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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dic. 2015

 

ARTIGOS

 

A presença do objeto a na neurose e na psicose e o desejo do psicanalista

 

The presence of the object a in the neurosis and in the psychosis and the psychoanalyst's desire

 

 

Júlio Eduardo de Castro*

Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ - Brasil

 

 


RESUMO

Dentro do ensino de Lacan, partimos da consideração a dois modos subjetivos e peculiares de ser - classicamente chamados de neurose e psicose - e os examinamos em função da presença do objeto a no tratamento psicanalítico. A partir das diferenças acerca dessa presença, são analisadas algumas consequências quanto à direção do tratamento em um e em outro caso. Para tal, recorremos ao desejo do psicanalista e à política do psicanalista, expressões estas extraídas do ensino de Lacan como articuladores éticos indispensáveis à condução do tratamento psicanalítico do sujeito neurótico e do sujeito psicótico.

Palavras-chave: objeto a, neurose; psicose, desejo do psicanalista, política do psicanalista.


ABSTRACT

In Lacan's teaching, we took into consideration two subjective and peculiar ways of being - classically called neurosis and psychosis - and we examined them according to the presence of the object a in the psychoanalytic treatment. From the differences concerning that presence, some consequences are analyzed as the conduct of the treatment in the neurosis or in the psychosis case. For such a thing, we fell back on the psychoanalyst's desire and the psychoanalyst's politics, these expressions taken from Lacan's teachings as indispensable ethical articulators to conduct the psychoanalytic treatment of the neurotic and psychotic subject.

Keywords: object a, neurosis, psychosis, psychoanalyst's desire, psychoanalyst's politics.


 

 

Neste ensaio, vamos partir do que é, cotidianamente, "a falta" para nós humanos para daí chegar à política do psicanalista segundo o ensino de Lacan: a política da "falta-a-ser". Tal política certamente abrange todo o campo da ética do desejo, mais especificamente o que Lacan chamou de "o desejo do psicanalista". Sabemos que esse desejo é tão sem conteúdo/substância (insólito) quanto sem território - seja ideológico, seja institucional, seja grupal. O ensino de Lacan sempre destacou as funções da falta - como outro nome para a castração freudiana (Φ e -φ) e para o vazio (o zero subentendido em todos os números e a presença/repetição do conjunto vazio em todos os conjuntos) - em todo e qualquer sistema lógico. Concomitantemente e cada vez mais, em seu ensino, Lacan enfatizou a importância da atopia e da extraterritorialidade como elementos éticos indispensáveis ao exercício da psicanálise, ou seja, ao desejo do psicanalista.

Na vida cotidiana e social, costumamos atribuir o que nos falta a algo/objeto do qual julgamos já termos tido o domínio e o perdemos, ou mesmo a algo que jamais tivemos. Em ambos os casos está subentendida a ideia de posse: seja como recuperação do que se julgou ter perdido, seja como propósito de retenção do que ainda não se tem. Realmente tal ideia obceca a nós humanos e tendemos a acreditar que isso ocorre em função da intensa participação do Eu (Ego) na construção dessa ilusão de posse. O Eu aí participa, com os seus mecanismos de defesa, com vistas a preencher o que julga lhe faltar, tamanha a sua fascinação narcísica pela completude, pela totalidade, pela unificação, pela unidade, pelo acréscimo, pela acumulação. Por isso nos perguntamos aqui se realmente perdemos o objeto ou simplesmente julgamos ter perdido algo que acreditávamos poder reter? Perdemos a coisa em si ou perdemos as ilusões que o Eu constrói ao seu redor? Seria a morte do objeto - como "radicalidade" da perda humana - ou seria o desvelamento da ilusão de apropriação e de imortalidade tecidas pelo Eu em forma de crença? São as questões gerais das quais partimos...

Sabemos, a partir do campo freudiano, que os objetos originais são irrecuperáveis, ou seja, são objetos que foram perdidos para sempre, sem sequer terem sido possuídos. Lacan nos sugere o tempo todo que esses objetos, por fundamento, partem de um lugar destinado a abrigar uma falta estrutural/estruturante - ou vazio elementar -, falta essa escrita em seu ensino:

1) como falta-a-ser (caracterizada na teoria psicanalítica como desejo/castração [Φ e -φ]), ou ainda como política do psicanalista, ao priorizar o desejo como movimento prospectivo feito a partir da falta como causa retrospectiva;

2) como significante que falta ao Outro [S(%)], visto ser o Outro um sistema incompleto, tão castrado quanto o sujeito ();

3) como foraclusão do Nome-do-Pai, ou seja, enquanto falta de inscrição da Metáfora Paterna no registro Simbólico (NP 0).

Freud nos deixou a fórmula de que o objeto primordial pelo qual a psicanálise se interessa é constitucionalmente perdido, e desde sempre. Ele é, portanto, um objeto irrecuperável, ou seja, impossível de ser recuperado, entretanto sempre relançado no horizonte do desejo. Desejo esse que tenta, nesse relançamento, se não recuperá-lo, ao menos reencontrá-lo em perspectiva. Todavia, Freud o localiza como o núcleo do Inconsciente e do desejo, dando-lhe um lugar constitucional na estruturação desses dois termos: Inconsciente e desejo. É, portanto, em torno e a partir desse vazio fundamental subjacente ao objeto perdido que desejo e Inconsciente são constituídos e se articulam/desarticulam entre si (a), e sempre como tentativa de reaver/recuperar o objeto perdido desde sempre. Por esse aspecto, perda, falta e vazio são as características marcantes desse objeto, em si mesmo insólito e, por isso, essencial. Portanto, a perda, a falta e o vazio são tidos por Freud como aquilo que dá consistência lógica ao objeto que interessa à psicanálise. O mesmo raciocínio é feito por Lacan ao supor um furo no simbólico, de base objetal, em torno do qual sujeito e desejo são constituídos (Lacan, 1958-1959/s/d; 1960b).

