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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dic. 2015

 

ARTIGOS

 

A clínica psicanalítica no hospital com mulheres em tratamento de câncer de mama

 

The psychoanalytic clinic in hospital with women in breast cancer treatment

 

 

Ronaldo Sales de AraújoI*; Nádia Laguárdia de LimaII, III**

IFundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais – FHEMIG - Brasil
IIUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda os efeitos da cirurgia de mastectomia sobre as mulheres em atendimento ambulatorial em um hospital geral. Analisa, em especial, os efeitos dessa intervenção médica sobre a imagem corporal. Destaca um fato comum a todas as pacientes atendidas no ambulatório, que é a ausência do tema da morte em suas falas, mesmo nos casos mais avançados da doença. Elas abordam principalmente o tema da beleza, associando-a à feminilidade. Para essas mulheres, a mutilação do seio tem o efeito de um confronto com o real, despertando a angústia. A partir das contribuições de Lacan, o artigo discute a função do belo de fazer uma barreira protetiva em relação à Coisa, permitindo suportar o trágico.

Palavras-chave: corpo, imagem corporal, belo, olhar, sexualidade feminina.


ABSTRACT

This work addresses the effects of mastectomy surgery on women in outpatient care at hospitals. It particularly analyzes the effects of such a medical intervention in body image. It highlights a common fact to all patients that were seen in the ambulatory care facility, which is the absence of death as a subject in their speech, even in more advanced cases of the disease. They approach mainly the topic of beauty, associating it with femininity. For those women, breast mutilation caused a confrontation with reality, arousing the feeling of anguish. Drawing from the contribution of Lacan, this article discusses the function of the beautiful in building a protective barrier in relation to the Thing, allowing the bearing of the tragic.

Keywords: body, body image, beautiful, look, female sexuality.


 

 

Introdução

O interesse pelo tema desta pesquisa surgiu da prática ambulatorial, atendendo pacientes do sexo feminino diagnosticadas com câncer de mama em tratamento hospitalar desde o ano de 2011. Essa prática clínica demonstra, por meio das falas dos sujeitos, que a angústia das mulheres acometidas pelo câncer de mama está ligada predominantemente à perda vivida no corpo e não à possibilidade iminente da morte, mesmo no estado avançado da doença.

No caso específico desta pesquisa, buscamos compreender os efeitos sobre os sujeitos da marca inscrita no corpo decorrente à retirada total ou parcial da mama afetada (mastectomia). Em especial, interrogamos, a partir dos casos clínicos selecionados, os efeitos da amputação do seio sobre a percepção da imagem corporal e sobre a concepção de feminilidade desses sujeitos. Para realizar essa investigação, utilizamos, como metodologia de pesquisa, a pesquisa bibliográfica e fragmentos de casos clínicos do hospital.

 

A clínica psicanalítica no hospital oncológico

Freud (1914/1996) postula que uma perturbação física ou mental ocasiona uma diminuição da autoestima, podendo ocasionar até uma incapacidade de amar e um empobrecimento do eu. Em 1923, ao discorrer sobre a constituição do eu, Freud (1923/1996) afirma que a ideia de nosso corpo nos advém muitas vezes de alguma doença dolorosa. O procedimento cirúrgico é um ato que marca o corpo do sujeito. Considerando a impossibilidade de separar psique e corpo, buscamos investigar os efeitos dessa vivência cirúrgica mutiladora sobre os sujeitos, a partir dos casos clínicos. O nosso interesse centrou-se especialmente na investigação dos efeitos dessa castração real no corpo sobre a imagem corporal e sobre a vivência da feminilidade para cada sujeito que fez a cirurgia de mastectomia.

Nos atendimentos clínicos das pacientes submetidas ao tratamento da doença surgem, frequentemente, questões relativas à sexualidade e à feminilidade. Depois da cirurgia, é comum o surgimento de inibições sexuais e até mesmo a recusa do ato sexual.

Uma paciente do ambulatório comenta sobre a sua dificuldade em ver seu corpo no espelho depois da cirurgia e acrescenta que também percebe o olhar de " nojo" de suas filhas. Ela diz que uma das filhas lhe pede para não mostrar mais a cicatriz da cirurgia, pois ela " é muito feia". Desde então, a paciente não fica mais sem roupa na frente das filhas e do marido. Durante as relações sexuais, sempre usa uma camiseta para "tampar o buraco onde tinha o seio".

Nessa prática psicanalítica ambulatorial foi possível perceber que a angústia das mulheres está mais ligada aos efeitos da perda vivida no corpo do que à possibilidade iminente da morte, mesmo nos casos mais graves da doença. Ressaltamos que as pacientes selecionadas para esta pesquisa estão na fase terminal do tratamento oncológico, ou seja, um tratamento que não visa à cura da doença, mas apenas intervenções médicas paliativas. Nos atendimentos psicanalíticos de pacientes com outras doenças clínicas e neoplásicas, nesse mesmo ambulatório hospitalar, o tema da morte é o mais constante. As pacientes com câncer de mama, nesse sentido, se colocam como uma exceção na abordagem direta do tema.

As pacientes verbalizam frequentemente a reação de horror que sentem ao verem as marcas da mutilação em seus corpos. Elas escondem os seus corpos de si mesmas e de seus familiares, evitando olhar e serem olhadas. Uma delas verbaliza: " a coisa aqui embaixo não está bonita, não tive coragem de olhar a cirurgia".

A perda de um seio reatualiza outras perdas e provoca um abalo narcísico nas pacientes. As mulheres verbalizam o medo de não serem mais amadas e, consequentemente, de serem abandonadas pelos seus parceiros amorosos, pois elas não se consideram mais desejáveis:

Freud nos diz que a anatomia é o destino. Vocês sabem que, em certos momentos, ergui-me contra essa formulação, pelo que ela pode ter de incompleta. Mas ela se torna verdadeira se atribuirmos ao termo "anatomia" seu sentido estrito e, digamos, etimológico, que valoriza a ana-tomia, a função de corte. Tudo o que sabemos de anatomia está ligado, de fato, à dissecação. O destino, isto é, a relação do homem com essa função chamada desejo, só adquire toda a sua animação na medida em que é concebível o despedaçamento do próprio corpo, esse corpo que é o lugar dos momentos de eleição de seu funcionamento (Lacan, 1962-1963/2005, p. 259).

Diante desse contexto da clínica no hospital, achamos pertinente avançar em nossa pesquisa sobre uma questão que está em cena nesses casos clínicos: a imagem de um corpo feminino atravessado pelo tratamento oncológico. Para fazer essa reflexão, será abordado o objeto olhar em sua relação com o desejo a partir das considerações de Lacan sobre o tema.

 

A visão do corpo mutilado: a imagem corporal e a castração no real

A teoria do Estádio do Espelho, explicitada por Lacan, nos esclarece sobre a constituição da imagem corporal. De acordo com Lacan (1949/1998), essa teoria nos "fornece a função do [eu] na experiência que dele nos dá a psicanálise" (Lacan, 1949/1998, p. 96). Ela ilustra o aspecto de conflito na relação dual, imaginária, pois a relação que o sujeito mantém com ele mesmo e com os outros permanece sempre mediada pelo eixo imaginário.

Interessa-nos, especialmente, a função do olhar do Outro na instauração da imagem do corpo, ou seja, na relação especular com o outro. Com Lacan, o espelho se torna uma concepção psicanalítica, um instrumento essencial no destino de cada sujeito, apoiado na ideia de que o ser humano é um ser prematuro ao nascer e que apresenta uma descoordenação motora constitutiva. O estádio do espelho ilustra o momento em que o sujeito, ainda infans, se reconhece jubilatoriamente na imagem que lhe é oferecida através do olhar do Outro e que tem como efeito a formação do eu.

O corpo na teoria psicanalítica pode ser tomado nos três registros: imaginário, que lhe confere uma unidade narcísica; simbólico, que o articula ao Outro; e real, como corpo pulsional, fonte de gozo, um excesso de excitação que não entra nos intercâmbios simbólicos. Esse excesso produz mal-estar, é fonte de sofrimento humano. Freud, no texto sobre "O mal-estar na civilização", nos esclarece:

O sofrimento nos ameaça a partir de três dimensões: de nosso próprio corpo, à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens (Freud, 1929-1930/1996, p. 84).

Assim, nos vemos às voltas na clínica com uma das fontes de mal-estar humano: o corpo. A perda da mama na mulher marca, de forma incisiva, o confronto da paciente com a realidade da doença. O sujeito que apresenta um câncer de mama se vê diante da contingência de um corpo afetado pelo real da castração. Segundo Lacan (1962-1963/2005):

A captura narcísica introduz quanto ao se pode investir no objeto, na medida em que o falo, ele próprio, continua auto-eroticamente investido. A rachadura que resulta disso na imagem especular vem a ser, propriamente, o que dá respaldo e material à articulação significante que, no outro plano, o simbólico, chamamos de castração (Lacan, 1962-1963/2005, p. 19).

A imagem pode ser tomada como um véu, um quadro que vela a falta, e até mesmo como um espetáculo que chama a ver, como, por exemplo, uma produção artística que provoca o olhar. Se a imagem corporal vela o vazio, a doença coloca em cena a imperfeição do corpo, na medida em que revela a fragilidade e a temporalidade da carne. A doença aponta para o ponto não especularizável que falta à imagem, o objeto a, despertando a angústia. Essa é a articulação entre objeto a , o desejo e o campo da imagem que pretendemos salientar nesta pesquisa. A busca incessante que constitui o desejo na teoria psicanalítica depende da existência da falta de objeto como sua condição primordial.

O circuito do desejo, na teoria lacaniana, se insere na dimensão da imagem na falta desse objeto. Essa discussão conduziu Lacan a discorrer sobre o "caráter radicalmente ilusório de todo o desejo" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 249). Mas às vezes acontece um reencontro impossível com o objeto. A visão da mutilação da mama pelo sujeito aponta para a presença do objeto a na cena, perturbando o circuito do desejo e despertando a angústia. Nesse sentido, ao se apresentar na cena o objeto a ultrapassa uma barreira até então intransponível, posto que algo do real se introduz na dimensão imaginária, desfazendo a ilusão da unidade corporal.

Na clínica exercida no hospital, deparamo-nos com uma diversidade de respostas das mulheres ao vazio deixado pela retirada do seio. Muitas mulheres buscam reconstruir a imagem corporal, ou seja, investem na imagem corporal tentando preencher esse vazio. Observamos, por exemplo, o cuidado com que se apresentam para o atendimento ambulatorial: os diferentes adornos que utilizam em seus corpos, as perucas e lenços na cabeça, as maquiagens no rosto, além dos enchimentos que velam a ausência dos seios. Esses diferentes véus visam atrair o olhar e ocultar o vazio. A ambivalência da função do véu, que atrai o olhar ao mesmo tempo que vela o vazio, parece, por vezes, denunciar exatamente o ponto que deveria ocultar, revelando o real e despertando a angústia.

A escuta de pacientes em atendimento no hospital nos mostrou, portanto, que muitas mulheres, diante da amputação do seio, ou seja, diante do confronto com a castração real, reagem à amputação reinvestindo na imagem corporal. As roupas e os adornos são utilizados, muitas vezes, como forma de contornar essa ausência, de abordar o feminino, ou mesmo como forma de se esquivar do feminino, de não se haver com o real. O feminino (Lacan, 1972-1973/2008) é o não-todo, não existe um significante universal para designar a mulher. Então, resta a cada mulher inventar uma saída diante desse vazio.

Lacan (1959-1960/2008), no Seminário 7, comenta que "o simbolismo da roupa é um simbolismo válido, sem que em nenhum momento possamos saber se o que se trata de fazer com esse falo-pano é revelar ou de escamotear" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 271). O bem (roupa) serve como uma forma de despertar o desejo e velar a Coisa. Ele acrescenta que há outro ponto de "transposição que pode permitir discernir precisamente um elemento do campo do para além do princípio do bem. Esse elemento é o belo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 283). Outras mulheres não fazem esse investimento na imagem corporal depois da cirurgia, como será visto a seguir.

Emília, 41 anos, é diagnosticada com câncer na mama direita. Ela é encaminhada pela equipe de fisioterapia para a psicologia na fase do pré-operatório de mastectomia. É casada, mãe de três filhos, possui rede laboral e social. Inicia o tratamento psicanalítico verbalizando sobre a angústia que sente diante do desconhecido, como, por exemplo, o fato de não saber o tratamento oncológico que será realizado: a quimioterapia ou a radioterapia. Com relação à cirurgia de mastectomia, se angustia ao pensar no tamanho da cicatriz que terá no lugar do seu seio. Emília teme as consequências da cirurgia em sua vida amorosa e considera a possibilidade do abandono do seu marido. Teme especialmente a perda do seio direito e o aumento de gordura corporal, pois leu em algum lugar que o tratamento do câncer faz engordar muito. Emília fantasia a recusa do marido no momento do coito, pois considera que deixará de ser uma mulher desejável. Fala insistentemente sobre o seu estilo sensual de se vestir e que gosta de frequentar ambientes sociais em que as mulheres usam biquínis, como os clubes. A paciente é submetida à extração total do seio direito.

Nas sessões seguintes, se mostra muito angustiada com o tamanho da cicatriz deixada pela intervenção cirúrgica: "Não pensava que seria tão grande, fico impressionada com a extensão do corte, inicia debaixo do braço e vai até o meio da barriga, estou horrível". Apesar de escutar do marido que não tinha problema para ele a falta de um seio, que ele a amava da mesma forma, Emília passa a recusar a relação sexual com o marido: " Não sei o que está acontecendo, não consigo transar com ele mais, tô sem tesão, não gosto que ele me toque no peito". Descreve uma cena em que os filhos, ao olharem a cicatriz em seu corpo, a chamam de Emília: " estou toda cortada e costurada igual uma boneca".

Lacan (1962-1963/2005) ressalta que a angústia está ligada a um "eu" que não sabe que objeto "eu sou para o desejo do outro" mas acrescenta que "isso só é valido para o nível escópico" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 353). Para Emília, a perda da mama, como a irrupção de um real, levou à quebra do espelho, despertando a angústia.

Alguns casos clínicos nos mostram que a mastectomia tem como efeito a perda da capacidade de investimento na imagem corporal. Essas mulheres recobrem o corpo, evitam olhar-se no espelho, assim como evitam ser olhadas, e frequentemente desenvolvem uma inibição sexual, recusando totalmente o ato sexual. Elas não se sentem mais desejáveis e, portanto, femininas.

 

Da imagem à ética da psicanálise: a função do belo

Freud, em " A interpretação dos sonhos" (1901/1996), texto inaugural da psicanálise, descreve o movimento que o aparelho psíquico faz para reinvestir uma imagem associada à satisfação. Nesse texto, ele enlaça a vida psíquica à criação de imagens através de mecanismos da formação dos sonhos, condensação e deslocamentos, cujo propósito seria a realização de desejo, mesmo que na forma disfarçada.

Lacan defende desde o início do seu ensino que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ao abordar o inconsciente como linguagem, operacionalizada pelo signo linguístico, produz nesse sistema um significante que tem uma forma, uma estética tanto visual quanto acústica: "O significante introduz suas ordens no mundo, a verdade e o acontecimento [...] em relação ao ponto de visada do desejo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 314). Tendo uma forma, não poderia faltar o vazio. Uma forma vazia, por isso o significante pode representar vários significados, forjando uma estética para o discurso. Para Lacan, a linguagem possui uma estética e o desejo circula na metonímia do discurso. Como ele destaca, "o desejo nada mais é do que a metonímia do discurso da demanda. É a mudança como tal. Insisto - essa relação propriamente metonímica de um significante ao outro que chamamos desejo não é o novo objeto, nem o objeto anterior, é a própria mudança de objeto em si" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 344).

Mas, a partir do Seminário 7, Lacan (1959-1960/2008) começa a fazer um giro no seu ensino, abrindo mão da prevalência do simbólico e deslocando-se para o real. Nesse seminário, Lacan descreve uma estética relacionada fundamentalmente ao real, à Coisa. Faz um retorno a Freud não mais pela via do simbólico, mas pela via do real, trabalhando a noção freudiana da pulsão de morte e do mais além do princípio do prazer. Ou seja, um segundo tempo do ensino de Lacan marca um deslocamento do sujeito do inconsciente ao sujeito do gozo, do grande Outro à Coisa: "Para além do princípio do prazer aparece-nos essa face opaca - tão obscura que pode parecer, para alguns, a antinomia de todo pensamento, não apenas biológico, mas até mesmo simplesmente científico - que se chama pulsão de morte" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 31).

No Seminário 7, Lacan (1959-1960/2008) sustenta que, mais além do inconsciente estruturado como linguagem, há um real do gozo pulsional como sendo o mais próximo do campo real de Das Ding.

Para Lacan, a Das Ding é ao mesmo tempo irrepresentável (sem imagens e fora do significante), mas também uma zona incandescente, cheia de gozo. Possui uma propriedade de excentricidade e de terror ao mesmo tempo, "o que há em Das Ding é o verdadeiro segredo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 60).

Quando Lacan diz que a Coisa é outra coisa, ele convoca o conceito de sublimação, pois, a proximidade da Coisa é insuportável, o encontro com a Coisa seria a morte para o sujeito, ela destruiria qualquer sentimento estético. Há, pois, uma aproximação entre a Coisa e a sublimação:

A Coisa, se no fundo ela não está velada, não estaríamos nesse modo de relação com ela que nos obriga - como todo psiquismo é obrigado - a cingi-la, ou até mesmo contorná-la, para concebê-la. Lá onde ela se afirma, ela se afirma em campos domesticados. É justamente por isso que os campos são assim definidos - ela se apresenta sempre como unidade velada (Lacan, 1959-1960/2008, p. 144).

Podemos pensar a Coisa lacaniana como um excesso de gozo, um horror... Como podemos pensar a estética em relação à ética psicanalítica? Tendo em vista a ética que coloca em cena a subjetividade, a estética é um modo de operação que tenta uma circunscrição, uma borda, um véu sobre a Coisa.

Trabalhamos numa articulação do conceito de sujeito com a noção de estética para analisar a participação dessa relação na produção da subjetividade que é "edificada na superfície de um organismo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 55).

A estética pode ser, portanto, uma saída para o desejo. Afinal de contas, "o valor de uma coisa é a sua desejabilidade" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 26). A partir de Lacan, pensamos sobre a dupla função da estética: de recobrir o vazio e de produzir prazer circunscrevendo o desejo.

Assim, no Seminário 7, Lacan coloca o belo como uma defesa frente ao real. O belo é uma força estética, um véu, que está em uma relação com o real, com o insuportável de perceber. Lacan, nesse seminário, descreve a função do belo como a de fazer uma última barreira frente a Das Ding, como uma forma de suportar o desagradável, o trágico. O belo como uma forma tem um estatuto imaginário, mas apresenta uma eficácia simbólica. É uma tentativa do sujeito de tomar certa distância do real, de evitar a angústia diante da proximidade da Coisa. O belo é como um véu que vai recobrir o horror de D as Ding. Ele não remove o real, mas oferece uma distância estética dele, operando como uma barreira protetiva em relação à Coisa.

A ética da psicanálise não seria uma ética pautada nas obrigações ou nos mandamentos, mas sob o desejo que se sustenta na falta. Na psicanálise, nos leva diretamente à questão: se o sujeito é culpado de alguma coisa, é de "ter cedido de seu desejo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 373). A ética do desejo apresenta uma relação entre o sujeito e o campo do Outro, entre o ser falante e o mundo. Para a psicanálise, a ética não diz respeito ao campo da moral, do testemunho e da obrigação, mas ao campo do vazio, da falta. Ou seja, fora do campo dos bens, que existem a partir da concepção do coletivo social. Lacan não aborda a estética distanciada da ética psicanalítica e de sua prática, ou seja, da clínica. A noção de estética em psicanálise a diferencia de qualquer outro discurso, pois está atrelada à dimensão ética do desejo.

Após esse breve percurso sobre a ética e sobre o desejo para a psicanálise, percebe-se que Lacan busca retomar aspectos da clínica freudiana sob outro campo: do real.

Portanto, o simbólico já não supre totalmente o real na experiência analítica, há um Mais, ainda , como indica Lacan no Seminário 20 (1972-1973/2008). Lacan, na década de 60, defende a relação que existe entre desejo e real, especialmente no Seminário 10 (1962-1963/2005), quando ele conceitua o objeto a como sendo causa de desejo. Lacan considera que nem tudo é investido pela imagem. Algo do próprio corpo não é especularizável, é o objeto a. Podemos situá-lo do lado do sujeito e do lado do parceiro do desejo, aquele outro que é investido na imagem e que possui um valor erótico: "De fato, o objeto definido em sua função por seu lugar como (a), o objeto que funciona como resto da dialética do sujeito com o Outro" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 252). Lacan considera, no Seminário 10, que o objeto a condiciona o desejo sob as formas de desejo oral, anal, escópico e voz.

O que vai nos interessar neste momento é a vertente escópica, em que o desejo está ligado à imagem. O desejo, para Lacan (1962-1963/2005), é a função de um corte que sobrevém no campo do olho desde os primórdios da nossa relação com o outro. Assim, a partir do ensino lacaniano, o objeto a como um objeto faltoso remete ao desejo, que mantém uma relação próxima com a falta, o que leva a concluir que o objeto a é causa de desejo. Mas é enquanto faltoso que o objeto, uma das espécies da Coisa, pode operar como causa de desejo. A proximidade da Coisa é insuportável e destrói qualquer sentimento estético.

 

Considerações finais

O sujeito que apresenta um câncer de mama se vc diante da contingência de um corpo afetado pelo real da castração. Entretanto, a clínica psicanalítica nos mostra o modo particular como cada mulher subjetiva esse confronto com o real.

Destacamos um fato comum a todas as pacientes que atendemos no ambulatório, que é a ausência do tema da morte em suas falas, mesmo nos casos mais avançados da doença. No Seminário 7, Lacan aborda o real como a Coisa, aproximando-o da pulsão de morte. O real é o vazio, o que o simbólico não apreende. A morte seria, portanto, o real, o impossível de simbolizar, o que torna compreensível a dificuldade dessas mulheres de abordarem o tema da morte. Em suas falas surgem, frequentemente, questões relativas à imagem corporal e à feminilidade. Nos dias atuais, o olhar ocupa um lugar de destaque, favorecido pelos inúmeros dispositivos tecnológicos de acesso e divulgação da imagem. Acreditamos que o olhar é um modo privilegiado de gozo na época atual. Lacan nos ensina que a beleza é apreendida através da pulsão escópica que permite ao sujeito ver o objeto e desejá-lo, desnudá-lo, gozar com isso.

Na clínica do hospital, deparamo-nos com duas principais respostas das mulheres ao vazio deixado pela retirada do seio. Na primeira, as mulheres buscam reconstruir a imagem corporal, tentando preencher esse vazio, dando-lhe forma e adornando-o, reconstruindo um véu que protege o real. Na segunda, observa-se a perda da capacidade de investimento na imagem corporal depois da cirurgia. Essas mulheres recobrem totalmente o corpo, evitam olhar-se no espelho, assim como evitam ser olhadas e, frequentemente, desenvolvem uma inibição sexual, recusando totalmente o ato sexual. Elas dizem que não se sentem mais femininas e desejáveis. Nos dois casos, constata-se a relação que as mulheres constroem entre beleza e feminilidade.

Lacan nos ensinou que o belo não remove o real, mas oferece uma distância estética dele, operando como uma barreira protetiva em relação à Coisa. Assim, o belo é um véu que recobre o real e causa o desejo, permitindo suportar o trágico e evitar a angústia diante da proximidade da morte.

 

 

Referências

Freud, S. (1901/1996). A interpretação dos sonhos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. IV. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1914/1996). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1923/1996). O ego e o id. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1929-1930/1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.

Lacan, J. (1949/1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, J. (1962-1963/2005). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, J. (1959-1960/2008). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, J. (1972-1973/2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar.

 

Artigo recebido em: 01/12/2014
Aprovado para publicação em: 21/02/2015

 

 

*Mestre em Psicologia pela UFMG. Psicólogo Clínico da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG.
**Pós-Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Doutora em Educação pela UFMG. Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.