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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

O lugar do analista e a ética do desejo

 

The analyst position and the desire ethics

 

 

Elizabeth Cristina LandiI, II, III*; Daniela Sheinkman ChatelardIII**

IPontifícia Universidade Católica de Goiás - PUCGoiás - Brasil
IIUniversidade Federal de Goiás - UFG - Brasil
IIIUniversidade de Brasília - UnB - Brasil

 

 


RESUMO

A posição ética do analista na clínica está em questão neste trabalho, que faz uma retomada dos fundamentos da psicanálise para questionar se, diante das particularidades dos sujeitos que procuram análise, há modos distintos de o analista posicionar-se clinicamente. A direção da análise é conduzida pelo analista, que estabelece o espaço e o tempo da sessão como limites para a experiência subversiva da associação livre. Para sujeitos que funcionam de modo intempestivo, depressivo, que apresentam sintomas aditivos e somáticos, pode ser necessário rever as táticas usuais da análise, tais como o uso do divã. Cabe ao analista a liberdade tática de escolher suas intervenções, desde que estas estejam a serviço da associação livre, estratégia proposta por Freud para acontecer uma análise. Quanto à política, não há negociação: trata-se da ética da psicanálise, pautada na falta-a-ser, que norteia a análise rumo ao reconhecimento e à responsabilização pelo próprio desejo.

Palavras-chave: clínica psicanalítica, ética, lugar do analista.


ABSTRACT

The ethical analyst position on clinic is in emphases at this paper, that goes back to the psychoanalysis foundations to ask if facing particularities of the subjects that look for analyses, exists different ways that the analyst could clinically position itself. The analyses direction is conducted by the analyst that establishes space and session time limits to the subversive experiment of free association. For subjects that work in untimely, depressive mode that presents additive and somatic symptoms, it may be necessary to reverse the usual strategy analysis as the couch use. Is due to the analyst to choose the intervention, since those are in service of free association, strategy proposed by Freud to be analysis. As for policy, there is no negotiation: it is the ethics of psychoanalysis, based on the lack-to-be, which guides the analysis towards the recognition and accountability by the desire itself.

Keywords: psychoanalytic clinic, ethics, analyst place.


 

 

A clínica psicanalítica inaugurada por Freud se sustenta em alguns pressupostos fundamentais oriundos da experiência freudiana, os quais denunciam a verdade do desejo inconsciente, que se manifesta conferindo significação à aparente ausência de sentido dos sintomas. Todo psicanalista que se filia ao fundador da psicanálise parte de seus fundamentos para reeditar singularmente o tratamento pela fala, sustentando na transferência a escuta do inconsciente. A novidade do tratamento psicanalítico foi, há mais de cem anos, reposicionar os lugares discursivos, descentrando o analista da cena e situando o analisante como seu protagonista. Eticamente uma nova técnica é estabelecida, deslocando o saber do hipnotizador, do sugestionador, para o sujeito que sofre.

Passados tantos anos, o que tem um analista feito na sua clínica? Sua posição ética se mantém a mesma dos tempos de Freud? Diante das particularidades dos sujeitos que procuram análise neste século, o analista desenvolve modos distintos de posicionar-se clinicamente dependendo do sujeito que o procura para tratamento? Se comparecem os chamados "casos limites", cabe ao analista transformar seu fazer clínico? Essas são questões que estão no horizonte da discussão aqui proposta, que serão encetadas a partir das referências freudianas, lacanianas e de psicanalistas contemporâneos.

 

A novidade freudiana

Retomando os primeiros tempos da clínica freudiana, encontramos um belo artigo em que Freud (1905 [1904]/1989) começa seu trabalho de distinguir com precisão a clínica psicanalítica da clínica sugestiva. Ele convoca o saber do artista Leonardo da Vinci quando descreve a diferença entre a pintura e a escultura para comparar o trabalho analítico com o sugestivo. Enquanto o pintor deposita a tinta na tela, como faz o sugestionador ao preencher de sentido o dito do sujeito, o escultor retira da pedra o que recobre a escultura ali contida, tal como o analista, que extrai do analisante um dizer acerca do saber que o constitui.