Pretendemos doravante abordar e tecer considerações sobre como esse objeto perdido - retomado por Lacan com a insígnia de objeto a em sua dupla face: objeto "causa-do-desejo" e objeto "mais-de-gozar" - se faz presente em cada um desses dois modos de ser/gozar subjetivos: a neurose e a psicose. Com a finalidade de ilustrar tal "presentificação", recorremos ao fenômeno da saudade como sentimento humano.

 

Na neurose

O significado denotativo do verbete "saudade" é: "Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las; nostalgia" (Buarque de Holanda, 2002). Destacamos inicialmente a proximidade semântica da "saudade" com a palavra "solidão", para então, a seguir, ilustrarmos o modo de gozo vivido pelo sujeito neurótico durante essa experiência, a saudade, qual seja, como a falta e o vazio nostálgico invadem e tomam conta de um espaço e, antes de tudo, tempo subjetivos.

Na neurose, testemunhamos, a cada instante, a presença do objeto a na situação clínica, principalmente frente à vivência da angústia. Neste momento, graças a Lacan (1962-1963/2005), consideramos a angústia como sinal da aproximação desse objeto durante a "psicanálise em intensão". De modo que a presença do objeto a na situação psicanalítica nos é anunciada pelo despertar da angústia no sujeito psicanalisante. E isso só ocorre se o psicanalista fizer valer a ocorrência dessa manifestação, a angústia, já tendo suportado ocupar, para tal, a posição de semblante de objeto: no início ao suportar a posição de semblante de agalma e, posteriormente, ao suportar a destituição da transferência, ou seja, o desengano/queda do sujeito-suposto-saber [S( % )], fazendo assim valer, para o psicanalisante, o "ser-de-objeto". Portanto, suportar ver-se reduzido à condição de resto (pulsional e matemático) de um processo psicanalítico (psicanálise em intensão) tem como correlato, da parte do psicanalisante, a vivência da mais profunda angústia, do mais profundo desamparo. Desamparo esse vivido como corolário da produção de significantes-mestres (S 1) e do ruir, daí resultante, de alguns semblantes sustentados nos ideais do Eu [i(a)] e do Outro [I(A)] (Lacan, 1960b).

Esse tempo certamente exigirá do psicanalisante ter de se haver com a falta que lhe é inerente e que lhe foi estruturante a partir do significante que falta ao Outro [S( % )]. De modo que a angústia, principalmente quando despertada pela/na situação psicanalítica, tem sua importância, antes de tudo, pelo que ela pode promover, a duras penas, de abalo nas certezas construídas pelo Eu. Por isso, em seu ensino, Lacan (1962-1963/2005) a localiza entre o saber e a verdade, respectivamente entre o que o sujeito constrói/desconstrói como saber e o que ele suporta como verdade.

Antes disso, em Freud (1916-1917b/1980), à angústia já era atribuída uma dimensão que pressupunha uma economia libidinal, o ponto de vista econômico: não nos esqueçamos que a angústia é, segundo ele, o primeiro derivado da libido e a substância primária de todos os afetos e sentimentos - e que é para tentar contê-la ou mesmo dominá-la que o movimento de formação de sintomas (fóbicos, conversivos e obsessivos) é iniciado no aparelho psíquico (Freud, 1916-1917a/1980). Por essa característica básica é que a angústia é o afeto que não mente, que não engana (Lacan, 1962-1963/2005), enfim, que sinaliza (Freud, 1926/1980) a aproximação de alguma verdade insuportável ao sujeito - seja por estar recalcada (Verdrängung), seja por estar foracluída (Verwerfung).

Na sociedade, temos como exemplificar a falta/perda do objeto por meio do fenômeno/sentimento da saudade - já que esta nada mais faz do que tornar presente um objeto ausente em forma de afeto/sentimento. O objeto perdido retorna aí ao modo de saudade. A saudade seria ainda mais que o efeito de uma perda (vivida como real) que retorna a partir do Simbólico. Ela vem especialmente acompanhada da admissão da impossibilidade de retenção do objeto perdido. Presenciamos isso em diversas manifestações culturais, sobretudo na literatura romântica e na dor/satisfação do poeta e do artista. Na vida coloquial, a ausência do objeto amado/desejado se faz aí, portanto, cada vez mais e mais presente... e em forma de saudade. Contudo, quando a falta do objeto se faz presente em forma de saudade - com todo o romantismo e nostalgia aí denotados pelo modo de ser neurótico, ancorado na Metáfora Paterna -, ela o faz sustentando-se em um modo de ser padrão em que prevalece o senso comum: "ter saudades é sentir a falta de alguém ou de alguma coisa de valor, de importância subjetiva". E é claro que da dor decorrente dessa saudade pode-se fazer poesia, arte, depressão ou mesmo uma psicanálise. Portanto, do registro simbólico da falta chega-se à produção da saudade como sentimento social, ou seja, já firmado/socializado pela ação da Metáfora Paterna, todavia conotada com nuanças singularmente construídas a partir das contingências que marcaram a história de perdas - aqui chamada de currículo mortes - que marcaram um tempo de dor na vida do sujeito. Esse é o estatuto da saudade segundo o modo de ser neurótico, nitidamente marcado pela influência da Metáfora Paterna, ou seja, pela lógica/significação fálica: julga-se perdido o que foi tido como possuído, porque já tido sob o domínio do Eu.

A dor vivida pelo sujeito neurótico durante a experiência de saudade é ainda a forma de tornar presente o objeto perdido desde/para sempre. É por esse aspecto que o poeta se orgulha de fazer presente, como inspiração para a sua poesia, o objeto ausente no espaço, entretanto revivido/revitalizado na forma de memória de dor que retorna. O que foi tido como perdido retorna aí ao modo de relançamento e elevação da coisa à criação poética.

Fazer dessa dor poesia/saudade/lirismo ou mesmo uma invenção inédita são os dois destinos possíveis aqui abordados. Aproximamos o primeiro da lógica de funcionamento do sujeito neurótico, aquele em que a dor subjetiva é atribuída por ele próprio a alguma(s) perda(s): a dor subjetiva decorrente de algo vivido como já perdido (porque tido como possuído) e já passado (porque tido como eternamente sob a guarda do Eu). Vejamos agora por onde passa e como se dá a saudade na psicose.

 

Na psicose

Se na neurose o objeto a se faz presente como sinal de angústia ou em forma de sentimentos dela derivados, como exemplificado na saudade, na psicose a coisa é outra. A fenomenologia das psicoses - o estudo de suas manifestações e descrições - aponta não para um excesso da falta, da falta que invade, como ocorre na neurose, e sim para o contrário: para uma invasão pelo excesso de presença, excesso de gozo do Outro que a Metáfora Paterna não conteve e, por isso mesmo, não foi capaz de diluir nas redes do Simbólico. Portanto, devido à foraclusão do Nome-do-Pai na psicose, a falta factual do objeto é vivida pelo sujeito como presença invasora excessiva, inicialmente insuportável, em seu mundo psíquico e mesmo em seu corpo. Por isso a fórmula anteriormente mencionada para a saudade ("ter saudades é sentir a falta de alguém ou de alguma coisa de valor, de importância subjetiva") precisa sofrer uma torção quando a aplicamos à psicose ("ter saudades é sentir a presença excessiva de alguém ou de alguma coisa de valor, de importância subjetiva").

As alucinações verbais e os delírios de influência são evidências dessa experiência, chamada por Lacan (1955-1956/1985; 1960a/1988) de "vivência do corpo despedaçado". Se na neurose a angústia invade a partir de dentro e como experiência de excesso da falta, na psicose a angústia é vivida como invasão a partir de fora e como experiência de excesso de presença, excesso da presença do gozo do Outro. Com o Imaginário rompido, por efeito da foraclusão da Metáfora Paterna, o sujeito psicótico fica então exposto ao gozo do Outro, visto suas delimitações de interioridade/exterioridade terem ruído, ou sido seriamente abaladas. A presença excessiva do gozo do Outro é, por conseguinte, o lema lacaniano que aqui destacamos, com o acento voltado para a chamada "vivência do corpo despedaçado" (Lacan, 1955-1956/1985; 1960a/1988).

Excesso da falta, na neurose, e excesso da presença, na psicose, são, portanto, os dois modos lacanianos de abordar a perda da realidade, respectivamente, na neurose e na psicose (Freud, 1924a/1980; 1924b/1980). Para o neurótico, o que está recalcado a partir de dentro (do Simbólico) retorna a partir de dentro (no Simbólico). Suas dores da perda estão circunscritas à memória inconsciente estruturada como linguagem, por isso mesmo memória capaz de trazer em si mesma um enigma temporal e subjetivo, uma historicidade das perdas. Por isso, pressuposto que algo da dor neurótica sofreu uma cifração promovida pelo Nome-do-Pai, abre-se a perspectiva de que algo dessa dor possa ser decifrado, recordado ou remetido à memória inconsciente.

Já para a psicose, além da "queima dos arquivos históricos" (Quinet, 1997), nos valemos aqui da fórmula lacaniana: o que está foracluído (NP) a partir de dentro (do Simbólico) retorna a partir de fora (no Real). De modo que a vivência do corpo despedaçado e as alucinações verbais são, na psicose, além de sintomas elementares, o retorno daquilo que não se inscreveu sob a insígnia do Nome-do-Pai. Por isso, tais sintomas não trazem a conotação de um enigma-metáfora a ser decifrado, como na neurose, visto não ter havido aí a ação de cifração promovida pela Metáfora Paterna. O Inconsciente aí se manifesta a "céu aberto" (Lacan, 1955-1956/1985), sem os disfarces simbólicos (fálico-metafóricos). Por consequência, os sintomas psicóticos não são interpretáveis pelo sentido, sentido este sempre excessivamente metafórico, como o é na neurose.

