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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

O conceito de paixão no Diário Clínico de Ferenczi

 

The Concept of Passion in Ferenczi's Clinical Diary

 

 

György Péter HársI*; Luís Otávio Nicodemos (Tradução)II**

IUniversidade de Vesprimiensis - Alemanha
IIUniversidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) - Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo busca abordar o conceito de paixão elaborado a partir das ideias do psicanalista húngaro Ferenczi em seu Diário Clínico e a sua articulação com outras de suas teorias, como a "Confusão de línguas" e a "Análise mútua", e também com outros autores. Sendo, a princípio, um dos discípulos de Freud, é importante notar como Ferenczi seguiu outro rumo em suas ideias e desafiou conceitos primordiais da teoria freudiana, como o Complexo de Édipo, por meio de suas próprias releituras. Tal cisão da teoria clássica psicanalítica provoca uma aproximação com os pensamentos de outros autores, principalmente com Groddeck.

Palavras-chave: Paixão, Descartes, criança, linguagem.


ABSTRACT

This present paper seeks to approach the concept of passion elaborated by the Hungarian psychoanalyst Ferenczi in his Clinical Diary and its articulation with some of his other theories, like the "Confusion of tongues", "Mutual analysis", and others authors as well. Being, at first, one of Freud's disciples, it's interesting to notice how Ferenczi followed another path with his thoughts and challenged some of the prime Freudian concepts such as the Oedipus Complex, through its own reinterpretations. This break-up of psychoanalytic classical theory, causes a rapprochement with the thoughts of other authors citing as the main example, Groddeck.

Keywords: Passion, Descartes, infans, language.


 

 

"me myself is sexualist for setting up my system on the basis of the number and settlement of stamina ".
Linné: Philosophia botanica

 

As "últimas contribuições" de Ferenczi têm origem principalmente em seu Diário Clínico de 1932. As anotações escritas em 30 de julho são o primeiro esboço de seus pensamentos que se desdobraram no estudo intitulado Confusão de Línguas entre os adultos e a criança. Esse estudo trata da confusão entre a linguagem de paixão e a linguagem de ternura. Apesar de a paixão ser um tema recorrente também no Diário, o significado completo desse conceito e sua relação com o sofrimento se tornam mais claros na nota inspirada na análise de Descartes do conceito de paixão, formulada na Enciclopédia Britânica que Ferenczi ganhou de Freud no seu 50º aniversário. As citações e comentários podem servir como ponto de partida para entendermos a própria teoria de Ferenczi sobre a paixão e o modo como a polissemia da palavra pode ter um significado importante. Para a pergunta sobre o que a paixão realmente é, ele encontra a seguinte resposta na Encyclopedia Britannica: " paixão = 1. Sofrimento de uma dor, 2. Sentimento de uma emoção, 3. Sofrimentos de Jesus Cristo ... e dos santos e mártires. O uso moderno limita geralmente o termo a emoções fortes e incontroláveis".

Logo após a citação, ele coloca as seguintes sentenças - ainda em inglês:

(Descartes: Se a razão é contraditória em si mesma, a verdade deve ser encontrada na desrazão.) Não é fácil conceber como o mesmo ser que é determinado pela paixão do exterior deveria também ser determinado pela razão do interior. Como, em outros termos, um ser espiritual pode preservar o seu caráter autodeterminado ou, pelo menos determinado somente pela ideia clara e distinta da razão - que são suas formas inatas - na presença desse elemento estranho da paixão que parece fazer disso o escravo de impressões externas? Será a razão capaz de esmagar esse intruso ou de convertê-lo em servo? As paixões podem ser aniquiladas ou espiritualizadas? Descartes não pôde propriamente adotar nenhuma das duas alternativas (Ferenczi, 1996, p. 160, 30/06/1932)

Algumas páginas depois, ele cita novamente:

Cartesianismo. Encyclopaedia Britannica, Vol. V, 1910-11. As paixões são... provisões da natureza para a proteção da unidade da alma e do corpo, e nos estimulam a realizar os atos necessários para esse fim. Entretanto, ele não poderia admitir, por outro lado, que essas paixões fossem capazes de ser completamente espiritualizadas... É impossível pensar que paixões que surgem fora dessa unidade podem ser transformadas na encarnação e expressão da razão. Descartes sublinha: '...toda paixão tem uma forma inferior e uma superior; e enquanto sua forma inferior ou primária baseia-se nas ideias obscuras produzidas pelo movimento do espírito animal, em sua forma superior estás ligada ao julgamento claro e distinto da razão a respeito do bem e do mal (Ferenczi, 1996, p. 163, 30/06/1932).

Essas duas passagens são de importância fundamental em relação ao nosso tópico, pois condensam as questões e problemas que estão por trás da concepção ferencziana: o conceito de proteção, as formas superiores e inferiores de paixão, a falha de Descartes em resolver a contradição entre razão e paixão. Além disso, elas são o primeiro momento em que as duas concepções de paixão - paixão como sofrimento de uma dor e paixão como emoção forte e incontrolável - estão lado a lado. Essas passagens podem ser concebidas como uma proclamação de guerra contra Freud, enquanto representante da razão ou do racionalismo. Realmente, em Ferenczi não é a razão a opositora da paixão como em Descartes e Freud, mas sim a ternura, que é o estado original da criança. Contudo, Ferenczi também joga Descartes contra Freud em seu estudo posterior "Confusão de línguas". Escrevendo sobre psicanálise, reforça a ideia de Descartes de que paixão sempre é a causa do passional (Ferenczi, 1971, p. 225), ou de que "paixões são trazidas pelo sofrimento" (Ferenczi, 1955, p. 166.). Porém essa psicanálise não é freudiana e sim ferencziana. Ele interpreta a tese de Descartes ontogeneticamente em seu Diário, desafiando a teoria freudiana do desenvolvimento infantil. Ferenczi argumenta que, "se conseguirmos ter acesso à vida psíquica da criança ainda poupada pelas dores e sofrimentos, chegamos finalmente à hipótese de que foi unicamente o sofrimento que tornou o homem apaixonado e desconsiderado" (Ferenczi, 1988, p. 151, 30/06/1932)

Essa constatação nos leva à questão sobre a natureza realmente original de uma criança e o impacto produzido nele/nela pela paixão. Ferenczi sugere que a psique de uma criança é, de certa forma, um estado fluido, no qual não há qualquer mecanismo de defesa funcionando e, portanto, não há ainda ego (self), mas apenas o id (Ferenczi, 1988, p. 148 e p. 210) ou id e superego (Ferenczi, 1927, p. 222). Isso também significa que a criança não tem paixão, sendo a paixão uma reação egoísta (selfish) do ego (self) que não está disponível para a criança desprovida (selfless)1 de ego. A falta de meios de defesa tem também um efeito positivo, já que essas defesas reduzem a "superfície" de comunicação. De acordo com Ferenczi, os órgãos de sentido dos adultos servem "no essencial, para excluir uma grande parte do mundo exterior (de fato tudo, exceto o que é útil)" (Ferenczi, 1988, p. 154, 30/06/1932.). Reciprocamente, "o bebê se comunica com o mundo circundante através de uma superfície mais extensa" já que nele "as medidas de proteção ainda não estão desenvolvidas" (Ferenczi, 1988, p. 148, 30/06/1932). Ao invés disso, o modo infantil de funcionar em relação ao mundo exterior é o mecanismo do mimetismo (um tipo de identificação sem autocatexia, isto é, um fenômeno autoplástico)2. Esse estágio de desenvolvimento - antes de emergir o amor- objeto - é chamado por Ferenczi de estágio de ternura (Ferenczi, 1971, p. 222). Entretanto, ternura também é um conceito freudiano; assim, devemos estar cientes das diferenças entre esse termo e o termo ferencziano.

