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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

A programação do homem pós-orgânico: que riscos são traçados no papel da finitude?

 

The programming of post-organic man: what risks are outlined in the role of finitude?

 

 

Natasha Mello Helsinger*

Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP-Rio) - Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende desenvolver a hipótese de que as promessas de longevidade e de imortalidade (Birman, 2012), a mercantilização dos riscos (Beck, 1986), a programação da eficiência por objetos técnicos (Castel, 1987) e o anseio para se forjar o homem pós-orgânico a partir da transcendência da condição humana (Sibilia, 2002) colocam em questão a figura do homem moderno, na medida em que promovem o esvaziamento da finitude. Acreditamos que essa reflexão é uma importante chave de leitura para a compreensão da crise da psicanálise na pós-modernidade, na medida em que o texto freudiano inscreveu o sujeito moderno na analítica da finitude (Birman, 2010).

Palavras-chave: finitude, eficácia, risco.


ABSTRACT

This article aims to discuss the hypothesis that: promises of longevity and immortality (Birman, 2012), the mercantilization of risks (Beck, 1986), the efficacy programmation by technical objects (Castel, 1987) and the wish to forge the post-organic man by the transcendence of the human condition (Sibilia, 2002) put in question the finitude, therefore, the figure of the modern human. This reflexion is an important key to comprehend the psychoanalysis post-modern crisis, according as the modern subject was entered in the analytic of finitude by the Freudian discourse (Birman, 2010).

Keywords: finitude, efficacy, risks.


 

 

Os avanços tecnocientíficos e os novos limiares da medicalização estão embasando promessas de longevidade e promovendo uma espécie de culto à imortalidade (Birman, 2012). A contrapartida desse projeto de eternização é a instauração de um estado de preocupação generalizada com a saúde e com o corpo (Birman, 2012), o que faz com que a categoria de risco ganhe tamanha centralidade (Castel, 1987). Supomos que, com isso, a noção de finitude e a figura do homem - vetores cruciais da Modernidade (Foucault, 1966/1987) - estão sendo colocados em xeque na era do homem pós-orgânico (Sibilia, 2002). É importante ressaltar que essa discussão não está na exterioridade do campo psicanalítico na medida em que o discurso freudiano foi construído tendo em vista o sujeito inscrito na modernidade e, portanto, não é por acaso que este foi pensado no interior da problemática da finitude (Birman, 2010).

 

Medicalização, mentalidade preventiva e autogestão dos riscos

Para Birman (1980), uma das resultantes do processo de medicalização - que se iniciou na França, Alemanha e Inglaterra, na segunda metade do século XVIII - foi a construção de uma mentalidade preventiva que passou a gerar doentes imaginários: " [...] a Medicina aumenta a sua demanda assistencial através de suas táticas preventivas, recebendo pessoas angustiadas com possíveis enfermidades imaginárias" (Birman, 1980, p. 126).

Observamos que os atuais dispositivos midiáticos intensificam esse processo de disseminação dos riscos e, a partir dos discursos da saúde, da prevenção e da conscientização, lançam frases alarmistas, como: "Gripe na gravidez aumenta riscos de filho ser bipolar"1, "Ingestão de mandioca brava aumenta riscos de deficiência mental, apontam estudos"2. Outro exemplo pode ser encontrado no site da Associação Brasileira do Transtorno Bipolar (ABTB)3, onde se afirma, a partir dos dados fornecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que esse transtorno foi a sexta maior causa de incapacitação na década de 90. Alerta-se que aqueles que não se tratam desde o início podem sofrer efeitos devastadores: uma pessoa que desenvolve o transtorno com 20 anos e não faz o tratamento medicamentoso poderia perder 9 anos de vida e 14 anos de produtividade profissional (ABTB) - o que ilustra a articulação que é feita entre diagnóstico, risco e performance. Ademais, os sistemas coletivos de informação apresentam constantemente uma série de dispositivos tecnológicos que propulsionam a autogestão dos riscos. Por exemplo, o site da Uol4 anunciou a plataforma de saúde pessoal Vitalbox que promete realizar uma autoavaliação personalizada dos riscos de doenças, indicar os comportamentos que aumentam e diminuem os riscos de desenvolvê-las e avisar quando o usuário deve ir ao médico e fazer exames.

