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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

O ato de tatuar-se: gozo e identificação o ato de tatuar-se

 

The act of getting oneself tattooed: jouissance and identification

 

 

Sybele Macedo*; João Luiz Leitão Paravidini**

Universidade Federal de Uberlândia - UFU - Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo consiste em uma articulação teórica acerca do ato de tatuar-se e sua relação com o eu. Para tanto, os autores seguem bordejando a tatuagem, baseando-se, principalmente, nas conceituações de Freud e Lacan sobre o corpo, o sujeito e o eu. Este trabalho buscou discutir o ato de tatuar-se, tomando-o de maneira singular. Concluiu-se que esse ato pode remeter a uma forma de linguagem que aponta para a subjetividade, trabalhando a serviço da busca identitária e circunscrevendo-se no registro Simbólico. Pode também se apresentar como tentativa de fazer borda a angústias inomináveis, circunscrevendo-se no registro Imaginário. Entretanto, é no Real que a tatuagem se destaca. Considerada um hibridismo entre traço e letra, a tatuagem aproxima-se de formações do inconsciente e, portanto, é transcrita na carne e não passível de tradução, apenas de transliteração.

Palavras-chave: tatuagem, traço, inscrição, letra.


ABSTRACT

This article of a theoretical articulation on the act of getting oneself tattooed and its relationship with the ego. Therefore, the authors follow bordering the tattoo, based on, mainly, Freud and Lacan's conceptualizations about the body, the subject and the ego. This work aimed to discuss the act of getting oneself tattooed, taking it under a singular form. It was concluded that this act may refer to a form of language that points to subjectivity, working under the service of the identitary search and circumscribing itself on the Symbolic register. It may also presented itself as an attempt to make border to nameless anguishes, circumscribing itself in the Imaginary register. Nevertheless, it is on the Real that the tattoo is highlighted. Considered a hybrid between trace and letter, the tattoo approaches to formations of the unconscious and, for chat, borrowing concepts form Allouch, is transcribed in the flesh and is not subjectible of translation, only of transliteration.

Keywords: tattoo, trace, inscription, letter.


 

 

As tatuagens, hoje bastante difundidas em todas as camadas da sociedade, tiveram seu percurso histórico no Ocidente restrito a grupos bastante específicos, o que ainda contribui para os estigmas que essas demarcações corporais carregam. Geralmente, tendo sua história contada pelos próprios tatuadores, a tatuagem vem sendo objeto de estudo em diferentes campos de saber.

Este trabalho consiste em uma articulação teórica, oriunda de dissertação de mestrado1 através da qual buscou-se elaborar algumas proposições acerca da função psíquica exercida pela tatuagem na apropriação do corpo pelo sujeito e na constituição e manutenção do eu. Para tanto, tomou-se como base para abordar a tatuagem principalmente as conceituações de Freud e Lacan sobre o corpo, o sujeito, o gozo e o eu.

 

Abordagem histórica e contemporânea

Inicialmente percebida como arte exótica, a tatuagem foi introduzida nas sociedades ocidentais por viajantes e marinheiros, que, seduzidos por essa arte praticada pelos povos nativos das ilhas do Pacífico, resolveram tatuar os próprios corpos, além de aprender o ofício da inscrição corporal.

No final dos anos de 1960, com a contracultura, novas tribos urbanas, como roqueiros, motoqueiros e hippies , além de grupos mais radicais como os punks e os skinheads , foram apropriando-se dessa prática e adotando a tatuagem como uma marca corporal "através da qual ostentavam publicamente sua vontade de romperem com as regras sociais e de situarem-se deliberadamente à margem da sociedade" (Pérez, 2006, p. 180). Esses grupos mantiveram, contudo, a prática da tatuagem entre camadas ma rginais. Foi a partir da década de 1980 que a classe média passou a fazer o uso da tatuagem como adorno corporal, coincidindo com o culto ao corpo que passou a se disseminar no Ocidente. Nos ricos, a tatuagem passou a ser associada a um excêntrico bom gosto. Já entre os mais jovens, flertava como o imaginário da transgressão. Antes carregada de um sentido estigmatizador, a tatuagem tornou-se mais uma opção estética procurada pelas novas gerações.

