SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 issue2About the insertion and the place of the psychoanalyst at the health care teamThe metapsychological construction of the Sinthome in Lacan through the writing of James Joyce author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2014

 

ARTIGOS

 

A aliança do supereu com a pulsão de morte no uso de drogas

 

The alliance of the superego with the death drive in drug use

 

 

Alexandra de Gouvêa Vianna*

Escola Letra Freudiana - Brasil

 

 


RESUMO

Trabalharemos neste artigo a compulsão à droga pelo viés psicanalítico, enfatizando a implicação do sujeito no uso da substância e buscando compreender como ocorre a passagem do uso recreativo para o uso destrutivo. Demonstraremos que os casos graves de dependência química denunciam a busca pela ruína de si mesmo. Para trabalharmos o paradoxo deste mecanismo que encontra satisfação no próprio sofrimento, empregaremos o conceito de pulsão de morte introduzido por Freud em 1920. Sob o ponto de vista da metapsicologia, este modo de funcionamento do aparelho psíquico está para além do princípio de prazer, pois contraria o seu objetivo de conservar o aparelho livre de tensões, mantendo constante a quantidade de excitação que nele circula ou reduzindo-a ao mínimo possível. A compulsão à droga atropela o princípio de prazer e impele o sujeito à própria desgraça. Quando a pulsão de morte prevalece, o sujeito padece por não conseguir colocar um freio nela.

Palavras-chave: drogas; psicanálise; pulsão de morte; supereu; masoquismo.


ABSTRACT

This paper presents a study of the compulsive use of drugs from a psychoanalytical point of view, emphasizing the implication of the subject in his drug addiction. We seek to understand the transition between a recreational use to a destructive use and also demonstrate that in severe cases of drug addiction denounce the search for the ruin of himself. To study the paradox of this mechanism that finds satisfaction while causes suffering through the concept of the death drive introduced by Freud in 1920. From the point of view of metapsychology, this mechanism goes beyond the pleasure principle, because it contradicts its goal of conserving the psychic apparatus free of tension, keeping constant the amount of excitement that circulates in it or reducing it to a minimum. The addiction does not respect the pleasure principle and pushes the subject to his own disgrace. When the death drive prevails, the subject suffers for failing to put a brake on it.

Keywords: drugs; psychoanalysis; death drive; superego; masochism.


 

 

Foi a partir do trabalho em um projeto voltado para o tratamento da dependência química que surgiram meus questionamentos acerca do que leva o sujeito ao uso compulsivo da droga. Lá acompanhei casos que tiveram sucesso, porém estes não representam a maioria dos casos com os quais me deparei. Muitos seguem com recaídas constantes, que destroem o laço com o social. Ainda que reconheçam todas as perdas decorrentes do uso, o poder do alívio momentâneo proporcionado pela droga vence.

Não é possível falarmos de um perfil específico daqueles que fazem uso de uma substância psicoativa. Segundo o psicanalista francês Marcos Zafiropoulos (1994, p. 18), "o toxicômano não existe". O que existe são diferentes sujeitos que fazem uso de diferentes substâncias, cada um a seu modo, pois a droga ocupa uma função singular para cada um deles. É sob este aspecto singular do uso que a psicanálise traz contribuições ao tema.

Não é somente a dependência orgânica que está em questão na dependência química. Se assim fosse, o tratamento para desintoxicação bastaria para curá-la. Em alguns meses a droga sairia do organismo e os sintomas da síndrome de dependência e de abstinência cederiam. No entanto, é comum que mesmo após períodos prolongados de abstinência e de tratamento o sujeito tenha recaídas, uma vez que o uso da droga consiste em um recurso já conhecido para o alívio da angústia. As formas de satisfação obtidas pelo sujeito são difíceis de abandonar, em função do que Freud chamava de viscosidade da libido. Uma vez que um objeto é investido pela libido e traz satisfação, o sujeito tem grande dificuldade em abrir mão dele. Ainda mais no caso da droga que produz uma forma de satisfação tão intensa e tão imediata. Por este motivo, as recaídas fazem parte do percurso do tratamento e quanto maior a implicação do sujeito no tratamento, menores serão a frequência e a intensidade das recaídas. A aposta que fazemos é que a cada retorno ele possa falar um pouco mais da função que a droga ocupa para ele.