Quanto ao delírio, justo por ser secundário em relação à invasão do gozo do Outro, ele já é uma tentativa de recuperação (Freud, 1911/1980, 1924a/1980; 1924b/1980), um modo singular de construir explicações/respostas próprias às suas experiências bizarras, incomuns, excêntricas. Ele não tem, portanto, valor de questão. Ele é, em essência, uma resposta do sujeito psicótico aos seus sintomas elementares (vivência do corpo despedaçado e alucinação verbal), um modo incomum de "subjetivização" realizado fora da lógica fálica sustentada pela Metáfora Paterna e que tenta conter o gozo do Outro. Por isso, a fala do psicótico tende mais para o lado da metonímia/deslocamento, como operação elementar, do que para o da metáfora/condensação, como ocorre na neurose. Ela se aproxima mais do realismo literário do que do romantismo (Jakobson, 1988). E isso nos esclarece por que o desejo na psicose é mais facilmente deslocado para quaisquer significantes - e não somente para as formas-padrão consagradas/instituídas pela Metáfora Paterna, o que levou Lacan (1975-1976/2007) a dizer que o psicótico anda com o objeto a a tiracolo.

No entanto, mesmo seus sintomas elementares não sendo estruturados como linguagem (metafórica) - justamente por não trazerem a "enigmaticidade" cifrada característica/típica dos sintomas neuróticos -, o sujeito psicótico não deixa de tentar criar uma metáfora própria (delirante) que os contenha/explique, ou seja, que torne o gozo absoluto do Outro um tanto relativo. O delírio é, por isso mesmo, um modo singular de construção do que estaria foracluído do Simbólico - de fazer existir o que não há, a inscrição do Nome-do-Pai. E secretariar o sujeito psicótico na construção do que não se inscreveu é o grande fundamento da clínica que se anunciou em Lacan como "clínica psicanalítica da psicose", ou seja, da clínica que exige do psicanalista o abandono radical de seus próprios valores fálicos enquanto escuta esse sujeito que tenta se reconstruir ou mesmo se inventar fora dos standards sociais.

Ao retomar as fórmulas lacanianas, agora elas se esclarecem: na neurose, o que fora recalcado no Simbólico retorna a partir do Simbólico ao modo de formações do inconsciente (Lacan, 1957-1958/1999); na psicose, o que fora foracluído do Simbólico retorna a partir do Real ao modo de vivência do corpo despedaçado, alucinações verbais e, por fim, no delírio, verdadeira tentativa de recuperação do laço social/discurso inexistente.

 

Uma ilustração: a saudade na neurose e na psicose

Quando abordamos aqui a saudade como fenômeno vivido ao modo cotidiano/neurótico, não quisemos com isso dar a dizer que o sujeito psicótico não tem ou não sente saudades. Pelo contrário, quisemos apenas destacar, mais do que um modo singular de vivê-la (aparentemente tido pelos psiquiatras como embotamento afetivo), o desvelamento da própria estrutura/topologia da saudade em seu paradoxo ou avesso: excesso da falta do objeto do que já foi tido um dia como excesso de presença ou de influência. De modo que podemos considerar a saudade não somente pelo que falta, mas, e antes de tudo, pelo que excede e se manifesta como presença do gozo do Outro. Gozo este que se faz presente na base do sujeito, em termos de desejo da mãe (DM), antes mesmo que pudesse ser vivido pelo seu avesso, qual seja, o excesso da falta decorrente da Metáfora Paterna.

Freud (1924a/1980; 1924b/1980) nos disse que quando a perda da realidade psíquica tende para a neurose isso ocorre ao modo de vazão/escoamento da libido para a via sintomática, via esta aberta pela Metáfora Paterna que subordina o sintoma a estruturar-se como linguagem (simbolismo). Pelo viés da vazão libidinal ou ponto de vista econômico, haveria então desperdício da libido, já que ela fora desviada de sua finalidade imediata para ser empregada na criação e manutenção do sintoma sob o agenciamento da Metáfora Paterna.

O sintoma neurótico, portanto, já se apresenta na obra freudiana, segundo a leitura lacaniana, como ponto em que se amarram alguns elementos e dimensões:

1) A dimensão em que a libido vaza, ou seja, em que as pulsões sexuais (elementos), inclusive as masoquista e de morte, aí se realizam, subterraneamente, ao modo de gozo. O Real.

2) A dimensão em que a libido desliza pelos desfiladeiros do significante (elementos) sob os auspícios do Nome-do-Pai e como modo de evitação da angústia: o sintoma como metáfora. O Simbólico.

3) A dimensão que fornece formas (elementos) antropomórficas e narcísicas - o chamado por Lacan "envelope formal" - ao núcleo do sintoma e das demais formações do inconsciente. O Imaginário.

4) A dimensão mostrada por meio do nó borromeano de quatro anéis (Lacan, 1975-1976/2007), inovação lacaniana que nos diz do sintoma como elemento de amarração dos três registros (RSI), seja na neurose, seja na psicose. O sinthoma.

Já quando a perda da realidade psíquica tende para a psicose, a libido - por não se diluir nas vias significantes abertas pelo Nome-do-Pai, foracluído aí para/desde sempre - vaza diretamente no sintoma, principalmente nas sensações de estranheza e de despedaçamento do corpo, ou seja, de despedaçamento da unidade corporal e subjetiva, e ainda nas alucinações verbais.