Cada vez mais difundida, não é incomum nos depararmos com corpos tatuados em diferentes cenários e camadas da sociedade, o que justifica o interesse pelo estudo dessa prática. Osório (2006), em sua tese "O gênero da tatuagem: continuidades e novos usos relativos à prática na cidade do Rio de Janeiro", assinala que os usos atuais da técnica envolvem diversos fatores: marca de pertencimento a um determinado grupo social, adorno corporal com aspectos de fetichismo e sedução, representação imagética de crenças ou aspirações pessoais, amuleto mágico ou marca de uma mudança de status.

Programas que acompanham o dia-a-dia de tatuadores e seus clientes têm ganhado destaque na programação da televisão paga (Miami Ink, NY Ink e LA Ink exibidos no Brasil pelo canal TLC). Nesses programas podemos observar algo que se assemelha a sessões de análise dos motivos que conduzem o sujeito a se tatuar. Os tatuadores escutam enquanto furam o corpo do sujeito com inúmeras agulhadas, que se transformam em um desenho ou em uma escrita, aos quais eles se referem como sua arte. Há sempre um motivo para a escolha do tema, que varia de retratos de membros queridos da família a símbolos de poder e conquista, ou ainda desenhos escolhidos a fim de preservar a lembrança de um momento importante.

As pessoas que procuram os estúdios de tatuagem variam imensamente, como é possível perceber nos trechos extraídos do programa NY Ink (TLC, terceira temporada, 2013/2014) utilizados neste trabalho. Vimos desde jovens já bastante tatuados em busca de um novo desenho a uma senhora de 80 anos em busca da primeira tattoo. O nome dos programas faz referência à gíria utilizada em inglês para se referir às tatuagens e também ao lugar onde se localizam os estúdios acompanhados. A palavra ink , tinta em inglês, refere-se tanto ao líquido colorido utilizado para escrever, desenhar ou colorir algo como ao ato de colocar algo em tinta (Collins Cobuild, 1995) e é utilizado como sinônimo de tatuagem.

Nos programas, chama a atenção o fato de que a maioria dos clientes já possui algumas e muitas vezes várias tatuagens, remetendo-nos à característica aditiva que o ato de tatuar-se muitas vezes apresenta. No programa Tribos, exibido pelo canal GNT, uma das entrevistadas diz que, para ela, as tatuagens são "paredes para se proteger", mas se proteger de quê? Ao que nos parece, do real que invade e que carece de simbolização (Lacan, 1953/2005; 1959-1960/2008).

 

Tatuagem: imagem e traço

Na superfície da pele o sujeito inscreve um traço de outrora, uma lembrança, um marco, um nome, um desejo, um afeto (Macedo, Paravidini & Próchno, 2014). As tatuagens são, segundo Garcia (2006), vestígios que expõem o território da subjetividade pregada na carne.

Guinevere procurou o estúdio para tatuar matryoshkas (bonecas russas de empilhar), dizendo tratar-se de uma homenagem à melhor amiga:

É uma tatuagem para minha melhor amiga. A gente já passou por muita coisa juntas e agora ela me disse que vai ter um bebê e eu acho que é o melhor jeito de representar a minha amiga. Porque ela é russa e vai ter [...]. Eu conheço a Tatiana há uns 25 anos. A gente se conheceu e no primeiro dia de aula a gente brigou, eu peguei o sapato dela e saí correndo e a gente virou melhores amigas. Quando a gente era criança eu era desencanada e meio esquisita e ela tinha aquele monte de amigos, sabe? [...] Ela é advogada e eu sou cabeleireira. Mas ela é a minha melhor amiga. Nós temos um amor incondicional de irmãs. Ela estava comigo quando os meus pais morreram e também no nascimento do meu filho e eu tenho essa conexão superforte com ela, por tudo o que ela fez por mim (NY Ink2)

A mensagem que a tatuagem carrega traduz em iconicidade a representação figural de uma memória que para sempre permanece ali aplicada, como as bonecas russas que remetem Guinevere à relação com a amiga Tatiana e aos momentos de sua própria vida, como a morte dos pais e o nascimento do filho, nos quais a amiga esteve presente. Essa representação é somente alterada pelo envelhecimento, que faz com que as rugas do corpo reforcem o estatuto provisório da imagem tatuada, reforçando também o estatuto provisório das memórias a ela relacionadas.

