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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Na boca do crocodilo: a face indigesta da amamentação exclusiva

 

In the crocodile's mouth: the indigestible face of exclusive breastfeeding

 

 

Danielle Carvalho Ramos*; Roseane Freitas NicolauI**

IUniversidade Federal do Pará - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo problematiza as possíveis implicações dos programas de aleitamento materno exclusivo, que, fortemente firmados em um ideal de maternidade, garantem o cumprimento de prescrições reguladas pela chamada livre-demanda, devendo a mãe oferecer ao bebê, pelo menos até o sexto mês, somente o seio-leite materno como alimento e objeto oral. Retomando algumas considerações de Jacques Lacan, propomos pensar na tendência a uma excessiva presença da mãe ensejada por esse discurso que visa à benevolência, fazendo surgir, como possível contraponto, o bebê enquanto um objeto-resto na fantasia materna. P oderíamos pensar o discurso do aleitamento como favorecendo um prolongamento da relação alienante entre mãe e filho, com graves consequências para o bebê? No âmbito da fantasia materna, poderia o bebê ser tomado como um objeto de gozo para o Outro? São questões a serem desdobradas ao longo do texto.

Palavras-chave: aleitamento materno exclusivo, gozo, angústia, voracidade.


ABSTRACT

This article discusses the possible implications of the exclusive breastfeeding programs which, strongly grounded on an ideal of motherhood, ensure the fulfillment of prescriptions regulated by the breastfeeding on demand, ruling that the mother should just provide to the baby, at least until the sixth month, the breast-milk as the only food and oral object. Resuming some considerations of Jacques Lacan, we propose to think of the tendency to excessive presence of the mother occasioned by this discourse that aims to benevolence, doing emerge, as a possible counterpoint, the baby like a rest-object at the maternal fantasy. Could we think the discourse of breastfeeding as favoring a prolongation of alienating relationship between mother and child, with serious consequences for the baby? As regards the maternal fantasy, the baby could be taken as an object of the jouissance for the Other? These are issues to be discussed throughout the text.

Keywords: exclusive breastfeeding, jouissance, anguish, avidity.


 

 

Conforme amplamente divulgado, o aleitamento materno traz importantes benefícios, resultando em bebês saudáveis e mães menos suscetíveis a certas doenças. Campanhas pró-aleitamento estão presentes em todos os veículos de comunicação, lembrando às mães não apenas os benefícios à saúde, mas também os benefícios de ordem prática, como o fato de que o leite materno é mais acessível, mais prático e menos custoso, funcionando ainda como uma notória vacina por ser um "alimento completo". Ante substância tão valiosa, demarcam-se as promessas de um bem-sucedido encontro entre mãe e bebê, porquanto, afinal, é somente ela, a mãe, quem, em seu seio, detém o usufruto de algo muito potente através do qual pode ela tudo doar ao pequeno ser - e espera-se que assim o faça. Impossível às mães não serem sensibilizadas por tal propaganda e não se imporem o dever de amamentar o seu filho.

O discurso do aleitamento materno exclusivo é um discurso que ecoa nas tantas unidades de saúde e/ou programas de referência, apresentando como diretrizes os chamados Dez passos para o sucesso do aleitamento materno1, os quais preveem, entre outras coisas, a exclusividade do seio-leite materno como único alimento e objeto oral a ser ofertado ao bebê durante os seis primeiros meses; e a livre-demanda, cuja ordem é deixar o seio disponível a qualquer manifestação de desconforto do bebê, a despeito de hora, local ou circunstância, ou mesmo disposição da mãe.

Os benefícios do leite materno para o desenvolvimento saudável do bebê são indiscutíveis. Mas, se, de um lado, esse discurso esclarece as mães, de outro tais "orientações" parecem aliar-se a um argumento moral ao certificar a mãe que amamenta como A boa mãe, trazendo em seu bojo um ideal de maternidade, na medida em que a (boa) mãe é, invariavelmente, essa que, com todo amor e de bom grado, amamenta.

E m uma retomada história sobre o amor materno, Badinter (1985, p. 15) problematiza essa concepção de maternidade em que toda mulher estaria destinada não apenas a ser mãe, mas a ser uma boa mãe, nisso consistindo a "natureza feminina", "o amor materno". Tudo que disso se desvie fatalmente é tomado por exceção patológica. Birman (2001 , p. 51) também se refere a essa concepção instintiva da maternidade enquanto aquilo que se impõe como "um imperativo inelutável" ao ser mulher.

Importante pontuar que um discurso normalizador como o do aleitamento exclusivo, firmado nesse dom inelutável, certamente engendra a exceção, a transgressão, uma vez que, pelos mais variados motivos, há mães que não se assujeitam ao imperativo do amamentar2. Todavia, aqui nos ateremos ao fato de haver aquelas que, obstinadamente, cumprem as "orientações", seguindo à risca o ideal estabelecido. Mas quais seriam as possíveis implicações dessa pronta-resposta às prescrições, do deixar-se absorver pelo ato tão abnegado e exclusivo que anui ao ideal da boa mãe?

Seguindo a noção de Benhaïm (2007), a mãe bondosa imediatamente responde aos apelos do filho, não deixando, por consequência, nenhum espaço entre demanda e satisfação, nenhum lugar possibilitando ao desejo. O ideal do eu, Lacan (1953-1954/1993; 1959-1960/1997) nos diz, é exaltante, é aquilo que representa o poder de fazer o bem, este que, no entanto, funciona como uma importante barreira ao desejo. Além do mais, a instância moral, vale lembrar, é aquilo que presentifica o real, servindo de apoio ao gozo (Lacan, 1959-1960/1997).

Dado esse significativo paradoxo, poderíamos pensar que o sedutor discurso do aleitamento favoreceria uma excessiva presença materna, ou um certo prolongamento da alienação - ou seja, uma mais duradoura e extensiva relação alienante entre mãe e filho? Se é assim, é possível que haja consequências negativas ao desenvolvimento da criança, sendo importante sobre elas refletir. É o que fazemos ao longo do texto a partir das elaborações teóricas de Freud e Lacan, que nos alertam para a possibilidade de uma excessiva presença da mãe ser ensejada por esse discurso que visa à benevolência, e fazer surgir, como possível contraponto, o bebê enquanto um objeto-resto na fantasia materna.

Voltemo-nos então para um tempo inaugural, aos primórdios da constituição do sujeito - ou, em outros termos, às operações que o constituem, segundo Lacan (1964/2008).

 

Sujeito mítico

Em "A instância da letra no inconsciente", Lacan (1957/1998, p. 528) indaga: "qual é, pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?".

Lacan (1962-1963/2005) fala-nos que, no processo de subjetivação, a meta fundamental na qual o sujeito tem que comparecer é a abordagem do Outro. O tesouro do significante já constituído no Outro, e que é tão essencial à vida humana, espera pelo sujeito que, no entanto, ainda inexistente, só virá a existir a partir desse primeiro significante. Trata-se, pois, diz Lacan (1962-1963/2005, p. 192), de um sujeito em um nível mítico, "[...] sujeito primitivo que vai em direção a seu advento como sujeito [...] já que é por intermédio do Outro que o sujeito deve se realizar". Tratar-se-ia, com a ressalva da expressão, de um "sujeito do gozo", o qual só miticamente pode ser isolado, ou mais precisamente, suposto.

Em O seminário, livro 11, retomando as considerações sobre o processo de constituição subjetiva, Lacan (1964/2008, p. 193) afirma que a referência ao Outro é imprescindível para a existência do sujeito, este que, "[...] in initio, começa no lugar do Outro [...]". Aí vemos, portanto, os indicativos para a alienação, que consiste no vel o qual condena o sujeito a aparecer e desaparecer, numa divisão em que "[...] se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise" (Lacan, 1964/2008, p. 206). Isso aponta para a dependência da vida humana em relação ao campo do Outro, consideração essa que Lacan retoma diversas vezes em sua obra.

A alienação, operação constitutiva do sujeito, implica tal dependência, e, nela, há repetição. No brincar isso aparece de modo exemplar, na medida em que a brincadeira é marcada por aquilo que se repete.

