SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.47 número2Neurose obsessiva ou TOC?Saber, verdade e gozo: da função da fala à escritura índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dic. 2015

 

ARTIGOS

 

Richard Durn ou o empuxo ao crime do ideal

 

Richard Durn - how idealism can turn people to crime

 

 

Yohan Trichet*; Romuald Hamon**; Mila Signorelli (Tradução)***

Université Rennes 2 - França

 

 


RESUMO

Os autores propõem um estudo da lógica subjetiva que conduziu Richard Durn a assassinar e ferir gravemente, em março de 2002, um grande número de eleitos do conselho municipal de Nanterre (França) antes de se suicidar. Se essa tragédia já foi objeto de uma série de artigos focados na sua dimensão política, a lógica do ato foi até agora pouco estudada. O presente artigo visa precisamente esse ângulo, baseando-se em diversos documentos clínicos.

Palavras-chave: Richard Durn, homicídios, ideal, suicídio, psicose melancólica.


ABSTRACT

The authors set about discerning the subjective logic which led Richard Durn to murder and seriously injure a large number of municipal councilors in Nanterre, France, in March 2002, before committing suicide. Although this tragedy has given rise to a large number of articles focusing on the political dimension of these crimes, little research has been conducted into the rationale for the deeds perpetrated. This article seeks to address the latter aspect, based on a number of clinical documents.

Keywords: Richard Durn, homicides, ideal, suicide, melancholic psychosis.


 

 

Introdução

Noite do dia 26 para o dia 27 de março de 2002: o conselho municipal da cidade de Nanterre acaba de encerrar sua sessão e eis que um homem de aproximadamente 30 anos, Richard Durn, que até então havia assistido pacientemente aos debates, levanta-se, saca um revolver e abre fogo sobre os membros do conselho1. Durn mata oito eleitos e fere outros dezenove (quatorze gravemente) antes que outros presentes consigam cercá-lo e imobilizá-lo até a chegada das forças armadas. No dia seguinte, em prisão preventiva no número 36 do Quai des Orfèvres, Durn reconhece seus crimes e tenta explicar-se. Durante o terceiro interrogatório, dia 28 de março, ele se suicida, atirando-se da janela do quarto andar.

Se essa tragédia, uma das chacinas mais violentas ocorridas na França nas últimas décadas (Hassid & Marcel, 2012), constitui um enigma2 (Zagury, 2008, p. 17) impossível de esclarecer, podemos entretanto questionar como esse homem chegou, em nome de um ideal, a cometer esses homicídios e em seguida o suicídio. Se fizermos uma investigação analítica dos documentos clínicos disponíveis (seu Diário, escrito entre 1998 e 2002, as três cartas escritas na véspera da chacina e as transcrições dos três interrogatórios3), podemos discernir a lógica subjetiva que conduziu Durn a cometer esses atos.

A partir da leitura desses documentos, podemos reconhecer um efeito de conjunção entre a perda do seu ideal, o seu sentimento de indignação melancólica e finalmente o projeto de assassinato e suicídio como solução subjetiva. Tentaremos mostrar o que acontece quando os ideais que até então o haviam sustentado deixam de acobertar sua posição de objeto e de barrar sua decomposição subjetiva. Durn, empuxado por um ideal de justiça social, assassina figuras que cristalizam (segundo sua própria interpretação) a traição fundamental do Outro em relação aos ideais que orientam sua existência. Se mais tarde Durn é levado a se reunir ao seu ser de gozo num beijo com a morte, este "comando (obviamente) escapa-lhe" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 388, tradução livre) mas parece ter determinado, a partir de uma certeza antecipada, a ordem dos crimes. Essa tragédia resultou em inúmeros artigos de psicanálise, filosofia e sociologia que, ao concentrarem-se em sua dimensão política ou social, acabaram por ignorar ou tratar de maneira insuficiente a lógica subjetiva do ato. Tal é a dimensão que tentaremos de esclarecer enquanto recurso e função psíquica.

 

1. Tentativas precárias e malsucedidas de vinculação a certos ideais

É evidente que Richard Durn tentou encontrar um lugar para si na esfera social, orientando-se em direção a um "ideal de humanismo" (Durn, 1998-2002/2010, p. 39, tradução livre). Entretanto, como poderemos ver, uma primeira ruptura acontece em 1998, aparentemente data originária de seu projeto de homicídio/suicídio. Mais tarde ele tentará novamente apoiar-se sobre esse ideal mas uma série de decepções e o despencar definitivo, em 2011, desse ideal levarão Durn à execução de seu projeto macabro.