Voltando à diferenciação entre o uso recreativo e o uso abusivo das drogas, o principal critério que podemos apontar é a relação destrutiva que marca o segundo tipo. No uso recreativo é possível notar que há limites na relação com a droga, enquanto que no uso abusivo ela ocupa um lugar central na vida do sujeito. Embora a droga implique em severos danos desde o ponto de vista da saúde física até o comprometimento em todas as esferas das relações sociais, estas perdas não barram o sujeito que estabelece uma compulsão com a droga.

Diante da angústia, o único recurso que ele admite é o do anestesiamento através da droga, definida por Freud como um "amortecedor de preocupações" (1930 [1929]/1996, p. 85), e que atua sobre o mal-estar da cultura.

[...] os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado.
O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis (Freud, (1930 [1929]), p. 85-86).

A descoberta da droga é marcada por uma promessa de liberdade: seus efeitos são capazes de produzir de imediato sensações de prazer, além de proporcionar um alívio frente às exigências do social. Este é o grande atrativo da droga. No entanto, ao comprar esta promessa de liberdade o sujeito se depara com a submissão aos mandatos de um objeto que o condena à servidão e ao sacrifício de seu corpo.

Além do efeito de anestesia contra o sofrimento, a droga também confere um lugar ao sujeito: os que defendem um discurso mais radical consideram que uma vez toxicômano, para sempre toxicômano. Logo, ele deve dedicar a vida ao cuidado de sua doença. Para tanto, não há espaço para ocupar outros lugares no social. Se não é possível conciliar estudo, trabalho e relacionamentos amorosos com a recuperação, então ele deverá abrir mão de tudo isso. Se por um lado este cuidado o preserva de situações de conflito que poderiam levar a uma recaída, por outro o mantém fixado a este objeto que oferece pouco espaço para a ligação com novos objetos.

Uma das frases repetidas entre companheiros de salas de mútua ajuda como os Alcoólicos Anônimos (AA) e os Narcóticos Anônimos (NA) define a dependência química como uma doença progressiva, incurável e de determinação fatal, que mata desmoralizando. Esta frase, que mais parece uma sentença, carrega um peso muito forte e vai ao encontro do que circula no senso comum sobre a dependência química: uma doença incurável e de cunho moral. É desta maneira que eles se endereçam para o mundo. Diferentemente dos usuários esporádicos, como aqueles que bebem socialmente após um longo dia de trabalho ou em eventos comemorativos, os sujeitos sobre os quais estamos trabalhando abusam do consumo da substância a ponto de causar constrangimento a si próprio e àqueles que o cercam. É por essa razão que eles não circulam impunemente pelo social. Ao contrário, têm o seu caráter frequentemente questionado, além de serem rotulados como delinquentes.

Imerso no mal-estar da cultura, o sujeito toxicômano é aquele que foge de qualquer tentativa de elaboração psíquica, e de consumidor passa a ser consumido pela droga. Contudo, as toxicomanias se revelam igualmente fracassadas, pois remetem o sujeito inevitavelmente ao vazio quando é preciso suspender o uso para a preservação da vida. A existência do toxicômano é regulada entre o nada ser ou tudo ser com a droga. Assim, ele se encontra aprisionado a este circuito de elevações e quedas. O uso da droga forja uma pretensa completude que se esvaece ao final da experiência de êxtase, quando o retorno à realidade é inevitável.

A satisfação pulsional no uso da droga é essencialmente autoerótica e masoquista, pois prescinde do Outro e dos objetos do mundo externo enquanto se realiza mantendo o investimento libidinal no próprio eu. O uso da droga entra neste circuito consagrando ainda mais o autoerotismo, pois sujeito e droga se bastam. Os demais objetos tornam-se coadjuvantes em sua vida. Para compreendermos melhor este tipo de satisfação entraremos na teoria freudiana do masoquismo para discorrer sobre a aliança entre a vertente sádica do supereu e a pulsão de morte.

