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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Envelhecimento e seus possíveis destinos. Uma reflexão acerca do trabalho do negativo

 

Aging and its possible destinies. Reflections on the role of Green's "negative work"

 

 

Carlos Mendes RosaI, II*; Junia de VilhenaII, III, IV, V**

IUniversidade Federal do Tocantins - Brasil
II Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) - Brasil
IIIAssociação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental - Brasil
IVUniversité Denis-Diderot Paris VII - França
VUniversidade de Coimbra - Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto investiga as operações de desinvestimento libidinal postas em cena pela pulsão de morte na realidade do envelhecimento masculino. Fazemos um recorte do conceito de pulsão de morte na psicanálise e apresentamos o trabalho do negativo de André Green, referenciado no complexo da mãe morta, como possível forma de simbolização das frustrações e perdas ocasionadas pelo envelhecimento. Apontamos ainda o lugar da palavra como fundamental na articulação do sujeito com sua própria condição.

Palavras-chave: envelhecimento, trabalho do negativo, pulsão de morte.


ABSTRACT

This paper investigates the operations of libidinal disinvestment put into play by the death drive in the reality of the aging male. We point out the concept of the death instinct in psychoanalysis and present Green's theory on the work of the negative, emphasizing the dead mother complex as a possible form of symbolization of frustration and loss caused by aging. We also point the place of the word as the basic articulation of the subject with his own condition.

Keywords: aging, work of the negative, the death drive.


 

 

Chega um momento em que somos aves na noite, pura
plumagem, dormindo de pé, com a cabeça encolhida. O que
tanto zelamos na fileira dos dias, o que tanto brigamos para
guardar, de repente não presta mais: jornais, retratos, poemas,
posteridade. Minha bagagem é a roupa do corpo...

Fabricio Carpinejar

 

Introdução

Se são recorrentes as ideias sobre sentimentos de tristeza no envelhecer, não podemos deixar de assinalar que em nossa cultura todos os esforços caminham no sentido não de vivenciar e compreender a tristeza, mas sim de ocultá-la, negá-la ou disfarçá-la. Sentimentos de tristeza, decorrentes de mutações de ciclos próprios da vida, não são, obrigatoriamente, patológicos e, nesse sentido, nem sempre estar triste é estar deprimido.

Acreditamos que uma das questões fundamentais ao tratarmos do tema do envelhecimento deve ser a representação simbólica da velhice e suas implicações subjetivas posto que já não mais vivemos em sociedades em que a velhice é encarada como sabedoria, prestígio e experiência.

É fundamental frisar que "velhice" não é diagnóstico. Muito menos insígnia clínica que demande qualquer intervenção terapêutica. Mas parece ser uma questão, frequente nos velhos que procuram atendimento clínico, a queixa de estarem "sofrendo de velhice" - um corpo faltoso e decrépito ou, como já cantava Djavan na década de 80, "uma agonia decorrente de uma briga que dura horas a fio, um corpo que fica faltando um pedaço, que nem a lua minguando".

Entender como o envelhecimento tem sido vivido por homens, do ponto de vista das possíveis limitações e dificuldades que isso pode acarretar nos relacionamentos, nas atividades exercidas em sua capacidade de existir prazerosamente, é contribuir para a compreensão e intervenção no atendimento de uma parcela significativa da sociedade atual.

Sabemos da irreversibilidade do envelhecimento biológico, estreitamente vinculado à também irreversível finitude da vida, acarretando a lentidão dos movimentos físicos, a perda de memória recente, a diminuição da capacidade orgânica de recuperação celular e tantos outros fatores que levaram a sociedade, ao verificar tais diferenças, a propor uma separação social dos indivíduos (Vilhena, Rosa & Novaes, 2013).

Associada a essa tendência, existe outra, de o homem não aceitar o envelhecimento, já que envelhecer evoca também a ideia de finitude. No entanto, o desejo de não envelhecer, que tem sido estudado em diferentes culturas, reflete um desejo atávico de o homem manter-se jovem ou imortal.

Freud (1915/2000), quando fala da atitude que adotamos em relação à morte, escreve: "Tentamos silenciá-la na realidade e dispomos até mesmo de um provérbio que diz ' pensar em alguma coisa como se fosse a morte'". Prosseguindo, diz:

é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a psicanálise pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, [...] no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade (Freud, 1915/2000, p. 327).

O que fazer? Como lidar com o inexorável da morte? Buscamos, neste trabalho, propor uma nova ótica acerca de um modo de funcionamento que pode vir a operar no homem velho; trata-se da operação negativizante colocada em cena pela pulsão de morte, ou o chamado trabalho do negativo.

Em nosso percurso nos apoiaremos nos autores do campo da psicanálise como Freud, Lacan e André Green, ilustrando nosso trabalho com alguns exemplos do que nos falam os poetas e escritores sobre o tema.