A partir da concepção do discurso, enquanto dispositivo de poder que produz efeitos nos modos de subjetivação (Foucault, 1971/1998), interrogaremos que modelos de subjetivação são forjados em tempos de administração de riscos e de que formas os discursos que prometem a eternização fazem com que a finitude, que marcou a constituição do homem moderno (Foucault, 1966/1977), seja reduzida à noção de risco.

 

A analítica da finitude: temporalidade, clínica e angústia

Em As palavras e as coisas, Foucault (1966/1977) afirma que o fato de as palavras deixarem de ter uma equivalência identitária com as coisas e de a representação ter perdido sua centralidade promoveu uma inversão no pensamento ocidental e é nesse sentido que ele inscreve a analítica da finitude na Modernidade.

Em sua perspectiva, a episteme do Renascimento era a semelhança: havia uma similaridade entre as palavras e as coisas. Na Idade Clássica a episteme era a representação e, desse modo, as palavras representavam as coisas, de forma que os discursos eram concebidos como uma espécie de espelho do mundo. Isso se dava pela semiologia, em que os signos sempre remeteriam a um signo original e, por isso, a noção de origem era central. Já na Modernidade, as epistemes seriam o tempo e a história, e a captura das origens e a especularidade tornaram-se impossíveis na medida em que os signos passaram a ser entendidos como arbitrários e as palavras ganharam autonomia face às coisas. Ou seja, a origem primeira passou a ser percebida como inapreensível, pois tudo aquilo que era dito remeteria a outra palavra infinitamente, de forma que a interpretação seria sempre infinita (Foucault, 1966/1977). Desse modo, a metafísica do infinito centrada na representação perdeu sua utilidade no pensamento moderno, o que fez com que a finitude passasse a ser pensada a partir de uma referência perpétua a si mesma: "[...] quando os conteúdos empíricos foram desligados da representação e envolveram em si mesmos o princípio de sua existência, então a metafísica do infinito tornou-se inútil; a finitude não cessou mais de remeter a ela [...]" (Foucault, 1966/1977, p. 333). Um desdobramento dessa inversão foi a mudança do estatuto da temporalidade, pois na experiência moderna a finitude tornou-se o marcador estrito da relação do homem com o tempo, na medida em que foi ela que passou a afastá-lo da origem e a colocá-lo frente à distância inevitável do tempo : "[...] o homem moderno [...] só é possível a título de figura de finitude. A cultura moderna pode pensar o homem porque ela pensa o finito a partir dele próprio. [...]" (Foucault, 1966/1977, p. 334).

Foucault (1963/1988) defende, ainda, que a clínica moderna se constituiu nos séculos XVIII e XIX em função da emergência da questão da finitude enquanto campo constitutivo da enfermidade, o que vai ser materializado pela ideia de lesão. D iferente da anatomia do Renascimento e do início da Idade Clássica, que era centrada nos órgãos, o discurso da medicina científica fundou-se pelo modelo anatomopatológico e pelos estudos histológicos. Desse modo, a enfermidade passou a ser definida a partir da lesão anatômica que se apresentava na estrutura silenciosa dos tecidos, pois se descobriu que estes atravessavam diversos órgãos e, desse modo, a enfermidade não poderia mais ser localizada nos órgãos visíveis: era preciso abrir os cadáveres (Foucault, 1963/1988). Nesse momento, passou-se a conceber o homem na tangência da vida e da morte: " A velha continuidade das obsessões milenares que colocava, na vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença aproximada da morte é rompida: em seu lugar, se articula uma figura triangular, de que o cume superior é definido pela morte" (Foucault, 1963/1988, p. 165).

O lugar crucial que a morte passou a ocupar na tradição médica provocou, ainda, uma reorganização epistemológica da própria noção de doença. Esta deixou de ser vista como um acidente e foi inserida na relação da vida com a morte, pois a morte, esta, ao se tornar a condição do próprio ser da doença, funcionou como um terceiro termo que permitiu a rearticulação da vida com a doença: "Não é porque caiu doente que o homem morre; é fundamentalmente porque pode morrer que o homem adoece" (Foucault, 1963/1988, p. 177). Desse modo, a finitude deixou de ser reduzida a uma negação do infinito: positivada na Modernidade, tornou-se o vetor constitutivo da figura do homem moderno que, por sua vez, passou a ser objeto e sujeito das ditas Ciências Humanas:

É que o homem ocidental só pôde se constituir a seus próprios olhos como objeto de ciência [...] por referência à sua própria destruição [...]. [...] a experiência da individualidade na cultura moderna está talvez ligada à morte: dos cadáveres abertos de Bichat ao homem freudiano, uma relação obstinada com a morte prescreve ao universal sua face singular [...]. A possibilidade de o indivíduo ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu próprio conhecimento implica que se inverta no saber o jogo da finitude (Foucault, 1963/1988, p. 227).