Embora a ingestão da droga propicie um efeito imediato de prazer, a compulsão que deriva do seu uso contínuo produz sofrimento, pois aprisiona o sujeito a um modo de satisfação libidinal exclusivamente através da droga. Este aprisionamento remete a outra modalidade de obtenção de prazer regulada pelo regime do gozo. Neste circuito, só o recurso solitário da droga satisfaz. Com isso, o sujeito passa a não reconhecer outras formas de busca de prazer. Aqui nos deparamos com o paradoxo das promessas da droga: embora o consumo da substância garanta de imediato o alívio do sofrimento psíquico, quando a pulsão destrutiva fala mais alto a compulsão pela droga se instaura. De alívio da angústia a função do uso da droga sob o regime do gozo se reverte para uma busca de satisfação masoquista no sofrimento.

A compulsão à droga não decorre, portanto, apenas do encontro com a substância. É o sujeito que faz dela o objeto privilegiado de um mecanismo que é próprio da pulsão: a compulsão à repetição, que ignora o princípio de prazer e se apresenta como uma irresistível atração pelo sofrimento. Quando escutamos as recaídas a partir do contexto da história do sujeito, notamos que elas seguem um padrão que não diz respeito exclusivamente ao que é da ordem da dependência orgânica. De modo recorrente, o uso da droga está relacionado à falta de recursos do sujeito diante das frustrações da cultura, em que ocorre um desencontro entre o sujeito e o seu desejo inconsciente. A droga cumpre a função de suspensão diante da angústia provocada por este desencontro, ainda que momentaneamente. A compulsão que resulta da busca constante deste artifício faz com que o sujeito se oculte na droga e deixe de se apropriar de outros recursos para lidar com a angústia.

Clara Inem (2004) enfatiza que o toxicômano realiza um fazer em detrimento do dizer em sua tentativa de tamponar a falta engendrada pela castração, operando uma narcose do desejo. Para a autora, nas toxicomanias o sintoma se apresenta em sua vertente de gozo, "cuja insistência pulsional obriga o sujeito a repetir o impossível de ser articulado na cadeia significante" (Inem, 2004, p. 91). No entanto, a angústia sempre retorna, evocando a castração:

Assim, o dito de um sujeito, "tive uma recaída", ao se referir ao ato de voltar a usar drogas, pode ser relacionado ao retorno, à "re-caída" na angústia, à evocação da castração, o que faz com que recorra e/ou re-caia na mesma estratégia para evitar se confrontar com o "rochedo da castração (Inem, 2004, p. 92).

A compulsão à droga opera um curto-circuito na relação com o desejo e destitui o sujeito de sua posição desejante. Como escreve Braunstein (2007), o objeto da toxicomania é diferente do objeto da pulsão ou do fantasma, pois mascara o desejo inconsciente por se tratar de um objeto da necessidade. Por não deter o valor de objeto fálico, a droga não constitui um objeto sexual substitutivo: "é, pelo contrário, um substituto da sexualidade mesma, um modo de afastar-se das coações relacionais impostas pelo falo" (Braunstein, 2007, p. 281). Neste sentido, a droga se assemelha ao autoerotismo, no qual o acesso ao gozo não passa pelo corpo do Outro.

Segundo o autor, a drogadicção consiste em um método de subtração do sujeito do intercâmbio simbólico e produz uma separação - ainda que precária e alternativa - no que diz respeito aos efeitos da operação de alienação significante: "na intoxicação não há um morto, mas um ‘dar-se por morto’" (Braunstein, 2007, p. 280). A suspensão frente à angústia e ao desejo através do uso da droga se aproxima da concepção de uma força que conduz o ser vivo para o estado inorgânico, metáfora utilizada por Freud (1920/1996) ao se referir à pulsão de morte. A destituição de si mesmo enquanto sujeito desejante e o sacrifício do próprio corpo implicados no uso abusivo da droga é o que aponta para as toxicomanias como um artifício a serviço da pulsão de morte.