Na ausência da palavra, o sujeito encontra outras formas de se expressar e de afirmar sua existência para si mesmo e para os outros (Macedo, Paravidini & Próchno, 2014), como explica Maria Carolina ao dizer que a tatuagem é a única forma de "demonstrar, marcar momentos significativos, marcantes" ao decorrer de sua vida3.

É preciso, portanto, "escutar" tais práticas como relacionadas à constituição psíquica que parecem remeter aos processos de construção do eu. Beneti (2012) sugere que devemos abordar a tatuagem a partir do laço social. Para isso é necessário pensar uma clínica que considere o sujeito, o objeto olhar e a pulsão. Assim, além da função que a tatuagem cumpre, devemos também escutar "a posição de cada um com relação à sua tatuagem, ao seu próprio corpo e ao endereçamento ao olhar do Outro" (Beneti, 2012, p. 6).

Ribeiro (2010) assinala que a instalação do traço unário, signo de aprovação pelo Outro durante o estádio do espelho, promove a restauração narcísica, marcando o sujeito pela semelhança, que o diferencia, estabilizando sua imagem. Segundo a autora, uma falta nesse processo pode levar uma pessoa a fazer significativas modificações voluntárias no corpo, às vezes irreversíveis. As intervenções voluntárias que provocam dor, cortes, marcas físicas e modificam a imagem corporal se caracterizam como intervenções sobre o real do corpo e parecem ser uma tentativa do sujeito de se apropriar do seu próprio corpo, de torná-lo seu.

As tatuagens aparecem, aqui, como uma forma de elaboração de algo que vem de si e que aponta para o real, embora esteja circunscrita entre o simbólico e o imaginário, por não levar o gozo em consideração. Em uma entrevista ao canal HBO, a atriz, roteirista, produtora e diretora Lena Dunham contou que, na adolescência, começou a engordar rapidamente e seu corpo alcançou formas que ela não reconhecia. Lena, que hoje ostenta diversas tatuagens espalhadas por todo seu corpo, quase todas com ilustrações de livros infantis, explicou que começou a tatuar-se para tentar retomar o controle do próprio corpo, que sentia ter perdido na puberdade, na tentativa de (re)apropriar-se dele e de inscrever, no simbólico, as mudanças concretas pelas quais estava passando.

Ao promover uma marca na carne, continua Ribeiro (2010, p. 63), é possível que essa marca se torne uma inscrição simbólica daquilo que sobrou, "de um mal-entendido na experiência com o Outro, que resta fora do registro simbólico".

A tatuagem, por não ser uma estrutura clínica, não é passível de uma interpretação única pela psicanálise. O que se pode, como assinala Costa (2010), é acompanhar sua tomada singular, ou seja, os efeitos que produz em cada um, acompanhando uma relação entre pulsão e signo que entra em causa nesses momentos. A tatuagem pode ser tomada como forma de linguagem que aponta para a subjetividade, trabalhando a serviço da busca identitária e circunscrevendo-se no registro Simbólico. Pode também ser apresentada como tentativa de fazer borda a angústias inomináveis, circunscrevendo-as no registro Imaginário. Buscaremos, nos parágrafos seguintes, circunscrevê-la, também, no registro Real.

 

Tatuagem: traço e letra

A tatuagem apresenta diferentes finalidades, desde ornamentais até curativas, passando pela marca identitária de provas iniciáticas. O uso das marcas corporais já serviu tanto para indicar uma marca nobre quanto degradada. Chama atenção, na tatuagem, sua dupla condição de fazer orifício, ao mesmo tempo que acrescenta elementos estranhos ao organismo (os pigmentos) como compondo o corpo próprio.

