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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

A construção de um caso clínico: pontuações freudianas sobre o tema e algumas de suas implicações

 

Clinical case construction: the Freudian approach of the theme and some of its implications

 

 

Diego Alonso Soares DiasI*; Oswaldo França NetoI**

IUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo localizar pontos fundamentais em alguns textos freudianos que possam contribuir para o aprofundamento de estudos a respeito da prática da construção do caso clínico. A aposta é que por meio desse caminho seja possível a abordagem de pontos significativos sobre o assunto, o que possibilitaria uma melhor apreensão do que se encontra em jogo no momento em que evocamos a perspectiva da construção do caso clínico como ferramenta de trabalho nas instituições. Nesse sentido, buscamos, na parte final do texto, após localizarmos como Freud entende a construção e a aplica em alguns de seus casos clínicos, refletir sobre a ideia de interpretação e a maneira como ela se relaciona com a construção de casos. Evocamos para isso pontuações e reflexões freudianas e de outros autores que se debruçam sobre o tema. Assim, o que se pretende é que se inicie uma pesquisa conceitual sobre a “construção do caso clínico”, admitindo-se a possibilidade de que se trata de um campo de estudo suscetível de maiores aprofundamentos teóricos.

Palavras-chave: construção do caso, interpretação, Freud, clínica.


ABSTRACT

This articles aims at locating key points in some Freudian texts that can contribute to the deepening of studies regarding the clinical case construction practice. The bet is that, through this way, it is possible to approach significant points about the subject, which would enable a better apprehension of what is at stake when we evoke the perspective of the clinical case construction as a work tool in institutions. We seek, after locate how Freud understands the construction and apply in some of his clinical cases, to reflect on the idea of interpretation and the way it relates to the construction of cases. We call, for this, points of the thought of Freud and of other authors. Thus, our intention is to start a conceptual research about the “clinical case construction”, admitting the possibility of a greater appropriation of this study theme.

Keywords: clinical case construction, interpretation, Freud, clinic.


 

 

O presente texto tem como objetivo principal localizar pontos fundamentais em alguns artigos freudianos que possam contribuir para o aprofundamento de estudos a respeito da prática da construção do caso clínico como ferramenta de trabalho clínico nas instituições, tal como é defendida por alguns autores (Viganò, 2012; Teixeira, 2010; Figueiredo, 2010; Mendes, 2015). É realizada uma investigação que parte de textos de Freud sobre o tema, sinalizando algumas das principais características passíveis de serem extraídas quando uma construção é feita. Para isso, utilizamos, inclusive, alguns dos casos clínicos publicados por Freud. No entanto, em nossa elaboração, colocamos uma especial ênfase no tema da interpretação, uma vez que há autores que pontuam diferenças entre a construção e a interpretação (Viganò, 2012). Seria essa a perspectiva freudiana? De que forma essa discussão surge em seus textos?

Nesse sentido, nossa aposta é que por meio desse caminho seja possível a problematização de pontos significativos sobre o assunto, o que possibilitaria uma melhor apreensão do que se encontra em jogo no momento em que nos propomos a refletir sobre a possibilidade de construção de um caso. Contudo, cabe observar que a presente produção não se caracteriza por ser uma produção "histórica". Não se procura entender a noção de construção e suas transformações ao longo do tempo de forma "linear". O que se pretende é que se possa iniciar uma pesquisa conceitual sobre a "construção do caso clínico" admitindo-se que por meio disso um maior aprofundamento desse tema de estudo seja possível.

 

Revisitando algumas construções de Freud

Em Freud, o tema da construção é tratado principalmente em um de seus últimos artigos, denominado "Construções em análise", publicado em 1937. Nele, o autor traz à tona contribuições a respeito da técnica psicanalítica, enfatizando uma das atribuições do analista que, mesmo que tenha sido menos abordada nos textos anteriores, possui grande importância. Trata-se da prática de se construir um caso, deixada em segundo plano quando comparada à técnica da interpretação. Freud sinaliza que a construção em si é fundamental para o transcorrer de uma análise (Freud, 1937/1996).

Nesse texto, Freud inicia sua argumentação em resposta a um questionamento endereçado aos psicanalistas. Esse questionamento, em sua essência, tem por objetivo problematizar se a psicanálise é de fato uma prática válida, legítima. A crítica é a de que os psicanalistas, em seu trabalho, se arranjam para que sempre tenham razão. Independente do que um paciente pronuncia, se ele confirma ou refuta uma determinada assertiva, o que prevalece é a posição do psicanalista. Se um paciente confirma alguma interpretação do analista, a conclusão a que se chega é a de que o analista está certo, mas se o paciente a recusa, o analista argumenta que existe uma resistência agindo naquele momento, o que novamente comprova que o profissional está certo (Freud, 1937/1996). Não importa o que aconteça, no final das contas o analista sempre tem razão.