Para financiar seus estudos universitários no final da década de 80, Durn trabalha como supervisor de alunos em diversos estabelecimentos escolares. Durante sua prisão preventiva ele relata à polícia sua vontade, na época, de ajudar alguns dos alunos: "Há muito tempo atrás eu tinha vontade de transmitir meu conhecimento e ser útil aos jovens. Mas perdi o gosto dessas ideias, eu não me sentia em meu lugar, eu não conseguia transmitir meus conhecimentos" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 31, tradução livre). Fluente em quatro línguas, inclusive o eslovaco (língua materna de sua mãe), Durn tentará novamente ocupar uma posição de passador, assumindo a função de intérprete em missões humanitárias. Em 1993, ano em que Durn obtém, não sem dificuldade, sua graduação de História, ele participa de uma primeira missão em Sarajevo. Ele participará de diversas missões na Europa do leste. Em 1995 ele adere ao Partido Socialista, mas depois de dois anos de militância não renova sua carteira de membro. No ano seguinte, 1996, Durn e seu amigo Gaël Klein (os dois conheceram-se em 1988 no liceu Paul-Langevin de Nanterre) engajam-se na luta de imigrantes ilegais que haviam ocupado a igreja Saint-Bernard em Paris. Além disso os dois homens vão efetuar, durante vários invernos, doações aos sem-abrigo: alimentos e cobertores comprados com seus próprios recursos financeiros. Em 1994 e 1996 Klein tentou suicidar-se duas vezes, eventos que serviram para aumentar a admiração da parte de Durn, que havia tentado, em 1990 e 1994, dar fim a si mesmo. Em abril de 1998 ambos viajam a Israel. Na colônia judaica de Kyriat Arba, perto de Hébron, Durn fascina-se por uma lápide, segundo Klein: "Há uma lápide construída em memória a um colono judeu que matou uns quinze palestinos, quando eles estavam dentro de uma mesquita. Richard ficou fascinado diante do fato de que um homem possa matar outras pessoas assim, aleatoriamente" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 12, tradução livre). Klein também evoca outras palavras de Durn: "Imagina, ele sabia que ia morrer, mas não recuou. Ele teve a coragem de fazer o que achava justo" (citado por Décugis, Dunglas, Labbé & Recasens, 2002, tradução livre).

De volta à França, Durn começa, no dia 2 de maio de 1998, seu Diário. Ele escreve: "Tenho agora a íntima convicção de não acreditar na existência de Deus e na vida após a morte" (Durn, 1998-2002/2010, p. 33, tradução livre). Evoca sua sensação de estar morto: "Escrevo para provar a mim mesmo que ainda estou vivo mesmo se objetivamente tudo é prova do contrario" (Durn, 1998-2002/2010, p. 33, tradução livre). Durn acredita nos efeitos subjetivos da escrita, que visivelmente nunca se manifestaram. Dois meses depois, em julho de 1998, durante uma consulta no Bureau d'Aide Psychologique Univesitarire (B.A.P.U)4 Luxembourg, em Paris, Durn saca uma arma e profere ameaças confusas. Em uma carta redigida apos o incidente, o médico responsável do B.A.P.U indica que Durn "exprimiu ameaças contra pessoas não identificadas" e que ele "desejava matar essas pessoas e em seguida se matar". O médico estima que "se trata, muito provavelmente, de um paranoico delirante a minima e atualmente deprimido. Nota-se que Durn recusou internação hospitalar e qualquer tratamento medicamentoso" (citado por Benkimoun, 2002, p. 13, tradução livre). No início do mês de agosto, Durn telefona ao Dr. Bernard do B.A.P.U, que anota que Durn "reconhece ter dito que ele queria matar algumas pessoas para em seguida se matar, e ter sacado uma pistola. Ele explica que quis brincar, encenar uma 'farsa macabra' diante de seu psicoterapeuta porque, segundo ele, este último não se interessava suficientemente por ele" (citado por Benkimoun, 2002, p. 13, tradução livre). Sobre essa mesma conversa telefônica, o doutor Bernard acrescenta que Durn "não apresenta nenhum pensamento depressivo ou ideia delirante. Ele diz se sentir bem de férias, preparando seus concursos e abordando a vida de maneira positiva" (citado por Benkimoun, 2002, p.13, tradução livre). Durn teria também afirmado que na volta das férias procuraria novamente o B.A.P.U, coisa que não fez.

Em setembro do mesmo ano ele se matricula curso universitário de Línguas Estrangeiras Aplicadas, com especialização em inglês e alemão. No ano seguinte, parte em missão em Montenegro e no Kosovo. Na Pristina, Delahaye, membro da associação Reconstruire ensemble la paix Normandie-Balkans, percebe a rigidez de Durn e diz "Não notamos nenhum problema", antes de acrescentar que Durn era "muito eficaz" (citado por Thibaudat, 2002, tradução livre). Até então voluntário, Durn chega a tentar entrar em uma formação profissionalizante na área humanitária, mas a sua candidatura é recusada. Essa nova derrota contribui para o desmoronamento da compensação frágil que Durn havia encontrado. De fato, dia 2 de janeiro de 2002, três meses antes do drama, ele escreve em seu Diário: "9 de outubro de 1999 foi uma data importante na minha vida de cretino e covarde. Ao ver que eu havia sido recusado pela escola Bioforce para tornar-me programador humanitário, que eu não tinha nem teto nem namorada (há anos que eu não fazia amor, nem mesmo durante as férias), renunciei à vida. Eu desisti" (Durn, 1998-2002/2010, p. 37-38, tradução livre). Apesar dessa derrota, Durn continua sua militância política.

Em março de 2001, durante as eleições municipais, ele apoia a lista Réinventons Nanterre. Durantes essas eleições ele trabalha como assessor de um dos colégios eleitorais. Durn torna-se assim engajado na vida democrática. No mesmo ano ele adere à célula local da Liga dos Direitos Humanos. Em setembro torna-se tesoureiro a pedido de Rosanna Morain, presidente dessa célula, que revela, poucos dias após a tragédia: "A implicação dele era impecável. No verão passado encarreguei-me da expulsão de moradores magrebinos de um prédio insalubre de Nanterre. Ele ofereceu ajuda. Ele queria ganhar espaço, assumir responsabilidades, encontrar soluções" (citada por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre).