Para Freud, ternura designa, por oposição à sensualidade, uma relação amorosa em que o prazer sexual não é encontrado independentemente, mas sempre apoiado na satisfação das pulsões de autopreservação. Embora esse amor contenha elementos eróticos, estes não são, num primeiro tempo, separáveis da satisfação encontrada na alimentação e nos cuidados corporais (Laplanche e Pontalis, 1994, p. 204-205). Como vemos, essa ternura freudiana possui uma direção aloplástica, enquanto que a ternura de Ferenczi é um fenômeno explicitamente autoplástico. Além disso, para Ferenczi ternura é a condição básica de um tipo especial de inteligência, diferente daquela que provém da razão ou da racionalidade3. A contraparte ferencziana desse termo, a paixão, é um conceito maior do que o de erotismo, do mesmo modo que a ternura de Ferenczi também é maior do que a ternura de Freud. Além da sexualidade, a paixão inclui também outras emoções, enquanto que na ternura não há nenhuma forma de sexualidade; ela abarca todo o estado mental infantil original. Esse estado ou atitude é o oposto daquele do mundo adulto. No mundo dos adultos, como diz Ferenczi, "O regime atualmente em vigor (educação das crianças, atitude passional dos adultos) torna difícil a todos desprenderem-se das simpatias, das antipatias e das injustiças de umas e outras. A ciência também é passional quando só enxerga e reconhece os instintos egoístas " (Ferenczi, 1988, p. 200, 13/08/1932).

A "confusão de línguas" é uma confusão de vivenciar a vida como um todo. Como se a rivalidade fosse unilateral ou, às vezes, a luta entre dois modos de viver: um baseado no modo aloplástico e outro na adaptação autoplástica. Ou entre dois mundos: o mundo da paixão, que é o mundo dos adultos, dos analistas e da maioria - por um lado - e o mundo da ternura, sendo o mundo das crianças, analisandos e da minoria, por outro. Quem são os loucos: nós ou os pacientes, crianças ou adultos? - pergunta Ferenczi relativizando o conceito de loucura.

Quais são os elementos da "paixão dos psicanalistas" ou dos adultos? A resposta de Ferenczi é a seguinte: "Conforto pessoal. Falta de consideração. Usam-se os analisandos ao invés de deixar que eles se desenvolvam. Elementos sádicos e masoquistas [...]. Suscetibilidade do analista (injusto) (desejo de vingança) [...] (Vaidade) TIRANIA: contra a independência" (Ferenczi, 1988, p. 183, 30/07/1932).

E se nos perguntamos sobre o impacto desse mundo ou linguagem no outro, Ferenczi nos oferece respostas que são espantosas para freudianos e para adultos, desafiando a forma tradicional da psicanálise. O que ocorre aqui é uma real destruição do mito, a destruição da tradição fundamental do mito do Édipo. Ferenczi formula suas ideias em diferentes variações para colocar suas questões.

É preciso formular a pergunta: que parte daquilo que depende do amor indefectível da criança pela mãe e que parte dos desejos homicidas do menino contra seu concorrente, o pai, viria a desenvolver-se de maneira puramente espontânea, mesmo sem a implantação precoce de erotismo e de genitalidade adultos apaixonados? Em outras palavras, que parte do Complexo de Édipo é realmente herdada e que parte é transmitida de uma geração a outra por meio da tradição? (Ferenczi, 1988, p. 79, 05/04/1932).

Ou mais tarde, em outra nota: "O Complexo de Édipo não é também uma consequência da atividade dos adultos - a tendência passional?" (Ferenczi: 1988, p. 173, 24/07/1932.). E algumas páginas depois disso, ele escreve novamente: "Estaria aí um exemplo daqueles casos - certamente não raros - em que a fixação nos pais, isto é, a fixação incestuosa, não aparece como um produto natural do desenvolvimento, mas é implantada do exterior na psique, sendo, portanto, um produto do Superego" (Ferenczi, 1988, p. 175, 26/07/1932).

Porém a concepção ferencziana de paixão e ternura não envolve apenas a destruição do Édipo freudiano, mas a oferta de uma outra leitura do mito do Édipo: é disso que trata a confusão de línguas, que são ao mesmo tempo causa e resultado da paixão e sofrimento. Isso quer dizer que a leitura linguística do mito é justificada também pela história original4.