 

Sobre o envelhecer

É próprio do sujeito ter dificuldades em lidar com o tempo em várias etapas da sua vida, mas ela se evidencia de maneira diferente na velhice. O corpo na velhice, lugar privilegiado de desilusão narcísica, prometido à decadência e à morte e palco do adoecer, empurra o sujeito a enfrentar o desafio de manter a aposta na vida. José Gil (1997), filósofo português, refere-se ao corpo enquanto uma "infralíngua" em comunicação com o mundo.

Quando prevalece a noção de que o envelhecimento se opõe à vida, o homem tende a se isolar. Como ressalta Elias (1992, p. 17), o envelhecimento pode gerar uma situação na qual o homem se torne "menos sociável e seus sentimentos menos calorosos, sem que se extinga sua necessidade dos outros".

A imagem de si, enquanto visão ou concepção que o indivíduo tem de si mesmo, resulta de um processo que envolve as experiências, as impressões e os sentimentos que o indivíduo vivenciou ao longo de sua existência. A maneira como cada um irá reagir ao envelhecimento não deixa de estar relacionada com as primeiras experiências de infância, que serviram de espelho estruturante com o qual foram constituídos os alicerces da subjetividade.

Na clínica, frequentemente escutamos de homens que, por não aceitarem o envelhecimento e envergonhando-se de sua atual condição, evitam o espelho que o olhar do outro, imaginariamente, lhes devolve. Assim, por não poderem elaborar as perdas com que se defrontam, correm o risco de também evitar a vida, saindo de cena, retirando-se da vida ainda em vida (Perez, 2004).

Bauman (1998) destaca que uma das características do mundo atual é a tendência ao isolamento, ao individualismo, à solidão e à privatização da vida humana. Simone de Beauvoir (1990) diz que a velhice é sempre do outro, pois o sujeito não a imagina em si mesmo. Para a autora, o velho dificilmente se vê como tal e o jovem ignora a velhice que já reside em seu corpo.

Extenso estudo bibliográfico realizado em seu livro A velhice (Beauvoir, 1990) leva a autora a considerar que os velhos nas sociedades primitivas encarnam a categoria de Outro do social, portando toda a ambivalência característica desse conceito. Ou bem o velho é reconhecido como uma espécie de super-homem, ou tratado como uma subespécie da raça. Ele sempre está além ou aquém da condição normal dos demais homens. Esse cenário cria diversas situações martirizantes para aqueles que viveram mais anos do que o aceitável pela sua própria comunidade. Muitas vezes são mortos no auge das forças para manter o poder da tribo que representam, outras são abandonados à mingua para morrerem.

Situações dessa natureza também são descritas por Durkheim em seu livro sobre o suicídio. Em várias comunidades, especialmente no antigo mundo viking, os velhos que não podem mais lutar pela sua própria segurança ou dos mais novos lançam-se do topo de um penhasco com sua armadura de guerra esperando adentrarem orgulhosamente o Valhala. Em outros povos os anciões são voluntariamente enterrados vivos por seu povo como forma de continuidade daquele povo (Durkheim, 1977). Esta última prática descrita se ancora tanto na crença mágica dessa civilização de que a herança cultural do povo ficará preservada dentro da terra, quanto no aspecto prático de que os velhos atrasariam os fluxos migratórios do restante da população.

Outra questão fundamental nessas sociedades primitivas, que será amplamente retomada pelas modernas organizações sociais, é o fato de o estatuto da velhice ser outorgado pela comunidade. Seu status social e subjetivo pouco ou nada depende de suas próprias capacidades, sendo determinado pelos ideais e objetivos da sociedade na qual se encontra inserido (Beauvoir, 1990).

As sociedades atuais também conferem determinados estatutos aos velhos, podendo tratá-los com tanta crueldade ou indiferença quanto os povos antigos. Deferência e exaltação do velho são pouco vistos atualmente. Entretanto, atentando para a lógica da felicidade, muitas vezes preferem simplesmente ignorar o processo do envelhecimento tratando-o como indecente ou, fato mais contemporâneo, relativizando suas consequências com rótulos atenuantes e maquiadores, como "melhor idade".

Clarice Lispector refletiu acerca disso quando definiu a velhice como

a harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio (Lispector, 1994, p. 16).

Esse silêncio muitas vezes se torna ensurdecedor na experimentação do envelhecimento. Ele é o destino irremediável do homem. Experimentar a finitude humana no corpo é algo único frente ao interdito do contemporâneo que prega a impossibilidade da vivência do envelhecimento com a cultura de valores relativos à juventude. Ao mesmo tempo que o mundo moderno promete a eternidade e alonga o chronos da vida, ele não lhe reserva um campo de possibilidades (Correa, 2009).

Norbert Elias (1992) comenta os modos pelos quais se instalam os sentimentos de constrangimento, medo e embaraço em relação a tudo que lembre a finitude da vida biológica, dando especial relevo ao isolamento dos velhos e moribundos em asilos, hospitais e clínicas de saúde. Segundo o autor, o abandono e o isolamento dos velhos em nossa sociedade não podem ser explicados unicamente a partir da ideia de que velho é improdutivo economicamente.