Lacan (1964/2008) afirma que a repetição se volta para o lúdico, fazendo do novo que ela demanda sua dimensão. Contudo, diz-nos que tudo aquilo que na repetição varia é somente alienação de sentido, pois o deslizamento, a novidade no brincar "[...] vela aquilo que é o verdadeiro segredo do lúdico, isto é, a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma" (Lacan, 1964/2008, p. 66). Não por acaso ele também evoca o famoso jogo do fort-da para articulá-lo à alienação; jogo em que há uma espécie de exercício da criança com o carretel, ou, como ele também o chama, com o objeto a; jogo que manifesta, na repetição indefinida e insistente no manejo desse objeto - objeto no qual ela própria se vê reduzida -, não um suposto exercício de domínio por parte da criança, mas tão somente a radical vacilação do sujeito (Lacan, 1964/2008).

Consistindo nessa suspensão do sujeito, a alienação comporta, assim, algo da ordem do gozo, dessa satisfação pulsional que é o próprio nome da repetição. Todavia, o que barra o acesso do sujeito à insistência e excesso do gozo? Conforme Lacan,

[...] não é a Lei em si que barra o acesso do sujeito ao gozo; [...] é o prazer que introduz no gozo seus limites, o prazer como ligação da vida, incoerente, até que uma outra proibição, esta incontestável, se eleve da regulação descoberta por Freud como processo primário e pertinente lei do prazer (Lacan, 1960/1998, p. 836).

A Lei, na verdade, incita a ainda mais gozo, uma vez que é mediante a transgressão que a ele se acede (Lacan, 1959-1960/1997). O prazer, por sua vez, em seu princípio atado à vida, cerceia o gozo na sua satisfação repetida e insistente, ao conceder-lhe desvios, ao estabelecer limite. No tocante a esse limite no gozo, o desejo, enquanto defesa, opera como uma proibição de ultrapassá-lo (Lacan, 1960/1998). Ademais, vale lembrar o aforismo lacaniano de que "só o amor permite ao gozo condescender ao desejo" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 197).

No contexto do aleitamento exclusivo, podem-se observar vívidos relampejos de um amor despretensioso de uma completude, ou de uma toda satisfação visada na suposição de um gozo absoluto. Amor que, frustrado pela perda, incidido pela marca da ausência, possibilita o desejo que estrutura e que, por conseguinte, favorece a emergência do sujeito. A fórmula do amor é, afinal, "dar o que não se tem"; articula-se o amor em torno da falta - é isso que Lacan (1960-1961/1992, p. 133) aponta ao nos remeter ao O banquete de Platão. É com isso mesmo que nos havemos quando, imersos no discurso de Sócrates sobre o amor, somos conduzidos por ele à compreensão de que ambos, amor e desejo, são ávidos daquilo que não está ao alcance, do que não está presente, daquilo de que, enfim, se carece (Platão, 2011). O amor, pois, é desejo e, tal qual o desejo, é falta. Eis o amor condicional.

Há então uma barra importante que se faz necessária ao excessivo do gozo; barra que não prescinde, por sua função cerceadora, daquilo que concerne ao prazer, ao desejo e ao amor. Mas, se, conforme a asserção lacaniana, na alienação o sujeito é suposto, por isso miticamente existente, esse "sujeito do gozo" carece de algo que torne fracassado o vicioso círculo da infinda repetição da pulsão de morte, do gozo mortífero; algo que barre e separe, que o separe, pois, como sujeito do desejo.

 

Uma tentativa de preencher o vazio

Em "A significação do falo", Lacan já havia escrito:

Ao incondicionado da demanda, o desejo vem substituir a condição "absoluta": condição que deslinda, com efeito, o que a prova de amor tem de rebelde à satisfação de uma necessidade. O desejo não é, portanto, nem o apetite de satisfação, nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à segunda, o próprio fenômeno de sua fenda (Spaltung) (Lacan, 1958a/1998, p. 698).

Consistindo nessa fenda, o desejo imprime então uma condição absoluta, pois, substituindo a demanda incondicional, elucida o que escapa à satisfação da necessidade, aquilo que nela se rebela. Segundo Lacan (1960/1998), o desejo é o que está para além da demanda e, nessa sua irredutibilidade, também não é passível de ser reduzido à necessidade. O desejo passa pelos significantes da demanda, mas é a ela irredutível; está articulado à demanda, e por isso não é articulável. Tem, pois, a sua especificidade.

Lacan (1958a/1998, p. 633) afirma que o desejo "[...] é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma [...]", pois quando o sujeito, com o apelo de receber o seu complemento do Outro - Outro que se faz lugar de falta -, traz à luz a falta-a-ser, o desejo se manifesta. É diante do Outro da falta que a falta-a-ser, o desejo do sujeito e, portanto, o próprio sujeito emerge. Eis a maior particularidade do desejo: a falta.

Lacan (1964/2008) fala sobre o recobrimento de duas faltas. Uma delas é encontrada pelo sujeito naquilo que o discurso do Outro lhe intima, nos intervalos de seu discurso. Esta falta - logo, o desejo do Outro - é, por conseguinte, pelo sujeito apreendido nas faltas do discurso do Outro. E para responder ao enigma desse desejo, "[...] o sujeito traz a resposta da falta antecedente de seu próprio desaparecimento, que ele vem aqui situar no ponto da falta percebida no Outro" (Lacan, 1964/2008, p. 210). Esta é a outra falta, a falta do sujeito. Assim, Lacan (1964/2008, p. 210) diz que uma falta é recoberta pela outra, ensejando-se "[...] a dialética dos objetos do desejo, no que ela faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro [...]. É uma falta engendrada pelo tempo precedente que serve para responder à falta suscitada pelo tempo seguinte".

Conforme Lacan, é na separação, no intervalo dos dois significantes do casal primitivo da articulação significante

[...] que vige o desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência do discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que lidar, ponhamos, para ilustrá-la, a mãe, no caso. É no que seu desejo está para além ou para aquém no que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito. O sujeito [...] retorna então ao ponto inicial, que é o de sua falta como tal, da falta de sua afânise (Lacan, 1964/2008, p. 213-214).

Ante o ponto de falta do discurso da mãe, a torção, o retorno ao ponto inicial de falta do sujeito e, portanto, a constituição de seu desejo. É então a falta constituinte do desejo, no discurso do Outro, que torna fracassada a pretensão de uma total satisfação. Falta que deve aparecer nesse primeiro Outro como uma seta que para outro lugar aponte; lugar diferente daquele onde a criança se situa e que só a ela concerne.

Contudo, se, para suprir uma falta, a mãe confunde satisfação de necessidade com a doação de seu amor, ela priva a criança de um precioso dom, que é o da possibilidade de uma demanda insatisfeita da qual o desejo possa emergir (Zalcberg, 2003). O engodo da satisfação da necessidade remete o sujeito "[...] ao sono em que ele frequenta os limbos do ser", no qual nem sempre a criança adormece - "[...] sobretudo quando o Outro [...] se intromete nisso e, no lugar daquilo que ele não tem, empanturra-a com papinha sufocante daquilo que ele tem, ou seja, confunde seus cuidados com o dom de seu amor" (Lacan, 1958a/1998, p. 634).

Acerca desses impasses nas intrusões maternas - ou seja, naquilo que ela, a mãe, introduz em demasia empanturrando a criança -, Zalcberg (2003, p. 81) afirma que "a criança aparentemente alimentada com demasiado amor - um amor sufocante - ilustra o fracasso da demanda de amor da mãe quanto ao 'nada' que ela deveria instituir". Fracassando esse amor condicional, o que resta? Um "nada" que se metamorfoseia em um tudo. A mãe que tudo faz. O bebê que precisa dela para tudo. Conforme Benhaïm (2007), é aí que deve viger a perda.

 

Bela maternidade

Ao falar sobre a holófrase entre S1 e S23, sobre essa solidez que está dada na dimensão psicótica, Lacan (1964/2008: 231) nos diz que "[...] a mãe a reduz [a criança] a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo obscuro". O bebê destinado a ser reduzido a um objeto, tal o "fator letal" que a alienação comporta (Lacan, 1964/2008).

A "mãe insaciável" está em busca do que devorar (Lacan, 1956-1957/1995) e, ao manter seu filho cativo e assujeitado as suas significações, ela não o deixa emergir enquanto sujeito, pois ele se torna objeto de gozo na boca prestes a fechar desse grande crocodilo. O pior é não se saber - e ninguém o sabe - " o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 118).

E se a voracidade for de fato tamanha e ela, num repente, vier a se fechar? Há, porém, algo que emperra a bocarra, algo que a retém e põe a salvo o sujeito: eis o falo; e este não é um frágil graveto, mas, nos diz Lacan (1969-1970/1992), um potente rolo de pedra.

Nessa analogia, ao falo Lacan não poupa, portanto, a potência que lhe cabe, a função que carrega: a de proteger aquele que está sob o tão iminente perigo das afiadas presas maternas; aquele que, prestes a ser submergido pelo excessivo de um amor materno, ignora a letalidade do ato que está vulneravelmente propenso a sofrer.

Em O seminário, livro 5, Lacan (1957-1958/1999) cita a proibição endereçada à mãe: "não reintegrarás teu produto", fazendo uma analogia ao instinto animal de reintegrar oralmente os seus excrementos. Tal proibição (paterna) impõe um obstáculo ao instinto materno, que é evocado aqui em sua face primeira. Esse instinto de que Lacan fala carrega consigo o tom de estranheza, comporta, da maternidade, o visceral, o real. Eis a maternidade em seu misto de beleza e assombro.

 

Um paraíso de horror?

[...] o sujeito só é sujeito por ser assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro. É por isso que ele precisa sair disso, tirar-se disso, e no tirar-se-disso, no fim, ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso (Lacan, 1964/2008, p. 184, grifo do autor).

Apesar de ser uma operação constitutiva e estruturante, dado o tempo da alienação, urge disso sair, desatar-se, na separação desemaranhar-se desse Outro. Entendemos que nessas palavras Lacan indica-nos ainda algo mais. O Outro não passa indiferente por tais operações. A ele, a esse Outro, Outro real, cabe também um movimento na direção de separar-se daquele que esteve entregue a seus caprichos. Curioso ainda é que Lacan (1964/2008) pontua que o sujeito, "no tirar-se-disso", saberá que o mesmo deve ser feito pelo Outro. Como se, no só depois, de algum modo o sujeito alcançasse a dimensão do quão mortífero, para ambos, poderia ser permanecer nessa sincrônica relação de assujeitamento.

Mathelin (1999) refere-se ao medo que as mães por vezes falam de serem destruídas pelo seu bebê, de serem por eles esvaziadas, devoradas. Freud (1931/1996) já havia discorrido sobre esta fantasia de devoração do lado do bebê quando falou do temor deste de ser devorado pela mãe enquanto uma hostilidade à figura materna frente às diversas restrições impostas no curso dos cuidados por ela dispensados. Considerando-se que "o amor infantil é ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos que tudo" (Freud, 1931/1996, p. 266), tais frustrações fatalmente participam de alguma hostilidade infantil.

Lacan (1956-1957/1995) também aborda a fantasia de ser devorado quando, ao retomar o caso do Pequeno Hans, observa a fobia: a imagem da "boca escancarada" da situação oral revela o perigo de uma mãe insaciável para a criança; é aí, nessa fantasia, que Lacan (1956-1957/1995) afirma estar a origem da fobia. Volta a essa discussão em O seminário, livro 8, ao dizer que na fase oral, localizado à margem do desejo, habita o tema do devoramento; trata-se, ele complementa, da "presença da goela aberta da vida" (Lacan, 1960-1961/1992, p. 205). E sobre a pulsão oral, anos depois, apontando para o que remete ao medo da mãe de ser esvaziada - aquele lembrado por Mathelin (1999) -, mais ele nos diz:

Pois que nos referimos ao lactente e ao seio, e que o aleitamento, é a sucção, digamos que a pulsão oral, é se fazer chupar, é o vampiro. Isso nos esclarece, aliás, sobre o que é desse objeto singular [...] o seio. O seio é também algo chapado, que chupa o quê? - o organismo da mãe (Lacan, 1964/2008, p. 191, grifo do autor).

Lembremo-nos ainda da passagem evocada por Lacan (1959-1960/1997, p. 246, grifo do autor); referência por ele feita a uma espécie de doutrinamento da lei do gozo por Sade, que sublinha a recíproca concessão de partes do corpo ao gozo do Outro: "Emprestai-me a parte de vosso corpo que possa satisfazer-me um instante, e gozai, se isto vos agrada, da parte do meu que pode ser-vos agradável" . Anos mais tarde, remetendo-se novamente a esse enunciado, Lacan (1972-1973/2008, p. 30) acrescenta que "gozar tem esta propriedade fundamental de ser em suma o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro. Mas esta parte também goza - aquilo que agrada ao Outro mais, ou menos, mas fato é que ele não pode ficar indiferente".

Não seria isso que se apresenta na cena do amamentar? Ato que, em sua ímpar e ambígua beleza, sustém um duplo gozo de partes do corpo. Se tomado como gozo, o aleitamento exclusivo nada mais é do que a repetição, do que a satisfação de uma pulsão (de morte), que, em seu excesso, parece operar como um excelsodispositivoamamenta-a-dor.

Não nos esqueçamos de que a amamentação, assim como a própria maternidade, longe de representar tão somente um tempo de satisfação e contentamento, traz também, em seu bojo, dissabores. No que comporta de beleza, também agrega horrores. Amor e ódio, fantasia de devoração, de devorar e de ser devorado. Gozar e fazer gozar, extremos em que deslizam mãe e filho, em meio a um paraíso tenebroso.

Há gozos, percorrendo uma sinuosa via de mão dupla. Nessa mesma via, na contramão de um ideal materno, a maternidade configura-se, pois, como uma vivência marcada pela ambivalência, essa que Freud ( 1926 [1925]/1996, p. 124), de modo bem preciso, afirmou implicar "um amor bem fundamentado e um ódio não menos justificável dirigidos para a mesmíssima pessoa".

 

A doce indigestão

Em "Nota sobre a criança", Lacan (1969/2003, p. 373) fala de uma função de resíduo que os pais exercem e mantêm, função que destaca uma transmissão irredutível da ordem da constituição subjetiva, "implicando a relação com um desejo que não seja anônimo". Nisso vigem as funções da mãe e do pai: "da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo" (Lacan, 1969/2003, p. 373).

É a esse interesse particularizado, mediado pelas faltas maternas, que queremos nos ater. Lacan (1969/2003) nos diz que o sintoma da criança pode responder àquilo que há de sintomático na estrutura familiar, e, como representante da verdade, o sintoma pode então representar a verdade dos pais. Contudo, se o sintoma que prevalece é aquele que decorre da subjetividade materna, a articulação em muito se reduz, diz ele, pois a criança fica diretamente implicada como correlata de uma fantasia. Não havendo mediação entre a identificação com o ideal do eu e a função do desejo materno, está ela, a criança, portanto, a mercê de todas as capturas fantasísticas. É o objeto da mãe que a criança se torna e, assim, "[...] não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto" (Lacan, 1969/2003, p. 369).

Tendo o seu sintoma como insígnia da subjetividade materna, a criança carregaria então consigo a impossibilidade de tal função sustentar, senão ao preço da condenação de ficar reduzida à condição de objeto. Sobre esse objeto e sua verdade, Lacan afirma que

A criança realiza a presença do [...] objeto a na fantasia. Ela satura, substituindo-se a esse objeto, a modalidade de falta em que se especifica o desejo (da mãe), seja qual for sua estrutura especial: neurótica, perversa ou psicótica. Ela aliena em si qualquer acesso possível da mãe a sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e até a exigência de ser protegida (Lacan, 1969/2003, p. 370, grifo do autor).

O bebê torna-se, pois, sua presa, reduzido a ser meramente objeto de gozo para o Outro materno. A criança emerge, então, como objeto a na fantasia materna, objeto-resto que, desvelado, em sua aparição, satura e aniquila a falta. Tal é a falta positivada que dá a exata condição à emergência da angústia - sinal (que não engana) da irredutibilidade do real -, porquanto se a falta "[...] de repente não faltar, é nesse momento que começará a angústia" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 52). Sobre isso, Benhaïm (2007) faz uma interessante relação entre a correspondência da criança como objeto real na fantasia materna e a evolução do que chama de ódio imaginário. Ante um real que é avizinhado, permanecendo "[...] na loucura de um gozo materno que o parto a obriga a atravessar [...], a mãe permanece cativa de um fascínio: o da 'criança-morta'" (Benhaïm, 2007, p. 17).