Para Birman (2010) uma das continuidades entre a medicina e a psicanálise é que esta inscreveu o sujeito na tradição da analítica da finitude (Foucault, 1966/1987) e para isso foi necessário que o texto freudiano se deslocasse de uma perspectiva vitalista e homeostática, cujo modelo teórico era a fisiologia de Claude Bernard, para uma leitura mortalista baseada na formulação de Bichat de que a vida só seria possível caso ela resistisse às forças da morte. Nessa perspectiva, a emergência da condição trágica do sujeito da finitude na psicanálise deve ser entendida como um derivado da experiência da morte, noção que se tornou central a partir dos anos 20 do século passado. Ilustrações disso são a enunciação da pulsão de morte, a elucidação das noções de compulsão à repetição (Freud, 1920/1980) e de desamparo (Freud, 1927/1980, 1930/1980) e a postulação de que o além do princípio de prazer ou o princípio do nirvana seriam originários (Freud, 1924/1980; Birman, 2010).

Ademais, como salienta Birman (1999), a experiência da finitude foi descrita no texto freudiano sob a expressão do estranho-familiar (Freud, 1919/1980) que lança o sujeito frente à angústia, um pathos eminentemente moderno. É importante sublinhar que Freud (1919/1980) articula o estranho-familiar (unheimlich) ao fenômeno do duplo, apontando que ele se apresenta a partir de duas facetas: em um primeiro momento o duplo apareceria como uma promessa de imortalidade, decorrente da onipotência narcísica própria do narcisismo primário, e, em um segundo momento, o duplo se apresentaria como um enunciador da morte:

Originalmente, o "duplo" era uma segurança contra a destruição do ego, uma "energética negação do poder da morte", como afirma Rank. [...]. Tais ideias, no entanto, brotaram do solo do amor próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitivo. Entretanto, quando essa etapa está superada, o "duplo" inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia de imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte (Freud, 1919/1980, p. 293-294).

Birman (1999) relembra que a crença na eternidade é inscrita no inconsciente que, por sua vez, é atemporal, mas quando o sujeito se depara com alguma experiência de morte real ele é lançado, automaticamente, face à própria mortalidade. Nesse sentido, a angústia e o encontro do sujeito com sua condição trágica de finitude são o que promoveria a divisão psíquica e a coexistência entre a crença na imortalidade e o saber sobre a mortalidade. Ou seja, em sua perspectiva, "o sinistro" (Freud, 1919/1980) remeteria ao caráter estranho e familiar da morte, pois, ao mesmo tempo que temos conhecimento sobre ela enquanto possibilidade, quando ela se efetua de fato provoca algo da ordem da surpresa.

Podemos articular essa divisão psíquica com os atuais enunciados médicos, pois ao mesmo tempo que disseminam uma série de riscos, intensificando nosso saber sobre a mortalidade, prescrevem uma série de mandamentos para se alcançar a saúde ideal e a longevidade, incrementando nossa crença de imortalidade. Mas, diferente das atuais promessas de eternização, a hipótese freudiana é que o desamparo e a finitude são as condições por excelência do vivente humano, pois ele é vulnerável a uma tripla ameaça: em relação às forças inexoráveis da natureza, à fragilidade do próprio corpo e à relação hostil com outros homens (Freud, 1927/1980). E, frente a isso, não há possibilidade de cura nem de fuga, de forma que, quando não é possível inscrever uma resposta singular para o desamparo, acaba-se recorrendo a soluções universalmente aceitas (Freud, 1930/1980) ou buscando derivativos poderosos como proteção (Freud, 1927/1980). Nessa perspectiva, podemos supor que as subjetividades se deixam capturar pelo projeto da louvada longevidade e incorporam os mandamentos da dita saúde ideal em seu cotidiano, pois estes funcionam como uma proteção perante o fantasma da morte. Com isso, muitas vezes acabam abdicando dos próprios desejos e se lançam em um mundo atravessado por uma série de riscos. E, para compreendermos como se dá o processo de gestão de riscos na pós-modernidade (Beck, 1986/2010; Castel, 1987), é interessante situarmos genealogicamente como se deu sua constituição no bojo da governabilidade moderna (Foucault, 1977-1978/2008).