Podemos interpretar a história de como Édipo, um herói de natureza épica com acessos de paixão, torna-se um herói sofredor. A história é repleta de incompreensões, mal entendidos de palavras e respostas omissas, inversas e sigilosas por conta das diferenças de línguas faladas pelos personagens. Além de outras vozes, nós temos a língua dos Oráculos, a língua da Esfinge, a língua de Tirésias, a língua de Édipo e a língua de Laio - ou a língua de seu arauto como um meio da voz paterna, já que pai e filho não conversam durante o trágico encontro. A confusão de línguas é o que forma a narrativa. Como nós sabemos, o aparecimento da Esfinge em Tebas é a punição divina pelas paixões ilícitas do rei. A própria Esfinge é filha do cão Ortros com sua própria mãe, Equidna, de forma a prenunciar o destino de Édipo. Laio não entende o Oráculo nem as palavras de Tirésias. De forma similar, quando Édipo pergunta sobre sua origem na sede do Oráculo, ele também não recebe resposta alguma mas, em vez disso, um oráculo. Como Laio, Édipo também não entende Tirésias, já que ele não entende a mais ninguém. Quando se encontra com a Esfinge, Édipo resolve e paralelamente não entende a charada linguística sobre o ser humano, já que não percebe que o único ser que seria capaz de resolver tal charada é aquele que tem uma origem e destino similar ao da Esfinge. O Édipo adulto não concebe que sua pergunta anterior na sede do Oráculo sobre Édipo, a criança, iria achar sua resposta na figura da Esfinge5.

Portanto, o mito do Édipo pode ser lido como uma história sobre como conflitos (linguísticos) externos produzem conflitos internos, que por sua vez produzem conflitos externos e assim se segue. O problema é projetar o próprio caráter, forçando sua língua sobre o outro ao invés de buscar o mútuo entendimento ou, pelo menos, esforçar-se para o posterior entendimento. Esse problema também é compartilhado pelos psicanalistas. "Os adultos [...] projetam nas crianças sua própria disposição para as paixões, e é o que nós, analistas, fazemos" (Ferenczi, 1988, p. 165, 21/07/1932).

Como vimos, a questão da confusão de línguas é principalmente a questão da confusão do Édipo adulto e das línguas pré-edípicas. Em outras palavras, é a questão língua das emoções versus a língua do sofrimento (ou trauma), ou da língua da aloplastia versus a adaptação autoplástica. De fato, na mesma nota "Cartesiana" Ferenczi prossegue pensando sobre a teoria da adaptação de Lamarck. Seus pensamentos põem sob nova luz o papel de Lamarck para a psicanálise - por isso temos que falar sobre o Lamarck não compreendido. Além disso, mencionando aqui aloplasticidade e autoplasticidade e as similaridades discutidas depois, reforça a suspeita de que, na análise do conceito de paixão, Ferenczi segue o que foi prefigurado por Lamarck ( o uso de termos "sentimento" como sensação versus sensitividade, e " sentiment intérieur"). O lamarquismo, do qual tanto a psicanálise freudiana quanto a ferencziana foram acusadas, apresenta um aspecto bem à frente do seu tempo. Em cinco de junho de 1917, Freud escreveu a Groddeck - e aqui o destinatário da carta é importante - o seguinte: "A teoria da evolução de Lamarck coincide com o resultado final do pensamento psicanalítico" (Sulloway, 1987, p. 280.). Nós sabemos que Freud e Ferenczi planejaram, juntos, escrever um livro sobre temas biogenéticos lamarquistas (Sulloway, 1987, p. 397). Mas creio que o lamarquismo de Ferenczi não era o mesmo de Freud.

A tese fundamental de Lamarck é certamente a manifestação de um ponto de vista ultrapassado, se considerada filogeneticamente.

O efeito de fatores físicos nos psíquicos já é conhecido, mas penso que os efeitos físicos na própria psique ainda não foram suficientemente considerados de uma forma mais cuidadosa. Ainda que esses dois fatores - tendo uma origem comum - produzam efeitos mútuos um sobre o outro, mesmo que eles pareçam ser totalmente independentes (Lamarck, 1986, p. 64).

Mas, interpretada como uma tese ontogenética, pode-se encontrar aí a ideia do que hoje é chamado de psicossomática. Groddeck e Ferenczi, que eram próximos tanto pessoalmente quanto na forma de pensar, poderiam facilmente concordar com Lamarck sobre a origem comum do físico e psíquico e no efeito mútuo que um tem sobre o outro. De fato, Groddeck lutou todo o tempo contra o dualismo cartesiano (Groddeck, 1967, p. 17-19). Tentaremos resumir brevemente o que pensamos ser importante para Ferenczi e para Groddeck em Lamarck a respeito de nosso tema.