É preciso, então, considerar os aspectos emocionais que interferem nesse abandono, compreendendo o que Elias (1992) chama de autoimagem, ou seja, a maneira como as pessoas se veem e se percebem nas modernas sociedades industrializadas e urbanas e que não inclui a ideia do envelhecimento e da morte. De fato, não é a própria morte que desperta temor, mas a imagem antecipada da morte na consciência dos vivos. Podemos pensar até mesmo que os moribundos, afastados da cena social, como forma de diminuir o constrangimento dos normais, podem se sentir embaraçados com seu estado e posição, buscando o isolamento devido à proximidade da morte e ao embaraço que esta causa.

O próprio Norbert Elias confessa sentir-se desconfortável em relação à imagem corporal que apresenta para as pessoas, mesmo seu corpo possuindo forças para as tarefas as quais é chamado a realizar.

Sinto-me um equilibrista, familiarizado com os riscos de seu modo de vida razoavelmente certo de que alcançará a escada na outra ponta da corda, voltando tranquilamente a seu devido tempo. Mas as pessoas que assistem a isso de baixo sabem que ele pode cair a qualquer momento e o contemplam excitadas e um tanto assustadas (Elias, 1992, p. 81).

Ousamos pensar que, mesmo nos casos mais afortunados nos quais se consegue manter uma libido que se evolve e instiga o sujeito velho a novas fronteiras relacionais, com o passar do tempo esta tende a uma progressiva diminuição quantitativa. Mas aqui não falamos apenas de fisiologia. A libido freudiana tem reverberações distintas em campos vastos da subjetividade. Fala de algo da ordem do biológico e refere-se também ao campo do simbólico representado pela demanda de amor.

Lacan (1958/1978) comenta que a demanda é algo que nasce da necessidade biológica, entretanto não se contenta com as satisfações que o nível biológico pode oferecer, subvertendo essa última. Ao se criar, a demanda torna-se algo tão preponderante e abrangente que se infiltra na necessidade modificando o seu próprio estatuto original. Esses arranjos libidinais da velhice podem ser melhor compreendidos através da lógica freudiana dos estados narcísicos.

Freud (1914/2000) afirmava que em alguns casos de doença orgânica a libido direcionada para o mundo externo regride ao eu como suporte à condição sofrente. A famosa assertiva de Wilhelm Buck de que toda alma se encontra aprisionada na estreita cavidade do molar (no caso da dor de dente) foi magistralmente utilizada por Freud para ilustrar esse fenômeno.

À medida que o sujeito envelhece, notamos que costuma apresentar um progressivo desinvestimento libidinal das coisas do mundo com consequente investimento no nele mesmo. Alguns fenômenos típicos da velhice como o retraimento de interesses, certo egoísmo e a despreocupação com os fenômenos ao seu redor são confirmações desse remanejamento libidinal para o próprio eu (Gabbay, 1999).

Importante frisar que essas não são características dominantes em todas as pessoas de idade avançada. Não obstante, tentaremos aqui traçar um paralelo entre esse desinvestimento objetal, com consequente retorno ao investimento narcísico, e o trabalho do negativo, especialmente no tocante à função desobjetalizante da pulsão.

 

Das pulsões de morte

Freud tenta delinear o mecanismo de construção da memória como sendo produto de sinapses neuronais que criam caminhos na trama cerebral e deixam facilitações que servirão às próximas organizações psíquicas (Freud, 1895/2000). Garcia-Roza (2001) analisa que essas trilhas (ou facilitações) são passíveis de reordenamento de acordo com novos contextos e nexos lógicos (conscientes ou inconscientes) que reordenam as marcas mnêmicas do aparelho psíquico. O que caracteriza a memória é que a diminuição das resistências oferecidas por certas barreiras de contato tendem a facilitar o percurso psíquico em determinada direção e não em outra. A memória, na visão freudiana, passa a ser constituída de mensagens que não estão diretamente vinculadas à experiência, mas trabalham regularmente numa sucessão de sinais, circulando segundo o princípio do prazer.

Uma das grandes interrogações de Freud no "Projeto para uma psicologia científica" (1985/2000) trata da existência de um sistema (que ele denominou de ω) responsável pela qualidade da percepção das coisas no mundo, e consequentemente da memória. Esse sistema tem uma particularidade de trabalhar com um mínimo de investimento ou até mesmo sem que nenhum investimento seja feito sobre ele. O sistema ω é consciente e pode ser excitado através dos estímulos perceptuais captados pelos órgãos sensoriais, produzindo diversas qualidades que ele chama de sensações conscientes. O caráter qualitativo será responsável pela distinção entre libido e outro tipo de energia que possa servir de suporte aos processos psíquicos; mais tarde essa energia não-sexual será chamada de pulsão de morte. Uma pulsão de autoconservação que se coloca em oposição às pulsões sexuais. É o que Freud (1920/2000, p. 37) afirma em "Para além do princípio do prazer" quando sustenta "a hipótese de que todas as pulsões querem reproduzir algo anterior", o que vincula estreitamente a pulsão de morte ao princípio de conservação, definido como "a tendência dominante da vida anímica, e talvez da vida nervosa em geral, de baixar, manter constante, suprimir a tensão interna de estímulo".