 

O aparato da governabilidade moderna e a gestão dos riscos nas populações

O advento da Modernidade foi marcado, segundo Foucault (1961/1972), pela quebra da lei soberana-teológica e pela constituição de uma organização horizontal na qual a liberdade se tornou um direito dos cidadãos , o que colocou o seguinte problema: como gerir os laços sociais e as formas pelas quais os cidadãos usam essa liberdade? A resposta foucaultiana foi: normalizando (Foucault, 1961/1972). Assim, a norma passou a colocar limites no vazio deixado pela ausência da lei e o controle substituiu o castigo, de forma que o indivíduo tornou-se a resultante de uma produção permanente gerada pelos processos de normalização (Foucault, 1976/1977).

Não podemos perder de vista que o ideal de salvação, que havia se tornado prevalente com o cristianismo, foi substituído pelo ideário da saúde, indicando, assim, que os discursos normalizadores, como o da medicina e o da psiquiatria, se apropriaram dessa dimensão moral (Birman & Hoffmann, 2013). Por exemplo, o poder psiquiátrico se constituiu na virada do século XVIII para o XIX como uma forma de proteção social, na medida em que ele se apresentou como o campo de saber que conseguiria detectar a periculosidade e explicar os crimes sem sentido (Foucault, 1974-1975/2001) . Desse modo, o argumento de que o louco não sabia fazer um bom uso da liberdade, pois ele se acreditava rei, legitimou a elaboração de um sistema de precaução social e de higiene pública (Foucault, 1961/1972). Afinal, se na justiça clássica a ofensa era centrada na figura do soberano, no fim do século XVIII e início século XIX a ofensa passou a ser concebida como um risco à ordem social: o escândalo passou a ser a medida da anormalidade e a opinião pública tornou-se a base do julgamento moral. O cidadão que julgava era a contrapartida do cidadão que era julgado, portanto acusar o outro de não fazer um bom uso da liberdade representava um ato em defesa da sociedade. O que Foucault (1961/1972) demonstra é que a liberdade foi o núcleo ético- antropológico da modernidade e que esse conjunto de remanejamentos no campo social e político foi o solo pelo qual se construiu a figura do homem . Uma conclusão disso é que a figura do homem não é atemporal; portanto, da mesma forma que ela foi construída - e não poderia ser pensada no contexto da soberania - ela pode vir a se desvanecer (Foucault, 1966/1987).

Ademais, diferentemente do poder soberano, que detinha o direito de vida e de morte dos subalternos, na sociedade disciplinar o poder passou a operar durante a vida e incidir, sobretudo, nas disciplinas corporais: " [...] se articulam dispositivos de poder diretamente ao corpo a corpo, a funções, a processos fisiológicos, sensações, prazeres; [...] se desenvolvem as tecnologias modernas de poder que tomam por alvo a vida" (Foucault, 1976/1977, p. 142).

Ou seja, enquanto o poder disciplinar pretende tomar o corpo como objeto e conduzi-lo à obediência, isto é, inscrevê-lo em um espaço celular para realizar uma disciplinarização dos gestos e uma anatomopolítica dos corpos, o biopoder e a biopolítica visam a programação da espécie, a combinatória dos corpos e o planejamento das populações, o que implica inscrever o homem em um âmbito biológico para se construir um saber sobre o corpo-espécie (Foucault, 1977-1978/2008).

O deslocamento da questão da morte para o controle durante a vida foi, portanto, o que caracterizou a emergência do aparato da governabilidade moderna. Este passou a gerir os riscos e a periculosidade no seio da população que, por sua vez, tornou-se um objeto técnico-político no momento em que surgiram as cidades, no final do século XVIII e início do século XIX. Nesse contexto, a qualidade de vida da população se tornou tão ou mais importante do que o acúmulo de riquezas e, por isso, foi essencial inventar novas tecnologias de poder, como os mecanismos da segurança (Foucault, 1977-1978/2008). Na Idade Média o sistema jurídico-religioso operava uma cisão entre quem tinha e quem não tinha lepra e o destino dos primeiros era a exclusão. Posteriormente, com a peste, surgiu o modelo do isolamento pela quarentena pautado, por sua vez, no dispositivo da disciplina que geria os contatos, definia os hábitos alimentares, os horários de saída e etc. Já no caso da varíola, devido ao dispositivo da variolização-vacinação, a doença passou a ser pensada em termos de cálculos, probabilidades e de distribuição de casos na população. Com isso os mecanismos de segurança possibilitavam gerir os riscos, por exemplo calculando quantas pessoas foram infectadas, os riscos de mortalidade e de morbidade e, ainda, delimitando as faixas etárias e as zonas de risco . Isso permitiu a integração dos fenômenos individuais no campo coletivo e fez com que a divisão entre doentes e não-doentes fosse substituída por uma continuidade (Foucault, 1977-1978/2008).

Müller (2012), por exemplo, defende que a população masculina brasileira tornou-se vítima das instâncias biorreguladoras do Estado brasileiro no momento em que constataram que essa população resistia aos processos de medicalização e que, por isso, teria se tornado vítima de uma finitude antecipada em relação às mulheres. Um desdobramento disso foi a construção da figura do homem que morre, isto é, a construção de uma imagem masculina que é vulnerável por não se submeter às estratégias do Sistema Único de Saúde brasileiro, o que representa um risco social. Desse modo, a partir do discurso da urgência de vida e pela vida, criaram-se estratégias políticas que visavam propulsionar um desejo de saúde masculino, por exemplo as campanhas nacionais do "Pré-natal masculino" e "Próstata: é preciso tocar nesse assunto". Para Müller (2012), essas políticas públicas de saúde, que operam pelo "fazer-viver", transformam a morte em algo démodé, pois o que está em jogo é a construção de uma "crença na invulnerabilidade", nesse caso a partir do modelo do corpo masculino, onipotente, viril e invulnerável. Vale dizer que o estabelecimento de um padrão é uma das metas cruciais do biopoder que faz com que a medicina não tenha apenas o papel de curar, mas, também, de conhecer o homem saudável: "[...] uma experiência do homem não doente e uma definição do homem modelo" (Foucault, 1963/1998, p. 39).

Evidentemente, essas medidas de promoção da saúde são acompanhadas pelas aparelhagens técnicas do biopoder que, para promover o prolongamento da vida, disseminam uma série de enunciados preventivos que acabam por instaurar uma sociedade de risco (Beck, 1986/2010).

 

A mercantilização dos riscos no neoliberalismo

Como sabemos, o neoliberalismo foi o eixo norteador da constituição da sociedade pós-moderna e a globalização da economia trouxe vários efeitos para a ordem social e política, por exemplo o incremento da insegurança social que, por sua vez, colocou a problemática securitária em uma posição estratégica (Birman, 2013).

Para o sociólogo alemão Ulrich Beck (1986/2010) vivemos em uma sociedade de risco caracterizada por uma sensação de insegurança generalizada, o que abrange o âmbito social, a instabilidade do mercado financeiro, as catástrofes da natureza, os riscos de mortalidade etc. Nesse sentido, os riscos ganharam uma dimensão global e um dos vetores disso, segundo Beck (1986/2010), foi o fato de que a natureza começou a manifestar os sintomas de sua degradação e assim nos conscientizamos de nossa fragilidade. Isso se aproxima da hipótese freudiana de que somos relançados para a condição de desamparo sempre que nos deparamos com as forças inexoráveis da natureza e com o enigma da morte: " Elementos que fogem de qualquer controle humano: terra que treme, água que inunda, tempestades, doenças [...] penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será" (Freud, 1927/1980, p. 27).