Lamarck começa a análise do sentimento com sua nova descoberta: "Eu considero que é possível perceber a causa natural da sensação (sentimento), que é propriedade comum a tantos animais"6 (Lamarck, 1986, p. 58). Na próxima citação, ele faz uma distinção entre a capacidade de ser estimulado e aquela da sensitividade:

sensitividade (sentimento) e a habilidade de ser estimulado são dois fenômenos diferentes que ocorrem no organismo e que não têm uma origem comum, como era pensado. Supunha-se até o momento que a sensitividade era um traço de certos animais que precisava de um órgão-sistema distinto para se manifestar, enquanto que a habilidade de ser estimulado não necessita de nenhum órgão particular, sendo um atributo geral de todos os organismos animais (Lamarck, 1986, 59).

O peso de formular a distinção entre sentimento como sensitividade e sentimento como sensação se torna explícito na passagem em que Lamarck introduz um novo conceito: o conceito de sensação de existência (ou sentiment intérieur).

Pensando sobre essas coisas interessantes, examinei minuciosamente o sentimento interior (sentiment intérieur), essa sensação de existência que pode ser encontrada somente em animais com a capacidade de sensação. Analisei ambos os fatos a respeito e minhas próprias observações, e estou convencido de que esse sentimento interior representa uma força notável (Lamarck, 1986, p. 60).

Além da teoria da adaptação de Lamarck, o que é essencial na conexão com o modo de pensar de Ferenczi, e também de Groddeck, é a concepção dessa sensação de existência, que pode servir como uma prefiguração do It de Groddeck e da Orpha7 de Ferenczi - ambas situadas bem longe do modo freudiano de pensar. Ambas são forças inteligentes do inconsciente, que é uma parte da natureza. Entretanto, Groddeck e Ferenczi pensam a inteligência de maneira oposta ao que diz Lamarck: "no começo a propriedade da sensação é também muito obscura e limitada, e então ela se desenvolve gradualmente até atingir o topo assinalado pela inteligência" (Lamarck: 1986, p. 98). Enquanto para Lamarck a inteligência é o resultado do desenvolvimento do sentimento como sensação, tanto para Ferenczi quanto para Groddeck a inteligência, como propriedade de um inconsciente próximo da natureza, está mais perto do sentimento como sensitividade.

Em Ferenczi e Groddeck, a inteligência tem mais a ver com autoplastia do que aloplastia, ao contrário de Lamarck. Inteligência, na concepção desses autores, é mais a qualidade do infante (ou da criança), e está conectada com a ternura e com a paixão como sofrimento - e nada tem a ver com a paixão como emoção. Não deve surpreender que as perspectivas de Ferenczi e a de Groddeck sobre crianças sejam quase as mesmas. As próximas frases de Groddeck são dignas de comparação com as ideias de Ferenczi citadas anteriormente: 'uma criança [...] pode desprezar aquilo que nós ocidentais estamos acostumados a considerar como leis fundamentais da fisiologia e psicologia" (Groddeck, 1967, p. 203)8. E: 'Dentre outras coisas nós deveríamos entender por que a criança sabe muito melhor como viver do que o adulto; ela pode viver na completude do espírito porque ainda não foi dominada pelo ego que distorce a vida, ela ainda é infantil" (Groddeck, 1967, p. 208).

Por isso, a seguinte passagem poderia ter sido escrita tanto por Ferenczi quanto por Groddeck:

Que amor e paixão sejam coisas separadas e distintas é de consenso geral, mas poucas pessoas percebem que a paixão tem pouco ou nada a ver com amor, e pode ser despertada por outras coisas além da presença daquele que é amado. Parece estranho que pessoas se recusem a acreditar naquilo que é tão óbvio. Mesmo os amantes só estão ocasionalmente apaixonados; na maior parte do tempo, seu amor mantém um equilíbrio tranquilo e, quando isso desaparece em face à paixão, outras forças, que podemos chamar de santas, são despertadas. Mas em qualquer um dos casos são tão incompreensíveis que nós só podemos pensar nelas como pertencentes ao reino da magia (Groddeck, 1967, p. 237).

Como vimos, uma das importantes consequências da análise de Ferenczi sobre a paixão é reavaliação (linguística) do Complexo de Édipo. Como Groddeck escreve: "O Complexo de Édipo, como Freud o chama, é uma realidade, não um fato" (Groddeck, 1989, p. 197). Isso também significa que se trata de um fenômeno que não se pode estabelecer ou analisar por ele mesmo e separadamente, pois ele se encontra entranhado (também determinado linguisticamente) na vida de uma dada pessoa. Outro resultado crucial da análise do conceito de paixão aparece no campo da prática e da teoria da técnica, a saber, nas perspectivas revolucionárias de Ferenczi sobre a criança e sobre a análise mútua (na posição de analista e de analisando).

Em 27 de dezembro de 1931, Ferenczi escreveu em sua carta a Freud: "Agora acredito que sou capaz de criar uma atmosfera apropriada, livre de paixão, que é a mais adequada para chamar aquilo que foi previamente oculto" (Ferenczi, 1988, p. 4). Contudo, existe outra direção, uma dúvida pessoal a partir da qual Ferenczi poderá obter novos achados como soluções também para seus próprios problemas. "Como posso eu garantir - ele pergunta - sua completa e longa vida de felicidade quando eu mesmo era, e ainda sou, parcialmente uma criança necessitando cuidado?" (Ferenczi, 1988, p. 14.). No seu Diário nós podemos seguir de perto a realização prática e teórica de seu programa.

A diferença entre a análise freudiana e ferencziana é geralmente usada para mostrar que Freud ocupa a posição do pai rigoroso e racional, enquanto que Ferenczi toma a posição da mão amorosa e compreensiva. Isso pode ser verdade no caso das técnicas de relaxamento de Ferenczi, porém a análise mútua foi bem mais longe em modificar posições. Já que paixão é o sentimento adulto de uma "emoção forte e descontrolada" causando paixão como sofrimento de dor (o trauma) em crianças, Ferenczi nunca falou sobre pais ou mães em conexão com a paixão e sim sobre adultos, casal parental e, é claro, analistas por um lado - e crianças e analisandos por outro. Como adultos, o pai e a mãe ganharam seus lugares do lado oposto ao das crianças. Na análise mútua, Ferenczi queria suspender a confusão (emocional) das línguas, essa desigualdade, por meio da quebra da fronteira entre analista e analisando. Como a linguagem da criança é a ternura, o analista tem que falar essa língua.

Isso significa que o analista deve transformar paixão em ternura, aprendendo a linguagem do Édipo pré-édipico, a língua do sofrimento ao invés das emoções passionais. Édipo, como uma criança traumatizada, era determinado a "curar" Tebas, mas ele não poderia ter sucesso porque, como adulto, se tornou indisposto ao diálogo. A força curativa da ternura que ele perdeu pertence às crianças, de acordo com Ferenczi: "a criança se faz psiquiatra que trata o louco com compreensão e lhe dá razão" (Ferenczi, 1988, p. 172, 24/07/1932).

Isso também significa que nós podemos aprender ternura com os pacientes. Como Groddeck escreve: "São os nossos pacientes quem melhor pode nos ensinar sobre a arte da psicoterapia e, a eles, nós doutores devemos agradecer" (Groddeck, 1989, p. 214). Escrevendo sobre seu sucesso com a análise mútua, Ferenczi diz quase o mesmo: "A quem cabe o mérito desse êxito? Certamente, antes de tudo, à paciente" (Ferenczi, 1988, p. 99-100, 05/05/1932). Mas como podem os analistas aprender e o que esse aprendizado envolve? Em outras palavras, como pode - se é que pode - o analista ser um adulto com essas características implicadas, se ternura é uma qualidade infantil?

Isso significa que, com o objetivo de se adaptar à linguagem do paciente, o analista deve se tornar uma criança (um irmão ou irmã) no lugar de ser o pai ou a mãe? A solução das questões de Ferenczi, tanto as teóricas-práticas quando as pessoais, estavam ocultas na transformação da tese sobre a criança como um psiquiatra pelo avesso. Groddeck pensa que os psicanalistas "nos dão uma nova e infantil natureza, e novas possibilidades de amor" (Groddeck, 1989, p. 224). Ferenczi, como um novo Édipo que não falha, reconhece que para o entendimento nós devemos ser semelhantes e falar a mesma língua que o outro, mesmo que isso mate o Édipo freudiano e sua concepção da posição do analista como um pai ou qualquer outra posição adulta9. A mudança de posições, que é revolucionária e tem toda a hybris das revoluções, consiste em tomar a posição de uma criança em vez da dos adultos. É o que está por trás da outra denominação da análise mútua como "análise de duas crianças" (two-children analysis). Ferenczi, o analista, queria ser, e de fato era, uma criança.