Essas vivências sintomáticas podem vir, portanto, acompanhadas da presença de delírios, ponto esse sobre o qual, como vimos, Freud insistiu já ser uma tentativa, aberta no/pelo próprio sujeito, de tratamento, de cura. O delírio é, portanto - justo por não dispensar a linguagem como material/meio de sua construção -, uma tentativa autocrática de explicar, com todo o rigor, os sintomas elementares vividos pelo sujeito psicótico. Além de o delírio nos parecer ser uma criação secundária em relação aos sintomas elementares, justo porque tenta explicá-los fazendo uso da linguagem, não é raro ele ser endereçado ao Outro. Afinal, quem delira delira alguma coisa e, não raro, a comunica a alguém. Daí o tratamento psicanalítico possível da psicose apoiar-se, muitas das vezes, na (re)construção já iniciada pelo delírio.

Podemos ainda, por consequência do ponto de vista econômico, entender o delírio como uma tentativa própria de conter a vazão libidinal em ação nos fenômenos elementares, principalmente a libido das pulsões autoeróticas e narcisistas. O que levou Freud (1911/1980; 1922/1980) a afirmar, em se tratando do paranoico, que ele tem com o seu perseguidor primeiro (igual e rival) uma profunda relação de amor. Ou mesmo a asseverar que os psicóticos amam os seus sintomas tanto quanto ou mais do que amam a si mesmos. Suas produções sintomáticas têm para eles valor de espelhamento subjetivo, de espelho sobre o qual se reflete seu modo próprio de viver e de reconstruir, inventando singularmente: o mundo, o sujeito, o nome próprio, o corpo e o sexo. Enfim, de inventar/escrever/amarrar a partir da metáfora paterna inexistente, não inscrita.

Por esse aspecto, ou seja, por ser uma tentativa de ponto de basta, o delírio se mostra então como um ponto de partida autocinético com o qual o sujeito se envolve intensamente em sua construção, evolução e estabilização. Se o delírio, portanto, "presentifica" o objeto a na linguagem - sem tanto metaforizá-lo, como ocorre na neurose, e sim predominantemente "metonimizando-o" -, isso certamente abre a perspectiva de um tratamento psicanalítico possível, porém diferenciado, da psicose. Por isso extraímos e destacamos a seguinte lição do ensino de Lacan: não devemos tentar inserir no sujeito psicótico a metáfora inexistente (NP 0) e sim secretariá-lo na já iniciada edificação de uma metáfora própria (delirante) que, não obstante ser autocêntrica, não dispensa a linguagem.

Portanto, o estatuto da saudade é diferente na neurose e na psicose. Se na primeira há o esvaziamento do gozo do Outro por meio da significação fálica aberta pela Metáfora Paterna - aqui ilustrada pela nostalgia inerente ao estilo literário de época chamado "romantismo" -, na segunda a ênfase recai sobre a atualidade viva do acontecimento, aí tornado presença ao modo de vivência do corpo despedaçado e de alucinação verbal. Com o psicótico, então, aprendemos a considerar o que seria o avesso do sentimento de saudade: a falta/foraclusão vivida como excesso da presença (gozo) vinda de fora, ou seja, vinda do Outro como manifestação do Real (daí a expressão "gozo do Outro").

 

O objeto a e o desejo do psicanalista

Ao comparar o discurso lógico - mais especificamente o matemático - ao discurso psicanalítico, Lacan (1968-1969/2008) nos estimulou a fazer uma leitura topológica que parta daquilo que nos interessa aqui: a presença do objeto a nos diferentes modos de ser subjetivos, nitidamente na neurose e na psicose. Aqui, não se trata de fazer mera distinção diagnóstica estereotipada das chamadas estruturas clínicas e sim de extrair, do ensino de Lacan, algumas coordenadas e diretrizes para o tratamento diferenciado das mesmas. Isso não significa que elas nada tenham em comum. Pareceu-nos até mesmo, pelo exame da saudade, que a neurose e a psicose mantêm entre si uma relação de inversão lógica, mais especificamente de continuidade topológica entre interior e exterior. Uma estrutura topológica a nos revelar um modo de ser/estar que é o "inverso contínuo" da outra.

Sobre o desejo do psicanalista, sabemos que a impossibilidade de definição do que seja o psicanalista não impediu Lacan de abordá-la por meio de três escritas específicas: a aforística, a algébrica e a topológica. Praticamente todas as referências de Lacan ao objeto a são tentativas de delimitação do que seria o lugar do psicanalista. A esse respeito, "ocupar legitimamente a posição do semblante de objeto a" é certamente sua formulação aforística mais conhecida (Lacan, 1971-1972b). Sobre esse objeto, Lacan, ao compará-lo ao agalma platônico, diz ser ele insólito (Lacan, 1960-1961a/1992), oco, "hiância", lugar da falta, do vazio necessário à criação, manutenção e funcionamento de toda estrutura subjetiva.

A expressão desejo do psicanalista, mesmo não compondo o título de qualquer seminário ou escrito lacaniano, aparece esparsamente em seu ensino - na verdade ela insiste principalmente a partir do seminário dedicado aos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964/1979). As ênfases dadas ao desejo, sempre fundado na falta, e ao corte, como modo de apontá-la na relação com o desejo do Outro, compõem então, como vimos, o ponto/eixo em torno do qual gira o desejo do psicanalista. É em torno desse desejo que Lacan (1959-1960/1988) estabelece algumas coordenadas éticas da psicanálise - no Seminário 7: a ética da psicanálise -, localizando-o para-além do desejo do Outro e caracterizando-o, mais adiante em seu ensino, como advertido (Lacan, 1964/1979; 1971-1972a). O desejo do psicanalista é, assim, diferentemente do desejo do Outro, desejo advertido, já que pressupõe, para o psicanalista, a posição de objeto da transferência.

Que se pode dizer, contudo, do emprego desse adjetivo, advertido, para caracterizar o desejo do psicanalista? Certamente tal desejo deve ser entendido como o que restou/resultou da destituição subjetiva promovida pela/na psicanálise em intensão. É possível, ainda, pensá-lo como advertido porque atravessado pelos enganos e desenganos vividos na situação de transferência através de seu pivô, o sujeito suposto saber.

A formação do psicanalista exige que ele saiba, no processo em que conduz seu paciente, em torno do quê o movimento gira. Ele deve saber, a ele deve ser transmitido, e numa experiência, aquilo de que ele retorna. Esse ponto-eixo, é o que eu designo - de um modo que, penso, lhes parece já suficientemente motivado, mas que, espero, à medida do nosso progresso, lhes parecerá cada vez mais claro, cada vez mais necessário - é o que designo pelo nome de desejo do psicanalista (Lacan, 1964/1979, p. 218-219).

Postulamos, de início, que essa expressão, o desejo do psicanalista, é muito mais que uma nomeação teórica e conceitual em tal ensino - ela é uma importante coordenada ética (Castro, 2013a; 2013b). Afinal, em seu ensino, Lacan destacou que a transmissão em psicanálise envolve necessariamente a presença do objeto a como o elemento a-semântico e a-conceitual do qual o psicanalista inicialmente "faz semblante". Ter atribuído um lugar vazio - uma vacuidade conceitual - a esse objeto (a) foi, portanto, a via de transmissão ética adotada por Lacan. Para tal, ele recorreu à álgebra para nomeá-lo (objeto a) e à topologia para mostrá-lo. Nomeação do Real, por recurso à lógica algébrica, portanto, e mostração do Real, por recurso à topologia.

Essa expressão, desejo do psicanalista, tem sua primeira aparição no ensino de Lacan no Seminário 6: o desejo e sua interpretação (Lacan, 1958-1959) - mais especificamente na lição de 01/07/1959. Tal referência surge em uma situação de ensino em que Lacan põe frente a frente o desejo (como desejo do Outro) e o desejo do psicanalista.

O problema da análise é justamente o desejo que o sujeito tem por reencontrar, que é este desejo do Outro, nosso desejo, este desejo que está presente somente no que o sujeito supõe que o demandamos, este desejo se encontra numa situação paradoxal... Como pode esta situação ser sustentada? Ela não pode ser seguramente sustentada senão por meio da manutenção de um artifício que faz parte de toda a regra analítica [...]. O essencial da análise dessa situação em que nos encontramos é ser aquele (o analista) que se oferece como suporte para todas as demandas e que não responde a nenhuma (Lacan, 1959-1960, Lição 27 de 01//07/1959).

A importância dada ao desejo, como fundado na falta, e ao corte, como modo de apontá-la na relação com o desejo do Outro, são então termos que compõem o ponto/eixo denominado por Lacan de desejo do psicanalista, ponto esse em torno do qual Lacan já estabelece algumas coordenadas éticas da psicanálise. Esse desejo, do psicanalista, Lacan - no Seminário 7: a ética da psicanálise (Lacan, 1959-1960/1988) - o localizou para-além do desejo do Outro, justamente por ser ele advertido. Para Lacan, portanto, o desejo do psicanalista é, diferentemente do desejo do Outro, tido como advertido. Ele atribui assim uma posição de objeto, porém diferenciada, ao lugar do psicanalista. O desejo do psicanalista é, por conseguinte, desde o início do ensino de Lacan, situado como um ponto-pivô, ponto-eixo em torno do qual deveria girar a ética da psicanálise.

Já nos Seminários 9: A identificação (Lacan, 1960-1961b) e 12: Problemas cruciais para a psicanálise (Lacan, 1964-1965), referindo-se à identificação, Lacan faz um longo percurso para contrapô-la, a identificação, ao desejo do psicanalista. O contexto do qual se serve para realizar tal contraposição é o tratamento psicanalítico. Lacan, nessa época, estava envolvido em denunciar os desvios da prática psicanalítica, principalmente os desvios que se sustentavam na premissa de que o psicanalista deveria ser um suporte identificatório para os seus psicanalisandos. Oferecer-se como Ideal ao Eu do psicanalisando era, então, o lema de uma prática que ficou conhecida como Psicologia do Eu - prática essa que sustentava o que deveria ser o final de todo e qualquer tratamento psicanalítico: a identificação do psicanalisando ao psicanalista. Foi, destarte, para se contrapor a essa concepção do que seria o final de análise que Lacan cunhou o desejo do psicanalista. Reler a pulsão freudiana como um conceito fundamental da psicanálise, desvinculando-o de vez de qualquer leitura "biologizante" (Lacan, 1964/1979), fez parte da estratégia lacaniana na denúncia desses desvios - já que a Psicologia do Eu propunha a existência de um tipo de amor, chamado de genital, pressuposto no conceito de pulsão genital. Levar o sujeito em análise ao amor genital - servindo-se para tal da identificação ao "Eu forte do psicanalista" - era, portanto, uma concepção de cura que exigia a retomada dos princípios éticos freudianos que deveriam nortear a ação do psicanalista: daí a importância da criação do desejo do psicanalista. Desejo este que, ao lado da política da falta-a-ser (Lacan, 1958/1998), faria oposição a todo e qualquer tratamento ancorado na identificação ao psicanalista.

O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar (sic) a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver (Lacan, 1964/1979, p. 260).

Com essas palavras Lacan encerra o Seminário dedicado aos quatro conceitos fundamentais da psicanálise ao apontar para a produção do significante primordial - a ser chamado posteriormente de significante-mestre (S 1 ) - e para o objeto a como fundamento do "amor sem limite", ou seja, como objeto em junção com campo do Outro e em disjunção com o campo do gozo.

 

O desejo do psicanalista na neurose e na psicose

As diferenças tópicas entre esses dois modos de ser, a neurose e a psicose, têm a função de estabelecer, para o psicanalista, modos de proceder distintos quanto à direção do tratamento de um e de outro. Entretanto, o desejo do psicanalista, sempre sustentado na política da falta-a-ser, se desdobra, na condução do tratamento da neurose, ao modo de sustentação da "falta-a-desejar" (o desejo) e, na condução do tratamento da psicose, ao modo de (de)limitação da "presença-que-invade" (o gozo do Outro). Esse corolário está - conforme visto anteriormente ilustrado no fenômeno da saudade - fundamentado no argumento topológico que nos mostra tanto a ligação do interior com o exterior quanto e, mais especificamente, do direito com o avesso de algumas figuras topológicas uniláteras (na verdade a-láteras) mencionadas por Lacan em vários momentos de seu ensino: o cross-cap e a Garrafa de Klein (Lacan, 1968-1969/2008) como desdobramentos da Banda de Möebius.

 

Figura 1 : cross-cap

 

Figura 2 : Garrafa de Klein

Sabemos que Lacan as empregou em seu ensino ora para se referir ao sujeito, ora ao fantasma e ora como furo no Outro (inconsistente) causado pelo objeto a (consistente), principalmente por serem superfícies não orientáveis, ou seja, sem fronteira ou delimitação possível entre interior e exterior e, mais ainda, por serem superfícies uniláteras que nos forçam a fazer apelo a uma quarta dimensão possível na apreensão do espaço e, assim sendo, a não nos deixarmos levar pelo antropomorfismo (ou imagem narcísica) que contamina e limita a percepção humana (Lacan, 1968-1969/2008). Contudo, nós as empregamos aqui unicamente com a intenção de demarcação do desejo do psicanalista na direção do tratamento na neurose e na psicose.

Na saudade neurótica o sujeito é ainda privado da presença do objeto perdido, objeto esse parcialmente diluído nas redes significantes abertas pela Metáfora Paterna. O Eu neurótico busca desinvertir-se da memória daquilo que foi tido como perdido, preservando em si mesmo, por identificação, um traço do objeto perdido e, daí, a consequente consumação do luto caracterizada pelo relançamento da causa-do-desejo em novos objetos de amor (Freud, 1917/1980). Portanto, após o trabalho de luto ter findado, o objeto perdido é aí recuperado por meio da identificação/incorporação ao Eu de um traço atribuído ao objeto, e o desejo de "amar de novo" é recuperado. Em síntese, esse é o processo do luto neurótico, chamado de "normal", por Freud, ao contrapô-lo ao luto "patológico" e à "melancolia".

Já na psicose, temos de pensar o luto pelo avesso, já que não haveria aí privação da presença do objeto, muito antes pelo contrário, sua presença é real e, não raras vezes, vivida como invasiva, como gozo do Outro, como saudade que invade a partir de fora e como presença viva do gozo do Outro. O furo - mostrado nas figuras do cross-cap e da Garrafa de Klein como superfícies que quebram a dicotomia dentro/fora - se mostra, na psicose, como evidência pura. Ele nos mostra nossa origem subjetiva a partir da necessária subordinação inicial ao desejo do Outro, ao campo do Outro. A psicose nos força, portanto, a pensar na anterioridade e na exterioridade originária da linguagem humana, ou seja, na imposição do campo do Outro na formação do sujeito. Entretanto, devido à foraclusão da Metáfora Paterna, temos a chance de levar em conta o furo que o objeto a causa no Outro e assim demonstrar a inconsistência lógica deste último. Afinal, para o sujeito psicótico as antíteses da língua são viradas e reviradas pelo avesso. Por estar mais próximo do real pulsional, ele nos mostra algo acerca da impossibilidade de abarcamento do Real pelo Simbólico, convidando-nos a escutá-lo fora da lógica biunívoca/dicotômica/fálica. Ele, portanto, põe a descoberto, e assim nos dá a ver, a presença viva do objeto a como efeito metonímico da foraclusão da Metáfora Paterna.

Temos aí a impressão de que o seu modo de ser contesta radicalmente a ideia que comumente fazemos do sujeito normal como um ser estável, coerente e, antes de tudo, delimitado. Além disso, temos ainda a mostração, feita por esse mesmo sujeito, de que as antíteses, a começar da antítese interior/exterior, se encontram em algum lugar - chamado por Lacan de furo no Outro causado pelo objeto a e ilustrado por meio das figuras do cross-cap e da Garrafa de Klein (Lacan, 1968-1969/2008).

