos adolescentes em questão - em sua potência agressiva e transformadora é perdido para ser reformulada enquanto energia violenta pura, investida em si (culpa) ou nos outros (violência e hostilidade).

Entendemos que há, em nosso campo, dentre usuários e profissionais, ambas as posturas - a de delinquência enquanto reação desordenada ao mundo aniquilador e a obediência como forma de se ocupar com o imediato sem parar para pensar nas consequências do que se faz (Costa, 1991). Como proporcionar ou permitir a essas posturas o desenvolvimento de sua potência transgressiva? Assim, deixamos a pergunta: até que ponto estamos dispostos a nos arriscar a encarar a angústia que desperta o elemento transgressor?

 

Considerações finais

Trata-se neste trabalho de tornar explícita a presença de valores compartilhados e historicamente constituídos no universo que aqui delineamos, qual seja, o da Política Pública de Assistência Social e, mais especificamente, o da execução de medidas socioeducativas em meio aberto. Assim, colocamos em análise os elementos observados de forma que possamos ter o entendimento de como e o que opera na execução da política, bem como para que possamos reconfigurar nossas práticas na medida em que nos tornamos mais conscientes do que as embasa e do que produzem.

Ao impormos em nossa análise o mecanismo do desmentido operado pelos agentes da política (trabalhadores, gestores e usuários), incitamos a pensar sobre a possibilidade de um mundo sem o mecanismo do desmentido. A suposição que deixamos é a de que desmentir funciona como uma tática de sobrevivência diante de um mundo cruel. Melhor dizendo, é uma forma de manter-se firme no dia-a-dia do trabalho; é, por assim dizer, um desmentido mais técnico que perverso, no sentido geral que ganha o termo. Por outro lado, a crueldade do mundo também chega aos técnicos pela via dos discursos e afetos depositados neles pelos usuários, e perguntamos da mesma forma se seu desmentido - das mães que garantem ter feito sua parte e dos adolescentes que respondem violentamente justificando sua vida infracional ao pô-la na conta de um sistema abstrato e desconhecido por eles - não é também a defesa de que dispõem diante de uma realidade abusivamente dura.

Em conjunto, tais questões cobram de nós a consideração acerca da transgressão e de como ela poderia ser aproveitada naquele campo e aqui indicamos que o mecanismo analítico quer, tal qual o elemento transgressor, fazer emergir o que repousa esquecido e ignorado na norma instituída.

Se conseguirmos fazer incidir esse elemento transgressor nas práticas das políticas públicas, nosso trabalho está completo. Assim, ele não quer ser outra coisa senão mais um elemento transgressor, por vezes incômodo e disparador de grandes angústias, mas que permite que se desconstrua o que está posto para que se construam novas possibilidades - embora não esperemos que estas tenham qualquer valor de verdade e de resolutividade, já que não intentamos formular mais um objeto-fetiche que nos instrumentalize. Afinal, pelo que vimos, deles já estamos cercados.

 

Referências bibliográficas

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Artigo recebido em: 10/02/2014
Aprovado para publicação em: 02/04/2014

 

 

*Psicóloga (UFS, 2009) e Psicanalista; Mestre em Psicologia Social (UFS, 2012); Psicóloga na Secretaria Municipal da Família e da Assistência Social da Prefeitura Municipal de Aracaju e em consultório particular.
**Professor Adjunto IV do Departamento de Psicologia da UFS; professor efetivo do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social (UFS); Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ, 2004); Psicanalista.
1 O presente artigo é resultado de trabalho de dissertação de mestrado em Psicologia Social intitulado "Política Pública de Assistência Social em Análise: História, Valores e Práticas", defendido em 31 de agosto de 2012 no Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe (NPPS- UFS) e realizado com bolsa sanduíche pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica - Novas Fronteiras (Procad NF), edital de 2009.
2 Vale notar que da mesma forma ocorre com a história de um povo. Em "Totem e tabu", de 1913 (1996), ao transpor o saber clínico da psicanálise para a análise que empreende acerca da história das civilizações e das religiões, Freud indica que todas as formas anteriores de organização são mantidas intactas na história inconsciente de um povo.
3 A fórmula do desmentido foi forjada por Octave Mannoni como sendo a base da razão perversa e diz, no original: Je sais bien, mais quand même... (Magno, 2003), o que, em tradução livre, significaria "Eu sei, mas mesmo assim...".
4 A referência da autora diz respeito ao mito do assassinato do pai da horda, desenvolvido por Freud em seu texto de 1913 "Totem e tabu".