Na angústia, o instrumento, como nos diz Lacan (1962-1963/2005, p. 186), é "posto fora". Torna-se então visível aquilo que só deveria estar presente enquanto ausência. Daí a estranheza ante a aparição do objeto: são os seios de Ágata num prato; os olhos de Édipo no chão (Lacan, 1962-1963/2005). Sobra, resto, dejeto, corte, queda, aquilo que é posto de fora... compondo um verdadeiro monturo que ilustra o status residual desse objeto caduco. Conforme destaca Vieira (2008, p. 106), é imenso o leque dos objetos a, quando "tudo o que é caduco, tudo o que do corpo se extrai, tende a assumir a potência obscura de perturbar os limites do mundo subjetivo e lhe conferir nova conformação [...]".

Portanto, tendo sido ignorada a proibição, e aquele pedroso rolo - ainda que potente - não mais podendo ser barra, como se então um objeto-excremento reintegrado, como aquilo que resta de irredutível da operação subjetiva, recolhe-se, a criança, a um soturno destino: lugar de fazer surgir a angústia materna. Torna-se, assim, ante aquela imensa bocarra aberta, uma presa indigesta.

 

Voracidades...

A amamentação tem, certamente, tanto para a mãe quanto para o bebê, sua importância, seu valor - para além mesmo do que concerne ao sempre lembrado aspecto nutricional. Contudo, cabe reafirmar que nela há ainda estranhamentos, mal-estar, pois, como componente da vivência materna, a experiência do amamentar não é dissonante de tais impasses, não escapa as suas intempéries.

Ignorando, porém, tudo isso que é tão próprio à maternidade, o discurso do aleitamento materno exclusivo parece incitar uma impossível sempre presença materna, favorecendo um mais duradouro amálgama mãe-filho. Esse radical discurso, sustentado em uma ética do bem-estar, imprimindo tantos dez-(com)passos, ainda que nas entrelinhas, decreta às mães: com seu seio, não se ausente de seu filho. Elas, como então não responderem, em assentimento, a esse discurso, quando isso implica corresponder à maternidade ideal, ser uma boa mãe?

Porém, confundindo os excessivos cuidados envoltos na amamentação com o dom do amor materno, o seio-leite que alimenta e satisfaz também sufoca, envenena. Em contrapartida, a boca que se compraz ao receber a completude desse objeto-alimento, na sua ávida insaciabilidade, ameaça esvaziar, incorporar, devorar. No ensejar dessa quase "alienação estendida", fazendo emergir a assombrosa visão do a e, por conseguinte, a avassaladora angústia, impõe-se um tamanho embate de voracidades que faz com que mãe e filho, pelos seus excessos, sejam pouco a pouco submergidos. De fato, como anunciava Sade, trata-se de um gozo mútuo: um goza da parte do corpo do outro; goza-se, como dizia aquela mãe, "até [...] não aguentar mais".

 

 

Referências

Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Benhaïm, M. (2007). Amor e ódio: a ambivalência da mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Birman, J. (2001). Padecem as mães no paraíso? In: J. Birman. Gramáticas do erotismo: a feminilidade e as suas formas de subjetivação na psicanálise (pp. 53-67). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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Artigo recebido em: 02/09/2014
Aprovado para publicação em: 5/10/2014

Endereço para correspondência
Danielle Carvalho Ramos
E-mail: ramos_danielle@ig.com.br

Roseane Freitas Nicolau
E-mail: rf-nicolau@uol.com.br

 

 

*Psicóloga. Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP/UFPA).
**Professora Associada da Faculdade de Psicologia e Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Líder do grupo de pesquisa do CNPq Psicanálise, sintoma e instituição. Membro do GT Dispositivos Clínicos em Saúde Mental (ANPEPP). Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.
1Estabelecidos pela Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC) - idealizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) com o intuito de proteger, apoiar e incentivar à amamentação ( Fundo das Nações Unidas para a Infância, [200-?]).
2Sobre isso, achamos que seja possível pensar em uma aproximação entre o imperativo do superego ao gozo (Lacan, 1972-1973/2008) e o imperativo à amamentação presente no discurso do aleitamento materno exclusivo. Referimo-nos a essa articulação no trabalho a-mamente! Na exclusividade do aleitamento materno, um imperativo de gozo? (Ramos & Nicolau, 2012).
3Trata-se da solidificação da primeira dupla de significantes, não havendo então um intervalo entre S1 e S2. Tal solidez inviabiliza a divisão do sujeito (Lacan, 1964/2008).