O aparelho psíquico é, segundo Freud (1920), regulado pelo princípio de prazer, que evita o desprazer ou busca a obtenção de prazer. No entanto, a tese na qual o prazer está relacionado à diminuição da tensão e o desprazer ao seu aumento mostra-se insuficiente para dar conta das complexidades dos processos mentais. Até a introdução do conceito de pulsão de morte em 1920 e do artigo sobre o masoquismo em 1924, Freud acreditava que o princípio de prazer predominava no aparelho psíquico. No entanto, os sintomas da neurose histérica e obsessiva denunciavam a presença de uma força que contrariava este princípio ao obter satisfação na dor. Com isso, Freud alega que seria incorreto atestar que há uma predominância do princípio de prazer no aparelho psíquico, embora possamos dizer que haja uma tendência nesse sentido, que é frequentemente contrariada por certas forças pulsionais.

O masoquismo se apresenta sob três formas, segundo Freud (1924/1996): o masoquismo erógeno refere-se ao prazer no sofrimento como condição imposta à excitação sexual; o masoquismo moral diz respeito ao sentimento de culpa ou necessidade de punição; e, por último, o masoquismo feminino é marcado pela passividade como condição para a excitação sexual, presente tanto no homem quanto na mulher.

Diferentemente do masoquismo erógeno e do feminino, o masoquismo moral se caracteriza por sua pouca ligação com a sexualidade. Ele é encontrado, por exemplo, nos pacientes que demonstram insatisfação com o sucesso do tratamento. Isto ocorre quando o sintoma se constitui fortemente atrelado ao sentimento de culpa, ou melhor, à necessidade de punição. O sentimento de culpa manifesta a tensão entre o eu e o supereu ao provocar angústia sempre que o eu não responde às exigências do supereu. Da angústia advém o que Freud nomeia de necessidade de punição. A tendência masoquista que se origina da tensão entre o eu e o supereu é em grande parte inconsciente e anseia pela punição da Lei paterna. Logo, a pulsão masoquista cria oportunidades para incitar a recriminação e a expiação por parte do supereu, cuja vertente sádica está sempre disposta a exercer a sua força.

A origem da pulsão masoquista está na grande quantidade de energia despertada pelas primeiras experiências de sofrimento da infância. A forte excitação provocada por estas experiências traçam os primeiros caminhos de satisfação que seguem a via do masoquismo. O sadismo, por sua vez, é entendido através do deslocamento desta energia transformada em pulsão para o mundo externo. Assim, uma parte do investimento da pulsão masoquista é deslocada do eu e segue investindo em objetos externos, enquanto outra parte se mantém fiel ao eu.

Lígia Bittencourt (2006) assinala que o masoquismo se apresenta na satisfação pulsional através do sofrimento enquanto o sujeito se coloca como objeto de gozo. Para ilustrar como isto ocorre, a autora apresenta o relato de um caso clínico em que a paciente buscava ser escutada através de atos masoquistas que se apresentavam sob a forma de acting-outs1. A menina, que se sentia excluída e não desejada, buscava através de seus atos restituir um lugar no campo do Outro, ou seja, "re-significar o desejo do Outro, e assim salvá-la do seu corpo mortificado" (Bittencourt, 2006, p. 153). Contudo, ressalta a autora, este modo particular de apelo ao Outro em que o sujeito se abole apenas perpetua seu sentimento de desamparo.

A satisfação pulsional masoquista é o que explica o misterioso paradoxo do prazer que emerge no sofrimento. Ainda que por um lado contradiga o princípio de prazer, por outro satisfaz a pulsão que visa esta forma de prazer no sofrimento no lugar de dor. A força que impulsiona o masoquismo é a aliança do supereu à pulsão de morte. Quando aliado à pulsão de morte, o supereu submete o eu à sua satisfação sádica. O masoquismo pode ser compreendido, portanto, pela satisfação do supereu em provocar sofrimento ao eu.

Somente tomamos conhecimento da pulsão de morte quando esta se encontra aliada ao supereu, produzindo efeitos como a culpa e a necessidade de punição. Como escreve Ana Maria Rudge (1998), a partir de Lacan distinguimos duas dimensões do supereu: aquele que é herdeiro do complexo de Édipo e se articula à regulação do desejo pelo Nome-do-Pai e um supereu aliado aos objetivos da pulsão de morte. A vertente do supereu que atua como reguladora do desejo se constitui através da interdição, que possibilita a via do desejo e do gozo. Para que a via do desejo opere é necessário o reconhecimento da falta que instaura o sujeito do inconsciente. É da falta que brota o desejo. Quando a falta é obturada o sujeito não pensa, ele age. Esta segunda via é a do gozo e é através dela que as toxicomanias operam. A droga é colocada no lugar da falta, silenciando o sujeito.

Da aliança do supereu com a pulsão de morte advém a face cruel desta instância. A sua vertente sádica resulta da superação e dessexualização do complexo de Édipo. Ela se manifesta produzindo angústia sempre que o eu não corresponde aos ideais impostos pelo supereu. Contudo, pode haver uma sexualização regressiva da consciência moral quando a crueldade do supereu encontra satisfação masoquista do eu: "É pela via do masoquismo que o supereu pode se aliar ao gozo, à satisfação pulsional masoquista, tornando-se esse supereu cruel que ordena: ‘goza’!" (Rudge, 1998, p. 59-60).

De acordo com Rudge (1998), a introdução do conceito de narcisismo operou uma passagem do dualismo na teoria pulsional de Freud: a pulsão de autoconservação é reintegrada no domínio da libido do eu e formula-se um novo dualismo entre a libido e a pulsão de morte. Deste modo, ficam a cargo da libido os investimentos objetais, bem como no eu, que também pode ser investido como um objeto, encarregando-se da função de autoconservação. É no artigo "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/1996) que o conceito de pulsão sofre esta torção na obra freudiana que desencadeará o novo dualismo pulsional: a pulsão de vida e a pulsão de morte, que correspondem a dois aspectos complementares da pulsão. A pulsão de vida refere-se à construção no nível da atividade pulsional, buscando combinar indivíduos, famílias, povos em uma unidade. Já a pulsão de morte sugere uma tendência à dissolução do eu, visando o retorno do funcionamento do aparelho psíquico ao regime do processo primário. A pulsão de morte veio dar um lugar teórico ao poder de uma pulsão destrutiva ou agressiva na vida psíquica. Assim é estabelecido o campo da destrutividade do homem como um verdadeiro tema de interesse clínico, que foi impulsionado pelos casos de neuroses traumáticas, as manifestações masoquistas, a reação terapêutica negativa e os autoataques analisados por Freud. O sadismo presente na pulsão sexual é atribuído, a partir desse novo dualismo, à pulsão de morte. Vale lembrar que as pulsões de vida e de morte estão sempre combinadas, que é sempre numa complexidade que se pensa a relação entre elas.

Rudge (1998) ressalta o supereu como uma ferramenta teórica fundamental para entender como age a força pulsional que conduz ao sofrimento, pois esta instância opera como um mediador indispensável da pulsão de morte. Freud descreve em 1926 (1996) a reação terapêutica negativa e o masoquismo como manifestações da tirania de um supereu sádico sobre o eu. Dentre os cinco tipos de resistência distinguidos neste mesmo artigo de 1926, o que deriva do supereu se apresenta como o mais radical. A resistência que emerge do supereu está relacionada ao sentimento de culpa e à necessidade de autopunição, opondo-se a qualquer movimento para o sucesso, inclusive no que diz respeito à direção do tratamento psicanalítico. Vale notar que na vocação para o fracasso está implícita a concepção do masoquismo como originário.

Em "Análise terminável e interminável", Freud (1937/1996) assinala como representantes da pulsão de morte o sentimento de culpa e a busca por punição, ambos inconscientes, que apenas tornam-se reconhecíveis quando a pulsão de morte está ligada ao supereu. Ou seja, a pulsão de morte se faz ouvir quando ligada ao supereu. Logo, esta última instância torna-se a responsável pela eficácia das manifestações que advêm da pulsão de morte e da compulsão à repetição.

O supereu constitui-se a partir das primeiras palavras ouvidas pela criança de suas figuras parentais, perpetuando-se como uma marca no sujeito da identificação com os pais. Como escreve Rudge (2006):

A identificação com o adulto que dá origem ao supereu é basicamente identificação com seu desejo em relação à criança, embora saibamos que o ódio recalcado do próprio sujeito virá a colorir em tons mais fortes a hostilidade do supereu, que, portanto, não será forçosamente proporcional ao ódio de fato apreendido nos cuidadores. Os mandatos superegoicos resultam de identificações com o que, nos pais, é desejo inconsciente e subjugam o sujeito com especial eficácia porque operam, em sua quase-totalidade, de forma inconsciente (Rudge, 2006, p. 85).