Nesse contexto, a crítica que se faz a essa discussão incide sobre a técnica da interpretação. Para o crítico da psicanálise, a interpretação é colocada como um ato que em si não é questionável, portando em si mesmo algo da verdade daquele paciente, verdade essa que se mostraria de forma toda e definitiva. No momento da interpretação, uma revelação aconteceria, e não haveria uma crítica possível para esse instante. Analista e analisante estariam, portanto, estruturados de forma semelhante a uma relação tradicional entre professor e aluno. O "professor analista" seria o detentor de um saber que estaria identificado à verdade, enquanto que um "analisante aluno" se colocaria como um mero receptáculo de determinados conteúdos.

Podemos perceber também que a crítica à técnica analítica tem seu lugar em um plano que prima pela argumentação. Nesse sentido, a análise estaria relacionada a um debate de ideias, em que os argumentos mais persuasivos e convincentes conseguiriam a vitória. Freud, ao trabalhar a técnica da análise, faz um movimento contrário a essa concepção. Se, por um lado, ele refuta que se entenda a interpretação enquanto a revelação de uma verdade "toda", por outro lado coloca em um mesmo nível o "sim" e o "não" de um paciente, o que significa considerar que tais respostas devem ser localizadas em relação a outros elementos revelados em uma análise. É nesse ponto que Freud introduz a perspectiva da construção. Freud nos sinaliza que, para além do processo interpretativo, cabe ao psicanalista a tarefa de construção do caso, sendo ela concebida como um produto formulado em espiral por meio de contínuas interpretações. Cada interpretação funcionaria como um tijolo, uma peça necessária para que uma obra seja feita.

Nesse sentido, diante das críticas que incidem sobre a prática da interpretação, Freud introduz esse novo elemento que, em certa medida, serve de balizador para as interpretações. Esse elemento tem como uma de suas funções principais "furar" as interpretações feitas pelo próprio analista, assinalando-lhes sempre o estatuto de inacabadas. De alguma forma, a construção colocaria em questão a própria interpretação analítica. Ao mesmo tempo, a construção, para Freud, seria uma tarefa vinculada estritamente ao analista, exclusiva dele. Isso implica considerar que o analista possui a tarefa de coletar os elementos deixados pelos pacientes em uma sessão e organizá-los, submetendo-os, a seguir, ao paciente, para que assim se desse a sequência do trabalho. Desse trabalho do analista duas consequências principais são passíveis de serem extraídas. A primeira é a de que à construção, assim como à interpretação, não estaria reservado o lugar de completude. No momento em que uma construção fosse submetida a um paciente, estaria aberta a possibilidade de surgimento de novas construções, ou mesmo de reformulações daquilo que foi submetido.

A segunda consequência relaciona-se à possibilidade de uma construção provocar em um paciente convicções próximas às de uma lembrança. Freud nos diz que os fragmentos da construção visam, em última instância, favorecer o ato de rememoração por parte dos pacientes. Às vezes, quando isso não acontece, pode ocorrer de uma construção provocar em um paciente uma convicção, o que se assemelha à nítida lembrança de um determinado material anteriormente recalcado. Nesse contexto, a construção ganharia o estatuto de uma lembrança readquirida, o que não deixa de dar a impressão de uma contradição. Afinal, temos como ponto de partida o fato de que uma construção é sempre um fragmento, inacabado por definição. Se esse fragmento ganha o estatuto de uma memória, não estaríamos lidando com algo finalizado, pronto? Mesmo que consideremos, com Freud, essa possibilidade de associação entre uma construção e uma lembrança, é válido destacar que não é possível atribuirmos a uma lembrança o estatuto de algo definitivo. Até as lembranças mais claras podem ser problematizadas, o que possibilita que se revelem novos aspectos desconhecidos ou anteriormente desconsiderados.

De que forma um psicanalista pode então se situar em relação ao "sim" ou ao "não" do paciente? Em que medida a construção ajuda nesse tipo de investigação?

Uma vez que a simples afirmação ou negação de determinado conteúdo não é suficiente para que um trabalho tenha prosseguimento, torna-se fundamental o que surge de forma indireta em uma análise. Nessa perspectiva, interpretação e construção buscam não a aprovação de um paciente, mas o que é possível que se averigue em uma análise de forma indireta. Indireto, aqui, pode ser relacionado ao que surge no plano enunciativo ou mesmo nos gestos feitos pelos próprios pacientes. A confirmação ou refutação de determinado material, portanto, só pode ser realizada a partir do que é produzido depois de uma interpretação. Nesse sentido, encontramo-nos com uma organização temporal distinta do que podemos caracterizar como cronológico, uma vez que o que vem depois se torna determinante para o caráter que tomará aquilo que aconteceu de forma precedente.

No que se refere às colocações que são confirmadas pelos pacientes, Freud esclarece que:

Um simples "sim" do paciente de modo algum deixa de ser ambíguo. Na verdade, pode significar que ele reconhece a correção da construção que lhe foi apresentada, mas pode também não ter sentido ou mesmo merecer ser descrito como "hipócrita", uma vez que pode convir a sua resistência fazer uso de um assentimento de uma verdade que não foi descoberta. O "sim" não possui valor, a menos que seja seguido por confirmações indiretas, a menos que o paciente, imediatamente após o "sim", produza novas lembranças que completem e ampliem a construção (Freud, 1937/1996, p. 280).