Ademais, na perspectiva de Beck (1986/2010), os riscos são caracterizados pela imperceptibilidade, pois se apresentam de forma obscura, por exemplo em fórmulas físico-químicas, radioativas e atômicas. Mas a invisibilidade não os coloca em xeque; pelo contrário, os potencializa, pois desse modo tornam-se onipresentes e se assemelham aos demônios que constituíam uma ameaça transcendental na Idade Média. E, por serem invisíveis, os riscos só podem ser conhecidos pelos dispositivos científicos que podem reduzi-los ou maximizá-los e, ainda, disseminá-los, instaurando, assim, uma consciência cotidiana, teórica e cientificizada sobre eles . Isto é, a ciência é produto, mas, também, produtora de realidade, pois, além de solucionar problemas, ela é capaz de causá-los e manipulá-los para forjar novas necessidades e mercados. Por isso, Beck (1986/2010) defende que a canibalização mercantilizante dos riscos retroalimenta o projeto capitalista, já que, ao mesmo tempo que instaura situações de ameaça, o mercado oferece instrumentos que prometem avaliar seus níveis e extensões, vendendo-se, assim, a ideia de que os riscos podem ser geridos pelo manuseio técnico.

 

Autogestão dos riscos e exigência de performance

Para Beck (1986/2010), a individualização, decorrente do enfraquecimento das instâncias tradicionais que serviam de suporte para o controle da insegurança, é um dos desdobramentos da pós-modernidade. Desse modo, novas qualificações civilizacionais passaram a ser exigidas dos indivíduos, por exemplo a aptidão para antecipar, manusear e suportar os riscos, ou seja, uma espécie de savoir-faire.

Podemos articular essa exigência de autoprocessamento da insegurança (Beck, 1986/2010) com a capacidade de prever e responder aos acontecimentos imprevisíveis, o que é uma ilustração do imperativo da performance da atualidade segundo Castel (1987). Para o autor, apesar das especificidades, tanto a abordagem pautada nas regulações bioquímicas, como a investigação da etiologia orgânica das doenças e transtornos, como a tentativa de redução das condutas negativas pelas terapias comportamentais têm o mesmo solo comum, a saber: o reforço da normalidade a partir da programação da eficácia alcançada pela técnica.

Para aprofundar essa questão, Castel (1987) destaca a lei francesa que contempla os "deficientes", votada em 1975, lembrando que ela teve como ponto de partida as declarações do Primeiro-Ministro François Bloch-Lainé, que relacionou a deficiência às disfunções físicas, mentais ou sociais. Isto é, o ponto de interseção entre elas seria a ineficiência para a realização das ditas performances . Portanto, um ponto nodal dessa discussão que indica uma diferença entre a psiquiatria moderna e a contemporânea é, justamente, a proliferação da categoria de déficit nos manuais diagnósticos (como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, presente no DSM-IV, de 19945) , pois essa categoria insinua que algo pode ser compensado por objetos técnicos (Castel, 1987). É nesse sentido que o autor afirma que vivemos na era da pós-psicanálise, pois o que está em pauta na atualidade é muito mais o anseio para se retomar a performance do que propriamente a escuta do sofrimento psíquico. Ademais, em sua perspectiva, a psicanálise não consegue responder às demandas geradas por esse tipo de exigência social e, um dos desdobramentos disso é a intensificação da promoção do psicológico (Castel, 1987). Este, por sua vez, penetra diversas instâncias sociais na medida em que promete fomentar a sociabilidade ideal, forjar o homem produtivo e eficaz:

As novas terapias testemunham o fato de que é possível instrumentalizar a subjetividade e a intersubjetividade por intervenções exteriores. Elas promovem uma visão do homem pela qual se concebe ele mesmo como um possuidor de uma espécie de capital (seu "potencial") [...]. E, para se desenvolver, é preciso, literalmente, investir e trabalhar, fazer frutificar seu potencial humano (Castel, 1987, p. 146).

Ou seja, não se trata de apenas prevenir ou reparar aquilo que é considerado deficiente, mas sim de programar a eficiência a partir da manipulação dos fatores humanos (Castel, 1987). Podemos entrever que esse investimento técnico do potencial humano não se dá apenas no nível do desempenhado performático, mas, também, em relação à própria condição humana, o que discutiremos a seguir.

 

O homem pós-orgânico: um risco sobre o papel da finitude?

O culto à imortalidade (Birman, 2012) remete ao que Paula Sibilia (2002) denomina " homem pós-orgânico", pois essa categoria ilustra o anseio pela transcendência da condição humana. Isto é preconizado, segundo a autora, pelas tiranias do upgrade que almejam potencializar ao máximo as capacidades do corpo biológico. Este, por sua vez, é considerado obsoleto frente à evolução tecnológica e para driblar esse impasse a tecnociência começou a forjar um novo tipo de programação da espécie.