Nas toxicomanias, a ligação da pulsão de morte com o supereu provoca o aprisionamento do sujeito à droga, no qual ele se anula enquanto sujeito e de consumidor passa a ser consumido pela droga. Este fenômeno pode ser compreendido como uma forma de autopunição movida pelo sentimento de culpa, embora apenas na singularidade de cada caso seja possível apreender a função que a droga ocupa para o sujeito.

Lígia Bittencourt (1990) ressalta que a pulsão de morte designa "um ponto que escapa a tudo e qualquer tentativa de simbolização e insiste de forma silenciosa, repetitiva e imperativa" (Bittencourt, 1990, p. 75). É justamente este resíduo irredutível da ordem do pulsional que as toxicomanias tentam apaziguar.

A busca de êxtase pertence à categoria do real - real do gozo pulsional - para além do princípio de prazer e de qualquer tentativa de reordenamento simbólico. A experiência do toxicômano corresponde ao paroxismo de um impossível de dizer, onde o sujeito do discurso se esconde inteiramente atrás de um gozo sem ato. Sujeito do gozo por excelência, o toxicômano é o sujeito triste na nostalgia de um gozo que, de imediato, se lhe impõe como mítico e inigualável (Bittencourt, 1990, p. 76; grifo da autora).

Ao assinalar a impossibilidade de simbolização - um impossível de dizer -, as toxicomanias se apresentam como um imperativo do supereu, testemunhando a aliança com a pulsão de morte. Sendo o supereu a instância que determina o campo simbólico, algo deste campo permanece incompreensível para o toxicômano, fazendo desaparecer o sujeito do discurso: "Essa tensão, oriunda do discordante ignorado na lei, é promovida à ordem do traumático sob a forma de uma insistência imperativa: um mandato de gozo" (Bittencourt, 1990, p. 76). É a submissão a este mandato que se manifesta nas toxicomanias. Assim, ao mesmo tempo em que visa à suspensão diante do sofrimento, a ingestão da droga como forma de autoaniquilamento é correlativa à castração, pois inscreve o lugar da falta no corpo, o que faz do toxicômano "prisioneiro desse significante que falta" (Bittencourt, 1990, p. 77).

Em um artigo posterior, Bittencourt (2006) assinala que o masoquismo se apresenta na satisfação pulsional do sofrimento, enquanto o sujeito se coloca como objeto de gozo. Nesta medida, o ato toxicomaníaco como um sacrifício masoquista do corpo visa atingir o Outro a fim de restituir um lugar de onde o sujeito possa emergir enquanto sujeito desejante. Em contrapartida, ao se colocar na posição de dejeto, o toxicômano perpetua sua condição de desamparo. Não obstante, a alternativa erigida através do artifício da droga consiste em um arranjo para conferir uma organização ao vazio, ainda que precária. Tendo em vista que o desejo do Outro nas toxicomanias consiste em um desejo de morte, resta ao toxicômano o sacrifício do corpo como um meio de se fazer existir.

Na origem do sacrifício está o sentimento de culpa, o qual é determinante para a permanência do sujeito na posição de toxicômano, posto que nunca será saciado. Por mais que o sujeito tente dar conta do seu sentimento de culpa, não há como apaziguá-lo. É por esta razão que a compulsão à repetição é fracassada, pois a angústia sempre retorna. Não obstante, o sacrifício propicia, ao menos, um alívio da culpa como resultado da punição infligida pelo supereu. É por esta razão que nos casos em que o sentimento de culpa torna-se consciente, como na melancolia, o sujeito revela sinais de descontentamento quando o sintoma perde a força. Nela, o eu admite a culpa e submete-se ao castigo. Todavia, a origem da culpa é desconhecida para o sujeito, uma vez que o supereu é constituído a partir de representações verbais inconscientes, e o acesso a ele advém de fontes do isso.