Ao definir o problema econômico do masoquismo, o fundador da psicanálise aponta inequivocamente o próprio eu como alvo da pulsão de morte, num retorno narcísico cuja finalidade é claramente a morte, mas também pode ser interpretado como preservação do próprio sujeito (Freud, 1924/2000). Lacan (1954-1955/1985) afirma a existência desse princípio que leva a libido de volta à morte, entretanto não de qualquer maneira, somente pelos caminhos da vida é que tal princípio irá atuar. Isso faz toda a diferença. A pulsão que encaminha para a morte através da vida é, segundo pensamos, o protótipo do funcionamento inconsciente do homem que se aproxima da finitude.

Nesse mesmo seminário Lacan (1954-1955/1985) define a pulsão de morte como atrelada à ordem do simbólico, pois esta, ao mesmo tempo não sendo e insistindo para ser, é aquilo a que visa Freud quando fala da pulsão de morte como o que há de mais fundamental, ou seja, uma espécie de "ordem simbólica em pleno parto, vindo, insistindo para ser realizada" (Lacan, 1954-1955/1985, p. 407).

Parece-nos importante apontar aqui que a dimensão da linguagem sofre mudanças na velhice se pensarmos em um âmbito social, especialmente quando nos referimos aos novos nomes com os quais o envelhecimento se traveste no mundo contemporâneo (Vilhena, Novaes & Rosa, 2014). Ainda assim nos parece um pouco forçado dizer que ocorrem mudanças significativas na relação do sujeito com sua própria linguagem devido ao fato de este ter envelhecido. Entretanto, é evidente que mudanças acentuadas no campo afetivo se põem em marcha na última fase da vida. Por essa razão, nos apoiamos nas proposições lacanianas da pulsão de morte, mas requisitaremos também, neste trabalho, as considerações teórico-clínicas de André Green, para quem o afeto se inscreve em uma lógica da heterogeneidade que caracteriza e impulsiona o processo de representação pela tensão irredutível entre a força e o sentido, o econômico e o simbólico.

Green (2009) irá realizar uma leitura diferente da pulsão de morte, não limitando essa força exclusivamente ao registro pulsional, tampouco reduzindo-a a um "automatismo repetitivo", ou ao biologismo incoerente da tendência de retorno ao inorgânico, forçando uma relação direta entre biológico e psíquico (Urribarri, 2010). A pulsão de morte pode ser compreendida em sua teorização mediante a articulação do intrapsíquico e do intersubjetivo. Nesse sentido o autor propõe a utilização do termo pulsões de destruição, com uma dupla orientação, interna e externa, para substituir o termo freudiano, em sua opinião problemático.

Green (2009) entende que a função da pulsão de vida é fazer chegar à categoria de objeto aquilo que não possui nenhuma das qualidades, propriedades ou atributos do objeto, desde que uma única característica se mantenha no trabalho psíquico realizado: o investimento significativo. Diz ainda que no fim das contas é o próprio investimento que é objetalizado. Outrossim, a meta da pulsão de morte é realizar ao máximo uma função desobjetalizante através do desligamento das coisas e objetos.

Segundo Urribarri (2010) a concepção de pulsão de morte na obra de André Green será basicamente uma força de desinvestimento, e não força de expulsão, ataque ou agressividade, que são manifestações possíveis, mas secundárias, segundo o entendimento do autor. Esse desinvestimento irá afetar os processos de ligação objetal e os seus componentes (representações, objetos, traumas etc).

Anteriormente Green (1980) já havia lançado o conceito de narcisismo negativo como correspondente ao aparecimento de fenômenos de angústia como a alucinação negativa e o sentimento de vazio, resultantes de um desinvestimento massivo e temporário do objeto primário, corolários da destrutividade da pulsão de morte, liberada pelo enfraquecimento do investimento libidinal erótico, que afeta a estrutura do narcisismo secundário e que deixa marcas no inconsciente sob a forma de buracos psíquicos que poderão ser preenchidos por reinvestimentos. Aqui lemos uma atualização da angústia de castração primordial em momentos ulteriores da vida. Nas palavras do próprio autor "todas as formas de angústia vêm acompanhadas de destrutividade, a castração também, já que a ferida é produto de uma destruição" (Green, 1980, p. 243).

Talvez possamos ligar tais fenômenos de angústia à figura do desamparo [Hilflosigkeit] contemporâneo descrito por Freud (1937/2000), o qual o homem deve enfrentar quando destrói todos os ídolos erigidos para sustentar uma significação final do seu próprio ser e da sua existência. Quando se descobre abandonado pelos deuses (ilusões) que ele próprio criou, o homem velho tem de enfrentar o seu desamparo mais radical, o do lugar vazio do fiador último da história simbólica pessoal e, nos casos mais narcísicos, da humanidade (Pereira, 1999).

