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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre crise e estabilização em Psicopatologia Fundamental1

 

Reflections on crisis and stabilization in Fundamental Psychopathology

 

 

Carmen Sílvia Ávila*; Manoel Tosta Berlinck I**

I Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo tem em vista abordar a crise e a estabilização em Psicopatologia Fundamental, partindo das abordagens a respeito deste tema encontradas em filosofia, psiquiatria e psicanálise. Pretendemos refletir também a respeito de diferentes concepções de tratamento encontradas na psicanálise e psiquiatria.

Palavras-chave: crise; estabilização; psicopatologia fundamental; psicanálise.


ABSTRACT

This article intends to discuss psychic crisis and stabilization in Fundamental Psychopathology from contributions offered by philosophy, psychiatry and psychoanalysis. Some reflections about different treatment conceptions found in psychoanalysis and psychiatry will be made.

Keywords: crisis; stabilization; fundamental psychopathology; psychoanalysis.


 

 

A crise

A história [...] propõe-se a averiguar como foram as vidas humanas. O humano é a vida do homem, não seu corpo, nem sequer sua alma. O corpo é uma coisa: a alma é também uma coisa, mas o homem não é uma coisa, mas um drama - sua vida.

(Ortega y Gasset, 1982, p. 71).

O sentido da palavra crise normalmente vem acompanhado de uma noção pejorativa no sentido de representar uma situação negativa a ser superada, seja por uma pessoa, uma instituição ou país. Toca os aspectos políticos, sociais ou econômicos, como também pode se referir a um indivíduo em momentos confusionais, de impasses, tomada de decisões que promovem perturbação psíquica, tema do qual nos ocupamos neste artigo.

Em seu sentido etimológico, o substantivo crise vem do latim crisis,referindo-se a um "momento de decisão, de mudança súbita". Em grego, krísis representa uma ação ou faculdade de distinguir, tendo por extensão o significado de "um momento difícil"; derivado do verbo grego kríno,recebe a definição de "separar, decidir, julgar"2. Segundo concepções antigas, na história da medicina, crise é o 7º, 14º, 21º ou 28º dia que, na evolução de uma doença, constitui o momento decisivo tanto para a cura como para a morte. Pensamos que dessa prática manteve-se como predominante a concepção de a crise representar uma vivência prenunciando o pior, e raramente como uma experiência com perspectivas de mudanças positivas.

Rica em seus significados, a palavra crise em sânscrito kri ou kir refere-se a desembaraçar, purificar, limpar. O português conservou o sentido das palavras acrisolar e crisol como reminiscências de sua origem sânscrita. "A crise age como um crisol (elemento químico) que purifica o ouro das gangas [...]. Depois de qualquer crise, seja corporal, psíquica, moral, [...] o ser humano sai purificado, libertando forças para uma vida mais vigorosa e cheia de renovado sentido" (Boff, 2011, p. 27).

Nos comentários realizados por Berrios (1996) em seu artigo "Psiquiatria comunitária e a equipe psiquiátrica para a intervenção em crise", encontraremos, dentre várias definições, a de crise como sendo o "resultado de mecanismos normais frente a um estresse de medidas desproporcionais [...] ou de mecanismos debilitados (seja de forma congênita ou por uma doença intercorrente) que não podem superar nem um estresse normal" (Berrios, 1996, apud Ávila, C. S., 2011, p. 129).

Sejam quais forem os motivos desencadeantes ou os tipos diversos que encontremos dentro de crise, notamos que este estado "crítico" poderá ser considerado um período, uma passagem de uma situação a outra, gerando um reposicionamento, geralmente acompanhado de sentimentos de desconforto, inquietação e angústia diante da frequente desorganização que se instala.

Tal período exigirá reflexão, avaliação das circunstâncias em questão, planejamento, tomada de decisões, ações e conclusões a respeito do ocorrido. Mediante uma crise o indivíduo será convocado a mobilizar seus recursos psíquicos, o que lhe dará a oportunidade de poder se exercitar no reconhecimento do seu potencial.

