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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2014

 

ARTIGOS

 

A memória entre intensidade e representação

 

Memory between intensity and representation

 

 

Ricardo Salztrager*

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

 

 


RESUMO

A proposta do artigo é analisar o tema da memória no pensamento freudiano com base na concepção de que a atividade mnêmica jamais pode ser reduzida à sua dimensão representacional. Assim, é destacado o aspecto propriamente intensivo dos processos mnêmicos através de um exame daquilo que neles escapa à possibilidade de representação vinculando-se à ordem do indizível, aos jogos pulsionais subjacentes ao domínio da memória e ao campo dos afetos.

Palavras-chave: memória; representação; intensidade; psicanálise.


ABSTRACT

The aim of this paper is to analyze the theme of memory in Freudian thought, based on the conception that mnemic activity can never be reduced to its representational dimension. So, we single out the intensive aspect of the memorial processes, through an examination of that which escapes the possibility of representation, linked to the order of the unspeakable ando of the underlying drivesand the afective field.

Keywords: memory; representation; intensity; psychoanalysis.


 

 

Qual o estatuto da memória na teoria freudiana? Trata-se de uma questão pertinente, principalmente quando levamos em conta que, embora sua importância clínica seja inegável, o tema recebeu pouco rigor conceitual da parte de Freud. Nesta perspectiva, podemos mesmo arriscar dizer que a memória não se constitui como um conceito propriamente dito na psicanálise visto que a ela não foi concedido o mesmo contorno metapsicológico dado, por exemplo, aos conceitos de inconsciente, pulsão, narcisismo, transferência, dentre tantos outros. Coube ao tema da memória o papel de protagonista em alguns poucos escritos, ainda que sua presença coadjuvante seja inegável em tantos outros devido a sua articulação com figuras e conceitos tidos como cruciais pelo pensamento freudiano.

Quando ressaltamos a importância clínica da memória, queremos destacar o fato de ela ter feito questão para Freud desde os primeiros momentos de sua prática. Isto já se faz presente em seus trabalhos iniciais com as histéricas, quando conclui que elas padecem, principalmente, de reminiscências (Breuer & Freud, 1893/1996). Do mesmo modo, quando, no "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1895/1996), ele esboça um primeiro modelo de aparelho psíquico, a memória assume um lugar de destaque em sua teorização. No entanto, a ausência de um maior desenvolvimento conceitual para o tema nos traz uma série de questionamentos que não podemos deixar de lado: a memória corresponde a uma espécie de arquivo a ser devidamente recuperado no tratamento ou, pelo contrário, ela diz respeito a algo que é construído no tempo presente para fornecer sentido à história de um paciente? A memória deve ser compreendida como algo imune à ação do tempo de modo a permanecer imutável na história subjetiva ou, pelo contrário, as diferentes experiências da vida podem alterá-la? O psiquismo é basicamente um aparelho de memória ou ela se configura apenas como uma dentre tantas outras funções implicadas no trabalho psíquico?

No presente artigo, estes questionamentos são analisados tendo como pano de fundo a ideia de que, na teoria freudiana, a memória não se reduz a uma rede de representações. Ou seja, traremos para o primeiro plano da discussão um conjunto de apontamentos que caminham no sentido contrário de considerá-la apenas como um arquivo, destacando que, por detrás de determinada rede representativa, encontra-se toda uma trama processual que a coloca em constante tensão e movimento. Com isto, estamos de acordo com a proposta de Freud (1915/1996) de que uma explicação metapsicológica completa para determinado tema deve levar em conta suas dimensões topográficas, dinâmicas e econômicas, sendo justamente com esta última que nos preocupamos principalmente. Assim, nos interessamos pelos jogos de força subjacentes ao campo representativo da memória, bem como por aquilo que, neste domínio, escapa à possibilidade de representação e se vincula ao plano das intensidades e dos afetos. Para tal, discutiremos alguns dos principais escritos freudianos sobre o tema.