O sentimento de culpa designa um resquício do amor incestuoso e advém da severidade do supereu. A culpa está implícita nas fantasias masoquistas, que decorrem da necessidade de punição devido ao desejo incestuoso, como foi apontado por Freud (1924/1996) em "O problema econômico do masoquismo": quando o sofrimento e o desprazer são tidos como objetivos e não advertências, o princípio do prazer é paralisado, "como se o vigia de nossa vida mental fosse colocado fora de ação por uma droga" (Freud, 1924/1996: 177).

De acordo com Marta Ambertin (1992/2003), o masoquismo se configura como uma resposta do sujeito frente aos imperativos do supereu. Contudo, é preciso distinguir o masoquismo como condição de estrutura, diferenciando-o de uma posição subjetiva perversa. A fim de determinar o diagnóstico diferencial entre neurose e perversão, tendo em vista a problemática conferida pelo masoquismo, faz-se necessário, portanto, observar a resposta do sujeito diante da castração. Como ressalva a autora, enquanto na neurose a castração é transformada pelo fantasma em objeto de demanda de amor, na perversão ocorre a presentificação do objeto de gozo, velado pelo fetiche. Não obstante, o sacrifício masoquista nas toxicomanias se distingue do perverso masoquista, uma vez que a droga manifesta um apelo dirigido ao Outro. Na perversão não ocorre nenhuma forma de apelo.

Na compulsão à droga o sujeito se encontra impedido de alcançar uma elaboração psíquica. Impossibilitado de passar à palavra, ele passa ao ato. Segundo Piera Aulagnier (1985), a satisfação proveniente da pulsão de morte não depende de um objeto, mas de um ato. Ou seja, é a única pulsão efetivamente autônoma, ao contrário da pulsão de vida, que necessita investir em objetos para alcançar satisfação. A ausência de objetos que poderiam ser investidos por Eros a fim de satisfazer um certo número de ideais é o fator que deixa uma via livre para a pulsão de morte, cuja meta corresponde ao desejo do não-desejo ou à recusa de desejar. A pulsão de morte se manifesta como resposta ao sofrimento engendrado pelo excesso de trabalho psíquico vivido pelo sujeito. Com isso, a contrapartida para que haja um equilíbrio na economia libidinal do sujeito está em Eros, cuja meta é a preservação da vida através do investimento em objetos que proporcionem a satisfação narcísica. Estes investimentos são referidos pela autora como implicação pulsional. A ausência destes objetos impede que Eros cumpra os seus objetivos.

Já no registro da psicose, a implicação pulsional corre mais riscos de não encontrar o suporte necessário para a sua preservação, pois o próprio corpo e o eu do sujeito psicótico encontram-se fragmentados. O conflito decorrente destes riscos impossibilita que o eu experimente a satisfação narcísica, pois o próprio eu, sempre aberto para o sofrimento, corre o risco de se tornar incapaz de se disponibilizar a Eros como fonte de prazer e como objeto de investimento.

Aulagnier (1985) escreve que o sujeito que faz uso compulsivo de drogas goza das representações e pensamentos que atribui às drogas. Ou seja, o seu gozo não diz respeito diretamente ao desejo sexual em razão do superinvestimento na droga, que exclui do espaço psíquico outros pensamentos com finalidade sexual. Assim, a demanda de um prazer sexual dirigida ao Eu do outro é silenciada em proveito de um prazer que depende somente do próprio sujeito, o que aponta para uma clivagem entre o sexual e o narcísico.

O prazer se torna uma fonte de conflito quando o eu se vê obrigado a abrir mão do prazer imediato produzido pela satisfação das necessidades do corpo, ou da satisfação que deriva de sua atividade de pensar. Para o sujeito, toda espera de prazer, seja narcísico ou sexual, é insuportável, pois a espera é vivida com a convicção de que o prazer lhe será recusado. A relação desses sujeitos com o prazer exige uma exclusividade que está presente na relação do Eu com a sua própria atividade de pensar e na sua relação com o corpo: "ou se goza do pensamento, e as demandas do corpo são vividas como se fossem um adversário que deveria ser reduzido ao silêncio, ou então goza-se do corpo e neste caso é a atividade de pensar que deverá ser silenciada" (Aulagnier, 1985,p. 164).