Essa bela metáfora aponta a construção de uma clínica que evidencia uma novidade técnica, que destitui o clínico do seu lugar de fazedor e institui o trabalho do lado do sujeito que demanda ajuda, efeito da sensibilidade de Freud quando se dispõe a calar seu saber e deixar o sujeito falar. A associação livre é assim o meio pelo qual o sujeito pode dar-se à verdade inconsciente, e se orienta na singular regra enunciada por Freud (1912b/1969, p. 154) que pede ao analisante que fale livremente o que lhe vier à cabeça e na sua contrapartida, que convida o analista a abandonar-se ao inconsciente, voltando "seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente". Ao analista cabe não selecionar do material algo em específico, mas sustentar a atenção suspensa. A proposta freudiana é ousada porque convida analista e analisante a se entregarem ao trabalho do inconsciente, uma experiência que ultrapassa os códigos engessados e pré-estabelecidos do trabalho pautado na razão consciente. A experiência de análise, que convoca analisante e analista a uma entrega guiada por outra lógica, deve ser cuidada, dirigida pelo analista.

Freud expôs, na série de artigos compilada pelo editor inglês das suas obras como Artigos sobre técnica, recomendações que podem ser entendidas como conselhos ou indicações para os analistas iniciantes. Neles expõe pontos importantes para o início do tratamento, tais como o modo de tratar o dinheiro, o tempo, o uso do divã e nomeia esses pontos de "condições de tratamento" (Freud, 1913/1969, p. 176). Essas indicações freudianas foram tomadas de forma estandardizada e concebidas por alguns pós-freudianos como regras a serem seguidas fixamente, enquadradas no que se convencionou com o nome de setting analítico.

Freud não pautou seus conselhos em uma normativa acerca do tratamento analítico, sequer utilizou o termo setting em sua obra. Entretanto, tal noção foi amplamente adotada por vários analistas vinculados à Associação Internacional de Psicanálise, numa tentativa de delimitar, muitas vezes de forma rígida, elementos que estão em jogo durante as sessões de análise. Criticando esse uso restrito do setting, Green (1990) situa-o como espaço psíquico que inclui a delimitação de horários, honorários, duração da sessão e a própria regra fundamental da psicanálise. Nesse sentido, "o analista é o guardião do setting" (Green, 1880, p. 18). Estabelecendo o contorno da análise, o setting oferece ao analisante e também ao analista o limite entre o dentro e o fora e funciona como lei que rege o que é permitido e o que é transgressão no trabalho analítico, cria um limite para que dentro da análise o analisante possa fazer a experiência subversiva de associar livremente.

Interessante a posição desse psicanalista que propõe um questionamento acerca do desenho do setting mediante os chamados "casos-limites", isto é, sujeitos cuja estrutura não é determinada, mas é "como se no interior da estrutura psíquica os núcleos psicopáticos, perversos, toxicomaníacos, depressivos, delirantes travassem uma luta uns contra os outros para saber qual deles conseguirá apoderar-se da totalidade da estrutura psíquica" (Green, 1990, p. 20). Para esses sujeitos que funcionam de modo intempestivo ou severamente depressivo, podendo cometer passagens ao ato e sintomas aditivos e somáticos, é necessário repensar o enquadre clássico que dispõe o analista apassivado e rigidamente aferrado às normativas do que compõe o setting. Assim, o autor sugere uma abolição dos limites da atividade racional do analista, que deve "poder saber perder-se, poder esquecer a categorização do pensamento que lhe é própria em tempo normal" (Green, 1990, p. 21).

