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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

De palavras e inconsciente: a função da linguagem na origem da psicanálise

 

From words and unconscious: the role of language in the origins of psychoanalysis

 

 

André Oliveira Costa*

Universidade de São Paulo - USP - Brasil

 

 


RESUMO

Através do estudo sobre o campo da linguagem Freud iniciou as investigações sobre os fenômenos inconscientes. Mas, antes de ingressar nas pesquisas metapsicológicas, o percurso de Freud começou com o trabalho sobre o transtorno das afasias. Nosso objetivo é demonstrar, analisando os textos iniciais de Freud, de que forma o posicionamento teórico que adotou para o campo da neurologia não apenas se manteve presente, mas foi fundamental para o desenvolvimento de sua teoria sobre os sintomas psíquicos. Nesse sentido, nossa hipótese de investigação é que há um deslocamento da função da linguagem do campo anatômico para os processos mentais.

Palavras-chave: linguagem, inconsciente, afasias, psicanálise.


ABSTRACT

Through the study of the field of language Freud began the investigations into the unconscious phenomena. But before he develops the metapsychological research, the route of Freud began with working on the disorder of aphasia. The purpose of this article is to demonstrate by analyzing the leading texts of Freud, how the theoretical position he took into the field of neurology, not only remained present, but was essential to the development of his theory of the psychic symptoms. In this sense, our research hypothesis is that there is a displacement of the language's function from the anatomical field to the mental processes.

Keywords: language, unconscious, aphasia, psychoanalysis.


 

 

A monografia Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, escrita por Freud em 1891, não é apenas um ponto de ruptura em sua trajetória como neurologista, na medida em que ela se propõe a romper com "as melhores cabeças da Neuropatologia alemã e estrangeira" (Freud, 1891a/2013, p. 17), mas também o ponto de partida para a elaboração de conceitos e ideias de uma futura teoria psicanalítica. Esse trabalho marca a condição de estrangeiro de Freud, tal como acontece ao longo de toda sua produção: estrangeiro para a neurologia ao propor uma nova compreensão das patologias da linguagem; estrangeiro para a medicina ao escutar os sintomas histéricos como formações do inconsciente; estrangeiro para os judeus, quando se proclama um ateu; estrangeiro para a própria psicanálise, quando busca na arte, na filosofia, na antropologia e na literatura bases para seu pensamento, mas principalmente por não se restringir às formulações que ele próprio construiu, buscando constantemente novas hipóteses.

Em maio de 1883, Freud foi nomeado médico secundário em clínica geral no setor de Theodor Hermann Meynert (1833-1892), na Universidade de Viena, o que lhe possibilitou obter permissão para trabalhar em seu laboratório. Durante 14 meses, do verão de 1883 ao de 1885, se dedicou à pesquisa sobre a histologia do sistema nervoso. Nesse mesmo período, sob orientação de outro importante neurologista, Ernst Wilhelm von Brücke (1819-1892), também pesquisava as células da medula do sistema nervoso central, interessado especialmente nos desenvolvimentos ontogenético e filogenético dessa estrutura. Mas foi Meynert quem mais influenciou as pesquisas de Freud, chegando a ser um grande amigo - até o rompimento da relação em 1886.

A causa da separação foi a transformação de pensamento do futuro pai da psicanálise. Foi no período Meynert que Freud viajou a Paris para visitar o maior neurologista da época, Jean-Martin Charcot (1825-1893), que trabalhava no Hospital La Salpêtrière. Durante quatro meses e meio, do dia 13 de outubro de 1885 a 28 de fevereiro de 1886, com quase 30 anos de idade, Freud acompanhou essa grande personalidade, afável, benévolo, espirituoso, cuja disposição e dedicação ao ensino criava seitas de alunos. Mas a forma como ele conseguiu ultrapassar a barreira que o séquito de alunos formava contra os estrangeiros foi disponibilizando-se a continuar as traduções para o alemão das suas famosas Lições de terça-feira. Assim, foi justamente do lugar de quem era de fora que Freud conseguiu entrar no círculo íntimo do mestre francês. Charcot não apenas aceitou o pedido como lhe passou inclusive textos inéditos. E Freud, radiante com a possibilidade da aproximação, finalizou a tradução tão rapidamente a ponto que a publicação em alemão saiu meses antes da publicação dos originais em francês.

A passagem por Paris foi uma experiência transformadora tanto para Freud quanto para o destino de suas pesquisas. Até o momento de ir para a capital francesa, o interesse de Freud se direcionava mais às pesquisas anatômicas do sistema nervoso do que à clínica neurológica. Foi Charcot quem, através das apresentações de pacientes, injetou o fascínio pela psicopatologia e pela clínica das neuroses, especialmente da histeria. Com essa bagagem, Freud retornou a Viena, em fevereiro de 1886. Contudo, durante os cinco anos seguintes, sua dedicação voltou-se para o trabalho clínico, para a família e sua noiva Martha, para a tradução das obras de Charcot e Hyppolite Bernheim (ao todo quatro volumes com cerca de 400 páginas cada sobre assuntos como hipnotismo, sugestão, psicoterapia, etc.) e à publicação de apenas um artigo de sua autoria, em 1888, sobre paralisia cerebral infantil.

Até que, em 1891, Freud consegue publicar seu primeiro livro, Sobre a concepção das afasias, um assunto sobre o qual já havia feito palestras no Clube de Fisiologia de Viena, em 1896, e que tinha planejado apresentar na Universidade, em 1897, fato que não aconteceu. Também se credita a Freud a autoria do verbete sobre as afasias publicado na Enciclopédia de Villaret.