A problemática das toxicomanias localiza-se na aliança realizada entre as exigências do corpo e as do pensamento, que somente é alcançada quando "se consegue fazer do prazer de um desses dois registros o que responde a uma necessidade para o segundo" (Aulagnier, 1985, p. 164; grifo da autora). Desta forma, a droga se torna ao mesmo tempo objeto de prazer para atividade de pensar e objeto de necessidade e de sofrimento para o corpo. Um processo semelhante ocorre no apaixonamento, no qual o gozo sexual exige a atividade de pensar no objeto amado de maneira exclusiva e obsessiva no registro de uma necessidade, e a ausência deste objeto vem acompanhada de grande sofrimento. A relação do toxicômano com a droga é da ordem de um apaixonamento. A partir da sua descoberta da droga como o melhor anestésico contra o sofrimento ele não pensa em outra coisa que não em formas de adquiri-la. A este fenômeno dá-se o nome de fissura pela droga. E o grande sofrimento causado pela ausência deste objeto conhecemos como síndrome de abstinência.

Nesse regime, Eros e Thanatos entram em conflito, pois buscam satisfazer simultaneamente as exigências do corpo e as do pensamento, o que seria impossível. Tal conflito se tornaria insustentável se não existissem momentos de trégua, nos quais o encontro com um objeto com uma meta ou com uma atividade apazigua o sujeito diante da angústia provocada pelo anseio por satisfação. Contudo, no caso do toxicômano há uma fixação no objeto droga. E como ocorre em toda fixação pulsional em um objeto concebido como insubstituível, o sujeito sofrerá as consequências desta escolha. Quanto menos enrijecida for a relação com o objeto, mais sadia será a relação objetal. No caso da fixação no objeto droga vemos que a pulsão de morte prevaleceu, pois é ela que alimenta este tipo de relação que coloca o sujeito em um estado de inibição frente ao desejo. Por este motivo podemos atestar que a droga opera a serviço da pulsão de morte. Ela não coloca o sujeito em movimento nos caminhos que o aproximariam do encontro com os objetos que permitiriam alguma satisfação do que é da ordem do desejo. Pelo contrário: a droga imobiliza e cala.

 

Referências bibliográficas

Ambertin, M. G. (1992/2003). As vozes do supereu. São Paulo: Cultura Editores Associados; Caxias do Sul, RS: EDUCS.

Aulagnier, P. (1985). Os destinos do prazer. Alienação, amor, paixão. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bittencourt, L. (1990). Toxicomania e masoquismo. Agenda de Psicanálise 2 - O corpo na psicanálise (pp.74-78). Rio de Janeiro: Dumará         [ Links ].

Bittencourt, L. (2006). Fantasma e final de análise: uma leitura. Revista da Escola Letra Freudiana, ano XXV, n. 37, pp. 151-160.         [ Links ]

Braunstein, N. (2007). Gozo. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (1920/1996). Além do princípio do prazer. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1924/1996), O problema econômico do masoquismo. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1926/1996). Inibições, sintomas e ansiedade. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XX. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1930/1996). O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1937/1996). Análise terminável e interminável.         [ Links ] ESB, v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago.

Inem, C. L. (2004). Corpo em evidência, corpo de gozo. In: Alberti, S. & Ribeiro, M. A. C. (orgs.). Retorno do exílio. O corpo entre a psicanálise e a ciência (pp. 89-94). Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Lacan, J. (1950/1998). Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Rudge, A. M. (1998). Pulsão e linguagem. Esboço de uma concepção psicanalítica do ato. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Rudge, A. M. (2006). Pulsão de morte como efeito do supereu. Revista Ágora[         [ Links ]online], Rio de Janeiro: Contracapa. IP/UFRJ, vol.IX, no. 1, janeiro a junho de 2006, p. 79-89.

Zafiropoulos, M. (1994). O toxicômano não existe - Fenomenologia da experiência toxicomaníaca e referências psicanalíticas. In: Bittencourt, L. (org.). A vocação do êxtase: uma antologia sobre o homem e suas drogas (pp. 17-32). Rio de Janeiro: Imago / UERJ.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 02/03/2014
Aprovado para publicação em: 16/05/2014

 

 

* Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio; Membro da Escola Letra Freudiana.
1 Lacan descreve o conceito de acting-out no seguinte seminário: O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.