Perder-se é deixar-se conduzir pela escuta flutuante da associação livre produzida pelo analisante, é justamente colocar em ato a experiência do inconsciente, a análise de inconsciente para inconsciente. Tudo isso convoca o analista a entregar-se ao trabalho do inconsciente, que implica em deixar o raciocínio teórico como um pano de fundo que está ali, mas não rouba a cena do dizer do analisante. A clínica psicanalítica implica a experiência do analista como analisante, que fez a experiência do inconsciente em seu próprio percurso de análise, o que não coincide com a apreensão teórica, racional da teoria. O raciocínio teórico é deslocado e, se esse saber entra em operação, o analista poderá tratar teoricamente do que se deu na situação analítica num tempo posterior (só-depois), pois no ato analítico, enquanto este acontece, o analista é atravessado pela experiência do inconsciente, que promove uma escuta operada pela ressonância que o dizer do analisante produz em sua escuta.

A ideia de ressonância está em Freud (1912b/1969) quando este apresenta a metáfora do receptor telefônico, o analista, diante do microfone transmissor, o analisante. O analista faz alguma coisa com os derivados do inconsciente que vêm do analisante e ressoam nele, pelo que oferece como escuta. Algo do analista entra na operação da escuta, algo de que ele pode se valer por ter sido moído na própria análise e por isso possibilita-lhe ser ofertado sensivelmente ao sujeito que está sendo escutado. Trata-se da falta, dimensão constitutiva do sujeito e já enunciada por Freud (1937/1969) quando aponta a castração como o limite do que pode ser curável. Lacan (1962-1963/2005), porém, aborda essa problemática da castração como um ponto de partida, pois não é possível curar-se da própria divisão subjetiva. Cabe ao candidato a analista fazer na própria análise o percurso de reconhecimento de como é seu trato com essa divisão, consequentemente com a falta. Daí, portanto, dessa falta como cerne do seu ser ele poderá fazer uso para que o que vem do analisante ressoe nele como escuta do desejo inconsciente.

 

Crítica lacaniana e retomada da descoberta freudiana

Enquanto estabelecia os primeiros momentos de seu ensino, Lacan trabalhou a partir da denúncia dos equívocos cometidos pelos psicanalistas da era pós-freudiana, engajando-se ardentemente na crítica à estandardização e às ilusões em que se pautavam. Analistas se colocavam, e ainda hoje há certas vertentes que se mantêm nesse registro, numa relação a dois com seu analisante, o que fez Lacan (1953-1954/1986) no seu primeiro seminário gritar: análise não é a dois, mas a três! E esse terceiro que compõe a análise não é de ordem metafísica ou mística, mas simbólica. "Se a palavra é tomada como ela deve ser, como ponto central de perspectiva, é numa relação a três, e não numa relação a dois, que se deve formular, na sua completude, a experiência analítica" (Lacan, 1953-1954/1986, p. 20).

O terceiro é aqui tomado como o Outro da linguagem, o inconsciente que está na análise entre analista e analisante é o inconsciente que não é nem de um nem de outro, mas se materializa na fala do analisante e nas intervenções do analista. Nesse sentido é possível pensarmos que cada analisante tem um analista, o qual não é o mesmo com todos os sujeitos que escuta, porque se esvazia da sua condição de sujeito e discursivamente encontra-se no lugar de objeto da transferência no dispositivo analítico. Freud (1912a/1969, p. 139), ao tratar desse conceito fundamental da psicanálise, aponta o lugar de "objeto de seus impulsos emocionais" ocupado pelo analista em relação ao analisante na transferência.

Na análise, a partir dos encontros preliminares, nas entre-vistas, analista e analisando fazem um par que de saída já é ímpar, porque o terceiro da linguagem atravessa essas vistas, essa relação imaginária, e impõe-se como possibilidade de haver o tratamento pela fala (Quinet, 2000). O problema é que alguns analistas tenderam a enfatizar a relação pautada no imaginário em detrimento do simbólico, comprometendo o princípio que fundou o campo freudiano e instituindo uma moral que beirou o charlatanismo. Se a análise é a dois, entre semelhantes, trata-se do engodo imaginário, em que um eu forte pode até mesmo servir de modelo, Ideal-de-eu, ao eu fraco. Esse campo está aberto a toda sorte de rivalizações, ciúmes, luta de prestígio. Além disso, essa versão dual da análise oferece ao analista a ilusão de que ele tem o que falta ao analisante e pode oferecer-lhe, como a mãe oferece o seio à criança. Ao denunciar a ocupação do lugar de Ideal-de-eu pelo analista, que se colocava como modelo a ser imitado, Lacan recupera o lugar ético inaugurado por Freud (1914/1969) quando este entrelaça a ética à técnica psicanalítica para argumentar a motivação que impede o analista de dar uma resposta à demanda de amor do analisante. Freud está apontando uma referência Outra, para além dos ideais narcísicos do analista, uma referência ao que constitui fundamentalmente o sujeito enquanto desejante.

 

O saber é do inconsciente, não do analista

Seguindo a comparação freudiana da situação analítica com o jogo de xadrez, Lacan (1958/1998) a aproxima do jogo de cartas bridge. Segundo ele, "o analista convoca a ajuda do que nesse jogo é chamado de morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que do analisado será parceiro" (Lacan, 1958/1998, p. 595). Assim, o lugar dos sentimentos do analista é o lugar do morto, por isso o questionamento acerca da contratransferência, isto é, da colocação em jogo dos sentimentos do analista. O quarto jogador que se espera no jogo é o sujeito do inconsciente.

Milan (1985) retoma o esquema L e o texto lacaniano acerca da direção do tratamento e evidencia que no campo do no campo do Outro jogam analista (a') e o morto (A) e no campo do sujeito, o analisante (a) e o sujeito do inconsciente ( ). O analista joga com o Outro, seus sentimentos estão aí, mortos, e ele ocupa o lugar tanto do semelhante (a') quanto do dessemelhante (A), basculando entre um e outro. Esse é um modo de pensar o lugar do analista num entre, pois não é possível, nem na situação analítica, prescindir do imaginário, ainda que se almeje o simbólico. Assim, o analista transita entre o lugar de outro semelhante e de Outro simbólico.

Essa báscula torna possível desimaginarizar a relação analítica, quer dizer, a partir dessa báscula a questão para o analisando deixa de ser "o que ele quer de mim?" para ser "quem sou eu?". Há uma ruptura da relação imaginária, à qual se segue essa báscula e a produção do sujeito do inconsciente (Milan, 1985, p. 116).

A ocupação do lugar do analista implica necessariamente na passagem da relação imaginária ao eixo do simbólico, do inconsciente, pois o imaginário faz barreira à emergência do sujeito do inconsciente, uma vez que se caracteriza pela significação pelo saber sabido e ilusoriamente consistente da imagem.

A parceria entre eu e sujeito do inconsciente no campo do analisante indica a própria divisão do sujeito. Assim o eu (a) se apresenta na análise e, a partir da escuta de sua mensagem que lhe retorna do seu semelhante (analista ocupando o lugar do outro, de a'), se movimenta numa referência ao terceiro, ao Outro, abrindo a possibilidade de advir o sujeito do inconsciente, o sujeito desejante. A clínica revela essa produção especialmente quando a análise avança e o analisante, em associação livre, tropeça, comete os acertados atos falho e se oferece à escuta como sujeito do inconsciente, dividido pelos significantes que são ali produzidos.

O esquema apresentado no texto de Milan (1986, p. 116), que se pauta no esquema L de Lacan (1955/1998) é esse:

Outra questão importante é que a predominância do eixo imaginário indica a presença do que resiste à análise. O simbólico insiste, se apresenta à revelia do eu, que é a sede das resistências e se organiza para tentar barrar a insistência inconsciente. Mas na análise o lugar do analista implica justo instalar o Outro em cena e, se há resistência, esta advém do analista na medida em que este não se movimenta nessa direção, ficando aprisionado ao lugar de outro semelhante (a'). Obviamente o analisante, que entra justamente com sua posição egoica, resiste, pois é próprio do eu defender-se do desejo inconsciente, mas cabe ao analista, a partir da frequentação ora do lugar de semelhante, ora de dessemelhante, não resistir. Se há resistência e esta é do analista, a transferência é tomada pela sua face imaginária, lugar do espelhamento, da rivalidade, da agressividade e da sugestão (Lacan, 1953-1954/1986). A análise propriamente dita se dá pela via da transferência simbólica, em que o analista, podendo suportar o lugar de objeto, dá lugar à produção dos significantes pelo analisante, o que possibilita ao sujeito do inconsciente emergir.

A dimensão ética da análise situa-se, portanto, no reconhecimento do desejo inconsciente por parte do analisante, possibilitada pelo lugar de objeto ocupado pelo analista. É nesse sentido que Lacan (1953-1954/1986, p. 33) critica a noção de contratransferência amplamente utilizada por alguns analistas, especialmente os de tradição inglesa. Para ele, "a contratransferência nada mais é do que a função do ego do analista, o que chamei a soma dos preconceitos do analista". A função egoica explicitada por Lacan faz com que analistas acreditem que seus sentimentos devem ser expostos ao analisante a fim de movimentar a interpretação na análise. No entanto, ainda que Freud (1915 [1914]/1969) tenha mencionado a contratransferência, sua indicação foi para que o analista a mantivesse sob seu jugo. Todas as recomendações freudianas aos analistas vão nesse sentido, de que o analista se coloque numa posição de abnegação, ao que Lacan (1958/1998, p. 595) chamará de lugar de morto, comparando o jogo analítico ao jogo de cartas. Assim, "os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse jogo: o do morto".

Ao abandonar a consistência imaginária, o analista se situa no simbólico, tomando as referências à sua pessoa como endereçadas ao Outro do analisante. Por isso, nessa empreitada que é a análise, não há somente o investimento do analisante, mas também o analista paga com suas palavras, ao oferecer interpretação às palavras que escuta do analisante; paga com sua própria pessoa, ao se dispor a ser suporte transferencial das ideias libidinais que lhe chegam e paga com seu ser, oferecendo-se como falta-a-ser (Lacan, 1958/1998). O enfrentamento da própria castração, percorrida na travessia da fantasia num percurso de análise, engendra a experiência de falta-a-ser do sujeito que virá a ocupar o lugar de analista e lhe possibilita escapar ao exercício de poder quando dirige a análise de um sujeito.

Essa é outra especificidade da psicanálise, que por princípio desfaz as amarras entre saber e poder. Se o que opera em uma situação clínica é a junção entre saber e poder, não há análise, pois o laço social estabelecido é o de mestre e discípulo, senhor e escravo, laço este que escamoteia o sujeito e por isso torna impossível a fantasia. Sendo assim, do sujeito do inconsciente nada se quer saber (Lacan, 1969-1970/1992). A psicanálise, no entanto, opera justamente a partir de saber da fantasia, do sujeito do inconsciente, e para isso o laço transferencial se faz na medida em que a equação "saber é igual a poder" falha, enguiça, o que se pode constatar quando o analisante apresenta as formações do inconsciente, como o sonho, o ato falho. Na produção de um ato falho, mesmo que se saiba o que se quer falar, não se pode falar como se sabe. O saber da consciência é então ultrapassado pelo saber do inconsciente, produzindo um ato acertado, não falho, pois nele o sujeito do inconsciente se revela. Nesse sentido, o saber é do inconsciente, não é do analista. Este se situa como objeto, dá ao analisante a palavra e o deixar falar, pela via da transferência.

 

Ética psicanalítica: despertar para o desejo

Freud (1912b/1969), quando faz suas " Recomendações" aos que se candidatam a ocupar o lugar da escuta analítica, estabelece o princípio da abstinência, que implica numa posição a ser ocupada pelo analista que abre mão do seu saber/poder para que o sujeito a aparecer na análise seja o analisante. Está aí a dimensão ética da técnica psicanalítica, pois, ao selecionar o material escutado, o analista corre o risco de seguir "suas inclinações e expectativas" (Freud, 1912b/1969, p. 153). Além disso, se o analista sabe, ele pode se aferrar à ambição terapêutica e educativa, que são perigosas para a análise. Tudo isso está explicitado em Freud (1914/1969, p. 219) quando ele indica que "os motivos éticos se unem aos técnicos" para impedir o analista de dar ao analisante uma resposta à sua demanda. Responder à demanda de cura, por exemplo, é fazer calar e a análise pretende fazer falar.

Nesse sentido, a ética inaugurada pela psicanálise se diferencia da ética filosófica que pressupõe a existência de um Bem supremo pela qual as profissões estariam a serviço de buscar o bem-estar do outro numa referência a princípios universais. Foi nesse rumo que alguns psicanalistas deturparam o mal-estar denunciado pela produção freudiana e forjaram uma psicanálise normatizante e adaptativa, em prol do desenvolvimento genital e do engodo do encontro com o objeto adequado à sexualidade. Entretanto, a ética da psicanálise freudiana, a partir da qual o analista orienta sua escuta, implica em promover o acesso à verdade recalcada do desejo, que se faz levando em conta a singularidade. É uma aposta no sujeito e na possibilidade de ele se responsabilizar por sua posição inconsciente (Costa, 2006).

Lacan (1958/1998) evidencia que é o analista que dirige o tratamento e faz uso de uma metáfora bélica, desenvolvida por Clausewitz, teórico e historiador militar prussiano que formulou uma teoria da guerra, cuja ação estaria subordinada à política (citado por Laurent, 1995). Tanto na guerra quanto na análise há uma tática, uma estratégia e uma política e o analista "é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser" (Lacan, 1958/1998, p. 596). A liberdade tática que o analista tem é de escolher a quantidade e a qualidade de suas intervenções, o que pode acontecer independente do setting, ou seja, do enquadre que rigidamente dispõe analisante no divã, analista na poltrona e marca a sessão pelo andamento dos ponteiros do relógio. Mas essa tática livre está subordinada à estratégia que diz respeito ao trabalho com o inconsciente, produzido pelo analisante por meio da associação livre, da fala, que se produz na transferência. Quanto à política, não há negociação: ela se pauta na falta-a-ser e pretende que o sujeito reconheça e se responsabilize por seu desejo inconsciente, levando em conta necessariamente a falta que lhe é constitutiva. É essa a ética da psicanálise.

Por princípio, portanto, a análise se sustenta numa posição ética, que diz respeito ao desejo. Pode-se perguntar, então, a qual desejo o analista responde quando é colocado nesse lugar pelo analisante. "A experiência analítica visa, em última instância, ao despertar" (Jorge, 2010, p. 223). Despertar para o desejo, acordar do sono que aprisiona, possibilitar ao sujeito reconhecer sua posição de assujeitamento aos significantes do Outro, ao mesmo tempo desinflar o excesso de significação por eles produzida e promover algum acesso ao real. Nesse sentido, o desejo do analista é "desejo de despertar o desejo de despertar" (Jorge, 2011, p. 161). Atravessar a fantasia é percorrer simbolicamente o saber inconsciente e chegar o mais próximo possível do limite do seu núcleo, para o qual não há representação possível, isto é, o real. Diante desse real, resta ao analisante desejar, criar, fazer algo a partir desse nada, fazer algo com a falta-a-ser. O final da análise pode, então, convocar o sujeito a frequentar o lugar de objeto para outro sujeito, isto é, levá-lo a bancar o objeto no faz-de-conta da cena analítica de um outro.

Assim, o lugar de analista envolve sim um perder-se, uma entrega ao real. Segundo Didier-Weill (2012), "não há ser analista", uma vez que o ser é permanente. Há o ato analítico, que implica um atravessamento de uma Outra ordem no fazer do analista. Para que haja análise, é preciso não ser. Não sendo, o analista pode vir a dar passagem ao ato analítico, que é cometido tal como o ato falho. "O sujeito, na verdade, é sempre ultrapassado por seu ato, que, enquanto tal, é tão incalculável quanto incontrolável" (Quinet, 2000, p. 106). É por isso que, a partir dos apontamentos lacanianos, vários são os psicanalistas que aproximam o ato analítico ao ato poético, criativo. Cai por terra, portanto, a dimensão pré-formatada que poderia assegurar ao analista o enquadre do seu fazer e abre-se a possibilidade de experimentar a surpresa, própria ao olhar da criança que desperta para o novo. O ato analítico desperta para o desejo, libera o sujeito para o que antes impedia a surpresa (Didier-Weill, 2011).

Em relação aos "casos-limites", pode-se pensar que o analista necessitará modificar sua tática usual utilizada quando trata de um neurótico comum. Se para esses sujeitos se oferece o divã e o convite a associar livremente, após um período prévio de entrevistas, para outros, que estão lidando mais diretamente com o limite da vida, um manejo transferencial diferente é necessário e o analista é livre para lançar mão do que lhe convier, para criar as condições de simbolização que forem possíveis ao analisante. Trata-se, nesses casos, de fazer emergir o simbólico, chamar, adotar uma posição vocativa, numa aposta de que há ainda algo a ser falado, pois o real da morte do corpo ainda não chegou, ainda que esteja à espreita. Vivès (2012) apresenta dois modos de apelo, um referido à pulsão de morte, que parece acometer de modo mais gritante certos sujeitos, e o apelo simbólico, que será adotado pelo analista, chamando-o para lançar-se em outro lugar. Referindo-se ao significante utilizado por Lacan para nomear o analista - sujeito suposto saber -, Vivès (2012, p. 35) diz que, nessas condições, cabe ao psicanalista trabalhar como "sujeito suposto saber que há sujeito". Se há sujeito, há, ainda que por um fio, pulsão de vida entrelaçada à pulsão de morte, e ao analista cabe apostar na existência do sujeito desejante, apesar de todo o real que esse analisante lhe apresenta. A aposta é que o sujeito possa vir a retomar sua condição de falante e quem sabe a análise continuar.

Ao orientar-se eticamente a partir do desejo, que é do Outro, o analista trabalha lançando mão de táticas não padronizadas, visando o estabelecimento da transferência para que sua estratégia seja atendida, isto é, para que haja associação livre, trabalho do inconsciente na análise. No entanto, há limites não somente do lado do analisante, mas também da própria psicanálise.

Desde o início, quando Freud (1905 [1904]/1989) anunciava as diferenças entre psicanálise e psicoterapia, também apontava os limites daquela, que, segundo ele está distante do ideal de uma terapia que recomenda que seja um tratamento "Seguro, rápido e agradável" numa referência a Esculápio, deus da medicina e da cura na mitologia greco-romana. A ambição da psicanálise é mais modesta, pois leva em conta a pulsão de morte, o real que está em jogo na constituição do sujeito, na formação de seus sintomas e na possibilidade de fazer algo novo com Isso. Apesar disso, o lugar do analista é da mesma ordem do lugar do inconsciente, é de insistência, de movimentação da vida que ainda pulsa.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 06/10/2014
Aprovado para publicação em: 08/12/2014

 

 

*Psicanalista, docente do curso de Psicologia da PUCGoiás e da UFG, membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.
**Psicanalista, membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.