Neste aspecto, a crise não representa um fator negativo, já que pode propiciar o desenrolar de um processo criativo, de autonomia, mediante novas perspectivas e até um reposicionamento subjetivo. No entanto, é comum a ocorrência de uma sensação de desordem desencadeada por este processo.

 

 

Os sentidos da crise e a estabilização

Levantados estes aspectos, podemos propor que uma estabilização tem exatamente o sentido oposto ao de uma crise. O verbo estabilizar, em suas diversas concepções, designa um conjunto de medidas de caráter permanente que visam a consolidação, ou uma reestruturação, recuperação de uma situação estática; ou ainda a redução nas oscilações de alguma atividade (Ferreira, 2010, p. 863).

Desta forma, encontramos vários sentidos, sob referenciais diferentes, proporcionando-nos uma maior abrangência dos termos crise e estabilização, o que examinaremos a partir da contribuição oferecida pela Psicopatologia Fundamental, que convoca à interlocução de vários saberes. Iniciaremos por uma leitura filosófica.

Retomando as reflexões de Ortega y Gasset (1982) em sua análise sócio-histórica da crise mundial ocorrida em 1600 - período entre a Idade Média e a Era do Modernismo -, o autor comenta sobre o enfrentamento individual de uma crise, abordando alguns pontos relevantes para a fundamentação de nosso tema. Ortega y Gasset aborda uma crise histórica, tomando como seu determinante o distanciamento progressivo entre o significado genuíno dos valores e necessidades humanas e a influência exercida pela cultura na qual se está inserido.

Para o autor, crise corresponde a uma viragem, uma transformação, que possibilita uma nova forma de vida. O sentido deste termo nos remete ao verbo virar, que, por sua vez, evoca uma torção, uma tomada de novos rumos, inversão do sentido tomado anteriormente; "colocar em posição contrária à que se encontrava; pôr do avesso, voltar (o lado interior) para fora, dar a volta a, dobrar, tornear, circundar, quebrar" (Ferreira, 2010, p. 2165).

Ações que condizem com uma nova direção a ser tomada, o que a princípio poderá soar desnorteador, pois os caminhos tanto podem ser desconhecidos ou, se repetidos, já haviam sido deixados. Neste sentido, é no intervalo entre uma posição a ser abandonada e outra a ser assumida o exato lugar de ocorrência de uma crise. "Por ter horror ao vazio, à solidão - necessária ocorrência do ser neste encontro com suas verdadeiras convicções -, o indivíduo acaba por se perder na socialização" (Ortega y Gasset, 1982, p. 89).

Crise, neste aspecto, acarretaria um questionar necessário dos próprios sentidos e significados, uma reaproximação de si mesmo, provocando reformulações e transmutação. Toca o indivíduo em seu âmago, engajando-o numa tarefa única e intransferível. Só a ele cabe uma tomada de decisão frente a seus impasses, ainda que tente a busca alienante de encontrar suas respostas fora de si, no social, ou outorgando essa tarefa a alguma instância que represente poder ou autoridade, o que se revela como uma utopia, uma falsa ilusão de não estar só.

A partir destas concepções pode-se considerar, como uma possibilidade de saída de uma crise, a ação a qual denomina de "ensimesmamento" do indivíduo. Gasset enfatiza a necessidade do homem de pensar para poder viver, pois, "se pensa mal", viverá "em pura angústia", "sem íntima veracidade. Se pensa bem, encaixa-se em si mesmo, e isso é a definição de felicidade" (Ortega y Gasset, 1982, p. 98).

Este recorte interessou-nos para darmos continuidade ao nosso tema, examinando não só as implicações psíquicas das vivências desencadeadas a partir de uma crise como os tratamentos a ela dispensados. Partindo dos pressupostos da Psicopatologia Fundamental, a condição crítica é considerada como uma possibilidade de desencadeamento de processos criativos e inovadores.

Observemos sua compreensão sobre o aparelho psíquico - com bases no texto freudiano "Neuroses de transferência: uma síntese" (Freud, 1914/1987), que se pauta na ideia de este aparelho ser "a parte do sistema imunológico constituída, no humano, durante a catástrofe glacial [...] visando proteger o humano da dor, da própria depressão e da angústia" (Berlinck, 2008d, p. 80).

Será no decorrer do seu processo de desenvolvimento que o homem retomará a sua sensorialidade, podendo, sob condições favoráveis de Eros, transformar suas manifestações sensoriais em sensações cada vez mais reais, estabelecendo-se assim as condições propícias para capacitá-lo a sonhar e fantasiar.

Para a Psicopatologia Fundamental,

[...] a crise é entendida como ponto culminante de uma doença e aposta propícia em transformações decisivas na existência. Essa concepção opõe períodos críticos a períodos orgânicos em que as partes de um todo (organismo) funcionam em harmonia (Berlinck, 2008c).

A Psicopatologia Fundamental volta-se para o tratamento, sob transferência, como uma forma de transformar o sofrimento em experiência, um aprendizado, "que alarga ou enriquece o pensamento",nos ensina Berlinck(1998, p. 54). Acreditamos ser importante realizar um resgate do caminho trilhado por Freud que o levou ao encontro da invenção da psicanálise, cujo início foi marcado por sua pesquisa sobre uma determinada crise, a crise histérica.

Como neurologista e anatomopatologista, foi em Paris que Freud deu prosseguimento às suas pesquisas neuroanatômicas, estagiando na Salpêtrière e acompanhando Charcot em suas pesquisas a respeito da distinção entre a crise histérica e a epilética, de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, o que lhe provocou uma grande mudança em seus interesses teóricos e clínicos.

A procura de uma "visão correta dos significados" a serem investigados através da clínica tornou-se também uma das fortes características de Freud em seu percurso, observando e correlacionando as peculiaridades que cada caso apresentava. É importante tomarmos este aspecto como modelo em uma investigação clínica, assim nos precavendo de incorrer no erro de estreitarmos nosso olhar e conduzirmos nossa escuta a um enquadramento do caso clínico em determinado enquadre diagnóstico, o que poderá constituir um aprisionamento. Os estudos de Charcot a respeito das crises histéricas ocorreu em um ambiente em que não era difícil surgirem opiniões que, a partir do caráter teatral e imitativo observado, chegavam a considerar as histéricas como "simuladoras" (Freud, 1885-1886/1977, p. 42). No entanto, não foi sem sentido o fato de Freud mencionar o trabalho despreconceituoso de seu mestre.

Ou seja, para analisar um fenômeno, é interessante não iniciarmos a partir de preconceitos, ideias comuns que creem encerrar um saber a seu respeito. Rica é a disponibilidade interna do clínico para estar aberto às novas leituras e escutas a cada atendimento.

Destacamos o seguinte recorte no intuito de observarmos a descrição das crises então observadas:

Charcot apresenta uma doente do setor, a célebre Ler. Ela tem 48 anos e está hospitalizada há mais de vinte anos. Ela se entrega a contorções extraordinárias que evocam as descrições das convulsionárias possuídas pelo diabo. Ela grita, ela uiva, ela pragueja contra personagens imaginárias; ela lança olhares furiosos; ela é aterrorizante, é uma fúria desencadeada. Esse delírio, observa Charcot, "gira em torno dos acontecimentos que parecem ter determinado as primeiras crises". Ora, a origem de suas crises parece ter relação com o fato de que, com a idade de 11 anos, ela foi atemorizada por um cachorro, com 16 anos ficou aterrorizada pela visão de uma mulher assassinada, depois ficou assustada com a agressão de um ladrão num bosque(Trillard, 1991, p. 144).

Caso não houvesse a observação minuciosa do mestre, fácil seria a interpretação de que se tratava de uma crise de loucura. Entretanto suas crises foram consideradas por Charcot como crises histéricas de origem traumática, e o autor já contemplava a ideia de tratar-se de uma manifestação de ordem afetiva, dramática, uma expressão de conteúdos internos.

Podemos acompanhar, com o desenvolver da teoria freudiana, que a crise, ainda que considerada como uma expressão de afetos por Charcot - descrita com grande ênfase sobre sua manifestação física, a ponto de ser confundida inicialmente como uma crise epilética -, passa a ganhar um estatuto sintomático correspondendo a um desequilíbrio de ordem psíquica. Freud e Breuer, ainda que considerassem os traumas psíquicos como causa dos sintomas, observavam sua organização em cenas, como eventos isolados, referindo-se a complexas inter-relações de lembranças.

A partir da descoberta do inconsciente, Freud privilegiará o princípio do prazer como regente do funcionamento da vida mental. A teoria traumática já contará com um acréscimo em sua formulação no que se refere à ocorrência de uma cena de sedução. Em lugar da sedução como constitutiva do trauma, a fantasia passa a ganhar fundamental importância, valorizando a sua realidade psíquica. Um conflito inconsciente entre fantasias e desejos e a defesa contra eles é que vai ser o verdadeiro móvel da neurose.

Vejamos o que Freud comenta a este respeito:

Subsiste o fato de que o paciente criou essas fantasias por si mesmo, e essa circunstância dificilmente terá, para a sua neurose, importância menor do que teria se tivesse realmente experimentado o que contêm suas fantasias. As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva(Freud, 1917 [1916-1917]/1976, p. 370).

Sob esta nova ótica, Freud vai resgatar, em 1920, o aspecto econômico do aparelho, já tendo escrito os "Artigos sobre metapsicologia" em 1915 tratando de questões a respeito das tensões seguidas de descargas no aparelho e articulando o desprazer com a tensão e o prazer com a redução de tensão. Baseou-se, na ocasião, em Fechner3 para dar prosseguimento às suas formulações teóricas a respeito do Princípio do Prazer. A afirmação de Fechner diz o seguinte:

Até onde os impulsos conscientes sempre possuem uma certa relação com o prazer e o desprazer, estes também podem ser encarados como possuindo uma relação psicofísica com condições de estabilidade e instabilidade [grifo nosso]. Isso fornece a base para uma hipótese em que me proponho a ingressar com maiores pormenores em outra parte. De acordo com ela, todo movimento psicofísico que se eleve acima do limiar da consciência é assistido pelo prazer na proporção em que, além de um certo limite, ele se aproxima da estabilidade completa, sendo assistido pelo desprazer na proporção em que, além de um certo limite, se desvia dessa estabilidade, ao passo que entre os dois limites, que podem ser descritos como limiares qualitativos de prazer e desprazer, [...] (Freud, 1920/1976, p. 18-19).

No entanto, Freud observa que não se trata de dominância do princípio do prazer nos processos mentais, o que significaria a presença constante de tais sentimentos prazerosos ou da busca dos mesmos, contradizendo assim suas observações clínicas. O que ocorre é uma tendência neste sentido, ainda que contrariada por determinadas forças ou circunstâncias.

Freud comenta sobre a semelhança deste princípio com o método primário de funcionamento do aparelho mental que, sob o aspecto "de autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso" (Freud, 1920/1976, p. 20). Assim torna-se necessária a sua substituição pelo "princípio de realidade", que exigirá uma ponderação entre a tarefa de lidar com o mundo interno e o externo. Portanto, também poderíamos entender como um possível desencadeante psíquico de uma crise: o conflito entre os aspectos internos - referentes ao mundo psíquico - e as exigências externas - concernentes aos valores sociais.

O que constatamos no exercício clínico é a singularidade de cada indivíduo neste processo. Freud menciona ainda que, sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio do prazer passa a ser substituído pelo princípio de realidade, o qual não abandona a intenção de obter prazer, no entanto exige o adiamento de uma satisfação imediata e a tolerância temporária de determinada insatisfação ou desprazer.

A partir das concepções freudianas a respeito da estabilização psíquica, ainda que abandonada a concepção econômica de funcionamento, tais características estariam invalidadas atualmente? Propomos a seguir realizar um diálogo entre as considerações anteriormente levantadas e as formas de tratamento encontradas pela psicanálise e a psiquiatria.

 

Algumas divergências a serem apontadas no tratamento oferecido as crises

Iniciaremos retomando Berrios ao mencionar que "na Psiquiatria se trata de um conjunto de narrativas práticas, sociais e institucionais que foi criado para controlar uma parte da população, cuja conduta se mostra contrária aos padrões socialmente esperados"4.

Ressaltamos a divergência entre os pressupostos até aqui levantados relativos ao tratamento que deve ser oferecido em uma crise, visando a possibilidade de o indivíduo encontrar suas íntimas verdades, e àquele que tem como parâmetros o controle e uma adequação de comportamentos segundo expectativas socialmente esperadas, como forte tendência da psiquiatria.

De forma genérica, uma crise em psiquiatria é considerada um período agudo de determinada doença; pode corresponder a um desarranjo, uma desorganização psíquica, acarretando desordem nas funções produtivas e comportamentais, impossibilitando ao indivíduo ultrapassar obstáculos que venha a encontrar.

No artigo "Adaptação e homeostase em psiquiatria" (Berrios, 1996b), encontraremos um importante estudo a respeito do conceito de adaptação e homeostase, nos oferecendo as bases para pensarmos a respeito de crise e estabilização para a ciência médica. Podemos observar também o olhar da ciência detido nos sinais que evidenciam determinado desarranjo, contrapondo-se ao sentido harmônico proposto numa condição de equilíbrio, como objeto do princípio de homeostase.

Considerando a relação do homem e as influências do meio em que vive, o processo de regulação e adaptação permanece atrelado a uma acomodação frente a eventuais oscilações que venham a ser provocadas por fatores externos, no sentido de proteção e garantia da continuidade de um funcionamento satisfatório.

No entanto, observamos ao longo da história da saúde mental que o objetivo da psiquiatria se pautava na retirada do excesso ocorrido no paciente para que ele pudesse ficar contido. Apenas a partir de Pinel a crise tornou-se uma possibilidade de o paciente poder ser tratado, fato este que nos permite pensar o paradigma de uma crise como forma de tratamento. Como nos diz Berlinck, "a crise em si traz o tratamento"5.

Em algumas concepções históricas, até o século XIX, observamos algumas mudanças referentes ao conceito de crise. Partindo de uma concepção moral, pautada na eugenia, em uma limpeza social, chegou-se a uma noção ética de tratamento, considerado como um meio de se alcançar a singularidade subjetiva do indivíduo através do saber inconsciente, como proposto pela psicanálise. Mas observamos que, se para a psicanálise o sintoma fala e deve ser escutado, a psiquiatria parece querer calar o que o sintoma está denunciando.

Ao retomarmos Charcot, encontraremos a noção de crise histérica, pautada na noção de origem traumática, até que Freud, em suas considerações, apontou que ela seria de origem sexual. "É como se fosse necessário ter ocorrido uma determinada institucionalização da crise, evidenciando-se assim que é preciso estar doente para poder ser tratado" (Berlinck, 2011)6.

No entanto, observemos os parâmetros nos quais se pauta a psiquiatria atualmente. A ideia de estabilização psíquica, termo comumente utilizado no meio médico, é modelada segundo o princípio de "homeostase" como forma de manter o controle do equilíbrio interno do indivíduo.

No cruzamento entre os princípios científicos e a concepção de tratamento psiquiátrico - herdeiro de uma concepção moral -, encontraremos o sentido de estabilização vinculado a uma contenção de sentimentos e atos considerados exacerbados ou fora dos padrões esperados. Por um lado, a regularização de determinadas disfunções orgânicas como forma de adequação e proteção do organismo e, por outro, a manutenção do parâmetro de normalidade como meta a ser alcançada. Estas concepções vão ao encontro de uma ideia de cura, objetivando não apenas a melhora do indivíduo, mas igualmente determinada adequação de suas funções pragmáticas junto ao meio social onde está inserido.

Desta forma, o avanço tecnológico alcançado nos séculos XX e XXI muito contribuiu com uma concepção organicista da crise e do tratamento, que tem sido prevalente na condução da clínica psiquiátrica, explicada pela ação mais rápida, eficaz ou não, das sinapses neuronais, etc. Tanto os comportamentos, como os sentimentos e os sintomas podem assim ser explicados e controlados cientificamente.

Parece que ocorre determinada convergência entre a diminuição do tempo de espera na solução de problemas e a necessidade de domínio de uma determinada situação.

Consideremos, ainda, o importante fator de os sintomas dentre as doenças mentais não permanecerem restritos ao corpo do paciente, pois o sofrimento psíquico se evidencia em seu modo de pensar, sentir e agir, em seu modo de ser no mundo. Sendo assim, a sintomatologia do paciente vem denunciar a sua posição contrária aos moldes sociais vigentes, deixando de ser considerada a possibilidade de representar tentativas singulares de enfrentamento da realidade que se coloca como insuportável ao indivíduo num momento de crise.

No entanto, as abordagens psiquiátricas prevalentes atualmente se mantêm pautadas numa concepção de contenção com relação à crise, seja esta química ou física. Dentro desta perspectiva, visando uma estabilização e/ou remissão do quadro, com a consequente extinção dos sintomas, pouco considera a possibilidade de compreensão da representatividade subjetiva que um sintoma possa apresentar. Dependerá do profissional médico a possibilidade de inserir ou não o indivíduo e sua singular subjetividade no processo de tratamento.

O termo estabilização foi amplamente utilizado pela medicina neste sentido, desde a década de 1990, não sendo, entretanto, localizada nenhuma outra formalização conceitual a respeito do mesmo durante esta pesquisa, a não ser a mencionada por Freud ao citar G. T. Fechner.

No caso de crises psíquicas, tênue é a linha divisória entre a conduta médica objetivar apenas a remissão dos sintomas - fruto do que chamam de "estabilização do quadro" - e uma simples adequação da conduta do paciente às normas e valores sociais vigentes: "os sintomas são considerados a partir de um ponto de vista adaptativo e são rastreados a partir desde as raízes do comportamento essencialmente normal através de uma variação de padrões de comportamentos anormais" (Kaplan & Sadock, 1999, p. 324).

Em seu artigo sobre "Psiquiatria comunitária e a equipe psiquiátrica para intervenção em crise", o Prof. G. Berrios (1996b) levanta aspectos que julgamos fundamentais ao bom andamento dos cuidados adequados a serem oferecidos em casos de crise psíquica. Concordamos a respeito dos efeitos benéficos quanto à solução encontrada através da psiquiatria comunitária como um meio eficaz de oferecer tratamento ao doente mental não só durante uma crise, mas também como uma forma possível de prevenção e continuidade do tratamento a ser oferecido pós-crise. No entanto, gostaríamos de ressaltar alguns pontos, iniciando pela observação realizada sobre a concepção da ética de tratamento mencionada por Berrios, referente ao seguinte aspecto: "qualquer que seja a etiologia da loucura é apenas em parceria com seu companheiro que o homem pode obter um aprimoramento mental".

Pensamos que não há possibilidade de tratamento sem visualizarmos as diferenças enquanto meios genuínos, singulares de subjetividade, imanentes ao ser. O doente mental é um diferente e os moldes deste tipo de reinserção social parecem tentar eliminar tais diferenças, ignorá-las. Dentro desta perspectiva, o tratamento médico poderá se tornar um meio a serviço de uma tentativa de adequação social.

Ainda que uma crise possa representar uma condição prospectiva, não se trata de minimizar a importância do tratamento adequado, seja ele intervenção medicamentosa ou hospitalar, em momentos em que o indivíduo não disponha de condições psíquicas suficientes para enfrentar as situações a que esteja exposto.

No entanto, verificamos que o apoio de serviços de residência a pacientes em tratamento psiquiátrico, em um âmbito nacional, são restritos àqueles que, abandonados pela família, permanecem residentes em hospitais psiquiátricos, em precárias condições. Bem sabemos que a internação várias vezes é um recurso utilizado pelo médico como medida única para retirar os pacientes de um convívio familiar inadequado em que se encontram.

Tal fator implica a continuidade da institucionalização da internação como meio de cronificação, enquanto única forma de suprir a outras necessidades, como a mencionada retirada temporária do paciente do seu meio.

Além da grande importância dos fatores psíquicos operantes no indivíduo em um processo de crise, contamos com a realidade socioeconômica e a dinâmica familiar como agravantes a serem considerados num processo terapêutico.

Perguntamo-nos então: será possível tratar um paciente gravemente adoecido psiquicamente, sem uma adesão da família ao tratamento? É possível este mesmo tipo de tratamento obter sucesso, inclusive na diminuição do número de internações, sem um respaldo de comunidades terapêuticas que possam oferecer um apoio ao tratamento, evitando a institucionalização e consequente cronificação do doente?

Segundo os estudos realizados pelo Dr. Berrios, podemos verificar as grandes vantagens dos serviços oferecidos através das Comunidades Terapêuticas, apesar das dificuldades que também apresentam.

Mesmo que o tratamento psiquiátrico tenha que abarcar a crescente demanda de casos tidos como neuroses graves e transtorno de personalidade (quadro sobre Estudo de Leeds, do mencionado artigo), sem dúvida alguma é de grande importância considerar esta proposta de tratamento para a melhora de qualidade dos serviços prestados.

A crise resulta de uma série de fatores que se relacionam e que podem englobar o psíquico, o orgânico em sua constituição, e acrescentaríamos também os fatores socioeconômicos do indivíduo como um possível agravante. Para tratá-la adequadamente, considerando-se o grau de seu agravamento, tais aspectos mereceriam ser contemplados nos tratamentos que visam uma estabilização.

 

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Artigo recebido em: 23/08/2013
Aprovado para publicação em: 11/10/2013

 

 

* Psicanalista. Mestre em Psicopatologia Fundamental - PUCSP.
** Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP.
1 Este artigo parte da dissertação intitulada "Crise e estabilização em Psicopatologia Fundamental", elaborada pela primeira autora sob orientação do segundo. Os autores agradecem o apoio da CAPES para a elaboração da pesquisa.
2 Segundo o Dicionário Houaiss on line.
3 "Gustav Theodor Fechner (1801-1887) foi o fundador da psicofísica e da psicologia experimental. Depois de estudar medicina e biologia, tornou-se professor de física na Universidade de Leipzig em 1834. Trabalhou sobre as relações entre alma e matéria, em Elementos de psicofísica, publicado em 1860. Teorizou sobre o Princípio de Conservação ou de Estabilidade da Energia em 1873, sendo formulado em 1842 pelo físico Robert Meyer, retomado e desenvolvido em 1845 por Hermann Von Helmholtz. Este princípio foi completamente abandonado pela ciência moderna. No entanto tornou-se a base da teoria freudiana sobre o princípio do prazer/desprazer em 1920". (Roudinesco, 1997, p. 227).
4 Curso ministrado na Biblioteca Nacional de Buenos Aires, em maio de 2010, sob o título de "Filosofia e Historia da Psiquiatria e Psicopatologia".
5 Comunicação verbal no Laboratório de Psicopatologia Fundamental em 30.03.2011
6 Idem.