Como nos ensinou Foucault (1976/1977), o poder opera por uma positividade na medida em que ele é produtor. Nesse sentido, se o poder disciplinar do período industrial forjou a figura do homem-máquina, o que estaria em jogo na atualidade, segundo Sibilia (2002), seria a figura do cyborg. Este apontaria para o entrelaçamento entre o organismo e a cibernética, isto é, seria um corpo concebido como um conjunto de sistemas de processamento de dados. Isso demonstra que o paradigma evolucionista, centrado no ideal do progresso, ganhou novas feições na atualidade, pois se, no século XIX a evolução e a seleção das espécies eram concebidas por Darwin (1859/2003 ) sob a égide da naturalidade, o que é valorado hoje é a evolução artificial (Sibilia, 2002). Esta se dá por meio de artifícios técnicos que fazem com que as noções de morte, vida, natureza e homem sejam reformuladas: " [...] o nascimento era um acidente e a morte a única certeza. [...] agora o nascimento pode ser planejado e, no horizonte fáustico da nova tecnociência, a morte está deixando de ser uma condenação certa" (Sibilia, 2002, p. 113).

Ou seja, a inauguração da era da pós-evolução é marcada pela promessa de imortalidade pautada nos avanços da ciência e nas pesquisas genéticas que vendem a ideia de que a morte pode ser evitada por uma espécie de evolução artificial realizada a partir da alteração dos códigos vitais, da transmutação de matérias vivas e das recombinações do DNA (Sibilia, 2002). Mas assim as subjetividades são reduzidas a dados genéticos, a correlações estatísticas e a fatores de riscos (Castel, 1987). Além disso, o futuro passa a ser programado pela eliminação das imprevisibilidades, como ilustra o Projeto Genoma Humano que promete "[...] proezas como desprogramar as doenças e a própria morte, anular o envelhecimento e desativar a dor" (Sibila, 2002, p. 123). Ou seja, os novos limiares do processo de medicalização estabelecidos, por exemplo, pela genética médica, apontam para um projeto oposto ao da finitude, a saber, o da eternização: "[...] fazendo crer que a longevidade e principalmente a imortalidade poderiam ser conseguidas mediante as clonagens terapêutica e reprodutiva" (Birman, 1980, p. 79). Portanto, podemos indagar se a digitalização do corpo, a evolução artificial (Sibilia, 2002), os enunciados da neurobiologia, da psiquiatria biológica e do comportamentalismo não estão colocando em xeque a própria figura do homem que, como discutimos anteriormente, foi construída e, portanto, pode ser descontruída:

O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram [...] então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia (Foucault, 1966/1987, p. 40).

Evidentemente, a psicanálise também radicalizou a critica anti-humanista ao descentrar o sujeito do registro da consciência e do eu para o inconsciente (Birman, 2010), mas a diferença fundamental é que ela valoriza a implicação subjetiva. No entanto, as atuais abordagens parecem reduzir as expressões de liberdade em fatores cognitivos, comportamentais e, sobretudo, cerebrais, o que evidencia uma ruptura entre diagnóstico e responsabilidade (Castel, 1987).

Como vimos, o sujeito da modernidade foi constituído a partir da tríade liberdade, responsabilidade e finitude, mas, na atualidade, essas instâncias parecem ter sido desenlaçadas: o risco se automatizou da liberdade (Birman, 2013), o sujeito foi desatrelado da responsabilidade (Castel, 1987) e a finitude foi esvaziada porque a morte deixou de ser uma certeza (Sibilia, 2002).

E se a psicanálise constituiu-se na Modernidade sob essas matrizes, essa via de discussão parece uma chave de leitura importante para compreendermos a crise que vive a atual cartografia dos campos do saber sobre o psíquico, em que as neurociências, a psiquiatria biológica e o cognitivismo parecem triunfar (Birman, 2000/2001) e, ainda, colocar a figura do sujeito em risco (Birman & Hoffman, 2013).

 

 

Referências

Beck, U. (1986/2010). Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34.

Birman, J.(1980). Enfermidade e loucura: sobre a medicina das inter-relações. Rio de Janeiro: Campus.

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Artigo recebido em: 27/02/2014
Aprovado para publicação em: 03/04/2014

 

 

*Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ), membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP-Rio).
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