 

O psiquismo como um aparelho de memória

A concepção de memória presente na "Carta 52" (Freud, 1896/1996) talvez seja uma das mais interessantes da obra freudiana. Nela, o psiquismo é considerado, fundamentalmente, como um aparelho de memória. Com isto, depreendemos que ela não se apresenta apenas como uma dentre outras tantas funções psíquicas, como a percepção, a atenção ou o pensamento. Pelo contrário, é a memória que serve de alicerce necessário para o empreendimento de todas estas funções, configurando-se como uma espécie de matéria-prima sobre a qual os processos psíquicos se efetivam.

Em outros termos, se não houvesse memória, todo o trabalho do psiquismo seria impensável, assim como não poderia haver, por exemplo, a formação de sonhos, fantasias ou mesmo de um discurso. Na "Carta 52", a memória se liga à própria constituição do aparelho psíquico, já que seu advento é concomitante ao armazenamento da estimulação que o atinge e seu desenvolvimento é pensado, justamente, a partir das sucessivas retranscrições do material mnêmico.

Igualmente instigante é esta ideia de que a memória não se constitui de uma só vez. Ou seja, ela não fica registrada no psiquismo de forma cristalizada e imutável, mas se desdobra em vários tempos, sofrendo sucessivos rearranjos, cada um deles dando origem a um registro psíquico diferente. O primeiro destes registros é o dos signos de percepção e a ele se seguem os da inconsciência e da pré-consciência. No entanto, apesar de Freud mencionar apenas estes três registros, ele não descarta a possibilidade de outras retranscrições do material mnêmico. Isto abre espaço para considerarmos a memória como algo que se altera ao longo do tempo, como algo em permanente movimento e que, portanto, pode sofrer infinitas reelaborações.

Deste modo, a memória é concebida na "Carta 52" em sua dimensão processual, em um devir permanente e como algo que se transforma ao longo da experiência subjetiva. Passa a existir um elo indissolúvel entre memória e criação, de modo a encontrarmos aí o substrato metapsicológico necessário para compreender as diversas criações e recriações passíveis de serem efetivadas ao longo da história de vida de um sujeito.

Já o aspecto propriamente intensivo da memória se destaca quando analisamos o contraste entre, de um lado, o registro dos signos de percepção e, de outro, os registros da inconsciência e da pré-consciência. Ou seja, enquanto no primeiro temos apenas marcas de memória, no segundo e no terceiro os traços mnêmicos se encontram articulados uns aos outros nos moldes de uma cadeia complexa de representações. Isto nos conduz à ideia de que a memória não se esgota em sua dimensão representativa e que, para além dela, existiria uma série de marcas intensivas desarticuladas que, no entanto, fornecem o substrato necessário para a constituição da trama representacional. Quando os signos de percepção não são recuperados pelos registros que o sucedem, eles permanecem na dinâmica psíquica na forma de "fueros" (Freud, 1896/1996, p. 283), nomenclatura fornecida para fazer referência a antigas leis espanholas que, mesmo nos tempos atuais, ainda vigoram em determinadas províncias.

Analisemos, portanto, este contraste entre a dimensão intensiva e a dimensão representacional da memória, a começar pela primeira. Se tivermos em mente o regime dos signos de percepção, vemos que o aparelho psíquico jamais registraria a totalidade do que é percebido, mas apenas alguns sinais que lá se inscrevem como pura intensidade. Trata-se, nos signos de percepção, não da constituição de uma lembrança propriamente dita, mas apenas de marcas ou impressões que afetam o aparato. Deste modo, ainda que estes signos não consistam efetivamente em lembranças, mesmo assim eles merecem ser configurados como uma modalidade específica de memória. E é justamente isso o que nos interessa: a memória só é considerada como sinônimo de lembrança quando focalizamos apenas sua dimensão representacional. No entanto, quando também destacamos o que se situa para além das representações, o campo da memória passa a abranger um domínio maior de fenômenos.

Quando, por exemplo, em "Inibição, sintoma e angústia", Freud (1926/1996) situa a experiência do nascimento como o protótipo dos demais estados traumáticos, presume-se que não se trataria, aqui, da conservação psíquica e consequente memorização da experiência completa do nascimento. Neste contexto, o psiquismo registra apenas algumas expressões corporais ligadas ao nascimento, como a hiperatividade dos órgãos respiratórios e a aceleração do ritmo cardíaco. Por conseguinte, com a ameaça de uma nova situação de perigo no decorrer da vida subjetiva, estas sensações corporais são reinvestidas e repetidas, ainda que dissociadas do evento que as originou. Isto pressupõe a inscrição destas sensações no aparelho psíquico na forma de signos de percepção e não enquanto lembranças propriamente ditas (Garcia-Roza, 1996).

Assim, enquanto no registro dos signos de percepção se destaca a dimensão propriamente intensiva dos processos mnêmicos, nos registros da inconsciência e da pré-consciência temos a memória apreciada sob um ponto de vista representacional. Nestes últimos, a articulação dos traços em uma cadeia complexa daria origem a certa organização do material mnêmico. Aqui já existe a constituição de determinada lógica - seja ela referente ao funcionamento do inconsciente ou do pré-consciente - que faz erigir uma espécie de texto psíquico. No caso do registro da inconsciência, temos, por exemplo, a formação de um sonho, texto psíquico que obedece à lógica peculiar a esse sistema. No caso do texto proveniente da pré-consciência, temos, por exemplo, a formação de uma lembrança propriamente dita, agora passível de ascender à consciência sem maiores percalços.

Temos, portanto, na "Carta 52", uma concepção complexa e igualmente fértil a respeito da memória. Trata-se de um escrito freudiano que, como nenhum outro, situa sua importância no próprio processo de constituição do aparelho psíquico. Aqui, como dissemos, o psiquismo é considerado um aparato de memória e, sem ela, seria impensável o próprio funcionamento psíquico. Ademais, Freud também abre espaço para encararmos a memória como algo que sofre inúmeras retranscrições e, neste sentido, temos aqui o germe para a compreensão dos conceitos de elaboração e de construção, tão importantes para a clínica e que são objetos privilegiados de escritos posteriores do pensamento freudiano, conforme veremos adiante. Por fim, o enfoque na dimensão intensiva dos processos mnêmicos nos conduz para além do problemático reducionismo da memória à sua dimensão representacional.

Este mesmo destaque do plano intensivo da memória também se encontra presente em alguns artigos posteriores da obra freudiana. Passemos a eles.

 

Afeto e lembrança

"Lembranças encobridoras" (Freud, 1899/1996) é o mais extenso dos textos freudianos sobre o tema da memória. Tal como ocorre em todos os seus outros escritos, o artigo foi feito para responder a um questionamento clínico fundamental: seriam as lembranças infantis relatadas na análise frutos de fantasmatizações subjetivas ou algo que diria respeito a eventos efetivamente vivenciados?

A investigação tem como ponto de partida a observação de que as mais remotas recordações de seus pacientes se referem a eventos infantis irrelevantes e, portanto, aparentemente nada justificaria sua retenção na memória. O encaminhamento teórico para esclarecer tal paradoxo culmina na proposta de considerar estas recordações como lembranças encobridoras, ou seja, construções fantasísticas erigidas para, justamente, ocultar o que foi de suma importância na história do sujeito.

Assim, a construção de uma lembrança encobridora é resultante de um mecanismo de distorção dos traços mnêmicos referentes à cena original e relevante para o sujeito. Duas forças psíquicas antagônicas interagem no processo: uma que impõe a fixação dos traços na memória consciente e outra que resiste a tal propósito. Resulta deste conflito uma conciliação entre as duas exigências contrárias, de modo que uma cena suficientemente distorcida, por intermédio de condensações e deslocamentos, chega à consciência.

Portanto, a memória é aqui, mais uma vez, analisada enquanto uma construção, fruto do trabalho psíquico. Com efeito, Freud pressupõe que as impressões advindas da realidade material jamais sobrevivem na memória do sujeito da maneira como foram percebidas. Pelo contrário, o processamento de uma lembrança é fatalmente contaminado pela atuação do psiquismo que dissimula os dados efetivos mediante a reelaboração e reorganização das impressões referentes à realidade. Nesta medida, as lembranças encobridoras possuem estatuto metapsicológico de formação de compromisso entre dois sistemas psíquicos com exigências antagônicas e modos de funcionamento conflitantes.

De acordo com este encaminhamento, percebemos que a memória é analisada primordialmente em seus aspectos topográficos e dinâmicos. Interessa a Freud saber sobre o jogo de forças inerentes ao processo de construção mnêmica e como se consegue driblar a censura existente entre os sistemas psíquicos para que algo chegue à consciência. Temos uma cena importante - e, por isso, recalcada - que empresta sua força a outra cena irrelevante, porém com algumas ligações com a primeira, resultando daí a construção de uma lembrança suficientemente disfarçada. Caberia ao processo analítico caminhar no sentido inverso da construção da lembrança encobridora e, mediante a associação livre, chegar ao material recalcado que lhe é subjacente.

Para exemplificar o processo de construção mnêmica, Freud se volta para a análise de uma lembrança aparentemente irrelevante de sua infância que, no entanto, permaneceu gravada na memória. A cena se passa num relvado onde ele, um primo e uma prima estão colhendo diversos ramos de flores amarelas. Quando, num dado momento, Freud arranca as flores da mão da prima, esta se põe a chorar e, como consolo, lhe é oferecido um pedaço de pão pela governanta. A fim de também receber o pedaço de pão, os dois meninos escondem suas flores.

Com o objetivo de apreender o sentido inconsciente da lembrança em questão, Freud é remetido a outra recordação, datada de seus dezessete anos, na qual se dá um retorno à terra natal. Nesta viagem, ele se apaixona por uma jovem, passando o restante da viagem a fantasiar sobre um possível casamento. De fato, morando com ela no campo, poderia provar diariamente o gosto do pão produzido no interior.

As associações prosseguem com outra recordação, agora datada dos vinte anos, quando volta novamente para o interior e reencontra a prima que estava presente na lembrança encobridora. Neste segundo momento, Freud é mais uma vez tomado por devaneios, agora concernentes a um plano de casamento com a prima, arquitetado minuciosamente por seu pai e pelo tio.

Com base nestas associações, Freud conclui que a lembrança infantil, na qual as flores da prima são arrebatadas, representa uma dissimulação de um desejo inconsciente de defloramento, tanto da prima, quanto da outra jovem. Neste sentido, a lembrança encobridora foi construída para, justamente, atender à satisfação deste desejo. Trata-se, portanto, de uma construção mnêmica que, apesar de servir de cenário à realização de um desejo recalcado, consegue chegar à consciência, justamente, por simbolizá-lo de maneira disfarçada.

Quanto ao aspecto intensivo do processo de construção da lembrança encobridora, podemos dizer que ele é enfatizado quando analisamos a questão da afetação do sujeito por suas experiências. Ou seja, vemos que a lembrança só pôde se constituir a partir do instante em que algo afetou Freud. Trata-se, em outros termos, de destacar que algo deve ser necessariamente investido pelo sujeito a fim de que adquira eficácia psíquica e passe a ser conservado de modo a se configurar como lembrança1.

Nesta medida, vemos que o ponto de partida para a construção da lembrança encobridora foi o amor que Freud sentia pelas jovens, sendo este afeto o que foi capaz de instaurar todo o trabalho psíquico. Em suma, podemos sustentar a hipótese de não ser possível a existência de memória fora de um contexto afetivo que justifique a conservação de algo no psiquismo. Dentre todas as experiências que vivemos, algumas permanecem na memória, justamente, porque nos afetam e este plano afetivo subjacente ao trabalho mnêmico também deve ser enfatizado quando a proposta é destacar a dimensão intensiva da memória.

Deste modo, ao focalizarmos o aspecto intensivo da lembrança encobridora de Freud, vemos, mais uma vez, que a memória jamais deve ser reduzida à sua dimensão representacional. Esta última merece ser concebida apenas como uma parte do trabalho de construção mnêmica, como aquela que se cristaliza enquanto lembrança, mas que, no entanto, traz em seus domínios a atuação de uma série de variáveis vinculadas ao plano das intensidades.

 

A memória e o indizível

Se, agora, voltarmos nosso interesse para alguns escritos propriamente clínicos de Freud, veremos que sua prática se orientou, de início, apenas para o destaque da dimensão representacional da memória. No entanto, após algumas dificuldades com as quais se defrontou, ele foi conduzido, aos poucos, para a ênfase do plano intensivo da atividade mnêmica. Todo este percurso pode ser examinado mediante uma discussão dos artigos "O método psicanalítico de Freud" (Freud, 1904/1996), passando por "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914/1996) e chegando, finalmente, às importantes considerações expostas em "História de uma neurose infantil" (Freud, 1918/1996) e "Construções em análise" (Freud, 1937/1996).

Assim, em "O método psicanalítico de Freud" (Freud, 1904/1996), são expostas as principais premissas de seu trabalho a partir do abandono da hipnose. É nele, por exemplo, que a proposta de trazer o material recalcado à consciência é tida como o principal objetivo da prática clínica e que a associação livre é elevada à categoria de regra fundamental da psicanálise.

Nesta época, Freud já havia teorizado sobre o mecanismo próprio à formação dos sintomas neuróticos. Estes consistiriam em substitutos de um desejo sexual recalcado que, devidamente disfarçado, era realizado nos sintomas. Neste contexto, caberia ao trabalho analítico trazer à consciência do analisando o material recalcado que fundamenta os seus sintomas. Para tal, era necessário convidar o paciente para associar livremente, dizendo tudo o que lhe vinha ao pensamento durante a sessão. Mesmo aquilo que lhe parecia disparatado, irrelevante ou doloroso deveria ser relatado, principalmente pela certeza de que as associações que mais causavam embaraço eram aquelas que mais se aproximavam do desejo recalcado.

Frente ao convite à associação livre, Freud destaca que era muito comum o sujeito responder com certa dose de resistência. Assim, a resistência foi conceituada, basicamente, como uma força contrária ao propósito clínico, encarregada de dificultar, ao máximo, a condução do material recalcado à consciência. Ela se demonstraria através de amnésias, confusões e mesmo a partir de certo mal-estar com o rumo tomado pelas associações. Enfim, na clínica freudiana, tudo se passava como se o paciente desejasse uma melhora e soubesse que, para tal, lhe era necessária a conscientização do material recalcado. Todavia, ele resistia a isto arduamente em virtude do desprazer que o conhecimento de seus desejos recalcados poderia lhe trazer.

Com base nestes pressupostos, depreendemos que a memória é concebida por Freud, nos primórdios de sua clínica, como uma espécie de arquivo a ser devidamente recuperado pelo trabalho psicanalítico. Ou seja, ainda que a memória não seja sequer mencionada neste escrito, vemos nele a concepção de que algumas vivências subjetivas permanecem gravadas no inconsciente, correspondendo a uma espécie de núcleo patogênico, ao qual o tratamento almeja finalmente chegar.

Trata-se, aqui, de um eco da concepção de memória presente no esquema da primeira tópica freudiana (Freud, 1900/1996), na qual os traços mnêmicos consistem em uma série de registros psíquicos inacessíveis à consciência e que permanecem fora de seu campo pela constante atuação do trabalho de recalque. Nesta medida, a clínica psicanalítica deveria, sobretudo, preencher as lacunas da memória subjetiva mediante a conscientização do material recalcado. Temos, portanto, uma abordagem do tema da memória centrada apenas em sua dimensão representacional, com a ênfase recaindo sobre sua localização topográfica e sobre o dinamismo do conflito existente entre os diversos sistemas psíquicos.

Tal concepção começa a sofrer alguns abalos quando, a partir de "Recordar, repetir e elaborar", Freud (1914/1996) se defronta com a impossibilidade de trazer à consciência a totalidade da memória arquivada no inconsciente. Com efeito, ele destaca que a tarefa de rememoração é impossível e, com isto, o foco deixa de ser a recordação do passado de seus pacientes e se desloca para aquilo que deste imenso arquivo inconsciente é repetido na esfera da transferência. Mais importante do que recordar, seria prestar atenção nas repetições do material recalcado que se atualiza a todo instante tomando a figura do analista como objeto. Nesta perspectiva, o analista deve facilitar o trabalho de elaboração do material recalcado repetido no tempo presente.

Assim, no artigo em questão Freud ainda persiste, de certo modo, na concepção da existência de um arquivo mnêmico incrustado no aparelho psíquico. Entretanto, é interessante marcar o deslocamento de ênfase que se estabelece neste momento de sua teorização: não lhe importa mais retornar ao passado e àquilo que da história de seus pacientes foi arquivado já que tudo isto se repete no presente. Neste contexto, o ensaio "Recordar, repetir e elaborar" vem demonstrar os furos e as limitações de uma abordagem meramente representacional do tema da memória. Todavia, Freud não vai muito além disto, deixando para focalizar a dimensão intensiva dos processos mnêmicos e dela extrair todas as consequências clínicas somente em alguns artigos posteriores.

É o que acontece, por exemplo, em "História de uma neurose infantil", quando Freud (1918/1996) se volta para a análise da infância do Homem dos lobos com o intuito de fornecer uma explicação para sua fobia. Aqui entra em cena, pela primeira vez, o conceito de construção em análise, tido como o artifício clínico que possibilita fornecer um sentido à história do sujeito, considerando, sobretudo, o que jamais foi dito por ele. A partir deste caso clínico, Freud passa a conceder maior ênfase à dimensão do indizível, ou seja, àquilo que escapa a qualquer trama representativa. Nesta medida, seria justamente a partir deste lócus irredutível ao campo da fala que uma memória pode ser construída.

Dá-se, portanto, na obra freudiana, o devido reconhecimento às tendências que permanecem apartadas do campo da fala e que não podem ser rememoradas justamente por não terem sido representadas. Trata-se, em outros termos, de um excesso pulsional (Freud, 1920/1996) que resiste ao trabalho de representação, permanecendo como um resíduo de todo o processo de significantização.

Com efeito, a partir destes resíduos, uma memória pode ser construída, sendo para esta questão que Freud (1937/1996) retorna em "Construções em análise". Nele está presente a ideia de que o artifício da construção permite a assimilação deste lócus indizível em uma trama discursiva relativamente coerente sobre o passado subjetivo. No entanto, cabe destacar que não se trataria, mediante tal artifício, de reconstruir o passado tal como fora realmente vivenciado, o que levaria, em última instância, ao foco da dimensão representacional da memória, tal como ocorria nos primórdios de sua clínica. Trata-se, pelo contrário, do fornecimento de sentido a algo que não o tem, sem necessariamente importar se a construção corresponde ou não à realidade efetiva.

Portanto, com a entrada em cena do artifício da construção, a concepção freudiana sobre a memória sofre um verdadeiro redimensionamento. Ou seja, a memória passa a ser concebida não mais como algo que já estava ali arquivado ou gravado de modo a se manifestar na consciência enquanto lembranças. Pelo contrário, Freud abre o devido espaço para a possibilidade de se criar, no tempo presente, uma memória referente ao passado.

Tudo se passa como se o momento da construção fosse uma espécie de marco zero a partir do qual o passado é criado. Por este viés, o marco zero da história subjetiva não estaria situado no passado ou numa memória da infância arquivada no inconsciente onde se almeja chegar de qualquer maneira. É no tempo presente que se situa o início de todo o processo já que, nele, uma construção permite traçar um passado encarado como algo da ordem de uma produção. Esta é uma das principais consequências a serem extraídas quando se dá o destaque ao aspecto intensivo da atividade mnêmica.

 

Morte e memória

Por fim, devemos destacar que o aspecto intensivo da memória também pode ser enfatizado a partir de uma análise de "O mal-estar na civilização", quando Freud (1930/1996) se volta para a circunscrição do conflito entre Eros e Thanatos subjacente a quaisquer processos psíquicos. Neste texto, ele retorna a algumas considerações anteriormente expostas em "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/1996) quando o tema da compulsão à repetição lhe havia chamado atenção. A conclusão por ele obtida foi de que, por detrás de toda a atividade psíquica, existiria um embate entre duas forças pulsionais antagônicas: uma encarregada de preservar a vida e outra que buscava dissolvê-la, reconduzindo o sujeito a um estado inorgânico.

De acordo com esta concepção, todos os fenômenos psíquicos devem ser analisados como tendo por pano de fundo um conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. As ações destas duas forças sempre estariam mescladas no trabalho do psiquismo em proporções variáveis, de modo que apenas raramente uma delas se faz presente de forma isolada.

Assim, quando o conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte é retomado em "O mal-estar na civilização", Freud (1930/1996) passa a conceber a vida como aquilo que se vincula à conservação e à manutenção de um mesmo estado de coisas. A morte, ao contrário, é tida como algo que rompe ou fragmenta tudo o que está construído e conservado pela atuação das pulsões de vida. Em si, a morte sempre traz consigo algo da ordem da destruição que age contra quaisquer tendências conservadoras e estanques.

Com efeito, a circunscrição desta dimensão conflitiva subjacente à atividade psíquica traz consequências bem marcantes para a concepção freudiana de memória, embora esta nem apareça no texto em questão como um conceito central. Ou seja, considerando que a memória implica necessariamente na conservação de algo, a partir de agora Freud destaca que por detrás desta tendência conservadora sempre se presentifica algo que visa fragmentá-la. Assim, quando focalizamos a memória em seu aspecto de lembrança ou arquivo, estaríamos apenas encarando-a como algo vinculado ao trabalho das pulsões de vida. No entanto, com esta nova configuração, passa a existir a denúncia do quão precário é o empreendimento mnêmico e, desta maneira, a memória pode ser encarada por outro viés.

Portanto, fica claro que devido à atuação da pulsão de morte a memória é sempre passível de romper-se ou fragmentar-se. E isto vale tanto para as nossas lembranças referentes ao passado e arquivadas no aparelho psíquico sob a forma de traços mnêmicos quanto para a memória que é construída em análise para fornecer sentido à história subjetiva. De fato, a abordagem freudiana nos leva a crer que uma memória duradoura jamais poderia existir. Pelo contrário, tudo o que é conservado pode logo ser destruído e, por este prisma, a memória é sempre fragmentada e lacunar e jamais estanque ou bem estruturada. Trata-se de um empreendimento fundamentalmente precário e passível de ser implodido, a qualquer instante, pela força de Thanatos.

Com base nestas considerações, depreendemos também que a memória não deve ser concebida como algo estático. Ou seja, quando a devida ênfase é dada a seu plano intensivo, a atividade mnêmica passa a ser tida como algo sempre aberto, sem jamais fechar-se naquilo que é conservado ou construído. Em última instância, o trabalho mnêmico é aqui valorizado em sua dimensão de devir e, portanto, não se finda no que já se encontra instituído.

Claro está também que este mecanismo é um processo eminentemente criativo. Em outros termos, ressalta-se que a morte possui um caráter demolidor, destruindo memórias estagnadas, fragmentando-as e fazendo nascer daí uma nova construção mnêmica. Neste sentido, o caráter meramente conservador da memória é relegado para o segundo plano da discussão e, em seu lugar, aparece a possibilidade de nos despojarmos de tudo o que se encontra construído para que algo de novo possa advir. Assim, dos fragmentos que restarem da força disruptiva de Thanatos, uma nova memória será construída para, posteriormente, ser destruída, num processo que, em última instância, aponta para o infinito.

 

Considerações finais

Assim, com base em nosso exame, depreendemos que a memória está longe de se configurar, na obra freudiana, apenas como um arquivo ou como algo que se presentifica no discurso subjetivo sob a forma de lembranças. Neste sentido, a concepção que conduz a considerá-la apenas enquanto um arquivo ou lembrança seria bastante incompleta, na medida em que focalizaria apenas a dimensão representacional do tema. Analisada por este viés, o destaque recai somente sobre sua localização topográfica consciente ou inconsciente, sobre aquilo que no campo da memória é passível de se inserir em uma trama discursiva e sobre todo o dinamismo em jogo no processo de recalque que conduz seja ao esquecimento, seja àquilo que pode ser rememorado.

No entanto, quando a ênfase se desloca para seu aspecto intensivo, verificamos o quão reducionista é um exame meramente representacional do tema. Deste modo, conforme destacamos a respeito da "Carta 52", a memória jamais pode ser reduzida a algo que se presentifica como lembrança. Vimos que, para além disto, Freud (1896/1996) também considera a existência dos mais diversos signos de percepção que não se inscrevem no aparelho psíquico como uma lembrança propriamente dita, mas apenas como marcas apartadas do campo representacional. De "Lembranças encobridoras" (Freud, 1899/1996), situamos o destaque da dimensão afetiva em jogo na atividade mnêmica, de modo que o sujeito só conserva em seu psiquismo aquilo que é necessariamente investido por ele. Da "História de uma neurose infantil" (Freud, 1918/1996) e de "Construções em análise" (Freud, 1937/1996) ressaltamos que o processo de construção de uma memória também se vincula ao campo do indizível e que, portanto, escapa a toda a rede representacional. Finalmente, mediante a análise de "O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1996), depreendemos que a atuação de Thanatos no trabalho de construção mnêmica conduz ao destaque de seu inacabamento fundamental. Trata-se, aqui, de apontamentos de suma importância e que jamais podem ser ignorados por aqueles que se debruçam sobre o tema.

 

Referências bibliográficas

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Freud, S. (1904/1996). O método psicanalítico de Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 7. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1914/1996). Recordar, repetir e elaborar. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 12. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1915/1996). O inconsciente. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 14. Rio de Janeiro: Imago.

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Freud, S. (1920/1996). Além do princípio de prazer. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 18. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1926/1996). Inibição, sintoma e angústia. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 20. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1930/1996). O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 21. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1937/1996). Construções em análise. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 23. Rio de Janeiro: Imago.

Garcia-Roza, L. A. (1996). Introdução à metapsicologia freudiana, v. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Herzog, R. (2001). As duas faces do desejo. In: Cosentino, J. (org.). O estranho na clínica psicanalítica (pp. 27-41). Rio de Janeiro: Contra capa.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 10/12/2013
Aprovado para publicação em: 02/03/2014

 

 

* Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
1 Quanto a este ponto, cabe destacar que a questão da afetação do sujeito pelo mundo é profundamente marcada por suas produções desejantes. O próprio conceito de desejo na obra freudiana pode ser analisado a partir de uma dimensão representacional e de uma dimensão intensiva. No que diz respeito a esta última, o desejo é valorizado enquanto instigador do trabalho do psiquismo. Para maiores detalhes, remeto a Herzog (2001).