Certas fases da análise mútua representam, de uma parte e de outra, a renúncia completa a todo constrangimento e a toda autoridade; a impressão que se tem é a de duas crianças igualmente assustadas que trocam suas experiências, e que, em consequência de um mesmo destino se compreendem e buscam instintivamente tranquilizar-se. A consciência dessa comunidade de destino faz com que os parceiros se apresentem como perfeitamente inofensivos, e em quem, portanto, se pode confiar com toda tranquilidade. Na origem, a fruição dessa confiança era unilateral; a criança gozava da ternura e dos cuidados maternos sem contrapartida (admite-se que esse sentimento maternal de que a criança desfruta seja também uma espécie de regressão da mãe ao estado infantil). [...] Após a decepção sentida com relação aos pais, professores e outros heróis, as crianças ligam-se entre si e estabelecem vínculos de amizade. (Deveria a análise acabar sob o signo de uma tal amizade?) [...] Se, para a resolução da amnésia infantil, fosse necessária uma tal libertação total do medo do analista, encontraríamos aí a justificação psicológica para a mutualidade em análise (Ferenczi: 1988, p. 57-57, 13/03/1932).

Depois do congresso em Wiesbaden, no qual apresentou sua conferência sobre a confusão de línguas apesar dos protestos de Freud, o pai, Ferenczi tentou encontrar um lugar em Baden-Baden com Groddedck, o irmão.

 

 

Referências

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Ferenczi S. (1971). Nyelvzavar a felnőttek és a gyermek között. In: A pszichoanalízis és modern irányzatai. Budapest: Szerk. Buda Béla. Gondolat Könyvkiadó.

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Ferenczi, S. (1996). Klinikai napló 1932. Budapest: Akadémiai Kiadó.

Füst Milán (1977). Ez mind én voltam egykor. Magvető és Szépirodalmi Könyvkiadó. Budapest.

Groddeck, G. (1967). The world of man. London: Vision Press Ltd..

Groddeck, G. (1989). Exploring the Unconscious. London: Vision Press Ltd..

Hárs György Péter (1995). Pszichoanalízis - túl a modern tudomány (osság) "öröm"-elvén. Replika.

Hárs György Péter (1998). Medusa tükre eltörött. BUKSZ tavasz.

Kerényi Károly. (1887). Görög mitológia. Gondolat.

Lamarck. (1986). A természet fejlődése. Kriterion Könyvkiadó. Bukarest.

Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1994). A pszichoanalízis szótára. Akadémiai Kiadó. Budapest.

Sulloway, Frank J. (1987). Freud, a lélek biológusa. Gondolat. Budapest.

 

 

Artigo recebido em: 20/01/2015
Aprovado para publicação em: 27/01/2015

 

*Universidade de Vesprimiensis, Departament of Anthropology and Ethics.
1"Ich" - Ferenczi, 1996, p. 127 (Ferenczi, 1988, p. 111.)
2Veja: Hárs, 1998.
3Para esse tipo de inteligência, veja novamente Hárs, 1998, 1995. E as idéias de Ferenczi sobre o "bebê sábio".
4Veja Kerényi, 1977, principalmente as páginas 243-253.
5Isso nos levaria longe para outra direção - apesar de ter relevância a respeito do nosso tema -, que outro nome para a esposa de Édipo é Astymedusa. Para mais sobre essa questão, veja Hárs, 1998.
6Como Lamarck explica: "o mundo do 'sentimento' cobre o conceito de sensitividade. Sua origem é o verbo 'sentir' (estar sensível a), ou seja, sensações obtidas pelos órgãos de sentidos. [...] A sensação interior (sentiment intérieur) é propriedade dos animais com sistema nervoso, na interpretação de Lamarck" (Lamarck, 1986, p. 191).
7Para mais sobre a natureza e o papel de Orpha, veja Hárs, 1998.
8Essa ideia groddeckiana é um dos temas principais do livro de Füst Milán: Ez mind én voltam egykor.
9Compara esse "ser o outro" com o at-one-ment de Bion em seu Attention and interpretation (Bion, p. 1970).