Na mesma época, em julho de 2001, Durn viaja a Gênova, onde se desenrola a reunião de cúpula do G8. Ele participa das manifestações altermundialistas fortemente reprimidas pelas forças armadas italianas, durante as quais um militante é morto por um policial. "Quando ele voltou, conta seu amigo Klein, ele me disse que a única solução era a violência" (citado por Décugis et al., 2002, tradução livre). Em outubro do mesmo ano, Durn parte em uma nova missão humanitária no Kosovo, que será sua última. Com o joelho ferido por causa de um acidente de ônibus que ele mesmo provocou em outubro 2001, Durn recusará, pouco antes de sua passagem ao ato mortífera, a proposta de uma nova missão (Chabrun, Dupuis, Gaetner, Pelletier, & Pontaut, 2002, tradução livre). Esse acidente rompeu, sem dúvidas, uma de suas ultimas amarras com a vida. Durn já havia sido submetido, sem resultados positivos, a inúmeras cirurgias nas pernas, por causa de uma má formação. Sua ferida no joelho é para ele fonte de angústia: "Não quero acabar manco, doente. Fisicamente estou cada vez mais estragado" (citado por Tourancheau, 2002, tradução livre).

Ao afastar-se de Durn depois da viagem a Israel em abril de 1998, Klein deixa de ser o parceiro sobre o qual Durn podia apoiar-se. A perda desse amparo imaginário lhe é dolorida. Ele se sente traído. Sentimento que ele denuncia, três dias antes da tragédia do dia 27 de março de 2002, ao telefonar diversas vezes a Klein: "Ele foi agressivo e ameaçador, diz Klein, eu quase liguei para a polícia. Não parava de dizer que eu tinha mentido. Antes ele me idealizava, mas nessa noite queria me destruir" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 12, tradução livre). Ou seja, da idealização à destruição.

 

2. Exclusão social e precariedade subjetiva: o objeto indigno

Durante sua fase de militância, Durn abandona seu emprego de supervisor de alunos "no qual, diz ele, eu era menos que nada, no qual eu era humilhado e no qual eu apenas vegetava" (Durn, 1998-2002/2010, p. 38, tradução livre). Ele vive na casa da sua mãe, raras são as vezes em que ele possui sua própria moradia. Recebe o Revenu Minimum d'Insertion5, não procura emprego, não se projeta mais no futuro. Durn vive isolado, evitando qualquer tipo de contato, mesmo em ocasiões festivas. Ele escreve no seu Diário, dia 9 de fevereiro de 1999: "Estou cansado de passar horas ouvindo rádio para não me sentir desligado do mundo" (Durn, 1998-2002/2010, p. 34, tradução livre). Durante as missões humanitárias ele evita os momentos de convívio social. Um dos responsáveis constatou, na Pristina, em 1999, sua tendência ao recolhimento: "Ele estava lá com a gente, mas sem estar presente. Sempre que alguém tentava entrar em contato com ele, era como se falássemos com uma parede. Ele era o primeiro a ir deitar e nos dizia para não ficarmos sem fazer nada" (citado por Thibaudat, 2002, tradução livre).

Seu isolamento parece ter em seguida aumentado. Evitando qualquer vínculo social, fecha-se em seu quarto de tal maneira que sua mãe deve trazer-lhe as refeições numa bandeja. Recusa-se a ver a irmã que ele ajudou a criar e evita o contato por telefone com seus conhecidos. Nesse isolamento, qualquer encontro amoroso é extremamente raro. Entretanto, ao voltar do Kosovo em 2001 ele conta a Rosanna Morain "que tinha se apaixonado mas que como sempre tinha feito a escolha errada e tinha voltado" (citada por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Ele afirma "Eu não sei estar apaixonado. Vou morrer porque sou um frustrado sexual. Não sou nada, não aprendi nada" (citado por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Quando Rosanna Morain lhe telefona, pouco antes do dia 27 de março de 2002, ele responde: "Eu sou uma merda, me deixe" (citado por Décugis et al., 2002, tradução livre).

 

2.1. Humilhação e reificação

Não tendo se permitido qualquer sucesso, Durn, lúcido, considera que "atingiu um estatuto de dependente e de falhado social. O que explica uma boa parte mas não tudo, ele declara aos policiais durante o primeiro interrogatório de 27 de março de 2002, da natureza dos meus atos" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 13, tradução livre). Sua existência, segundo ele, é cheia de "frustrações". "Durante anos, pra não dizer durante toda a minha vida, eu só pensei na morte [...] chegou a hora de caminhar em sua direção porque não tenho vontade de viver, tenho muita vergonha de mim e de não ser nada no mundo" (citado por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Sua exclusão social enraíza-se numa precariedade subjetiva.

Ele confessa igualmente aos policiais, no mesmo dia: "Já que é para repetir, o ser antissocial e desligado das realidades da vida que eu sou não merece viver" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 13, tradução livre). Assim, ele afirma: "Eu sou louco, virei um mendigo. Portanto devo morrer" (citado por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Seu suicídio impõe-se logicamente a ele: "Eu quero morrer porque sou uma coisa e um dejeto" (citado por Décugis et al., 2002, tradução livre), diz ele aos policiais com o intuito de encerrar o interrogatório. Notamos que Durn fala sempre no presente, índice da iminência de seu suicídio. Seu ser de dejeto impõe-se a ele, sem mediação fantasmática, nem semblante. Ele é o objeto palea, o estrume que Lacan expõe a partir de São Tomas de Aquino para designar sua obra no final de sua existência (Lacan, 1967/2001, p. 254, tradução livre). Mas antes de morrer Durn quer se vingar.

 

2.2. Sua revanche

Seu projeto de crime parece ser antigo, como atesta o episodio do B.A.P.U de julho de 1998. No dia 9 de fevereiro de 1999, cerca de três anos antes da fuzilada da prefeitura de Nanterre, Durn anota em seu Diário: "Há meses que tenho ideias de chacina e de morte. Não quero mais ser submisso [...]. Por que devo destruir-me e sofrer sozinho como um idiota? Mesmo se serei maldito, se pensarão de mim um monstro, me sentirei menos apagado e humilhado" (Durn, 1998-2002/2000, p. 35, tradução livre). Ele parece considerar seus crimes, nos quais ele pensa pelo menos desde 1998, como um ato de rebelião, de revanche, nos quais o outro deve igualmente sofrer e morrer.

Assim, suas palavras durante o primeiro interrogatório, dia 27 de março, comprovam a dimensão social de seu fracasso "Não tendo vingado a situação social da minha mãe, ela que sempre foi corajosa e admirável, eu não merecia viver, porque não tinha aprendido a lutar, a me defender e a defender os que eu amo [...] Sempre fui o perdedor, o vencido, o que tem mentalidade de escravo" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 13, tradução livre). Ou seja, a antítese do sujeito excessivamente hipermoderno descrito por Vincent de Gaulejac, que considera também que "a historia de Richard Durn ilustra a dificuldade de ser sujeito para um indivíduo que falha em existir" (De Gaujelac, 2006, p. 132, tradução livre). Durn não consegue se vingar ou vingar sua mãe através do sucesso na esfera social. Ele descreve esta última como uma pessoa corajosa, exemplo de abnegação. Ao chegar à França em 1958 ela trabalhou como operária e em seguida como empregada doméstica.

As explicações de Durn sugerem uma dor de existir originária de um sentimento de indignação melancólica e de falta moral. Durante o segundo interrogatório do dia 27 de março de 2002, ele exprime a conclusão à qual chegou: "Já que eu virei um morto-vivo por vontade própria, afirma, eu decidi acabar com tudo matando uma minielite local que era o símbolo, os líderes, os detentores do poder de decisão de uma cidade que sempre execrei" (Durn, 1998-2002/2010, p. 39, tradução livre). Ele confessa igualmente: "Não atingi um ideal de humanismo e, ao me deixar levar pelo desabamento e pelo fracasso, quis matar, minha revanche aos os símbolos de potência que eles representam" (Durn, 1998-2002/2010, p. 39, tradução livre).

Ao assassinar esses eleitos, Durn destrói os símbolos dentro dos quais ele alojava seu ódio. Ele prossegue, constatando que não "soube e não quis lutar para ser um Rastignac6, um Luther King" (citado por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Ele se compara a esses grandes nomes, indicando a face superegoica de seus Ideais, impregnados de megalomania. Já que não pôde ser um benfeitor para a humanidade, Durn será um criminoso e mais uma vez os nomes são coerentes com seu "orgulho", com sua nova identificação de tipo ideal. "Vou virar um serial killer, um furioso que mata porque o frustrado que eu sou não quer morrer sozinho [e também] para deixar uma marca e por vaidade". Ele "espera, dentro de [seus] limites, ser do mesmo nível que um Ben Laden, um Milosevic, um Pol Pot, um Hitler ou um Stalin" (citado por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Trata-se igualmente, portanto, para Durn, de deixar um rastro e dessa maneira se fazer um nome a partir da acepção de uma identidade dramaticamente célebre. Assim, ele consegue aperfeiçoar sua indignação melancólica, o crime de sua própria existência.

 

3. O ódio de si mesmo, a traição dos eleitos e do Outro

O véu dos ideais servia sem duvida a acobertar, a temperar a verdade insuportável relativa a seu ser de gozo, de dejeto. Há, para Durn, em todas as autoacusações e depreciações, as provas irrefutáveis de que ele é indigno de viver, revelando como "a sombra do objeto" caiu assim "sobre o eu" (Freud, 1915/1968, p.156, tradução livre). Em sua lógica, ele aparece condenado a dar fim aos seus dias, o que havia já tentado duas vezes (1990 e 1994). Como insiste Marie-Jean Sauret sobre o sujeito melancólico, "sem dúvida a presença do Outro simbólico (tanto ausente quanto desejante) é legível através do que tempera essa hemorragia: nos eus ideais aos quais o sujeito se dedica tanto com um amor excessivo quanto com um ódio implacável assim que a mínimo defeito lhe lembra a traição fundamental do Outro ('tudo é ilusão'). Sem dúvida o sujeito serve-se dessas figuras ideais em função daquilo que distrai o Outro (do seu olhar 'em outra direção')" (Sauret, 2008, p. 66, tradução livre). De fato, ele se ataca, livre de qualquer amarra, essas figuras ideais e o Outro (materno).

Mesmo buscando desesperadamente a figura paterna na palavra de sua mãe, Durn parece nunca ter conseguido não precisar do pai que ele jamais conheceu. "Aos 15, 16 anos, conta sua mãe apos a tragédia, Richard começou a me fazer perguntas sobre o assunto. Ele vivia isso como um drama, ele queria ver fotos de seu pai" (citada por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Seu pai parece nunca ter existido na palavra da mãe, parece ter sido rejeitado desta mesma.

Durn nunca pôde nem não precisar e nem utilizar o pai, senão de maneira precária, nas suas múltiplas tentativas de amarra a um ideal altruísta, aos significantes ideais do Outro social. E são precisamente esses mesmos ideais que o conduzirão, o empuxarão, com suas exigências de natureza criminosa, a tornar-lhe insuportável a realidade política do conselho municipal de Nanterre. Ele mata aqueles que, aos seus olhos, ameaçaram e contribuíram para o desabamento de seus ideais políticos e humanistas, que suas vítimas diziam defender e aos quais ele se agarrava. Confronta-se diretamente às falhas dos eleitos de Nanterre, que personificavam a falha do Outro Arcaico. Nem em seu Diário, nem em suas cartas, Durn identifica-os como perseguidores, mas como traidores que deixam proliferar as injustiças sociais e gozam claramente de uma posição política em total impunidade.

No início de novembro de 2001, Durn confessa a sua mãe sua necessidade de matar, visando nesse momento os eleitos de Nanterre: "Ultimamente, ele repetia, conta a mãe: 'Eu tenho que matar'. Dia 11 de novembro passado, nos encontramos no parque de Nanterre para assistir às cerimônias. Eu estava sentada e ele se aproximou de mim. Me apontou com o dedo os eleitos todos presentes e disse que poderia matá-los todos" (citada por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Ela explica: "Ele criticava o fato de eles serem podres" (citada por Décugis et al., 2002, tradução livre). Poucas semanas antes da tragédia, ele critica abertamente os eleitos indicando suas residências. Klein é testemunha: "Ele estava revoltado: 'Eles dizem fazer um trabalho social', ele me disse, 'e vivem em apartamentos com cinco, seis, sete quartos enquanto há pessoas na cidade deles que dormem na rua. É nojento'" (citado por Décugis et al., 2002, tradução livre). A partir do outono de 2001, a certeza de sua indignação parece estar diretamente relacionada ao número crescente de críticas dirigidas aos eleitos de Nanterre, que tornam-se, segundo a sua lógica, igualmente indignos de viver. A condenação dos eleitos à morte é irrevogável e segue uma lógica que evoca a de um idealismo passional de justiça social, exposta por Maurice Dide (Dide, 1913/2016), assim como o "delírio altruísta" da segunda variedade de reivindicadores descrita por Sérieux et Capgras (Sérieux & Capgras, 1909, p. 258, tradução livre).

Evidentemente, esses eleitos são bem-sucedidos, eles possuem o que Durn não possui (uma família, uma profissão, um lar, etc.). Eles foram eleitos. De certa maneira, eles representam uma forma de ideal de algo que ele poderia ter desejado ser. Entretanto, Durn concentra-se no fracasso dos eleitos em encarnar seus ideais. Ele não suporta essa falha. Essa lacuna é para ele um crime. Ao despencar, o ideal deixa de acobertar o horror do objeto dejeto que ele encarna e por esse mesmo caminho ele condena os eleitos, em quem ele antes confiava, ao estatuto de gozadores e traidores. Em seu processo de decomposição, correlativo à identificação imediata ao objeto a dejeto do simbólico (Lacan, 1962-1963/2004, p. 388, tradução livre) o sujeito atinge-se através de seus objetos e depois se suicida, quando nenhuma outra solução diante dele aparece.

 

3. A mãe e a prefeita7

Seu engajamento em missões humanitárias não é somente inspirado por seu "ideal de humanismo" (Durn, 1998-2002/2010, p. 39, tradução livre). Durn anota em seu Diário, em fevereiro de 1999, que seu engajamento é uma aposta: "Vou partir com a caravana humanitária organizada por Roland esperando no fundo receber um choque elétrico e encontrar pessoas que me darão vontade de viver, ou então eu morrer. Faço uma aposta estúpida. Alguma coisa tem que acontecer nessa viagem humanitária, ou não resta nada. Quero romper com essa casa (da minha mãe), essa cidade, essa monotonia, esse caos. Sofro demais" (Durn, 1998-2002/2010, p. 36, tradução livre). Durn se apoia na contingência dos encontros, do desejo ou da morte, que poderia retirá-lo, separá-lo da "Coisa materna" (Lacan, 1959-1960/1986, p. 82, tradução livre). Ou seja, de das Ding, que não se articula ao inconsciente enquanto determinada pela "assunção da castração que cria a falta onde se institui o desejo" (Lacan, 1964/1966, p. 852, tradução livre). Ele se encontra sem a defesa do desejo diante da Coisa "onde se situa o gozo8" (Lacan, 1964/1966, p. 853, tradução livre).

Dia 26 de março de 2002, véspera do drama, ele redige três cartas: uma para sua mãe e as duas outras para antigos conhecidos de missões humanitárias. Na carta destinada à sua amiga de Seine-Maritime, ele escreve: "Quero me sentir potente e livre mais uma vez, encontrarei esse sentimento causando a morte e destruindo psicologicamente minha mãe e minha irmã" (citado por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Essas palavras sobre sua mãe e sua irmã sugerem que seus atos funcionam como uma resposta do sujeito diante do real de uma separação impossível. Além das figuras do ideal traído personificadas pelos eleitos de Nanterre, ele pretende também aniquilar psicologicamente sua mãe e sua irmã, numa espécie de matricídio indireto. Seu objetivo era destruir esse Outro, que olhava em outra direção, deixando-o então em estado de derrelicção fundamental, como a Hiflosigkeit freudiana? Será que essa outra direção estava ligada, para Durn, ao não desejo da mãe quanto a ele, e quem sabe até ao seu desejo de morte?

A mãe, ao ser questionada por jornalistas após a tragédia, confessa, sobre o nascimento de seu filho: "É uma besteira que eu pago [...]. Eh, uma criança que eu não desejei. Essa criança não deveria nascer" (citada por Smolar, 2002, p. 8, tradução livre). Durn foi definitivamente marcado pela ausência de investimento e de amor maternos, manifestando a partir da adolescência a vontade de morrer. Na carta endereçada à amiga, a destruição retorna. Será possível identificar aqui um outro eixo de seu ato e a indicação de uma tentativa desesperada de se separar, no real, de sua mãe? Nesse sentido, Durn procurou uma forma de tratamento radical desse Outro não marcado pela falta, que sua mãe encarna por não ser desejante. Apesar de seus inúmeros engajamentos humanitários e políticos, através dos quais ele tentou representar integralmente seu ser sob o significante-mestre de humanismo, ele não conseguiu extrair-se desse Outro.

Lembramos que entre os eleitos presentes durante a assembleia municipal de 26 de março, a prefeita, Mme Fraysse, foi a única figura tomada deliberadamente como alvo e, entretanto, não atingida. Durante o segundo interrogatório de 27 de março, ele declara aos policiais: "A única pessoa que eu visei intencionalmente foi Mme Fraysse. Visei-a por sua posição de prefeita mas também porque não a respeitava. Para mim, ela é a encarnação de um apparatchik imóvel, responsável pela criação de uma sistema de clientelismo, e representante típico da grande burguesia vermelha, hipócrita, que controla tudo e passa por democrata e próxima do povo" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 13, tradução livre).

Ele mirava, portanto, como sugere Michel Schneider, "apenas uma figura, a da mãe, encarnada para ele pelo personagem de Jacqueline Fraysse" (Schneider, 2002, p. 112, tradução livre). J.-P. Lebrun é da mesma opinião e distingue, a partir de Schneider, os assassinatos do Caporal Lortie dos crimes de Durn: "Se o crime do Caporal Lortie aponta para um desejo de morte do pai, do poder, do governo, o de Richard Durn indica algo como uma vontade de sair da mãe, de descolagem, ou até de um ressentimento quanto a um mundo no qual a política perdeu sua legitimidade" (Lebrun, 2002, p. 178, tradução livre). De fato, o equívoco significante la maire [a prefeita]/la mère [a mãe] converge para a lógica de extração da Coisa materna que esses crimes sustentam - Coisa materna encarnada por sua mãe e pela irmã que ele ajudou a criar. Durn tenta operar uma subtração de gozo, um assassinato da Coisa, lá onde o significante Nome-do-Pai encontra-se foracluído. Entretanto, a prefeita é identificada por ele como a principal responsável pela degradação intolerável do ideal político e social. Ele denuncia os semblantes e acusa-a de gozar de seu poder de eleita. Assim, será que podemos considerar que suas acusações sugerem que ele identifica a prefeita além de seu gênero, e no lugar do Pai gozador (Urwater), que é a exceção dentro da lógica da castração? O jornalista J.-P. Thibaudaut questionou essa conexão ao propor "le père-maire?" (Thibaudaut, 2015).

 

4. O suicídio

Durn, que já havia assistido armado a diversas sessões do conselho municipal, parece ter tomado tarde sua decisão na noite do crime. Durante o segundo depoimento do dia 27 de março, ele confessa: "nos últimos minutos do conselho, eu pensei e entendi que não era mais possível recuar, era agora ou nunca" (citado por Ceaux & Smolar, 2002, p. 13, tradução livre). Durante a reunião do conselho, ele estava calmo. Durante a fuzilada, enquanto recarrega sua arma, alguns eleitos conseguem cercá-lo e colocá-lo no chão. Ele ordena: "Matem-me". Ele então tenta suicidar-se com uma faca que se encontrava no seu casaco. A polícia, que já tinha sido chamada, chega à cena do massacre. Durn exorta-os: "Matem-me, matem-me". Em prisão preventiva, Durn encontra-se, segundo um dos policiais presentes, "terrivelmente excitado" (citado por Tourancheau, 2002, tradução livre). Ele pergunta aos policiais: "Por que vocês não me mataram?".

A atonia melancólica reconhecível em Durn durante os últimos meses de sua vida transformou-se em excitação maníaca mortal. Um dos efeitos da falta moral, indica Lacan, é que "por pouco que essa covardia, por ser a rejeição do inconsciente, chegue à psicose, é o retorno no real do que foi rejeitado da linguagem; é a excitação maníaca através da qual esse retorno se faz mortal" (Lacan, 1973/2001, p. 256, tradução livre). Assim que a excitação diminui sob o efeito da medicação, Durn torna-se "prostrado", "apagado", "calmo", segundo um policial presente no prédio da Brigada criminal (citado por Tourancheau, 2002, tradução livre).

Durante o terceiro interrogatório, no dia seguinte, 28 de março, ele se atira da janela através de uma claraboia situada no quarto andar do edifício da Brigada criminal. Um dos dois policiais presentes no momento do incidente testemunha sobre o suicídio: "Richard Durn saiu voando como um foguete, apoiou-se sobre um móvel e mergulhou sobre a claraboia, como num mergulho mas ao contrário, com uma força insana, como se ele quisesse atingir o vidro, atravessá-lo. Com a força do impacto, a claraboia saiu voando, o brigadeiro M. atirou-se em seguida, tentou segurá-lo pelas pernas e quase morreu também mas foi segurado pelo oficial de polícia D" (citado por Tourancheau, 2002, tradução livre).

Esse testemunho comprova a determinação de Durn em suicidar-se, a atuar um "se deixar cair", tradução do termo alemão Niederkommen lassen, que Lacan estima ser "essencial a toda relação súbita estabelecida entre o sujeito e o que ele é enquanto a. Não é por acaso que o sujeito melancólico possui tal propensão, sempre realizada com uma rapidez fulgurante, desconcertante, a se jogar pela janela. De fato, a janela, enquanto lembrete do limite entre a cena e o mundo, nos indica o que significa esse ato - de certa forma o sujeito opera um retorno à exclusão fundamental da qual ele faz parte" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 130, tradução livre).

As ideias de Durn indicam essa exclusão íntima que o empuxa a se autoejetar do mundo e a se reunir ao seu ser de dejeto. "E isso", acrescenta Lacan, "só o deixar cair, o se deixar cair, pode realizar" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 131, tradução livre). Em certo sentido, seu suicídio não surpreende, já que Durn chegou ao fim da lógica do "empuxo à morte" (Deffieux, 2004, p. 54, tradução livre) que caracteriza o sujeito melancólico. E que, no caso de Durn, é consequência de um empuxo à morte em nome do ideal, quando a dimensão superegoica desse ideal despenca, levando junto com sua perda o próprio sujeito.

 

5. Conclusão

Nos anos 90, Richard Durn tenta agarrar-se a um "ideal de humanismo" (Durn, 1998-2002/2010, p. 39, tradução livre), na falta de encontrar um lugar em um discurso pré-estabelecido (Lacan, 1972/2001, p. 474). Sua utilização privilegiada desse ideal, nascido no imaginário, não faz laço social. Seu engajamento militante não resulta de uma posição fantasmática. Sua militância associativa e política, a escrita e o seu uso das línguas indicam que ele tentou, pela via da civilização (socialmente valorizada), encontrar um gancho contra seu desligamento do Outro. Solução que teria permitido frear sua "hemorragia interna" (Freud, 1895/1956, p. 97, tradução livre) libidinal, cicatrizando sua "ferida aberta" (Freud, 1915/1968, p. 162, tradução livre) que segundo Freud é própria ao "complexo melancólico". Durante certo tempo esses ideais parecem ter funcionado para ele, que se dizia "conformista" (Durn, 1998-2002/2010, p. 38), como uma compensação imaginária, um tipo de muleta. Suas múltiplas tentativas de agarro a uma identificação ordenada por um "ideal de humanismo" e de justiça social evocam a obrigação do sujeito psicótico de se inventar razões para viver a fim de suplementar a ausência do significante do desejo (o significante fálico) e a ausência da marca diferencial do sujeito (o significante unário).

Mas seus próprios defeitos (ele não consegue inscrever-se duravelmente nesse ideal como um semblante que faça laço social) e os dos outros (dos eleitos que não estão à altura das exigências do ideal de Durn) serão fatais tanto para ele quanto para os outros. Assim como Freud insiste em "Luto e melancolia" (Freud, 1915/1968), um sujeito melancólico só pode desabar após a perda de um ideal.

Os dados sobre os quais nos apoiamos são incompletos e às vezes sucintos, o que nos obriga a ter certa prudência. Entretanto, aparentemente algo mudou para Durn em 1998, como indicam sua viagem a Israel em abril, seguida do desentendimento com Gaël Klein e principalmente as ideias verbalizadas no B.A.P.U em julho. Podemos estabelecer, não sem cautela, 1998 e quem sabe até 1997 como a data de origem das ideias de chacina que se impõem a Durn. Dois outros eventos parecem determinantes: ele não consegue ingressar na escola Bioforce em 1999 e em 2001 ele provoca um acidente de micro-ônibus durante sua última missão humanitária. Além disso, Klein afasta-se de Durn. Seu desabamento parece então estar subordinado a um deixar cair que Durn associa a seus fracassos e decepções. As ameaças confusas proferidas em julho de 1998 no B.A.P.U são executadas. Os homicídios e o seu suicídio parecem constituir uma holófrase, tornarem-se um único e mesmo ato resultante da rejeição do inconsciente. Ele não pode extrair-se da chacina porque em certo sentido, subjetivamente, ele já está morto. Atacar os eleitos de Nanterre não o desvia de seu suicídio.

Essas passagens ao ato são regidas pela mesma lógica do Um unificante e incontável. Não de um significante que descompleta o Outro e o ordena9, mas a lógica de um Outro não descompletado. Lógica que não provém de uma organização borderline de Durn, como sugeriu M. Schneider, mas sim da psicose. Tal posição subjetiva deve ser associada à traição do Outro que deixou em Durn a marca permanente da morte. Antecipando a abjeção de seu ato, ele sabe que ao matar os eleitos de Nanterre irá se transformar em um monstro. Mas Durn encontrou, no sacrifício dos eleitos e de si mesmo, em nome dos "deuses obscuros" (Lacan, 1964/1973, p. 247, tradução livre) do ideal, uma solução definitiva que lhe permitirá, pelo negativo, sair do anonimato. Se ele não conseguiu ser um Luther King ou um Rastignac, como ele lamenta, graças ao seu ato criminoso ele fará parte do grupo dos grandes genocidas. Essa identificação antecipada ao monstro possui uma dimensão megalomaníaca e denota igualmente a vontade de se construir um nome. Ou seja, é uma tentativa de autocriação, no sentido em que o sujeito pretende inscrever seu nome no Outro, campo do significante, algo que para ele foi até então defeituoso.

 

 

Referências

Benkimoun, P. (2002). Des psychiatres avaient signalé, à plusieurs reprises, son caractère "potentiellement dangereux". Le Monde, le 10 avril 2002, p. 13.         [ Links ]

Chabrun, L., Dupuis, J., Gaetner, G., Pelletier, É. & Pontaut, J.-M. (2002). Retour sur la tragédie. Documento da Internet disponível em <http://www.lexpress.fr>, recuperado em 25 mar 2015.         [ Links ]

Ceaux, P. & Smolar, P. (2002). Les procès verbaux des trois auditions au 36, quai des Orfèvres. Le Monde, 10 avril, p. 13.         [ Links ]

e Gaulejac, V. (2006). Le sujet manqué. In Aubert, N. (dir.), L'individu hypermoderne (p. 129-143). Paris: Erès.         [ Links ]

Décugis, J. M., Dunglas, D., Labbé, C. & Recasens, O. (2002). Richard Durn: itinéraire d'un tueur d'élus. Documento da Internet disponível em <http://www.lepoint.fr>, recuperado em 25 mar 2015.         [ Links ]

Deffieux, J.-P. (2004). Le risque suicidaire. La Cause freudienne, 58, 49-55.         [ Links ]

Dide, M. (1913/2006). Les idéalistes passionnés . Paris: Frison-Roche.         [ Links ]

Durn, R. (1998-2002 /2010). Journal. In La logique du massacre. Derniers écrits des tueurs de masse (p. 33-39). Paris: Inculte.         [ Links ]

Freud , S. (1895/1956). Manuscrit G. In La naissance de la psychanalyse (p. 91-97 ). Paris: PUF.         [ Links ]

Freud S. (1915/1968). Deuil et mélancolie. In Métapsychologie (p. 145-171). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Hassid, O. & Marcel, J. (2012). Tueurs de masse. Un nouveau type de tueur est né. Paris: Eyrolles.         [ Links ]

Lacan, J. (1959-1960/1986). Le séminaire, livre VII. L'éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1962-1963/2004). Le séminaire, livre X. L'angoisse. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1964/1973) Le séminaire, livre XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1964/1966). Du "trieb" de Freud et du désir du psychanalyste. In Écrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1967/2001). Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l'École. In Autres écrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1973/2001). Télévision. In Autres écrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1972/2001). L'étourdit. In Autres écrits. Paris: Seuil.         [ Links ]

Lebrun J.-P. (2002). Richard Durn ou la tragédie d'un enfant de personne. Psychologie clinique, 17, 173-187.         [ Links ]

Sauret, M.-J. (2008). Mélancolie et lien social. Essaim, 20, 57-72.         [ Links ]

Sérieux, P. & Capgras, J. (1909). Les folies raisonnantes. Le délire d'interprétation. Paris: Félix Alcan.         [ Links ]

Schneider, M. (2002). Des crimes de notre temps. Notes sur les récents attentats à la vie d'hommes politiques. Esprit, décembre, 110-116.         [ Links ]

Smolar, P. (2002). Richard Durn, l'itinéraire sans aspérités d'un désespéré de la vie. Le Monde, 31 mars-1er avril.         [ Links ]

Thibaudat, J.-P. (2002). Richard Durn, détruit par sa folie. Documento da internet disponível em <http://www.liberation.fr>, recuperado em 28 mar 2015.         [ Links ]

Tourancheau, P. (2002). Richard Durn, le suicide après le coup de folie. Documento da internet disponível em <http://www.liberation.fr>, recuperado em 28 mar 2015.         [ Links ]

Tourancheau, P. (2008). Tueurs d'élites. Documento da internet disponível em <http://www.liberation.fr>, recuperado em 28 mar 2015.         [ Links ]

Zagury D. (2008). L'énigme des tueurs en série. Paris: Plon.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 01/12/2014
Aprovado para publicação em: 06/ 02/ 2015

 

 

*Maître de conférences en psychopathologie, Laboratoire 4050 Recherches en psychopathologie, nouveaux symptômes et lien social, Université Rennes 2, Rennes, França.
**Maître de conférences en psychopathologie, Laboratoire 4050 Recherches en psychopathologie, nouveaux symptômes et lien social, Université Rennes 2, Rennes, França.
***Mestranda em psicopatologia Université Rennes 2.
1O presente artigo é o resultado de um trabalho elaborado por um grupo de pesquisa de psicopatologia clínica e criminologia psicanalítica sobre "as novas formas de fanatismo" (Hamon, R., Trichet, Y.) EA 4050 Recherches en psychopathologie, nouveaux symptômes et lien social, Université Rennes 2.
2Zagury compara a uma equação o enigma que constituem os serial killers. Para cada caso, ele tenta reduzir o número de incógnitas (Zagury, 2008, p. 17).
3Dois no dia 27 de março um no dia seguinte, 28 de março de 2002. Podemos acrescentar as diferentes entrevistas dos seus próximos, como sua mãe e seu melhor amigo Gaël Klein.
4Instituição que propõe, para estudantes universitários, acompanhamento com psicoterapeutas e psiquiatras. As consultas são pagas pela segurança social estudantil. (NT)
5Equivalente da Renda básica de cidadania no Brasil (proposta por um senador da república brasileira). (NT)
6Rastignac, personagem literário de Acomédia humana, criado por Honoré de Balzac, distingue-se pelo seu sucesso social e seu idealismo. Ele foi ministro e rico.
7Em francês, "prefeita" e "mãe" possuem uma escrita próxima: respectivamente "maire" e "mère". (NT)
8Lacan opera uma divisão entre desejo e gozo: "Esse drama não é o acidente que acreditamos. Ele é essencial: porque o desejo vem do Outro, e o gozo situa-se ao lado da Coisa" (Lacan, 1964/1966, p. 853, tradução livre).
9Que Lacan nomeia significante fálico e em seguida significante do Nome-do-Pai.