 

A "mãe morta" é real

Ao abordar o "Complexo da mãe morta", Green (1980) assegura que a problemática narcisista está em primeiro plano nas análises, muito mais que os sintomas neuróticos clássicos, sendo que as exigências do Ideal do Eu se apresentam consideravelmente significativas e associadas com as demandas do Supereu. Para o autor o sentimento de impotência é evidente seja pela incapacidade de sair de uma situação conflituosa, pela impotência para amar, para ampliar seus ganhos ou até mesmo para manter certo padrão de vida.

O que Green defende em relação ao estado clínico acima descrito é que podemos associá-lo, muitas vezes, ao que ele chamou de depressão de transferência. Uma revivência, na vida adulta, de uma depressão infantil cujo traço essencial é sua ocorrência diante da presença de um objeto absorto numa espécie de luto, qual seja, a Mãe Morta, que por uma razão qualquer tenha se deprimido, dando origem a uma ausência que irá marcar de maneira definitiva os investimentos do sujeito.

Segundo aponta Zornig (2008), esse desinvestimento trata de uma perda experimentada em âmbito narcísico e não edípico, pois ocorre um desinvestimento central do objeto primário materno. O complexo da mãe morta refere-se a uma depressão que tem lugar na presença do objeto na qual a tristeza da mãe e a diminuição de seu interesse pelo seu bebê estão em primeiro plano. Essa indicação enfatiza a sutileza da relação mãe-bebê, que pode funcionar como um referencial de base afetiva ou ser pautada pela vivência de ausência e de vazio.

O exemplo utilizado no texto greeniano das fotos do pequeno infante feliz ao lado da mãe e posteriormente abandonado por esta não deixa de suscitar em nós a analogia com a postura de muitos velhos em relação às fotos de família ou dos amigos: a felicidade um dia alcançada agora parece ter sido solapada pelas areias do tempo, deixando pouco mais que uma vaga impressão de existência.

Seria impensável afirmar que tal estado de coisas pode igualmente levar um sujeito a um quadro "depressivo" no sentido daquilo que Green aponta? Não seria factível requerer daquele que experiencia a revivescência da castração, para quem as ilusões pouco significam atualmente, e cuja imagem da mãe (em muitos casos, literalmente morta agora) pode tornar-se ambígua, um nível de elaboração de afetos narcísicos como forma de sobrevivência e defesa contra essa mesma depressão?

Nesse ponto entra em cena o conceito fundamental de Green acerca do Trabalho do Negativo, especialmente na sua dimensão estruturante da personalidade, pois neste texto não desejamos nos ater a uma investigação acerca dos quadros mais patológicos da clínica dos estados limites, o que claramente foge aos propósitos do nosso presente trabalho.

André Green (2009) define como trabalho do negativo o conjunto de operações psíquicas que têm como protótipo o recalque [Verdrangung] e como variações a negação [Verneinung], a denegação [Verleugnunge] e a foraclusão [Verwerfung]. O trabalho do negativo se estende ao conjunto das instâncias do aparelho psíquico: id, ego e supereu. Entre os dois extremos do recalque bem constituído à radicalidade da foraclusão, o trabalho do negativo pode seguir caminhos intermediários como a clivagem e a denegação. Green (1988) entende ainda que a parte assumida pelo objeto nessa elaboração configura-se como um fator de interferência que entra em jogo na constituição da subjetividade por efeitos fora do comum. Se o objeto é responsável por conter e estimular a pulsão, essa dupla ação só se torna possível a partir de um trabalho do negativo estruturante.

Freud (1925/2000) em seu texto sobre "A negativa" afirma que o pensamento tem a capacidade de apresentar à mente aquilo que foi percebido outrora, reproduzindo-o por uma representação sem que o objeto externo deva estar necessariamente presente. É a passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade. O momento em que o sujeito percebe que não é importante somente que o objeto possua um atributo "bom" e seja integrado ao ego, mas também que esse atributo corresponda a uma coisa no mundo externo e que dela possa se apossar quando necessário. Green (1988) comenta ainda que a expulsão do mau permite a criação de um espaço interno no qual o eu, como organização, pode nascer para a instauração de uma ordem fundada no estabelecimento de ligações relacionadas a experiências de satisfação. Essa organização facilita o reconhecimento do objeto em estado separado no espaço do não-eu e o seu reencontro.

Nesse sentido, Roussillon (2010) afirma que o trabalho de transformação da experiência primária, através da simbolização, da qual trataremos mais adiante, tem a dupla função de transformá-la em algo apropriado pelo sujeito e torná-la perdida para sempre, na medida em que ela transforma o próprio sujeito.

As investigações de André Green sobre o trabalho do negativo o conduziram à clínica do vazio, na qual se encontra uma espécie de mistura de desinvestimento, destrutividade inaceitável e identificação com um objeto destruído pela separação. Esse desinvestimento objetal nos parece claro em muitos casos de idosos cujo interesse pelo mundo exterior cai drasticamente com a chegada da aposentadoria e com o alijamento do universo do trabalho.