Ernest Jones é um dos autores que concorda que Sobre a concepção das afasias não apenas foi um avanço nas pesquisas no campo da neurologia, mas também o ponto inicial para os futuros trabalhos psicanalíticos:

trata-se do primeiro autêntico vislumbre que temos do Freud de anos vindouros. Possui o raciocínio cerrado, a lucidez, a argumentação persuasiva e desencadeadora de pensamento, a discussão imparcial de objeções e a notável capacidade de ordenação de seu material que se tornaram tão característicos de seus textos (Jones, 1953/1989, p. 221).

Freud, com 35 anos de idade, já não é mais um estudante, mas um experiente neurologista que fala com seus mestres como um igual. Entretanto, esse trabalho crítico aos neurologistas mais importantes da época, no qual vai contra as teorias estabelecidas e apresenta uma nova proposta sobre os distúrbios de linguagem, não recebeu a repercussão merecida. Dos 850 exemplares impressos, foram vendidos 257 ao longo de nove anos.

A aproximação de Freud com Charcot levou ao rompimento da relação com seu professor Meynert, que acreditava que as causas das paralisias histéricas poderiam ser descritas através da explicação anatômica. Nesse sentido, Sobre a concepção das afasias mostra esse espírito transgressor próprio de Freud e da psicanálise. Nele, encontramos ideias que rompem com concepções estabelecidas, dentre as quais a da continuidade entre a periferia e o cérebro, mostrando que a projeção do mundo externo se faz por representações. Além disso, certas ideias repercutem em textos posteriores, como a forma de representar o funcionamento do aparelho psíquico através de esquemas gráficos e a pressuposição de que os processos psíquicos ocorrem através de representações e associações. Essa pesquisa de Freud também já indica sua posição de estreitar a separação entre os processos do funcionamento psíquico normais e os patológicos.

Achando insuficientes as teorias neurológicas que explicavam as afasias como problemas de linguagem, Freud descarta a teoria localizacionista para compreender sua causa através dos transtornos de ordem funcional. Assim, elabora, em substituição à hipótese da localização cerebral específica do distúrbio, um aparelho de linguagem (Sprachapparat) formado por uma rede de associações de elementos que propõem uma nova compreensão sobre os distúrbios das afasias. Na referida monografia, uma das mais importantes contribuições de Freud - mesmo às pesquisas médicas - foi ter substituído a noção de projeção, utilizada pelas teorias localizacionistas, pela de representação (Vorstellung). Isso significa que o indivíduo não poderia fazer o registro do mundo exatamente tal como ele é percebido pelos sentidos, na medida em que, em sua trajetória de inscrição, as impressões sensíveis sofrem modificações de diversas ordens.

Freud, como veremos, se mostra, no texto Sobre a concepção das afasias, um pensador com bases empíricas e associacionista. Mas isso não o faz crer na capacidade de representação real do mundo. Considerar o aparelho de linguagem formado por representações e associações indica uma continuidade de pensamento ao longo de sua obra, pois a teoria psicanalítica que elabora anos mais tarde é, de certo modo, tributária desse estudo sobre as afasias. Entretanto, uma diferença se apresenta como fundamental entre um e outro. Trata-se da elaboração do processo econômico, isto é, das energias e dos afetos que circulam nos diversos fenômenos psíquicos - representados pela ideia de sexualidade -, que se encontram ausentes na elaboração deste estudo de 1891. De qualquer forma, essas e outras ideias não impedem de projetarmos uma sincronia nas pesquisas de Freud que levaram ao estabelecimento de sua teoria das pulsões. Elas mostram que, apesar de escrito sob uma diferente perspectiva, isto é, a pesquisa neurológica, o estudo sobre as afasias mantém uma estreita relação com os textos metapsicológicos. Nele, portanto, encontramos germens para alguns conceitos que Freud irá trabalhar até o final de sua obra.

 

Sobre as teorias localizacionistas e a proposta de uma teoria funcional

A respeito de Sobre a concepção das afasias, Freud expressa sua opinião para seu amigo Fliess em carta de 2 de maio de 1891: "Nele, sou muito despudorado, teço armas com seu amigo Wernicke, com Lichtheim e Graschey, e chego até a arranhar o poderosíssimo ídolo Meynert" (Freud, 1891b/1986, p. 28). Escrito na forma de uma monografia, esse trabalho foi realizado no campo da anatomia do sistema nervoso e da neurologia, produzindo em Freud muita satisfação por atingir, senão completamente, pelo menos de raspão, as principais concepções da neurologia vigentes em sua época. Nessa mesma carta, ele afirma que "o artigo, aliás, é mais sugestivo do que conclusivo" (Freud, 1891b/1986, p. 28), mostrando que sua principal tarefa era mais romper com o saber de seus mestres e com a neurologia mecanicista através de uma leitura crítica, apesar de também introduzir novas observações pessoais.

Nas primeiras frases do texto, Freud define imediatamente em quais aspectos acredita poder dar alguma contribuição para o entendimento dos problemas de linguagem - o que é feito através de algumas objeções às teorias de importantes neurologistas de sua época. A primeira dessas críticas refere-se à distinção entre as afasias causadas pela destruição dos centros e as afasias causadas pela destruição das vias que os conectam. A segunda premissa que Freud pretende atacar, adotada principalmente por Carl Wernicke (1848-1905), trata da relação topográfica entre os centros individuais da linguagem e a anatomia. Essa crítica volta-se à ideia da localização anatômica das funções nervosas em áreas específicas.

A teoria das localizações cerebrais começa em 1861 com o estudo de Paul Broca (1824-1880) chamado Sobre a sede da faculdade da linguagem articulada e duas observações da afemia, que concluiu que uma lesão na terceira circunvolução frontal provocava a perda completa ou parcial da linguagem articulada, mantendo preservadas as outras funções da linguagem e do intelecto. Treze anos mais tarde, Wernicke, em seu estudo Complexo sintomático das afasias, descreveu outro transtorno da linguagem que refere a perda da compreensão mantendo intacta a linguagem articulada. A atribuição desse transtorno a uma lesão na primeira circunvolução temporal dividiu os centros da linguagem em duas áreas cerebrais: a área de Broca (motora) e a área de Wernicke (perceptiva).

As ideias de Wernicke são de fundamental importância para toda a teoria da localização. A partir delas se abriu a perspectiva de correlacionar os distúrbios de linguagem observados na prática clínica com localização das lesões cerebrais. Entretanto, Wernicke negou a possibilidade de estender os centros de localização cerebrais a todas as funções psíquicas. Para ele, essa teoria só poderia ser aplicada às funções mais elementares, enquanto que as funções psíquicas mais complexas só poderiam realizar-se nos sistemas associativos que conectam as partes do cérebro, não sendo possível localizá-las em uma área determinada.

Segundo Freud, os estímulos sensoriais que chegam ao cérebro deixam atrás de si "impressões duradouras, cada uma delas - na concepção de Wernicke - retida numa célula diferente" (Freud, 1891a/2013, p. 20). Essas impressões originadas do mundo externo chegam ao córtex cerebral sem nenhuma interferência. Trata-se de locais de armazenamento formados por imagens da lembrança. Para Wernicke, segundo Freud, caso ocorra uma destruição das células dos centros sensoriais da primeira circunvolução, tem-se como resultado a incapacidade de compreensão da linguagem, ou seja, uma afasia sensorial. Caso a destruição se dê nas células que guardam imagens cinestésicas dos nervos motores, tem-se uma afasia motora. Freud nos diz ainda que Wernicke propõe um terceiro tipo de afasia, decorrente da lesão das vias de associação entre as imagens sonoras da palavra e as imagens cinestésicas da palavra, produzindo confusão de palavras e falta de segurança em seu uso. Assim, tem-se, então, três formas de afasias: sensorial, motora e de condução, sendo que as duas primeiras são causadas por uma lesão em uma região cerebral específica, enquanto a última é decorrente da lesão na associação desses centros.

Freud acreditava que o esquema de linguagem de Wernicke necessitava de mais elaboração para dar conta dos exemplos clínicos que não conseguiam ser explicados apenas pela divisão da linguagem em centros motor e perceptivo e uma via de associação entre eles. Além disso, também considerava esse esquema insuficiente por não estar em relação com outras atividades mentais. Segundo Wernicke, a teoria localizacionista não conseguia explicar os casos de afasia de condução que não eram causados pela destruição das vias de associação entre os centros. Era necessário, então, elaborar uma concepção de aparelho de linguagem que explicasse de maneira mais complexa as lesões da linguagem.

A partir do esquema do processo de linguagem proposto por Ludwig Lichtheim (1845-1928), Freud elaborou a ideia de aparelho de linguagem (Sprachapparat), respondendo às falhas da teoria de Wernicke. Freud afirma que "o esquema de Wernicke figura o aparelho de linguagem", mas com Lichtheim, em 1884, "numa coerente ampliação da linha de raciocínio de Wernicke, ele culminou na formulação do esquema de aparelho de linguagem" (Freud, 1891a/2013, p. 23). Trata-se de um aparelho de linguagem, segundo Freud, que considera um centro motor da linguagem (área de Broca), um centro acústico de linguagem (área de Wernicke) e as demais regiões do córtex cerebral que podem ativar a linguagem.

Entretanto, Freud não encontrou nesse esquema respostas que explicassem a semelhança das situações de uso equivocado das palavras, observadas tanto nos estudos feitos em pessoas afásicas quanto em pessoas normais nos estados de cansaço e desatenção, ou por influências de emoções perturbadoras. Ele se afasta, dessa forma, da proposição da afasia de condução de Wernicke - resultada da lesão na conexão entre um centro motor e um centro sensorial -, considerando esse tipo de afasia como um sintoma funcional. Essa crítica à afasia de condução não excluía a hipótese da existência de regiões específicas localizadas anatomicamente, mas afirmava que os distúrbios de linguagem eram determinados por um funcionamento do esquema de linguagem superior a essa simples teoria da localização cerebral.

A ênfase nos distúrbios de linguagem deveria cair sobre seu entendimento funcional e não sobre a compreensão localizacionista. Conforme as críticas que propôs logo no início do texto, Freud viu-se obrigado a abandonar a explicação localizacionista e passar à compreensão dos transtornos da linguagem segundo apenas a hipótese funcional, que considera o aparelho afetado em sua totalidade ou reagindo a uma lesão como um "todo unitário". Através da hipótese funcional, Freud acreditava poder explicar os casos clínicos que não eram compreendidos segundo o modelo de Wernicke.

Assim, em resumo, com as pesquisas experimentais realizadas por Broca pode-se ultrapassar a mera especulação sobre as causas dos distúrbios mentais. A medicina, a partir desse momento, passou a centrar-se em uma teoria da localização das funções mentais segundo uma ordem espacial. Através da complexificação de Wernicke e Lichtheim do funcionamento da linguagem, à hipótese tópica foi acrescentada, para as funções básicas do psiquismo e da linguagem, a associação de elementos da teoria funcionalista. Mas deve-se a Freud, contudo, a superação da hegemonia da teoria tópica pela teoria funcionalista através da introdução de um conceito fundamental, a saber, o aparelho de linguagem (Sprachapparat).

 

A hipótese da representação contra a da projeção

A concepção de um aparelho de linguagem concebido como uma totalidade de elementos associados entre si permitiu compreender como uma lesão de uma área perturbava uma quantidade de funções muito maior do que apenas as localizadas em uma área específica. Com isso, Freud passa a considerar os transtornos de linguagem como um distúrbio de natureza funcional do aparelho de linguagem e não mais como lesões localizadas no córtex cerebral. A ideia de perturbação funcional que Freud introduz considera o funcionamento total do aparelho e a submissão dos elementos tópicos aos elementos funcionais.

Segundo a proposta de Wernicke, tal como Freud a explica, devemos supor que

no córtex cerebral haja áreas definidas (todavia não exatamente delimitáveis) (por exemplo, a área de Broca, a área de Wernicke) em cujas células nervosas estejam de alguma maneira contidas as representações com as quais a função da linguagem trabalha. Essas representações são restos de impressões que chegam pelas vias dos nervos ópticos e acústicos ou que surgem durante os movimentos de linguagem como sensação de inervação ou percepção dos movimentos realizados (Freud, 1891a/2013, p. 66).

O córtex cerebral, segundo esse ponto de vista, possui em suas células "imagens sonoras das palavras" e "imagens cinestésicas das palavras". Isso mostra que existe uma recepção e uma retenção, por parte do córtex cerebral, de todos os estímulos sensoriais que levam ao aparelho as percepções do mundo exterior. O que se destaca é que, segundo a teoria da localização, tanto o corpo como o mundo externo são representados de acordo com uma projeção ponto por ponto, de tal forma que essas projeções corresponderiam a uma "reprodução completa e topograficamente idêntica do corpo no córtex" (Freud, 1891a/2013, p. 70). Freud revê essa concepção proposta por Wernicke - e associada à teoria de Meynert -, rechaçando a suposição de uma imagem corporal que possa ser representada de maneira completa e topograficamente similar à sua percepção. Também de acordo com a teoria localizacionista, a sensação era conduzida para o córtex por fibras condutoras que não interferiam nesse processo. Freud, entretanto, não concorda com essas ideias, e afirma que

Se denominarmos a reprodução na substância cinzenta da medula espinhal de projeção, então talvez fosse apropriado denominar a reprodução no córtex cerebral de representação e dizer que a periferia do corpo não está contida no córtex cerebral pedaço por pedaço, mas sim numa divisão menos detalhada, representada por fibras selecionadas (Freud, 1891a/2013, p. 74).

Freud rejeita a hipótese de que uma fibra mantém sua identidade mesmo depois de ter atravessado um certo número de núcleos e de associações. Para ele, as fibras sofrem modificações no trajeto que vai da medula ao córtex cerebral ou nas associações com outras fibras. Assim, o estímulo que é transportado da percepção sensorial até o córtex cerebral não permite mais representar uma imagem topograficamente exata dele. Para explicar essa nova concepção de como as percepções dos espaços do mundo e do corpo são representadas na mente dos indivíduos, ele faz uma interessante analogia, dizendo que a periferia do corpo está no córtex da mesma maneira que um alfabeto está em um poema, ou seja, "em uma reordenação que serve a outros propósitos, em uma múltipla e diversa conexão entre cada elemento tópico, de maneira que alguns podem ser representados várias vezes, ao passo que outros podem não ser representados" (Freud, 1891a/2013, p. 76).

Algumas ideias se destacam nessa citação de Freud. Há uma semelhança entre a forma como o corpo se registra e a forma como a linguagem se estrutura. Anteriormente, Freud havia identificado que a formação das afasias ocorre quando um falante utiliza uma palavra em vez de outra, sejam elas ligadas em função do significado ou por associação frequente, como a troca de pena por lápis ou Postdam por Berlim, quando confunde palavras com sons semelhantes, como Butter [ manteiga ] por Mutter [ mãe ], ou quando duas falas se fundem formando uma palavra deformada, como a composição da palavra pãe [ Vutter] formada pelas palavras mãe [ Mutter] e pai [ Vater], segundo exemplos dados por Freud. Da mesma forma, a representação do corpo sofre uma reordenação cuja lógica segue propósitos múltiplos, funcionais, não correspondendo então exatamente a sua estrutura global.

Além disso, Freud sustenta que haveria um paralelo entre os fenômenos psíquicos e os processos fisiológicos, a respeito do qual se destaca a seguinte afirmação:

A cadeia dos processos fisiológicos no sistema nervoso provavelmente não se encontra em uma relação de causalidade com os processos psíquicos. Os processos fisiológicos não cessam assim que os psíquicos tenham começado; ao contrário, a cadeia fisiológica prossegue, só que, a partir de um certo momento, a cada membro dessa cadeia (ou membros isolados dela) correspondem um fenômeno psíquico. Assim sendo, o psíquico é um processo paralelo ao fisiológico ("um concomitante dependente") (Freud, 1891a/2013, p. 78).

Para Freud, um processo de representações psíquicas não é um efeito direto das impressões sensoriais, como uma causalidade mecânica. Não há um correlato fisiológico da simples ideia que aparece ou reaparece na consciência. A ocorrência ou não desse processo não pode ser encontrado em uma região cerebral, pois ele deixa atrás de si "uma modificação no córtex cerebral por ele afetado: a possibilidade da lembrança" (Freud, 1891a/2013, p. 79) na região em que ocorreu.

A relação que se estabelece entre psíquico e físico, para Freud, é de dependent concomitant, quer dizer, ocorrem simultaneamente e de modo interdependente. Isso significa que não há uma correspondência direta e imediata entre os processos fisiológicos e os processos físicos. É como dependência concomitante que se estabelece uma imbricação entre eles. Com isso, Freud reconhece a ruptura cientifica com os neurologistas que vem contestando. Se os fosse seguir, a representação seria definida como uma localização na célula nervosa. Mas, no lugar de uma perspectiva elementar, Freud compreende a natureza das representações como não estáticas, mas como um processo.

Não se pode fazer a distinção entre a afetação sensível e a representação concomitante: Sensação e associação são dois nomes com os quais recobrimos o mesmo processo. Sabemos, contudo, que ambos os nomes são abstraídos de um processo único e indivisível. Não é possível ter uma sensação sem produzir, a partir dela, alguma associação. Mesmo que Freud ainda não tivesse considerado a ideia de uma instância inconsciente onde ficariam guardadas, como registros de memória, certas representações, ele questiona que, do ponto de vista psíquico, existiria na consciência algo como a sede de imagem lembrança latente.

A imbricação entre percepção e associação assim como a equivalência entre os centros e as vias de associação da linguagem possibilitam que os processos de linguagem, através de caminhos específicos, levem à ativação de lembranças: "Então, resta-nos expor a ideia de que o território da linguagem no córtex é um distrito contínuo, dentro do qual as associações e transferências, nas quais se baseiam as funções da linguagem, ocorrem em uma complexidade cujos detalhes exatos escapam à compreensão" (Freud, 1891a/2013, p. 86). Por um lado, Freud já define que o aparelho de linguagem se organiza em uma estrutura completa, rejeitando a separação em territórios e centros, o armazenamento das representações em áreas específicas, distintas das associações. Por outro lado, ainda vai demorar um tempo para que ele possa compreender o que acontece, nessa correspondência simultânea e paralela, quando os processos fisiológicos produzem efeitos psíquicos.

 

Sobre a representação-coisa e a representação-palavra

Freud, ao longo dos cinco capítulos do texto Sobre a concepção das afasias, rechaça a diferenciação entre afasias centrais (motora e sensorial) e as afasias de condução (por associação), sustentando a hipótese de que todas as afasias se originam pela interrupção funcional das associações dos neurônios de um sistema denominado aparelho de linguagem (Sprachapparat). Para ele, mesmo as afasias ocasionadas por lesões dos centros corticais resultam de lesões de fibras associativas que se encontram nesses centros. Deste modo, não se faz mais uma distinção entre representações e associações. E, no sexto capítulo do livro, ao qual nos voltamos agora, Freud trabalha a natureza e os aspectos funcionais dos elementos que constituem esse aparelho de linguagem.

O primeiro desses elementos que Freud apresenta são as representações-palavra (Wortvorstellung). A elas são atribuídas as características de serem uma "unidade da função da linguagem, uma representação complexa que se apresenta como um composto de elementos acústicos, visuais e cinestésicos" (Freud, 1891a/2013, p. 97) que se apresentam nas seguintes formas: "a imagem de som [ Klangbild ], a imagem visual das letras [ visuelle Buchstabenbild ], a imagem de movimento da fala [ Sprachbewegungsbild ] e a imagem de movimento da escrita [ Schreibbewegungsbild ] " (Freud, 1891a/2013, p. 97). A complexidade dos elementos das representações-palavra resulta da hipótese de não distinguir as representações das associações, ou seja, as representações elas mesmas são um complexo de associações de partes mais simples.

Para Freud, em função dessa composição das representações-palavra, isto é, da relação de associações entre diferentes elementos, pode-se compreender qualquer atividade do aparelho de linguagem. Freud aqui se mostra como propriamente um pensador associacionista, propondo que as representações se ligam entre si através das associações entre as partes constitutivas das próprias representações (acústico, visual e cinestésico). Nenhuma representação pode ser inscrita no aparelho de linguagem isoladamente, de modo que a associação é ela mesma uma relação de associações, fazendo com que Freud denomine essas associações de superassociações.

Freud compreende o ato de fala como a associação entre a imagem sonora e a imagem cinestésica da representação-palavra. No processo de aprendizagem da linguagem, uma criança esforça-se para adequar a imagem sonora que ela produz com a imagem sonora que escuta das pessoas que estão a sua volta. De acordo com essa perspectiva, portanto, um aparelho de linguagem só pode constituir-se através de outro aparelho de linguagem que serve como modelo de reprodução. A fala do outro é a matriz para a produção de uma fala própria. Assim, Freud afirma que "aprendemos a linguagem dos outros na medida em que nos esforçamos para tornar a imagem de som produzida por nós o mais semelhante possível ao que deu ensejo à inervação da linguagem. Aprendemos assim a repetir [ Nachsprechen]" (Freud, 1891a/2013, p. 98).

Percebemos que Freud, ao elaborar a proposta de um aparelho de linguagem fundamentado na associação de representações, vai começando a formular uma nova compreensão de sujeito que é baseada no modo como se conhece o mundo. Isso quer dizer que a forma como se estrutura o aparelho de linguagem se apresenta através de como as palavras assumem a função de dar significação aos objetos: "a palavra conquista seu significado por meio da conexão com a representação objeto [ Objektvorstellung ], ao menos se limitarmos nossa consideração aos substantivos" (Freud, 1891a/2013, p. 102). Assim, a representação-palavra só adquire significação mediante a associação com as representações-objeto, que também são estruturas formadas pela associação de diferentes elementos, conforme uma rede de impressões visuais, auditivas, táteis e cinestésicas. O conhecimento do mundo tem como fundamento a estrutura da linguagem.

Freud não deixa de fazer referência a um dos filósofos associacionistas que mais tiveram influência em pensamento, John Stuart Mill (1806-1873). Deste filósofo ele toma a ideia de que a imagem de uma coisa é formada através das percepções sensíveis por infinitas possibilidades, isto é, as representações-objeto são abertas às contingências das impressões da sensibilidade, enquanto que as representações-palavra se estruturam de forma limitada aos elementos da fala e da escrita. A ligação entre um e outro se faz apenas através da imagem sonora, pela parte das representações-palavra, e as imagens visuais, pela parte das representações-objeto.

A partir desse esquema podemos perceber a hipótese de Freud sobre a diferença entre uma projeção e uma representação. Conforme a teoria localizacionista sustentada por Wernicke, as impressões originadas do contato dos órgãos sensitivos com o mundo exterior formam projeções no córtex idênticas a elas. Nesse caso, o sujeito conheceria exatamente o mundo exterior com o qual teve contato através das sensações. Freud recusa essa concepção da identidade do mundo para o indivíduo e apresenta o conceito de representação, que introduz as associações entre as representações como o elemento que introduz uma diferença.

Assim, podemos descrever o processo da seguinte maneira: a percepção capta os elementos dispersos da realidade e os articula em uma estrutura, que Freud denomina de representações-objeto. Estas são resultado da articulação de várias impressões de diversos tipos (acústica, tátil, cinestésica, etc.), pois se inscreveram atomicamente, isto é, de forma independente umas das outras. As representações-objeto, posteriormente, vão ser associadas às representações-palavra, de modo que as palavras recebam significação na ligação com as impressões vindas dos objetos. Segundo Freud, como já vimos, "a palavra conquista seu significado por meio da conexão com a representação de objeto [Objektvorstellung], ao menos se limitarmos nossa consideração aos substantivos" (Freud, 1891a/2013, p. 102). A significação de uma palavra, então, forma-se através da ligação da imagem acústica da representação-palavra com a impressão visual da representação-objeto.

A função do aparelho de linguagem através desse esquema que apresenta a associação da representação-palavra com a representação-objeto é a de produzir significação. Associando uma imagem acústica a uma impressão visual, entre representações-palavra e representações-objeto, Freud pensa a relação do sujeito com o mundo através da mediação da linguagem. Isso quer dizer que não se trata de uma relação entre duas estruturas independentes e separadas, na medida em que as representações é que dão existência para os objetos externos.

Retomando, então, o que foi trabalhado até o momento, dizemos que, a partir das críticas realizadas a importantes teorias neurológicas, Freud pode desenvolver uma nova compreensão dos transtornos de linguagem, assim como apresentar um aparelho de linguagem que é um protótipo para o aparelho psíquico elaborado poucos anos mais tarde. Em relação aos problemas de linguagem, Freud propõe uma nova divisão das afasias a partir do entendimento de seu aparelho, ou seja, pela conexão da representação-palavra, através da parte sensorial, com a parte visual da representação-coisa.

Essa nova divisão é feita em três transtornos da linguagem de acordo com essa ligação entre as representações: 1) a afasia verbal, ou afasia de primeira ordem, ocorre quando são perturbadas as associações entre os diferentes elementos da representação-palavra; 2) a afasia assimbólica ou afasia de segunda ordem ocorre quando é perturbada a associação entre a representação-palavra e a representação-objeto, e 3) a afasia agnóstica ou afasia puramente funcional ocorre quando é perturbado o reconhecimento dos objetos.

A produção desse texto sobre as afasias marca uma crítica de Freud não apenas relativa a certas proposições neurológicas tomadas como referência em sua época, mas também marca o rompimento com alguns intelectuais, especialmente com Theodor Meynert, seu professor e orientador na Universidade de Viena por alguns anos, e o deslocamento das pesquisas médicas para as pesquisas psicológicas. Mesmo apontando Jean-Martin Charcot como um dos alvos do trabalho a ser ao menos "arranhado", Freud parece estar muito mais próximo dele do que aparenta. É o que veremos a seguir, quando Freud retoma algumas dessas proposições para pensar as ideias que recebeu de seu mestre francês em relação à pesquisa com sintomas da histeria. Portanto, Sobre a concepção das afasias, além de ser uma obra de rompimentos, é também uma obra de aberturas, início para uma nova concepção de sujeito.

 

A derivação do estudo sobre as afasias na etiologia das neuroses

O artigo "Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas" demorou cinco anos para ser concluído. Freud começou a escrevê-lo em maio de 1888 a partir da indicação feita por Charcot, quando trabalharam juntos em Paris no período entre 1885 e 1886. Além disso, esse tema foi trabalhado por Freud em seu curso na Universidade de Viena em 1887. Em decorrência do longo período de escrita - ele foi terminado em 1893 -, esse texto se coloca como um divisor de águas entre as pesquisas neurológicas e as pesquisas psicológicas realizadas por Freud. É um trabalho, portanto, que abarca concepções dos dois períodos de produção (a médica e a psicológica) e que reflete, dentro de seus quatro capítulos, diferentes posições acerca da histeria. Nesse texto, as proposições apresentadas na monografia Sobre a concepção das afasias são retomadas para serem articuladas com os estudos sobre as neuroses histéricas que vinham sendo realizados através da clínica psicológica desenvolvida conjuntamente com Josef Breuer.

Freud começa o artigo apresentando a distinção das paralisias motoras orgânicas em duas ordens: as paralisias em decorrência de lesões nos neurônios que se estendem da periferia à medula e as paralisias que se estendem da medula ao córtex cerebral. Aquelas paralisias são chamadas de paralisias periférico-medulares ou détaillée, enquanto estas são chamadas de paralisias cerebrais ou en masse. O primeiro tipo de paralisia pode ocorrer em segmentos isolados do corpo, ao contrário da paralisia cerebral, que é um distúrbio que ocorre em segmentos complexos.

Freud busca, no texto sobre as afasias, de 1891, referências para compreender a distinção entre esses dois tipos de paralisias. Assim, ele afirma: "Cada elemento da periferia corresponde a um elemento da massa cinzenta da medula [...]; a periferia, por assim dizer, é projetada sobre a massa cinzenta da medula, ponto por ponto, elemento por elemento" (Freud, 1893a/1990, p. 230). À paralisia que decorre de um distúrbio dessa localização, chamada de paralisia periférico-medular, Freud nomeia de paralisia em projeção. Segundo seu trabalho sobre as afasias, os neurônios que vão da medula ao córtex cerebral são em menor número e insuficientes para projetar a periferia com exatidão. Eles não representam, portanto, "cada uma em separado, um elemento único da periferia, e sim um grupo de elementos periféricos" (Freud, 1893a/1990, p. 231). A reprodução da periferia, então, não se dá nesse local ponto por ponto, como ocorre nos nervos que vão da periferia à medula, mas sim por fibras representativas. Freud propõe chamar a paralisa cerebral de paralisia em representação.

Tendo formulado essas novas concepções da paralisia motora e considerando que, naquele momento, vinha sendo atribuída à histeria a capacidade de simulação de doenças nervosas orgânicas, Freud se pergunta se a paralisia histérica "simula as características dos dois tipos de paralisias orgânicas, se existem paralisias histéricas em projeção e paralisias histéricas em representação" (Freud, 1893a/1990, p. 232). Nessa primeira parte do artigo, ele responde que a paralisia histérica não simula paralisias em projeção, mas possui em comum características da paralisia em representação. Entretanto, coloca como ainda não desvendada a relação que a paralisia histérica tem com a paralisia em representação.

Na segunda parte do artigo, Freud responde sobre a distinção entre a paralisia histérica e a paralisia cerebral orgânica. Uma das diferenças dos sintomas dessas patologias é a da dissociação que ocorre na paralisia histérica - dissociação de local, por exemplo, quando a extremidade de um membro é menos afetada que sua parte proximal; ou dissociação de função, quando a função mais complexa não foi prejudicada, mas sim a mais elementar. A paralisia cerebral orgânica resulta das condições anatômicas do cérebro, e a impossibilidade da dissociação do sintoma vem do fato de as fibras cerebrais estarem como representações associadas umas às outras, o que não permite uma lesão atingir individualmente uma fibra sem produzir consequências em outras fibras.

Para Freud, portanto, é possível conhecermos a anatomia cerebral de acordo com os sintomas e o tipo de lesões das paralisias cerebrais, o que já não podemos fazer com as paralisias histéricas. "Qual poderia ser a natureza da lesão, na paralisia histérica, que define a situação sem respeitar a localização ou extensão da lesão ou da anatomia do sistema nervoso?" (Freud, 1893a/1990, p. 239). Freud responde essa questão da seguinte maneira:

a lesão nas paralisias histéricas deve ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois, nas suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta (Freud, 1893a/1990, p. 240).

Para Freud, como vemos, a histeria não respeita o funcionamento anatômico, as regiões cerebrais e suas conexões. A paralisia histérica "toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até o quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sob a roupa" (Freud, 1893a/1990, p.240), não tendo consciência das relações anatômicas que existem entre um órgão e seu conjugado, ou da relação de uma função desse órgão com a de outro, para saber que uma lesão orgânica em determinado local deveria prejudicar também outra região. Mas, então, como explicar a lesão causadora das paralisias histéricas?

No quarto capítulo, Freud busca a ideia principal que havia apresentado no texto sobre as afasias, a saber, a de que essa patologia é causada por uma lesão de ordem funcional do aparelho de linguagem. Nesse sentido, a paralisia histérica é compreendida como decorrência de uma "lesão funcional ou dinâmica" que não produz um correlato anatômico. Mas, para poder explicar esse tipo de modificação funcional sem lesão orgânica, Freud deve afastar-se do fundamento anatômico. Assim, pede permissão para passar à área da psicologia, "que dificilmente se pode evitar, em se tratando de histeria" (Freud, 1893a/1990, p. 207). O que está em questão na histeria, para Freud, é o problema da "concepção corrente, popular, dos órgãos e do corpo em geral", isto é, de como eles são representados na mente. Essa representação determina a paralisia histérica a partir da forma como ela representa simbolicamente seu próprio corpo, isto é, através da simbolização que a linguagem inscreve nas partes do corpo real: "Portanto, na paralisia histérica, a lesão será uma modificação da concepção da ideia de braço, por exemplo" (Freud, 1893a/1990, p. 241).

Tomando a psicologia como modelo explicativo, de acordo com as orientações que Charcot fez a Freud, a paralisia histérica, para ele, resulta de uma lesão que não permite que a representação do braço entre "em associação com as outras ideias constituintes do ego, das quais o corpo da pessoa é parte importante" (Freud, 1893a/1990, p. 242). A representação, dessa forma, tem seu acesso às outras representações isolada das associações. O que Freud está fazendo, nesse momento, é uma importante contribuição para o surgimento da psicanálise que diga respeito não apenas à etiologia das paralisias histéricas, mas também à natureza da essência das psicopatologias. Isso significa, portanto, que se rompe com a categorização da histeria determinada pela ordem orgânica para concebê-la segundo a representação simbólica do elemento real orgânico.

Como vimos no início desta seção, o texto "Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas" abarca diferentes períodos do trabalho de Freud. Pelo ano de 1893, seu contato com Josef Breuer já o havia influenciado em sua prática clínica e no modo como tentava compreendê-la. Por esse motivo, vemos nesse texto a presença de uma importante ideia que vinha sendo elaborada nos primórdios da pesquisa sobre as neuroses. Para Freud, através de Breuer, a lesão encontrada nos sintomas histéricos, que torna inacessível à representação uma nova associação com outras representações, é originada pela quantidade de afeto investida nessa representação em algum momento especial. Essa resistência produzida pela intensidade de afeto que está localizada na representação só será diminuída quando, por algum processo psíquico específico (reação motora ou atividade associativa), a carga de afeto for eliminada. Na impossibilidade dessa eliminação, a representação que possui a carga de afeto excedente torna-se um trauma e, assim, produz os sintomas histéricos.

Quando ocorre uma paralisia histérica, uma forte ligação se dá entre o evento traumático e a função do órgão atingido. A representação desse órgão passa a ser dotada de uma grande quantidade de afeto e afastada da consciência e das associações pelo eu. A tese apresentada por Freud, utilizando-se das concepções de seu estudo sobre a afasia - dentre as quais as lesões de ordem funcional e a diferenciação entre uma lesão em projeção e uma lesão em representação -, sugere que a paralisia histérica é vista da mesma forma que a afasia assimbólica, ou seja, decorrente de um afastamento da representação-objeto, que está ligada ao trauma psíquico, através de seu desligamento da nomeação desse órgão.

Como sabemos, depois que deixou Paris, Freud nunca reencontrou pessoalmente Charcot. Ele já havia conhecido outras duas importantes referências para sua vida: Josef Breuer e Wilhelm Fliess. Mas a importância do mestre francês foi tão decisiva na vida de Freud a ponto de, em 1889, nomear um de seus filhos com o mesmo nome: Jean Martin Freud. Das lembranças de Paris guardou consigo uma réplica do quadro Uma lição clínica na Salpêtrière, de André Brouillet, que ficou afixado, até 1938, em uma das paredes do número 19 da Rua Berggasse, em Viena, e uma foto de Charcot com dedicatória especial. Em 1892, poucos dias após a morte de Charcot, Freud escreve um obituário, onde relembra que, certa vez, durante uma explicação que dava sobre um fato clínico para um grupo de alunos estrangeiros, formados na tradicional academia alemã, Charcot é interpelado, já que o fato contradizia uma importante teoria. Ao que Charcot responde ao aluno: "La théorie, c'est bon, mais ça n'empêche pas d'exister [Teoria é bom, mas não impede que as coisas existam]" (Freud, 1893b/1990, p. 23). O princípio da pesquisa psicanalítica de Freud de sempre interrogar a teoria a partir da clínica mostra que ele foi marcado profundamente por essa observação.

 

 

Referências

Freud, S. (1891a/2013). Sobre a concepção das afasias. Obras incompletas de Sigmund Freud. (Emiliano de Brito Rossi, trad.). São Paulo: Editora Autêntica.

Freud, S. (1891b/1986). Carta de 02 de maio de 1891. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess - 1887-1904. (V. Ribeiro, trad.). In Masson, E. (Ed.). Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1893a/1990). Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas. (James Strachey, trans.) Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. I. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1893b/1990). Charcot. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. I. Rio de Janeiro: Imago.

Jones, E. (1953/1989). A vida e a obra de Sigmund Freud, v. 1. Os anos de formação e as grandes descobertas (1856-1900). Rio de Janeiro: Imago.

 

Artigo recebido em: 05/08/2014
Aprovado para publicação em: 09/10/2014

 

 

*Psicanalista, membro da APPOA, mestre em Filosofia pela PUCRS, doutor em Educação pela UFRGS e pós-doutorando pelo programa Diversitas - FFLCH/USP.