Através das tatuagens, o corpo recebe uma nova pele, escolhida por seu dono, que porta uma inscrição particular, afirma Ribeiro (2010). Mesmo que diga respeito a um desejo de igualdade ou à tentativa de inserção em um grupo, as tattoos não deixam de entrever a significação do traço sobre a pele. Essas inscrições corporais, assim como outras manipulações irreversíveis do corpo, portam a presença insistente da dor, pelo que "o marco do corte ou da modificação mórbida se torna sede de gozo" (Ribeiro, 2010, p. 64). Para a autora, "os pontos de gozo infligidos ao corpo são buscas incessantes de uma inscrição que possa ser recoberta por um significante que, ao bordejar o real, promove a reconstrução do sujeito" (Ribeiro, 2010, p. 64). Ao recobrir essas inscrições com um significante, imprime-se uma marca de identidade e identificação. Essa marca faz-se imprimir tal qual o traço unário (Lacan, 1961-1962/2003) que é significante de uma ausência e não de uma presença e, quanto mais distintivo, mais apagado está. Vemos que aqui a natureza da tatuagem aparece borrada, uma vez que ela já se encontra no Real.

Compreender as relações entre os diferentes suportes do corpo, naquilo que pressupõe de heterogeneidade radical, e também a forma que constitui sua contenção não é tarefa simples. Por heterogeneidade Ribeiro (2010) denomina o fato de que nosso organismo inclui símbolos e imagens em seu funcionamento. O que chama atenção tanto na tatuagem como nos piercings é a sua dupla condição de fazer orifício e de acrescentar elementos estranhos ao organismo como compondo o corpo próprio. Como corpo e imagem corporal não se diferenciam, também o que constitui elemento exterior (que seja um signo do Outro) faz parte do corpo. Isso que é exterior, que aparece como signo do Outro, está contido no discurso social, como Beneti (2012) já havia indicado ao sugerir que as tatuagens deveriam ser tomadas a partir do laço social.

Segundo Costa (s/ d, p. 2), a aproximação da tatuagem a uma formação do inconsciente, tal qual um ato falho ou os sonhos, pode ser feita de diversas maneiras, "na medida em que sua característica parece compor um hibridismo ente traço e letra". Ela é traço, pois traz elementos inscritos do campo do Outro, ao mesmo tempo que carrega em si o gozo da letra. Por isso, não podemos mais considerá-la somente como uma projeção identitária.

 

Escrituras corporais: perdas, memórias e gozos

Freud (1923/2006) afirma que a primeira representação de um dano narcísico na criança é por perda corporal, o que nos leva a concluir que as perdas marcam o corpo. Entretanto, afirma Ribeiro (2010) que, apesar das perdas (ou por causa delas), é possível construir uma imagem de corpo enaltecido.

Sydney, uma jovem de 18 anos conta ter descoberto ser portadora de uma grave doença chamada hipersonia idiopática que a faz senti r-se constantemente cansada sem que se saiba o porquê. Sydney quer fazer um desenho da Bela Adormecida envolta em rosas e espinhos e, ao ser tatuada, conta um pouco de sua história:

Isso começou em outubro de 2010, eu tinha febre todo dia e ficava cansada o tempo todo, não me sentia bem, eu tinha dores no corpo. Eu perdi 3 meses de aula e tive que fazer um monte de exames diferentes. Teve uma época que eu era espetada e furada toda semana. Eles não descobriram exatamente qual é o problema. Eu fiz um exame chamado estudo do sono. O resultado foi a hipersonia idiopática [...] (choro). Foi uma época muito difícil esse último ano e meio. Eu não pude fazer muita coisa. Eu não pude sair com os meus amigos tanto quanto eu queria. Eu ouço coisas na TV que meio que me assustam porque (Não consegue continuar falando pois está chorando bastante e é consolada pela mãe e pela tatuadora) [...]. Eu queria fazer os espinhos em volta da Bela Adormecida para representar as agulhas e todas as picadas que eu já levei. E isso me dá confiança de que tudo vai ficar bem [...]. A tatuagem faz eu me sentir mais forte e me dá motivação para seguir em frente e descobrir qual é a causa dessa doença que eu tenho (NY Ink).

A doença parece ter infligido a Sydney uma perda que necessita ser inscrita no corpo para que a jovem consiga (re)construir uma imagem unificada de si. Mais que sua função ornamental e, portanto, identificatória (uma vez que a personagem Bela Adormecida passa longos anos em sono profundo, o que remete à doença de Sydney), a tatuagem, aqui, parece carregar em si o gozo da letra. Sydney escolhe incluir espinhos em seu desenho para representar todas as "picadas" que já levou durante os inúmeros exames que fez e, para isso tem sua pele novamente furada (ou picada) pela máquina de tatuar, apontando aqui para a compulsão à repetição e, portanto, nos remetendo à pulsão.

No filme Amnésia, do diretor Cristopher Nolan (2000), o personagem principal não consegue construir novas memórias, esquecendo as coisas cada vez que as perde do campo perceptivo e, então decide tatuar-se com frases que lembram chaves para cada situação. No filme, a tatuagem aparece como instituindo um traço de memória. A relação da tatuagem como recurso para se lembrar de algo já se encontra no senso comum. Trata-se, para Costa (s/ano), de uma "lembrança" muito particular, porque é uma memória que se "perde". Isso, segundo a autora, tem grande interesse, pois, de acordo com a psicanálise, a memória resulta de um esquecimento necessário.

Não é incomum encontrarmos relatos nos quais a tatuagem aparece como recurso de memória. Mark, um fisiculturista, chegou ao estúdio para fazer uma tatuagem em homenagem à filha que adotou na Rússia:

Nós a adotamos na Rússia [...]. Minha esposa falou com uma agência sediada em Chicago e eles nos direcionaram para o programa russo. Quando vimos que não podíamos ter filhos, decidimos assumir o compromisso da adoção e tem muitas crianças por lá que estão realmente precisando de um lar. Nós recebemos a ligação dizendo "Ei, está tudo certo. Vocês têm 5 dias para chegarem à Rússia". Eu nunca havia entrado em um avião antes e foi bem difícil. Ela estava em um orfanato e tinha 15 meses. A mãe dela a levou direto para o orfanato dizendo que não tinha condições de sustentá-la. É muito comum [a adoção na Rússia]. É uma área extremamente pobre, principalmente toda a região da Sibéria. O orfanato em que ela estava tinha crianças de até 3 anos de idade e eu acho que tinha umas 50 crianças lá. Com a falta de atenção, aos 15 meses ela nem engatinhava. Assim que nós a vimos pela primeira vez, a gente soube que era para ela ser a nossa filha. Estava determinado. Levou uns 3 meses até a gente voltar para poder ir ao tribunal e poder trazê-la para cá. Foi uma espera longa de 3 meses. Ah é, ela era o bebê mais feliz do mundo naquela semana. Pela primeira vez na vida ela tinha pessoas que a amavam e ela tinha atenção e alguém para brincar com ela [...]. Minha filha tem 8 anos agora e ela é uma grande garota. Nós tentamos deixar que ela viva o máximo de experiências que ela puder [...]. É engraçado. Todo mundo chega e quando eles ficam sabendo da nossa história eles dizem: "ela tem tanta sorte que vocês foram até lá e a adotaram" e, sabe, é bem o oposto. Eu e a Liz é que temos sorte de estar com ela. A Maia é a menina mais incrível do mundo. Ela é o centro do meu mundo. E a coisa mais importante para mim agora é mostrar a ela o quanto ela é amada. O quanto ela significa para mim e para minha esposa [...]. A tatuagem será um lembrete permanente. Quando a Maia olhar para ela saberá o quanto eu a amo (NY Ink).

Embora Mark diga que a tatuagem é para mostrar à filha o quanto ela é amada, nos parece funcionar aqui como um traço, uma memória que não faz lapso e que se mantém presente no corpo. O marcar do corpo, afirma Costa (2009), pode ocupar o lugar da "memória" de um traço originário, traço este que se inscreve no encontro real/simbólico. A impossibilidade de recobrimento total de um registro pelo outro ocorre como efeito desse encontro, que aponta para o fato de que nossa condição de satisfação sempre está referida a uma perda. Essa perda atinge tanto os meios representacionais (o "furo" do simbólico) como também nossos objetos de satisfação. Esse encontro é da ordem de um recalque originário (Freud 1915a/2006, 1915b/2006, 1926 [1925]/2006) que institui a desnaturação das funções corporais, desnaturação esta que carrega a condição de que o corpo somente se suporta pela organização da linguagem, como produção de registros que possam realizar equivalências. É esse furo originário que institui o corpo como um objeto de circulação, ou seja, sujeito às trocas sociais (Costa, 2009).

Na adolescência, a tatuagem aparenta designar um suporte para a circulação social do corpo. A produção dessas marcas, afirma Costa (2008), tem a ver com a reconstituição de um circuito da pulsão, fazendo com que o corpo seja libidinizado, mas também, essencialmente, com que seja representado para o outro, principalmente na captura do olhar. A libidinização e o suporte representacional permitem dois movimentos segundo a autora: o de pertença a um grupo e o de expressão de um erotismo.

A tatuagem é uma "escrita que sulca o corpo, rasura a pele e estampa a sua marca indelével" (Couy, 2006, p. 222). As tatuagens, também chamadas de "grafito corporal" constituem-se como insígnia na singularidade e também do coletivo. " Tapeçarias da pele, a tatuagem é chamada a dar-se a ver ao se colocar frente ao olhar do Outro. Para além de uma escrita sulcada sobre a pele que se faz pergaminho" (Couy, 2006, p. 223), as tatuagens podem ser pensadas como quadros viventes ao exprimirem a relação do tatuado com os outros a partir do movimento de seu corpo, colocando o sujeito frente ao olhar e ao corpo do Outro. A "escrita da tatuagem" poderia ser entendida como uma maneira de bordejar e circunscrever o gozo se tomarmos como exemplo o depoimento de sujeitos de que uma tatuagem puxa outra, que puxa outra... "dando-se a ver como uma escrita que envelope o corpo, endereça-se ao Outro e se faz traço, inscrição" (Couy, 2006, p. 224).

Para a psicanálise, o corpo de carne e osso é moldado em uma imagem, desenhada e recortada pela linguagem, nos fazendo pensar, como aponta Bastos (2009), que os abusos no corpo indicam questões a serem esclarecidas sobre a sua constituição como imagem. O sujeito se vê capturado pela imagem porque é ela que, no início da vida, dá ao corpo uma unidade (como ocorre no estádio do espelho). Essa imagem é uma prótese imaginária, construída a partir daquilo que os pais significam à criança acerca de seu corpo, mas também a partir de algo invisível e indizível (o Real) e que possibilita que o infans, a partir dessa imagem possa dizer "eu" - pronome pessoal e também sujeito da ação. É a palavra que introduz na crença da imagem de si alguma abertura e a possibilidade de compadecimento do sujeito.

"Marcar o corpo pode provocar a faísca pulsional cuja intensidade transparece na vontade de continuar se tatuando" (Silva & Porchat, 2010). As motivações e a intensidade variam, mas a pulsação permanece dando ao ato de tatuar-se um caráter aditivo, como é possível observar em sujeitos que ostentam diversas marcas espalhadas por todo corpo e o fazem em um intervalo de tempo cada vez menor.

O momento em que o sujeito decide se tatuar parece dizer muito. Para Silva e Porchat (2010) as descrições do momento em que o jovem decide tatuar-se são importantes e

[...] revelam uma concentração perceptiva e mnêmica, nostálgica, em pessoas, situações, imagens e possíveis profissionais a quem confiar. Aparecem fantasias sobre a reação de cada personagem, real ou imaginário, presente ou futuro frente ao ato, antecipações de si no futuro, criação de narrativas para sustentar a escolha. Investimento maciço, um verdadeiro trabalho psíquico. Alguns dos jovens tatuados, ao dedicarem-se à criação desta imagem, revisitam sua própria história, interesses, memórias, entregam-se sem perceber a um processo de associação livre, cujo objetivo final é delinear uma imagem. Não uma imagem qualquer, mas um símbolo que represente o sujeito ou algo que lhe pareça fundamental naquele momento de sua vida. Assim, à sua revelia, sinais libidinais e interdições, identificações e repetições deixam suas marcas (Silva & Porchat, 2010, p. 352).

Silva e Porchat (2010, p. 352) propõem que os jovens podem, de maneira semelhante à figurabilidade onírica e alucinatória, "experimentar uma figurabilidade cujo substrato visível é corporal ". Assim como no sonho, explicam as autoras, "o inconsciente se presentifica em imagens que condensam deslocamentos, disfarçam significantes, vozes, vestígios do inconsciente. A finalização da imagem a ser tatuada torna-se ato ficcional, peça narrativa subjetivante do sujeito" (Silva & Porchat, p. 352-353). As autoras também observaram, em entrevistas, a fantasia de que a marca corporal revela um traço primordial, uma essência de si capaz de conferir consistência à encarnação subjetiva. Trata-se da crença de que uma imagem possa representar o sujeito melhor do que ele mesmo saberia mostrar ou dizer.

O jovem Arthur procurou o estúdio para tatuar uma águia americana no meio do peito. Arthur já tem várias outras tatuagens e fala ao tatuador sobre sua escolha:

[...] faz tempo que eu queria fazer a águia, ela simboliza várias coisas diferentes. Está no topo da cadeia alimentar, como predadora. É um bicho muito bonito, é uma linda ave e, sei lá, ela representa [...]. Eu tenho o rgulho em dizer isso: eu sou americano. Eu sou mestiço de coreano, mas nasci aqui. A minha mãe é coreana e eu fui criado num ambiente coreano e eu comi muita comida coreana, mas tive uma influência típica de americano. Eu me sinto tão americano quanto os outros. Todo mundo sabe que a águia é um símbolo americano, mas também simboliza os homens da família que serviram no exército. O meu avô, um dos meus tios e o meu pai eram do exército. É uma tradição e toda vez que algum homem da família vinha conversar comigo quando eu era moleque tentava me convencer a não me alistar. Deixaram bem claro que queriam que eu seguisse outro caminho. Faz dois anos que meu pai faleceu de um infarto. Isto é, com certeza, uma homenagem a ele. A minha história é diferente, mas eu quero homenagear os meus parentes que seguiram a tradição e a minha família (NY Ink).

Para Arthur, o desenho da águia marcado em seu peito porta a promessa de pertença tanto à cultura americana como à tradição dos homens de sua família que serviram ao exército. O jovem não só revisita sua história ao escolher a imagem da ave, mas acredita que ela possa dizer do que ele próprio seja capaz.

A configuração afetiva do processo de tatuagem, o desejo de representar aquilo que se tem por dentro e a característica dúbia interno/externo das tatuagens contribuem para que essas marcas sejam fantasticamente vividas como uma espécie de duplo, uma espécie de equívoco sobre o próprio eu, uma duplicação, divisão ou permutação do eu, afirmam Silva e Porchat (2010). Isso parece ocorrer aos moldes do que Freud (1919/2006) propôs em "O estranho" ao falar do sentimento inquietante que aparece sobretudo na ficção e que tem como característica principal o retorno de algo que já foi familiar e que ressurge provocando a angústia e um sentimento estranhamente familiar.

As imagens tatuadas muitas vezes acarretam experiências subjetivas vividas sob o signo da angústia, que se percebe em tentativas de apagamento ou de modificação da marca que parece não ter sido assimilada, incorporada e significada pelo sujeito. No entanto, o motor que impulsiona os sujeitos a se tatuarem não se encontra no imaginário, tampouco no simbólico. É no real que a tatuagem revela sua peculiaridade.

Ao ser tomada como um hibridismo entre letra e traço, a tatuagem se aproxima de uma formação do inconsciente, portando, então, mais que sua face identificatória e de pertencimento, algo que é da ordem do real, do gozo e que, portanto, não cessa de não se inscrever.

As tatuagens aparecem, assim, como uma tentativa de transcrever4 algo, no sentido da palavra proposto por Allouch (1995), ou seja, escreve-se com base em algo que se encontra fora do campo da linguagem e que, por isso, implica uma operação que aproxima a letra do registro do real. Desse modo, ainda que possa estar circunscrita nos campos Simbólico ou Imaginário, a tatuagem não pode ser traduzida5, por não ser regulada pelo sentido, mas por produzir um apagamento ao se inscrever. O que se pode tentar, ao trabalhar com a tatuagem, é transliterar, ou seja, operar, tal qual na situação analítica, partindo da transcrição. Essa operação não privilegia uma correspondência fixa entre um som e uma notação e nem entre uma imagem e um sentido. Consiste, sim, em uma leitura literal, em um deciframento, que considera o traço da repetição que insiste em se apresentar, mas não se limita isso.

 

Considerações finais

Buscamos, com este artigo, abordar o ato de tatuar-se e suas dobras, tecendo considerações acerca da função psíquica exercida pela tatuagem na apropriação do corpo pelo sujeito. Partimos da hipótese de que a tatuagem poderia vir a funcionar como uma suplência ao Imaginário, bordejando angústias, ou ainda como instrumento capaz de promover um apaziguamento momentâneo. De fato, concluímos que a tatuagem pode, sim, vir a fazer borda a angústias inomináveis, mas pode, também, remeter a uma forma de linguagem que aponta para a subjetividade ao trabalhar a serviço de uma busca identitária. Tais conclusões já haviam sido por nós vislumbradas e foram ilustradas por alguns dos excertos de entrevistas incluídos em nossa análise.

Mais interessante, no entanto, foi percebermos que circunscrever a tatuagem apenas nos registros Simbólico e Imaginário se mostrou insuficiente para compreender a relação do ato de tatuar-se com o eu. Há, no ato de tatuar-se, algo que transborda e que não pode ser traduzido, uma vez que se insere na lógica das formações do inconsciente e que, portanto, nos remete ao inominável do gozo, e ao Real.

Desconsiderar esse aspecto da tatuagem seria ignorar sua dimensão mais rica. Tatuar-se é transcrever na pele algo que escapa à interpretação. A tatuagem é traço por trazer elementos inscritos do campo do Outro, mas também é letra, pois carrega em si o gozo da letra. A tatuagem, embora seja mostrável, porta em si um apagamento que opera aos moldes do recalque. É esse apagamento que permite que a memória venha a se construir a partir do recobrimento dos significantes.

Dessa forma, seria interessante tomar a tatuagem tal qual uma transcrição e, portanto, fazer uma transliteração6 para construir, a partir dos furos na pele e dos desenhos nela deixados, novos sentidos.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 10/12/2014
Aprovado para publicação em: 18/01/2015

 

 

*Psicóloga clínica, Mestranda em Psicologia Aplicada - Eixo Intersubjetividade - Instituto de Psicologia - UFU, Uberlândia, MG.
**Psicanalista, Professor Associado Universidade federal de Uberlândia- MG. Doutor em Saúde Mental (UNICAMP).
1Macedo, S. (2014). O ato de tatuar-se e sua relação com o eu. Dissertação de Mestrado defendida em 30/10/2014. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia.
2A partir de agora neste texto assim será identificada a citação correspondente ao programa NY Ink, terceira temporada, episódio 2, Canal TLC, 2014.
3<http://idflordapele.blogspot.com.br/2010/05/depoimentos-de-pessoas-que-tem-tatuagem.html>, acessado em 12/01/2014.
4A transcrição é, segundo Allouch (1995, p. 15), uma operação na qual o escrito é regulado pelo som. Transcrever é "escrever regulando o escrito com base em alguma coisa fora do campo da linguagem" e implica uma operação que aproxima a letra do registro do real ao procurar transcrever a característica fonética da fala, de forma independente do sentido ou dos jogos de linguagem que a fala comporta. Trata-se de uma tentativa de registrar a coisa tal qual ela é, esbarrando-se, no entanto, na impossibilidade de fazê-lo.
5Traduzir é "escrever regulando o sentido pelo sentido. A operação tem a ver com o imaginário, tanto mais quanto o tradutor, tomando o sentido como referência, é levado a desconhecer sua dimensão imaginária" (Allouch, 1995, p. 16). A tradução tenta apagar a dimensão equívoca e procura aproximar-se, ao máximo, do suposto sentido original; no entanto, "a profundeza do sentido cresce na proporção inversa da literalidade daquilo que se traduz" (Allouch, 1995, p. 16).
6Transliterar, de acordo com Allouch (1995, p. 16), "é escrever regulando o rescrito pelo escrito". Trata-se de uma operação simbólica, própria da situação analítica, na qual o escrito é regido pela letra, o que quer dizer que essa operação tem seu ponto de partida na transcrição. Tal operação consiste em uma leitura literal, que merece ser designada como um deciframento ao modo do que Champollion fez diante dos hieróglifos em que o que muda não é o que está ali escrito, mas a forma de ler, sem que se privilegie a correspondência entre som e uma notação ou entre uma imagem e um sentido.