Outra diferença elementar, digna de nota, entre esses dois modos de ser, a neurose e a psicose, diz respeito ao estatuto do sintoma. O sintoma neurótico costuma - para além de um modo de gozo ou de satisfação/vazão tácita da libido (o ponto de vista econômico) - trazer em si mesmo, devido à influência da Metáfora Paterna, algo de enigma. Em seu primeiro ensino Lacan se referia a isso nos seguintes termos: "O sintoma é uma metáfora"; ou mesmo: "O sintoma é uma questão". Por esse viés, entendemos que o sintoma neurótico tem estatuto de ser uma pergunta (recalcada) do sujeito que, por mais que passe e até mesmo dependa do campo do Outro para ser formulada, se endereça a ele próprio. O sintoma neurótico é, por isso mesmo, devido à significação fálica, uma produção em que uma brecha aberta pela Metáfora Paterna nos aponta alguma forma possível de implicação do sujeito, momento em que o sintoma passaria de "sintoma comum" a "sintoma analítico". Por isso mesmo, na condução do tratamento do neurótico, o desejo do psicanalista, principalmente por meio de retificações iniciais, pretende a necessária implicação do sujeito em seu sintoma. Pois o efeito dessa implicação, como sabemos, é a "histerização" do discurso, única via de entrada no processo psicanalítico. De modo que "histerizar" o discurso e subjetivar o sintoma são o direito e o avesso de um mesmo fenômeno, por nós chamado de "entrada em análise". Desse modo, na neurose o sintoma - assim como as demais formações do inconsciente [os sonhos, os chistes e os atos falhos (Lacan, 1957-1958/1999) - se estrutura como linguagem marcada pela Metáfora Paterna, com toda a carga de simbolismo daí derivada. Por conseguinte, o sintoma na neurose, uma vez marcado pela Metáfora Paterna, traz em si a abertura de perspectiva ao sentido, devido a sua subordinação à significação fálica.

Quanto ao sintoma na psicose, Lacan (1955-1956/1985) insiste em tomá-lo como fora de qualquer compreensão ou interpretação pelo sentido. Ele é fora-do-comum, mais especificamente fora-do-sentido. Daí a dica lacaniana de jamais tentar compreender o psicótico, pois isso só o faria calar-se. Portanto, o sintoma na psicose, devido à foraclusão do Nome-do-Pai e à inexistência de funcionamento na significação fálica, não é uma questão/metáfora. Pelo contrário, ele deve ser tomado, antes de tudo, como uma tentativa de recuperação, de cura. Principalmente as produções delirantes, que já são tentativas rigorosas de estabelecer algum sentido e amarração próprios onde não há. De modo que, no tratamento do sujeito psicótico, a função de interpretar não cabe ao psicanalista e sim ao delírio. Se o delírio interpreta, o psicanalista secretaria, ou seja, se deixa levar por uma construção na qual funciona como mestre de obras que subsidia o sujeito-construtor. Logo, diferentemente do sintoma na neurose, o delírio psicótico tem valor de resposta do sujeito à vivência do corpo despedaçado e às alucinações verbais; enfim, de respostas ao desmoronamento do mundo subjetivo vivido no momento do surto.

Uma vez advertido sobre algumas diferenças elementares entre esses dois modos de ser - e sobre seus desdobramentos na direção do tratamento -, não podemos ainda deixar de ressaltar que Lacan aprendeu com os psicóticos várias coisas. Naquilo que nos interessa aqui, principalmente atribuir ao desejo do psicanalista - enquanto função/suporte do objeto a - as características de atopia e extraterritorialidade que, como vimos, marcam as vivências psicóticas. Essas duas características são condizentes não somente ao desejo em si, mas, mais ainda, ao desejo do psicanalista. Elas marcam tal desejo a partir da falta como princípio político inerente à ética da psicanálise, princípio este sobre o qual o psicanalista se apoia para direcionar a cura. Contudo, de modo diverso na neurose e na psicose.

Na neurose, a falta se exerce politicamente pelo psicanalista sobre o princípio ético que "deixa o sujeito a desejar", sem nada desejar por ele e para ele - é a tal "regra de abstinência", feita por Freud para conter o psicanalista em sua ânsia de atender as demandas do psicanalisante e, sobretudo, em sua ânsia de fazer valer ali seus próprios ideais.

Já na psicose a direção é outra: "deixar o sujeito a delirar", secretariando-o na invenção de uma amarração própria de sua estrutura subjetiva. Isso exigirá do psicanalista um esforço de escuta desmetaforizada da fala produzida por esse sujeito, uma escuta quase literal submetida, antes de tudo, à fala delirante como meio de reconstrução do mundo subjetivo.

Em ambos os casos, trata-se da mesma política, a da falta-a-ser, porém, por respeito ao modo de ser de cada sujeito bem como à direção do tratamento, com nuanças diferenciadas. Numa evidência de que os opostos, mesmo em se tratando dos modos de ser e de gozar subjetivos, se encontraram em algum lugar/furo elementar.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 01/10/2015
Aprovado para publicação em: 17/12/2015

 

 

*Psicanalista; professor/pesquisador da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ); membro do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise (NUPEP/UFSJ); graduação e especialização em Psicologia pela PUC-Minas (1980); mestrado em Educação pela PUC-Rio (2000); doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2006); pós-doutorado em Psicologia pela PUC-Minas (2012).