Tentamos interpor aqui as considerações sobre os estados narcísicos e a dinâmica do envelhecimento, especialmente dos sujeitos do sexo masculino, pois nos parece que a mulher idosa encontra meios mais positivos para lidar com essa nova realidade. A mulher idosa muitas vezes continua tendo um lugar subjetivo no lar que administra, além do que acostumou-se a desempenhar várias funções ao longo da vida.

O sujeito que sofre algum tipo de perda realmente significativa para sua economia libidinal, seja a de um amor, um ideal ou de uma capacidade, encontra-se obrigado pelo teste de realidade a um trabalho lento e penoso de desligamento do objeto amado. Freud (1917/2000) escreve que durante esse processo o sujeito em luto direciona a maior parte de seus pensamentos (quando não todos eles) para o objeto perdido com o intuito de mantê-lo próximo de si, ainda que seja só por mais algum tempo, ou seja, a vontade é de parar o tempo no instante antes da perda.

A quebra temporal aqui encontrada também foi brilhantemente descrita por Green (citado por Urribarri, 2010) quando comenta que a descarga da repetição tenta produzir o vazio no seio do aparelho psíquico. Nesse sentido, a compulsão de repetição é um assassinato do tempo. Não devemos confundir a repetição mortífera com a ex-sistência da cadeia inconsciente, ou seja, algo externo ao sujeito que insiste pela via da linguagem (Quinet, 2000). Trata-se, antes de mais nada, de uma compulsão a desfazer, inscrita em uma lógica de um "antitempo". Aparece aqui como o duplo movimento da impossibilidade de renunciar à satisfação imediata e da tentativa de expulsão das frustrações para fora do espaço psíquico (Urribarri, 2010).

O conceito de compulsão à repetição de Green (2009) estabelece sua condição de aparecimento quando o Eu não se apresenta como capaz de tolerar as frustrações (ou decepções) da realidade externa ou quando este é atravessado por uma intensificação, ainda que temporária, de investimento pulsional.

A libido objetal que se direcionava para o mundo externo é revertida para o eu como forma de dar a mesma novo sentido pela via das novas identificações que se formarão a partir de então. Identificações essas que têm por função desinvestir cada lembrança e cada afeto relacionados ao objeto faltante. As condições muitas vezes limitadoras do "ser velho", somadas às perdas reais de pessoas, de forças, de saúde, às perdas imaginárias de amor, de tempo, de vida e às perdas simbólicas que falam do status subjetivo, dos papéis sociais e do lugar na família, constituem um emaranhado de objetos faltantes dos quais o sujeito terá que se separar psiquicamente, rejeitar a conservação das marcas dessas experiências, não sem um cadinho de elaboração, caso possua meios para tanto, e de sofrimento (Rosa, 2014).

O movimento da pulsão de morte tem como objetivo o retorno a um estado de satisfação perdido, desde sempre, há que se dizer, mas cuja sensação deixada tornou-se meta a ser alcançada pelo sujeito. Podemos pensar que na velhice, na qual as perdas motoras, afetivas e sociais aparecem tão claramente, almejar essa satisfação com a qual se sonhou a vida inteira nos parece não só uma aspiração justificada como talvez a única compensação para o atual estado das coisas. Acreditar que tal satisfação requer comumente uma volta a um estado anterior e, diferente da pulsão de vida que precisa de elementos externos para se efetivar, demanda tão somente a entrega ao movimento interno do gozo, insistência da cadeia significante, de retorno ao próprio eu, nos leva a colocar a efetividade da pulsão de morte em lugar privilegiado no organismo envelhecido.

Sobre esse movimento de retorno Lacan (1969-1970/1992, p. 44) irá afirmar claramente que "o que se repete não poderia estar de outro modo, em relação ao que repete, senão em perda". Marca decisivamente o estatuto da repetição como a perda de algo que, segundo suas próprias palavras, pode ser "perda de velocidade, de força...", de vivacidade, de perspectivas e tantas outras, acrescentaríamos nós, por serem tão comuns no envelhecimento. A pulsão de morte é posta em marcha pela presença do objeto perdido.

Virginia Woolf narra o desencanto provocado pelo desencontro subjetivo da imagem corporal com o inconsciente que a determina em seu conto Dama no espelho. Seu rosto transformara-se na máscara de uma velha. Ao continuar se olhando, teve a sensação de ser alguma coisa seca por fora, como um figo seco, incapaz de produzir admiração ou prazer. Internamente, não se sentia uma fruta fora da estação, como se percebia externamente (Woolf, 2005).

O trabalho do negativo pode ser entendido como expressão da pulsão de morte, de sorte que sua tarefa consiste nas atividades de negativização, de rompimento, desligamento e desobjetalização. Green (1988) comenta que para poder dizer sim a si mesmo é preciso poder dizer não ao objeto. É através desse ato de dizer não que os limites psíquicos podem se estabelecer, favorecendo a capacidade de representação e a constituição subjetiva.

Mendes e Garcia (2012) acrescentam que o conceito de trabalho do negativo traz a ideia de que toda negação pode ser estruturante ou patológica dependendo de em que condições e em que contexto este "não" se dá. Negar a finitude da existência, distanciar-se do convívio social cada vez mais exigente com um corpo e espírito alquebrados, voltar-se para suas próprias memórias ou investir em pequenas conquistas e prazeres pessoais parecem formas muito interessantes de aplicação do trabalho do negativo.

Podemos pensar na afirmação de Eliane Brum (2008, p. 97) em sua bela crônica documental Casa de velhos: "Contaram para todo mundo que eles queriam descansar... Descansar é tudo o que ele não quer. E quem desejaria, com a eternidade espreitando logo ali, na próxima curva?".

As operações negativizantes, colocadas em cena pela pulsão de morte através da função desobjetalizante, não comportam uma dimensão puramente destrutiva, são também fundamentais no trabalho do negativo em sua função de estruturar os limites intra e interpsíquicos. Quando bem-sucedidos favorecem processos sofisticados como a construção de representações, a simbolização e a abstração; processos esses que se constituem como fundamentais a uma teoria sobre o pensamento (Garcia & Damous, 2009).

A noção de investimento energético está presente na obra freudiana desde o "Projeto para uma psicologia científica" (1895/2000). O termo Besetzung designa uma representação cujo afeto não foi desinvestido (ou descatexizado nas traduções correntes para o português). Trata-se de um tipo de energia psíquica que se liga ao soma (nos termos freudianos iniciais, se ligaria a um neurônio) e concomitantemente se liga a uma representação ou um grupo de representações. Essa concepção nos dá a ideia de investimento como uma carga que se coloca ou se retira de algo, no caso de uma representação (Garcia-Roza, 2001).

O primeiro investimento energético (Freud depois chamará de pulsional) do eu inaugura a saída do autoerotismo e a especificação das zonas erógenas. A essa fase a psicanálise dá o nome de narcisismo. Em uma leitura greeniana, o narcisismo se destaca como o primeiro alicerce psíquico capaz de resistir aos ataques da pulsão de morte. Paradoxalmente é ao mesmo tempo o agente e o resultado da primeira vitória das pulsões de vida contra a pulsão de morte (Urribarri, 2010). A partir desse estádio da vida o sujeito será capaz de sentir-se olhado pelo outro. Freud (1914) celebra o momento no qual o olhar da mãe não atravessa o sujeito. Reconhecendo a existência de um Outro, o sujeito pode enfim disponibilizar uma quantidade de energia (insistimos no termo arcaico) para ser investida no objeto, modelando assim, de forma inaugural, a libido objetal.

Entretanto, uma considerável quantidade de libido narcísica deverá sempre estar presente para a manutenção da vida psíquica. Além disso, se uma das funções do objeto é contribuir para a manutenção de um certo equilíbrio entre as pulsões de vida e morte, os fracassos do lado do objeto podem provocar reações de desequilíbrio que favorecem a expressão das pulsões de destruição (Urribarri, 2010). Aliado ao trabalho de preservação das poucas energias restantes na última fase da vida, o trabalho de desinvestimento libidinal, retorno ao narcisismo, pode se configurar com uma possível saída, defesa contra o inevitável.

Segundo Green (2009) o narcisismo primário constitui a "estrutura enquadrante" do psiquismo. A qual será a matriz de sentido que reforça uma dupla dimensão pulsional e identificatória, "concebida como o resultado da interiorização do suporte materno primário, graças aos mecanismos de duplo retorno das pulsões e de alucinação negativa da mãe. Enquadre materno carnal, corporal, constituído no corpo a corpo da relação" (Urribarri, 2010, p. 33).

Pensamos analogamente que a mãe, enquanto lugar de vazio ou espaço potencial interno, seria a moldura que contém qualitativamente a expansão pulsional do eu nascente, numa referência próxima ao conceito de "continente/contido" de Bion (1962). Essa estrutura enquadrante, constituição do ego delimitado pelos contornos da mãe castrada, será a preceptora dos destinos dos processos de percepção, representação e finalmente de simbolização.

Resta dizer ainda que a função objetalizante (Besetzung) das pulsões de vida ou de amor, cuja origem remonta à estrutura enquadrante, tem como principal consequência realizar, pela mediação da função sexual, a simbolização. A ausência de simbolização se configura como uma forma de resistência, uma forma de oposição ao processo psíquico.

 

A construção de uma narrativa

Roussillon (2000) afirma que a simbolização passou a ser uma questão problemática dentro da teoria psicanalítica na medida em que se percebeu que nem tudo que o sujeito experimenta como vivência é automaticamente representado ou simbolizado. É preciso que exista certo trabalho psíquico na direção do objeto e sua relação com o sujeito. Mais uma vez entram em questão a qualidade do objeto e o retorno da pulsão.

O autor define que a simbolização leva a uma espécie de representação do processo psíquico que ocorre em três tempos distintos e sucessivos. O primeiro no qual a experiência subjetiva é capturada psiquicamente e inscrita, um segundo tempo no qual a experiência é ligada afetivamente e simbolizada enquanto representação coisa, ou seja, nesse processo o traço primário é religado à representação coisa. E uma última etapa na qual a representação-coisa é religada à representação-palavra, sendo transferida para o aparelho de linguagem e ganhando um sentido próprio, que se pode dizer único, para o sujeito (Roussillon, 2000).

Na prática podemos observar tal fenômeno ocorrer com idosos quando dizem que "palavras são tudo o que me resta" e narram suas histórias para os mais novos, muitas vezes pouco interessados em escutar, como forma de reviver e recuperar um passado perdido. Um exemplo interessante da capacidade da representação-palavra para manter o afeto ligado ao traço primário pode ser visto nas diversas oficinas de palavras com idosos, cuja proposta é fazer o idoso falar de seu cotidiano e, paulatinamente, ir se apropriando, através da fala, das suas lembranças, primeiro as recentes, passando pelos eventos anteriores até chegar aos conteúdos infantis de cada participante. Esse trabalho, realizado em grupo operativo, tem, muitas vezes, a função de preservar a sanidade e a memória do idoso.

Parece fundamental para o nosso estudo compreender que os modos elaborados de simbolização podem se dar na ausência do objeto simbolizado, desde que um trabalho de simbolização primário tenha sido efetuado, tendo como condição prévia o encontro do sujeito com o referido (representado) objeto.

No caso específico do envelhecimento faz todo sentido pensar que o velho tem condições de enriquecer o seu mundo interno com representações das coisas que ficaram perdidas ao longo do processo de envelhecimento, simbolizando e historicizando as ausências/faltas para então poder reinventar novas formas de ser no mundo, novos lugares subjetivos. É fundamental afirmar que negar aspectos do mundo não quer dizer negar a sua presença no mundo, outrossim recusar-se a aceitar a exigências massacrantes da sociedade atual e poder levar uma vida mais adequada às suas pretensões e condições.

Resta dizer com Roussillon (2010) que representar é apresentar de novo, é situar dentro do tempo e da história a experiência subjetiva, permitindo que a experiência emocional não mais atravesse a psique sem estar subjetivamente ligada e religada aos objetos. O processo de representação dá condições para que o sujeito se aproprie disso que o constitui e dos modos pelos quais transforma aquilo que encontra em seu caminho. Em outras palavras, Roussillon (2000) dirá que o processo de simbolização começa après-coup, quando o sujeito pode dar a si mesmo uma cópia, uma espécie de "apresentação" daquilo que aconteceu em sua própria vida. Ou seja, construir uma narrativa própria de sua história.

Em psicanálise acredita-se que o sujeito se apropria de sua condição sempre de forma peculiar, e só a análise da narrativa particular daquele sujeito é capaz de deslindar os meandros do seu sintoma. De preferência, que essa elaboração ocorra sem cair na noção de estigma ou doença e tampouco na tentativa de suavizar uma condição que naturalmente traz mais dificuldades ao sujeito, dando-lhe novos nomes que não façam jus a seu status, tal como a nomenclatura "melhor idade".

Em tempos de patologização da normalidade, o fenômeno biológico do amadurecimento ganha status de doença e promove efeitos sintomáticos particularizados nos velhos. Daí a necessidade, mais uma vez, de se colocar em palavras esses efeitos com o objetivo de descontruir ou reelaborar as angústias e dores advindas da condição de estar velho (Vilhena, Rosa & Novaes, 2013).

Longe de promover um desaparecimento da angústia, trata-se de tornar possível a resolução de um tipo de angústia paralisante e caminhar em direção a outras angústias vivenciais, estas desafiadoras. O fundamental nesse contexto é a mudança na relação do sujeito (idoso, ou não, incluído ou não) com o mundo que o cerca, restabelecendo os nexos psicológicos, fisiológicos e sociais, eliminando a separação entre pensar, sentir e agir.

Nenhum outro animal possui a consciência da morte, daí afirmarmos que reagir à condição de mortal é manter-se pleno de humanidade, posto que a consciência da condição humana é, também, a consciência do envelhecimento e uma natural reação ao mesmo. Esse processo tem uma longa história. E é essa história que precisamos ouvir.

Recorrendo novamente aos poetas, poderemos concordar com Borges (2012, p. 23) que nos diz "a velhice é um longo entardecer" ou com Philip Roth (2007, p. 17), que afirma que "a velhice não é uma batalha, a velhice é um massacre".

 

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Artigo recebido em: 09/10/2014
Aprovado para publicação em: 20/12/2014

Endereço para correspondência
Carlos Mendes Rosa
E-mail: carlosmendesrosa@gmail.com

Junia de Vilhena
E-mail: vilhena@puc-rio.br
www.juniadevilhena.com.br

 

 

*Psicólogo. Professor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Tocantins. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Com Especialização em Psicopatologia Clínica pela UNIP - Universidade Paulista. Pesquisador Associado do LIPIS/PUC-Rio.
**Psicanalista. Membro efetivo do CPRJ. Dra em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS da PUC-Rio. Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII. Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra.