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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.46 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014

 

RESENHAS

 

Por uma psicanálise porvir

 

For a becoming psychoanalysis

 

 

Auterives Maciel Júnior I, II*; Clarice Arantes Martin III**

I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Brasil
II Universidade Veiga de Almeida - Brasil
III Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle - Brasil

 

 

Resenha de:
Rozenthal, E. O ser no gerúndio: corpo e sensibilidade na psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2014. 230 páginas.

 

O ser no gerúndio: corpo e sensibilidade na psicanálise, de Eduardo Rozenthal, se situa no interior da produção psicanalítica contemporânea que, a partir da interlocução fecunda com a filosofia, visa interrogar a virtualidade da obra de Freud na aurora dos novos tempos. Para tanto, Rozenthal problematiza aspectos cruciais da teoria psicanalítica, movido pela convicção de que a narrativa freudiana porta sempre "pensabilidades" inéditas e que, por esse motivo, deve ser lida na dimensão de abertura à criação. A metodologia central do livro consiste em empreender um retorno a Freud, de modo a desdobrar a dita virtualidade, ou seja, colocar em movimento a "discursividade" do texto para, dessa forma, problematizar os impasses que acabam por submeter a subjetividade aos ditames da sociedade de consumo e do espetáculo.

O ponto de partida do livro que o leitor tem em mãos é a problematização da especificidade do corpo em psicanálise. Face ao avanço insidioso dos medicamentos sobre as terapêuticas da subjetividade, Rozenthal argumenta em favor da necessidade de que o pensamento psicanalítico construa uma descrição estritamente subjetiva do corpo. A esse respeito, Eduardo nos oferece uma interessante cartografia da psicanálise que se inscreve pela interpelação, possuidora de inexorável caráter de urgência: "afinal, de que corpo trata a psicanálise?".

Rozenthal persegue os vestígios textuais nos quais a intensidade afetiva do corpo subjetivo deixa-se apreender, na primeira parte da obra de Freud, somente como retorno do recalcado, ainda sob o primado da quantidade de afeto que investe a representação, sob o império da sexualidade recalcada e da angústia de castração. A partir da constatação do declínio da hegemonia da representação na narrativa psicanalítica, Eduardo valoriza a teoria produzida desde o trabalho de 1914, quando Freud introduz o narcisismo na trama conceitual da psicanálise para, finalmente na década de vinte, abrir o pensamento à força irrepresentável, ao Isso e à angústia automática. Em tais elementos conceituais é que Rozenthal encontra os operadores de leitura da corporeidade em sua faceta de intensidade.

O corpo intensivo, denominado, com Leclaire, de "corpo erógeno", permite o desenvolvimento de uma abordagem imanentista da subjetividade, sendo essa concebida como diferenciação permanente ou processo de devir contínuo, produzindo-se a partir de uma abertura constituinte que associa as práticas sociais à força motriz da subjetividade: do antagonismo das relações sociais de poder nasce o "agonismo" subjetivo. Desfazendo-se de toda abordagem que condicione a subjetividade a qualquer ideal de origem biológica, universal e a-histórica ou de fins utilitários e adaptativos, para Eduardo Rozenthal, a dimensão de devir da subjetividade implica a diferenciação de si mesma. Do "modo corporal" ao "modo representativo" do psiquismo, essa diferenciação corresponde à autocriação da subjetividade, subjetivação imanente, sem origem ou finalidade, sempre no interior do encontro intersubjetivo.

De fato, ao aproximar psicanálise e pensamento da imanência, Eduardo entroniza o encontro como condição de possibilidade da subjetividade e da subjetivação. Deslocando a transferência como transmissão de saber de si do analista ao analisante, senão considerando-a como prática intransitiva do cuidado de si, nosso autor destaca do encontro o "primado do afeto", ou seja, o privilégio do encontro clínico recairá sobre a força criativa presente na análise.

Nessa medida, Eduardo aponta para a sensibilidade do analista como operador fundamental do processo de subjetivação do analisante que, no entanto, não pode sequer ser cogitado sem a consideração da respectiva subjetivação do próprio analista. Nesse contexto, o livro de Rozenthal dá relevo à imperativa necessidade da sensibilidade do analista às "pequenas percepções" que emanam da "atmosfera" da análise, sensibilidade que se traduz pela vivência imediata da força, açambarcando transitórias sensações sutis e sentimentos indiscriminados por parte do analista. Impassível de ser dita pelo analisante, nem, tampouco, escutada pelo analista pela via da contratransferência de caráter representativo, a atmosfera pode, contudo, ser sentida pelo par protagonista da análise.

Para Eduardo, a questão da interpretação do analista é pivô de mudanças significativas na teorização freudiana. Primeiramente adotada como instrumento analítico capaz de retirar o véu que cobre a verdade material do trauma, a interpretação visava atingir a referida verdade da representação oculta, recalcada no inconsciente do analisante. Rozenthal mostra que, a partir de 1920, a origem factual da interpretação se perde, passando o "jogo de verdade" a ser produzido como efeito do encontro transferencial. Diante da interpretação que se tornara infinita, impõe-se, então, a necessidade do manejo direto da força, estruturado pela sensibilidade do analista, como complemento indispensável da interpretação analítica.

Eduardo sinaliza, a partir da "virada" dos anos vinte, a possibilidade de pensar a "diferença pura" em solo freudiano. Condizente com a abolição de todo o prazer, a dita diferença, situando-se além do princípio que o regula, é compatível com a dimensão lacaniana do gozo. Limite do prazer enquanto dissipação do afeto, limite da diferença relativa entre o significado de uma dada representação e o sentido do conjunto de representações identitárias que integram o eu, a diferença pura equivale à redução absoluta ou síncope da diferença relativa semântica. Espécie de "buraco negro" ou concentração de força de diferenciação, a diferença pura equivale à força de uma zona erógena, cuja totalidade aberta corresponde ao corpo erógeno.

Nesse contexto, a experiência analítica será concebida como processo imanente de subjetivação, sendo que o interesse clínico deverá abrir espaço para o sofrimento do corpo erógeno, isto é, para o afeto impassível de manifestar-se sob a forma de emoção, afeto que se vê desmesuradamente atiçado pela atual mídia, competente e inescrupulosa.

Rozenthal elege Foucault como interlocutor privilegiado do pensamento psicanalítico, utilizando-se da noção de resistência que, na acepção do filósofo, é força subjetiva que nasce do coração das relações de poder. A dita noção surge no pensamento de Foucault na segunda metade da década de 70 como concepção distinta e, até mesmo, oposta ao conceito de resistência em psicanálise. Para o filósofo, a resistência é da ordem da força do desejo frente ao poder coercitivo da sociedade.

Eduardo se serve dessa oposição apropriando-se do conceito de resistência foucaultiana, inserindo-o, no entanto, no interior da experiência analítica. Com essa estratégia teórica, a resistência situa-se como força de subjetivação, com capacidade de afastar o indivíduo da submissão aos podres poderes, atrelados ao capitalismo neoliberal, permitindo, finalmente, um desempenho inventivo e alegre das variadas práticas sociais. Na mesma medida e pelo mesmo processo de subjetivação, a resistência possui força de contraposição ao sofrimento subjetivo das graves compulsões da atualidade, estimuladas pelos canais midiáticos a serviço dos dispositivos de poder da sociedade consumista de nosso tempo.

Sabemos que no pensamento de Foucault o problema da resistência se coloca a partir de uma prática específica, atinente às sociedades da Antiguidade greco-romana, denominada de cuidado de si que implica, necessariamente, o cuidado do outro. Tais considerações permitem a Rozenthal a apresentação da relação analítica como prática de criação de inconsciente, desde que essa transferência seja condicionada pelo cuidado de si alteritário, mas não pelo saber de si. Esse último, associado por Foucault à sociedade dos primeiros cristãos, encontra-se fundamentado pelos universais a-históricos do Complexo de Édipo e da interdição do incesto.

Eduardo cunha a expressão "ser no gerúndio" para designar que o essencial do trabalho de subjetivação em psicanálise é produzir movimento permanente e mudança intensiva. O ser no gerúndio é aquele que se desdobra numa temporalidade sem origem e sem destino. Para contextualizá-lo, Rozenthal indica um caminho que passa por Deleuze e Foucault, e também por Daniel Stern, para, com mais forte razão do que em qualquer outro contexto histórico precedente, indagar à psicanálise de Freud e Lacan como podemos conceber a subjetividade e a subjetivação em pleno século das novas tecnologias teleinformáticas de informação e comunicação.

Nessa direção, o livro apresenta algumas linhas de força das quais a aproximação do pensamento de Freud e Foucault seria especialmente emblemática. Para os dois pesquisadores, a categoria de sujeito não existiria, havendo tão somente um ser que só pode ser dito no gerúndio. Para o filósofo, a subjetividade apresenta-se pelo dinamismo dos "modos de subjetivação", enquanto o psicanalista, no cerne de seu derradeiro pensamento, considera a subjetividade como diferenciação permanente do "isso". É assim que ambos se afastam do sujeito em sua existência universal, unindo-se, em contrapartida, através da ideia de uma subjetividade que não existe propriamente, senão insiste, no tempo do gerúndio, como força e processo de tornar-se subjetividade.

Eis como, a partir do pensamento de Eduardo Rozenthal, poderíamos adequadamente compreender os objetivos de uma análise orientada pelo cuidado de si criador como produção estilística da existência. "Tornar-se aquilo que se é" seria, pois, a descrição sucinta dessa clínica analítica, cuja força reside no inacabado e cuja meta - inalcançável por definição - consistiria em ir além de si, sem, no entanto, deixar de ser aquilo que se é. Somente tal processo de subjetivação contribuiria para uma menor sujeição a nossa própria força psíquica constituinte e aos poderes sociais coercitivos, permitindo, só então, o desempenho inventivo e agradável de nossa existência cotidiana.

 

 

* Professor da PUC-RIO e da Universidade Veiga de Almeida. Mestre em filosofia pela UERJ. Doutor em teoria psicanalítica pela UFRJ. Autor de Pré-socráticos: a invenção da razão. São Paulo: Odysseus, 2003.
** Psicóloga. Mestre em psicologia clínica. Membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle.