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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

Neurose obsessiva ou TOC?

 

Obsessive neurosis or OCD?

 

 

Juciano Menezes Lima*; Ana Maria RudgeI, II**

IUniversidade Veiga de Almeida - Brasil
IIAssociação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental - Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo discute a contribuição da psicanálise à teoria da neurose obsessiva, em face do atual prestígio dos manuais classificatórios e do avanço das neurociências. O esfacelamento da neurose obsessiva como unidade clínica e sua substituição pelo transtorno obsessivo compulsivo (TOC) pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) é discutido. Depois de observações sobre a especificidade epistêmica das duas abordagens, conclui-se que a psicanálise tem muito a contribuir numa abordagem multidisciplinar da psicopatologia na medida em que sua posição teórica particular valoriza a fala e a história do sujeito, em sua singularidade.

Palavras-chave: neurose obsessiva, psicanálise, DSM.


ABSTRACT

This article discusses the contribution of psychoanalysis to the theory of obsessional neurosis, in this time of great prestige of the diagnostic and statistical manuals and advancement of neurosciences. The disintegration of obsessional neurosis as a clinical unit, and its replacement by obsessive compulsive disorder (OCD) by the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) is discussed. After observations on the epistemic specificity of the two approaches, the conclusion is that psychoanalysis has much to contribute to a multidisciplinary approach to psychopathology in that its particular theoretical position values speech and the history of the subject, in its singularity.

Keywords: obsessional neurosis, psychoanalysis, OCD.


 

 

Introdução

Em tempos de atualização dos manuais estatísticos e diagnósticos, a exemplo do recente DSM-V, que instaura, a partir de um método descritivo, uma proliferação de mais e mais transtornos, a abordagem da teoria psicanalítica sobre a neurose obsessiva seria considerada por alguns como um retrocesso, como um referencial obsoleto em relação ao prestígio de que desfruta o avanço neurocientífico.

De certa forma, os manuais estatísticos classificatórios decretam o fim da neurose obsessiva através do esfacelamento de sua unidade clínica e sua substituição pelo TOC. Isso sem esquecer sua compatibilidade com a ambição atual de rápida resolução de qualquer mal-estar através da medicalização, voga que não favorece os tratamentos mais longos, e que só se utilizam da fala, como a psicanálise. Com isso, há uma tendência à exclusão do sujeito, e surge a indagação: serão as elaborações psicanalíticas pertinentes, ou poderiam ser, sem perdas, ser substituídas pelo discurso neurocientífico associado aos manuais estatísticos? Neurose obsessiva ou TOC?

 

Neurose obsessiva desde Freud

A neurose obsessiva mereceu um estudo muito amplo por parte da psicanálise. Aqui sua teoria será apresentada de forma necessariamente breve e serão privilegiados apenas os pontos mais importantes.

Antes que Freud instalasse a neurose obsessiva no quadro das psiconeuroses de defesa, a psiquiatria a descrevia como mania sem delírio, loucura da dúvida, patologia da inteligência, e a considerava uma psicose. Os cientistas do século XIX descreviam os obsessivos como os "semi-loucos que se encontravam fora dos asilos" (Lachaud, 2007, p. 19).

Freud se torna o "inventor" da neurose obsessiva como tipo clínico da estrutura neurótica, situada, ao lado da histeria, entre as neuroses de transferência, quando a retira do âmbito da psicose em decorrência de suas pesquisas a respeito do inconsciente (Ribeiro, 2011). Observa que, assim como na paranoia, o sujeito obsessivo sofre dos pensamentos, tratando-se em ambos os casos de distúrbios intelectuais, embora distintos. A neurose obsessiva é então caracterizada como uma neurose cujos sintomas atingem especialmente o pensamento, por oposição à histeria - marcada pela conversão do conflito psíquico para sintomas corporais.

Em 1896, quando ainda associava a gênese da neurose a um trauma sexual real e precoce, Freud afirmou que a neurose obsessiva teria como pano de fundo "[...] um evento que proporcionou prazer" (Freud, 1986/1996, p. 154). Ao propor essa inovação nosográfica, Freud marcou a diferença entre histeria e neurose obsessiva sublinhando que um excesso de prazer é experimentado pelo neurótico obsessivo no seu encontro com a atividade sexual na infância, e que tal vivência lhe impõe culpa e autorrecriminação (Julien, 2002). A vivência sexual precoce que está no ponto de partida da neurose obsessiva demonstra a relação estrutural dessa neurose com o sentimento de culpa.

Ainda em 1896, Freud explica que as experiências antigas de prazer tornam-se objeto de recriminações ao reaparecerem na consciência de maneira acidental ou espontânea. Diante disso, ressalta que as reminiscências referentes à atividade sexual precoce do sujeito sucumbem ao recalcamento, mas o afeto resiste e se manifesta através de sentimentos de vergonha, desconfiança e de autoacusação, sobretudo quando algo da ideia ligada à lembrança das atividades prazerosas ameaça emergir. As autorrecriminações foram transformadas, deformadas, atravessadas pelo trabalho psíquico inconsciente e irão ligar-se a outras ideias por deslocamento.

A culpa inexplicável de que se queixa o obsessivo é resultante da impiedade da autoacusação que o atormenta. O recalcamento havia sido exitoso contra o gozo oriundo da experiência infantil, fazendo-o sentir-se inocente. Contudo, ao menor sinal de vacilo do recalque, o obsessivo tenta evitar a culpa valendo-se de atos expiatórios, limitações autopunitivas e sintomas que acabam adquirindo valor de moções pulsionais masoquistas. Por fim, os sintomas que, em princípio, serviam para limitar o eu, passam a funcionar como satisfações substitutivas.

A teoria da neurose obsessiva tem de sofrer uma mudança decorrente do abandono da teoria do trauma sexual como sedução pelo adulto, o que se dá a partir de 1897. A fantasia adquire relevo quando Freud concede estatuto de verdade à realidade psíquica e modifica profundamente a compreensão da verdade sexual subjacente à clínica das obsessões. Como consequência desse giro, entram em cena as fantasias inconscientes infantis, constituídas a partir do material ouvido e visto pela criança em sua família.

A fantasia agora determina toda a apreensão da realidade. Ou seja, a narrativa que o neurótico formula sobre sua história é intrinsecamente mediada pelas interpretações e fantasias que são o filtro através dos quais percebe a realidade. Desde então, a presença de fatos reais na gênese da neurose será sempre concebida como subordinada ao funcionamento mental que inclui o inconsciente. O achado que modifica o foco da clínica, e delineia a própria especificidade epistêmica da psicanálise, é a conclusão de que a realidade que interessa à psicanálise é a realidade psíquica, na qual o desejo inconsciente está sempre atuante.

Esse avanço na teoria levará à postulação da sexualidade infantil (Farias e Cardoso, 2013). Os desejos sexuais infantis e as fantasias inconscientes assumem o primeiro plano, pois é esse o material que sofre a ação do recalque. A formação do sintoma inclui a fantasia, e a mãe assume o lugar de primeira sedutora, através dos cuidados higiênicos que dispensa ao bebê (Ribeiro, 2011). A realidade psíquica é determinada pela fantasia inconsciente que, invariavelmente, se prende ao complexo de Édipo.

O caso clínico do Homem dos Ratos (1909/2013) torna-se um paradigma para o estudo da neurose obsessiva, no qual são ilustradas importantes questões que atravessam esse quadro clínico, tais como a dívida, a ambivalência e a relação do sujeito obsessivo com o pai e com a morte. A obra relata o tratamento do oficial Ernst Lanzer, que durou cerca de um ano e no qual foi obtido o restabelecimento da personalidade do paciente, bem como a extinção de suas inibições. O conteúdo de sua doença eram ideias obsedantes de que um suplício pudesse ocorrer a dois personagens por ele estimados: o pai (apesar de já falecido quando a ideia se apresenta) e a dama que admira. Além disso, o paciente é atormentado por impulsos obsessivos de automutilação e por criar rituais e proibições a respeito de coisas aparentemente irrelevantes.

A tortura a que Lanzer se refere lhe fora contada por um capitão durante os exercícios militares e consistia na introdução, no ânus do supliciado, de um rato vivo que, para libertar-se, abriria caminho pelas entranhas do sujeito. Quando da narrativa desse castigo, chama a atenção de Freud a expressão facial do paciente, que denotava "horror ante um prazer seu, que ele próprio desconhecia" (Freud, 1909/2013, p. 27). A sexualidade toma um lugar primordial no início do processo analítico do Homem dos Ratos com o relato de desejos e experiências prazerosas infantis (Fontenele, 2006). A posteriori, o prazer precoce e ativo desencadeou uma defesa manifesta sob o signo do medo: "Se tenho o desejo de ver uma mulher nua, meu pai vai morrer" (Freud, 1909/2013, p. 23). Do que se pode dizer que desejo e medo obsessivos já estavam intimamente associados desde sua infância e participavam dos sintomas e medidas de proteção que o paciente adotava.

A dívida é outro elemento central na neurose e permeia a relação de identificação que o Homem dos Ratos mantinha com seu pai, um militar que também era um devedor. Em certo momento, Lanzer perde seus óculos, motivo pelo qual contrairá uma dívida que, acossado por sua doença, vive como impossível de pagar. A ordem interior que o obrigava a quitar a dívida seguia na contramão da ideia obsessiva de que, se ele a pagasse, o terrível suplício dos ratos seria infligido a seu pai e a sua amada, ideia resultante da extrema ambivalência, ou seja, do conflito entre o amor e o ódio que caracterizam a neurose obsessiva. Identificado a seu pai, o paciente passa a pensar em sua morte, na medida em que este se coloca como um rival, impedindo a realização de seu desejo amoroso.

Conforme Farias e Cardoso (2013), na neurose obsessiva o ódio e a agressividade ganham destaque, o que conduz a atenção de Freud à dimensão destrutiva do pulsional, até então desconhecida. Esse aspecto mortífero só terá, de fato, sua importância plenamente reconhecida na teoria freudiana a partir de 1920, com a postulação da segunda teoria das pulsões.

Na teorização do caso clínico, Freud (1909/2013) destaca a vida pulsional, a dúvida e as origens da compulsão no que se refere à neurose obsessiva. Segundo Freud, a dúvida como sintoma se amarra à percepção interna que o paciente tem de sua própria indecisão, decorrente do conflito entre o amor e o ódio e da incerteza acerca de seu próprio amor. Em razão do recalque, ela se difunde para tudo mais, deslocando-se para aquilo que é destituído de valor. O sujeito é levado a recorrer a medidas protetoras quanto à dúvida, repetindo-as continuamente como estratégia para banir a incerteza que o assola, mas "acaba por fazer com que essas ações protetoras tornem-se inexequíveis como a inibida decisão original quanto ao amor" (Freud, 1909/2013, p. 104). A compulsão emerge como uma tentativa de compensar a dúvida e corrigir o intolerável estado de inibição do amor. Por outro lado, ficar doente permitia ao Homem dos Ratos evitar os conflitos da vida real, ou seja, escolher entre ficar com a dama que amava ou com a dama rica, o mesmo dilema outrora enfrentado por seu pai.

Dentre outros pressupostos, esse caso clínico é atravessado pela ideia do erotismo anal como coordenador da organização sexual do obsessivo. Para entender a estrutura da neurose obsessiva, portanto, é preciso considerar sua ligação com a pulsão anal, o que nos permite compreender a posição do obsessivo na relação com o Outro.

Segundo Freud (1913/2010), a fixação da pulsão é decisiva para a escolha da neurose, e o obsessivo regride à posição anal-sádica da libido e à correlativa ambivalência nas relações com o objeto. Por conseguinte, o conflito entre as ideias conflitivas amorosas e hostis em relação ao mesmo objeto se manifesta na constante indecisão.

A importância do erotismo anal na neurose obsessiva resultaria do recalque das pulsões ligadas ao Complexo de Édipo. Poder-se-ia considerar esse processo como uma regressão à dominância do erotismo anal a serviço do recalque. A prevalência do sadismo nas fantasias anais foi observada por Freud, que apresentou a noção de uma organização anal-sádica da libido. Karl Abraham, que teve grande influência na construção da teoria da libido, considera que o significado sádico da defecação é uma primeira forma da onipotência de pensamento. Apresenta exemplos clínicos em que as fantasias obsessivas mostram que "são superestimadas as funções de excreção, no sentido de atribuir-lhes um poder enorme, e quase ilimitado, de criar ou destruir qualquer objeto" (Abraham, 1920, p. 17). Este autor dedicou-se também ao estudo do caráter anal, que seria marcado pela parcimônia, até o ponto da avareza, pelo amor à ordem e limpeza e pela rebeldia.

Lacan irá destacar, no erotismo anal, a questão da demanda educativa do Outro. É nessa dialética em torno da educação higiênica que o anal se relaciona com a dádiva ou a retenção, a submissão ou a rebeldia ao Outro. "Não há meio de captar qual é a função desse objeto anal, se não o perceberem como sendo o resto da demanda do Outro" (Lacan, 1957-1958/2005, p. 318).

No âmbito da reformulação de 1920 da teoria da libido, em que a pulsão de morte faz sua aparição, a teoria sobre a neurose obsessiva é refinada, e a ambivalência tão manifesta na clínica deste quadro melhor se acomoda. Ribeiro (2011) pontua que a fantasia de desejo fundamental é atravessada pela questão sobre a morte, de modo que, no sujeito obsessivo, a pulsão de morte se apresenta de forma excessiva, emergindo na ambivalência de suas relações, nas fantasias de morte de pessoas amadas, no uso mortal das palavras, nos rituais obsessivos e na reação terapêutica negativa, em que o supereu sádico cobra seu preço quando o sujeito se aproxima de seu desejo, levando-o, muitas vezes, ao abandono do tratamento. O obsessivo está preso, em sua fantasia, ao tema da morte, que se apresenta como a grande figura da castração, da qual tenta se defender produzindo ideias obsessivas.

Os sintomas representam a vida sexual do neurótico. É importante lembrar que o sintoma neurótico é uma formação de compromisso posterior logicamente ao recalque. A formação sintomática visa barrar o retorno do recalcado, que nunca esmorece em sua busca de satisfação, distorcendo-o para que não seja reconhecido pela consciência, mas, ao mesmo tempo, permite certa satisfação imaginária da pulsão recalcada. Por esse motivo, o neurótico tem grande apego a seu sintoma.

Para a psicanálise o humano é marcado pelo desamparo desde seu nascimento, pois a sobrevivência do infante depende do adulto capaz de suprir suas necessidades. Essa relação fundamental é atravessada pela linguagem e pela cultura, cujo porta-voz é o adulto. A partir da interpretação do choro da criança, este promove a satisfação. Transforma, assim, a necessidade puramente biológica em demanda, introduzindo o sujeito no campo do simbólico. Existe um resto entre a necessidade e a demanda, e aí se coloca o desejo.

O obsessivo não se mantém numa relação possível com seu desejo senão à distância. Seu desejo implica a destruição do Outro e, por consequência, do próprio desejo, que precisa do suporte do Outro. É a contradição do obsessivo. Ele se afasta do Outro na tentativa de mantê-lo vivo, pois a aproximação comporta sua aniquilação (Lacan, 1957-1958/1999).

O ódio inconsciente ao pai percorreu toda a análise do Homem dos Ratos; a relação do obsessivo com o pai é fundamental. O desejo incestuoso e proibido inclui a morte do pai, cujo lugar o obsessivo quer ocupar, donde sua relação com ele é marcada pela identificação e, ao mesmo tempo, pela culpa. O obsessivo, portanto, tenta anular o desejo reduzindo-o a demandas que ele busca realizar solicitamente, enquanto mantém seu desejo como impossível. O desejo é, para ele, tão tisnado pela angústia que isso o obriga a transformá-lo em impossibilidade.

 

E o TOC? Os manuais classificatórios

A ciência definiu seu objeto de estudo tendo como fundamento epistemológico o discurso positivista que o determina como fato publicamente observável. A objetividade é condição sine qua non do científico e implica a independência de quaisquer aspectos subjetivos (Pinto, 2012).

A implicação prática da rejeição da subjetividade no recorte do objeto de estudo no campo psicopatológico é reduzi-lo à pura descrição de fenômenos passiveis de observação, "uma simples classificação de grupos, cuja unidade se forma a partir de critérios de repetição e de duração, satisfará aos espíritos 'científicos'" (Pinto, 2012, p. 406). A busca do objeto observável na formulação de hipóteses acerca do padecimento psíquico desloca a psicopatologia em "direção à descrição de fenômenos e ao agrupamento de fatos similares em categorias sindrômicas" (Pinto, 2012, p. 406).

O discurso da psiquiatria anterior aos manuais era marcado pela difusão e contradição entre pontos de vista diversos no que concerne a diagnósticos e eficácia terapêutica. É notório que diferentes referenciais epistêmicos atravessavam as inúmeras definições que clínicos e pesquisadores atribuíam aos seus respectivos objetos. Com isso constituía-se uma babel terminológica, o que acabava por conferir uma incômoda inconsistência ao saber psiquiátrico (Pereira, 2000).

Julgou-se necessário, portanto, o surgimento de um instrumento capaz de dar uniformidade ao campo da psiquiatria, de modo a fortalecê-la enquanto especialidade médica. A convergência nos diagnósticos era necessária para garantir sua legitimidade. É exatamente por consolidar um discurso convergente a respeito dos fenômenos psicopatológicos que os manuais classificatórios, orientados pelo empirismo e pragmatismo, e que recusam as teorias, triunfam e despontam como paradigma de abordagem da psicopatologia e vêm provocar profundas mudanças no papel das ciências que se debruçam sobre o sofrimento psíquico. Assim, declara Pereira (2000):

O surgimento do DSM-III, em 1980, constituiu nesse contexto um marco e um divisor de águas na história da psiquiatria. Propondo-se como um sistema classificatório ateórico e operacional das grandes síndromes psíquicas, aquele Manual viria a modificar profundamente a concepção não apenas da pesquisa, mas da própria prática psiquiátrica (Pereira, 2000, p. 122).

O princípio classificatório aristotélico atravessa o campo psiquiátrico desde sua constituição, e é isso que Pinel introduz em sua revolução quando inaugura uma "forma de abordagem sistemática de descrição e classificação dos fenômenos ligados à alienação mental" (Pereira, 2000, p. 123).

É importante lembrar que Freud também cuidou de construir seu próprio método formal de descrição das observações clínicas, a partir do corte epistemológico da psicanálise, tendo no horizonte entidades clínicas formalmente descritas e classificadas, mas construindo, a partir de sua clínica, uma teoria muito refinada.

Sob o manto do discurso científico, os manuais classificatórios, especialmente o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM), despontam como o paradigma da configuração da clínica contemporânea, na medida em que têm sustentado uma prática cotidiana, ocupando lugar de destaque nos tratamentos psiquiátricos ou neurológicos. Como discurso hegemônico, o DSM, no seu percurso para atender às demandas de uniformização da linguagem psiquiátrica, sobrepujou o papel fundamental da psicopatologia clínica, que acabou sendo progressivamente ocupado pelo convencionalismo nosográfico. Como resultado, se tem desprezado paulatinamente o "mais-além" do sintoma, ou seja, seus aspectos históricos, culturais, subjetivos e existenciais em razão de uma apreensão cada vez mais naturalizada do sofrimento mental, o que significa, em outras palavras, enfraquecer a prática clínica como lugar de escuta do sofrimento.

O DSM terminou, na prática, por excluir do debate cientificamente autorizado todas as disciplinas cuja abordagem do sofrimento psíquico não repousasse sobre definições convencionais de fatos clínicos imediatamente constatáveis. Este é o caso notadamente da fenomenologia, da psicanálise e da análise existencial (Pereira, 2000, p. 119).

Não só a psicanálise, como a psicologia clínica e a psicopatologia clínica são campos que estão perdendo lugar. Todo um esforço de construção teórica importante nesses campos vem sendo desperdiçado em razão da perspectiva meramente descritiva adotada pelos manuais estatísticos. Sua recusa da teoria sob a justificativa da necessidade de promover a comunicação entre clínicos de todo o globo e de estabelecer diagnósticos consensuais com base nos registros estatísticos não é consistente, na perspectiva de Campos (2009), para garantir uma posição epistêmica válida sobre o psicopatológico. Priorizar a psiquiatria dos manuais estatísticos implica desconsiderar "o raciocínio clínico" (Campos, 2009, p. 1).

A crítica de Campos (2009) é que a retirada de cena do sujeito, que é assim desimplicado de sua patologia, concorre para o enquadramento de uma forma do pensar a clínica que termina por eliminar da psicopatologia o que não esteja consoante ao discurso neuronal dominante. Efetivamente estamos diante de uma "concepção cada vez mais naturalizada do padecimento mental" e de um "esvaziamento do campo da clínica" (Pereira, 2000, p. 120). Nesse sentido, é em razão mesmo da força do método da observação como critério de cientificidade que a psiquiatria vem desconsiderar a fala dos pacientes, que não seria tomada como instrumento válido de diagnóstico, de tratamento ou de pesquisa (Pinto, 2012).

Na contramão desse método objetivo da ciência está o método clínico, defendido pela psicanálise desde Freud, no qual diagnóstico e tratamento são atravessados pela fala de um sujeito. O sujeito, então, está presente na construção e eventual tratamento de sua patologia.

a psicanálise pesquisa e tratamento coincidem, como salienta Freud (1912/2010, p. 153). Entende-se que a teoria psicanalítica desfruta de uma posição sui generis, muito diversa da teoria da ciência dura. Não apenas Freud defende a vocação da teoria psicanalítica para manter-se sempre inacabada, como recomenda que seja posta em suspensão quando o atendimento se inicia, porque é o inédito de cada processo que se impõe, visto que há algo de único na história e nos traços de cada pessoa (Rudge, 2012).

A psicanálise ainda é constantemente acusada de acientificidade (Roudinesco, 1999). Entretanto, aos que criticavam a psicanálise por não prover comprovações experimentais de suas teorias, Freud rebateu afirmando que "a psicanálise não é uma investigação científica imparcial, mas uma medida terapêutica. Sua essência não é provar nada, mas meramente alterar algo" (Freud, 1909/1999, p. 104).

Esse claro reconhecimento da especificidade da psicanálise e de sua natural incompatibilidade com o método experimental das ciências naturais revela o posicionamento da teoria psicanalítica de ser inseparável de uma prática clínica baseada na linguagem.

Numa época em que estão em ascensão a ideologia cientificista, os diagnósticos baseados em sistemas classificatórios que descrevem e agrupam sintomas, recorrendo de imediato à eficácia dos medicamentos para silenciá-los e aos protocolos de tratamento que se pretendem objetivos, o valor da psicanálise como prática da escuta e como instrumento para uma crítica da cultura e das posições que esvaziam a subjetividade é inquestionável (Rudge, 2012, p. 238).

O método clínico, que não compete apenas à psicanálise, mas também à psiquiatria, à psicologia e à medicina, exige levar em conta a história e os significantes que regem a vida do paciente. Ouvir cuidadosamente o cliente é o que diferencia o método clínico da ciência, considerando a investigação holística como fundamental para qualquer diagnóstico e tratamento. Por esse motivo, a presença da psicanálise nas abordagens multidisciplinares da psicopatologia é de grande importância por valorizar a escuta do sujeito. A clínica médica ou psicanalítica requer conhecimentos científicos, com cunho universalista, mas também a arte de ouvir bem, porque cada caso é singular.

 

DSM: um discurso político?

Em se tratando de neurose obsessiva, sabe-se que tal nomenclatura foi abolida dos manuais diagnósticos estatísticos e substituída pelo TOC - transtorno obsessivo compulsivo - que na verdade é uma compilação dos sintomas que Freud já havia mencionado como compondo a neurose obsessiva.

O TOC, entretanto, está se transformando em um transtorno de ordem neurológica. A indicação é a medicação, e até mesmo neurocirurgias, como a capsulotomia anterior ou cingulotomia anterior, novas versões da lobotomia, em que parte do cérebro é lesionada.

Ribeiro (2011) considera que a implicação política subjacente à mudança de nomenclatura de neurose obsessiva para transtorno obsessivo compulsivo, com a anulação do sujeito da psicanálise, é transformá-lo em consumidor submisso aos ditames do capital. Com o ato de se reduzir a complexidade da neurose obsessiva ao TOC, o sujeito se torna vítima de seu funcionamento cerebral e desacreditado da própria capacidade de mudança, o que torna seu sintoma politicamente amorfo. A terapêutica psiquiátrica, afastada da tradição clínica e sustentada pelo DSM, é aquela dos tratamentos paliativos que visam atacar e fazer desaparecer os sintomas, fundamentalmente pelo uso de drogas farmacêuticas. É inegável que estão aí em questão as relações entre a psiquiatria e a política, visto que a psiquiatria cede aos interesses da indústria farmacêutica ( Goldenberg, 2009).

A medicalização excessiva vem ao encontro da cultura imediatista que exige respostas rápidas a qualquer mal-estar, pela qual se torna cada vez mais difícil lidar com os conflitos, elaborações e reconfigurações. O DSM parece atender às demandas da sociedade contemporânea ao viabilizar a medicalização como resolução para todo mal-estar, transformando em doença o que nunca foi. Um exemplo é o critério de definição do luto patológico, que foi antecipado de dois meses para 15 dias pelo DSM-5, quando sabemos que, há não tanto tempo atrás, as pessoas costumavam usar roupas negras de luto e recolher-se por pelo menos um ano, numa verdadeira moratória para elaborar a perda de alguém querido.

Os manuais produzem patologias. Cada versão do DSM eleva invariavelmente o número de transtornos. Eles eram 182 no DSM-2 (de 1968); 265 no DSM-3 (lançado em 1980), e a última versão, o DSM-5, de 2013, chegou a espantosas 450 categorias diagnósticas.

Um exemplo significativo do poder de criar patologias e promover medicamentos exercido pelos manuais estatísticos foi ventilado há pouco pela imprensa. Alguns meses antes de sua morte, que ocorreu em 2009, o psiquiatra Leon Eisenberg, criador do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) declarou ao "Der Spiegel" que este era uma "enfermidade fictícia". Entretanto, graças a esse novo transtorno, a ritalina, medicamento da família das anfetaminas apelidada de "droga da obediência", passou a ser crescentemente consumida, sendo o Brasil o segundo país, depois dos Estados Unidos, no uso dessa droga, que é muito especialmente indicada para crianças, decerto as mais questionadoras e ativas.

O interesse da indústria farmacêutica no desenvolvimento e ascensão de um instrumento como o DSM questiona sua suposta e proclamada imparcialidade. Já se sabe que 56% dos membros do grupo encarregado da elaboração e revisão do DSM tem laços financeiros com as indústrias farmacêuticas (Cosgrove, Krimsky, Vijayaraghavan & Schneider, 2006).

Sem dúvida, medicamentos podem ser valiosos e não se trata de questionar sua utilidade em inúmeros casos. Entretanto, a ênfase no tratamento exclusivamente medicamentoso faz calar o sujeito eliminando seu sintoma e tem como horizonte uma noção de cura que é entendida como correção, adaptação, retorno à ordem, à padronização dos comportamentos. Desimplicado de sua posição subjetiva, o sujeito perde a possibilidade de se confrontar com seus impasses no campo do desejo.

 

Considerações finais

Freud, com a construção do conceito de inconsciente, evidenciou que as neuroses respondem a impasses do sujeito frente ao desejo recalcado, e foi através de suas formulações que as obsessões puderam emergir no tecido social num estatuto diferente da loucura.

Por outro lado, a psiquiatria tem sido tomada pelo paradigma biológico das neurociências, sob a égide dos manuais classificatórios. Dessa forma, busca tratar do mal-estar na contemporaneidade através dos psicotrópicos. Os manuais classificatórios, como vimos , não possuem o fundamento científico e isento que pretendem, visto que influências de toda ordem entram em cena em sua formulação.

O suporte medicamentoso para tratar do sofrimento psíquico, paliativo por excelência em seu sucesso em calar o sintoma, não teria por que se opor à clínica que considera o saber do sujeito a respeito de seu próprio sofrimento e sua fala como cruciais para seu tratamento.

Por isso mesmo, propõe-se, em consonância com a posição de Pereira (2000), que o campo psicopatológico recupere seu status de heterogeneidade discursiva, abarcando discussões a partir de diferentes referenciais, incorporando inclusive os avanços técnicos e científicos advindos das abordagens neurocientíficas, promovendo a crítica sistemática dos diversos modelos psicopatológicos existentes de modo a evitar qualquer reducionismo.

A psicanálise pode ainda contribuir muito ao campo do saber psicopatológico a partir de seu referencial de escutar o que o sujeito fala através de seus sintomas e o que ele fala sobre seus sintomas, sintomas que tantas vezes expressam uma crítica à cultura que mereceria ser ouvida. Considerar a recomendação freudiana de jamais supor o conhecimento da sua prática como estabelecido e acabado é o que permite à psicanálise avançar e o que moveu este trabalho em seus questionamentos acerca da pertinência de sua teoria para a sociedade atual.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 12/04/2015
Aprovado para publicação em: 12/06/2015

 

 

*Psicólogo pela Universidade Veiga de Almeida.
**Psicanalista; Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, Pesquisadora do CNPq; Pesquisadora e Membro Fundador da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.