Nesse sentido, o "sim" pronunciado em uma análise não deve ser tomado em si como o final de algo, que legitima tudo o que foi emitido anteriormente. O "sim" pode ser considerado como o início de uma nova sentença, que mesmo que fuja dos enunciados que envolvem aquele momento, pode conter elementos que deem corpo à construção elaborada ou mesmo a corrija.

Ao se referir ao "não", Freud mantém a mesma perspectiva de ambiguidade e de algo não conclusivo. Contudo, acrescenta que, ao emitir um "não", mais do que expressar uma resistência, surge a confirmação de que aquilo que revelamos ao paciente é um fragmento, algo inacabado. Nesse sentido, o "não" aponta para uma das principais características da construção, isto é, a de que ela é um fragmento:

Uma vez que toda construção desse tipo é incompleta, pois abrange apenas um pequeno fragmento dos eventos esquecidos, estamos livres para supor que o paciente não está de fato discutindo o que lhe foi dito, mas baseando sua contradição na parte que ainda não foi revelada (Freud, 1937/1996, p. 281).

Cabe ressaltar também que a negação possui um papel importante na ascensão de um conteúdo inconsciente à consciência. Por meio do "não", determinado conteúdo recalcado consegue se direcionar à consciência, tendo como condição o fato de ser, no momento da enunciação, negado. Assim, para Freud: "o seu não é a marca distintiva da repressão, um certificado de origem - tal como, digamos, "Made in Germany"" (Freud, 1925/1976, p. 297).

Assim, uma das conclusões possíveis a partir da análise das confirmações ou refutações que surgem por parte do paciente é a de que o fundamental em uma psicanálise surge de viés. Nossa breve análise sobre o "sim" e o "não" nos conduz justamente a esse ponto, que nos leva a colocar uma ênfase especial naquilo que nos é apresentado de forma imprecisa, ou que ainda está por surgir. Uma construção elaborada em análise, que por definição é um fragmento, obtém como material algo com que não conseguimos lidar de maneira frontal, algo que só nos é possível abordar de lado.

De acordo com Miller, existe uma relação entre o que surge indiretamente no contexto de uma análise e o que Lacan caracteriza em seu ensino como semidizer. A verdade, para Lacan, é sempre semidita, e o que o analista consegue coletar de forma indireta possui relação com o que é semidito. Para Miller:

Tudo o que surge diretamente, o sim direto, o não direto, o não é verdade, não é isso, não é o que conta. O que conta é o que surge de lado. É o que Lacan chamará bem mais tarde de semidizer. Não se pode dizer a verdade, pode-se apenas semidizê-la, esta já é uma demonstração de Freud. [...]. Isto quer dizer que o analisante está sempre errado na sua relação com o inconsciente, porque esta relação é, ela mesma, torcida. Não podemos falar o justo sobre o inconsciente de modo direto. Não podemos falar o justo sobre o inconsciente senão de lado, de viés (Miller, 1996, p. 95).

Independentemente do ponto de partida, analista ou analisante, lidamos com o incompleto, sendo essa uma condição da qual não podemos nos furtar no momento em que se toma o inconsciente como objeto de investigação. O analista deve levar em conta que suas construções e interpretações são inacabadas. Ao mesmo tempo, o material que nutre as intervenções analíticas, as confirmações indiretas, como Freud as caracteriza, não se encontram livres de equívocos ou mal entendidos. Elementos indiretos advindos de uma análise confirmam ou refutam tal hipótese, sendo que a natureza mesma desses elementos nos ensina de que forma lidar com a verdade do sujeito, de que forma ela é semidita pelo paciente.

Cabe ressaltar contudo que, tanto em Freud quanto em Lacan, a perspectiva da construção é encarada de diferentes formas. Ao passo que Freud concebe a construção como um trabalho estritamente do analista, Lacan já atribui a construção ao analisante, de acordo com Miller (1996). Se a construção é algo que vem do analisante, o trabalho do analista se torna, portanto, o de legitimar simbolicamente o ato de construção do paciente, autorizando o prosseguimento desse trabalho. Na ótica freudiana, no entanto, o que temos é o lançamento por parte do analista de um determinado material, e o que se colhe posteriormente desse material, elaborado a partir de fragmentos coletados em uma análise.

Nesse contexto, temos o tratamento (seja partindo do analista ou do analisante) intrinsecamente relacionado a determinados fragmentos. Em ambos, persiste a noção de um "trabalho preliminar", expressão essa empregada por Freud (1937/1996, p. 278), que, no limite, favorece o andamento de uma análise.

De acordo com Miller (1996), na perspectiva freudiana, a construção enquanto um trabalho preliminar vincular-se-ia a elaboração de um saber, enquanto que a interpretação estaria mais próxima a um efeito de verdade. Assim, a construção insinuar-se-ia como um processo que se funda primordialmente em um posicionamento investigativo por parte do analista, que faz uso da interpretação para avançar cada vez mais em sua construção. A construção encontraria seu teste final no tempo em que fosse submetida ao paciente, sendo este o momento em que ele poderia conferir a ela a sua real pertinência.

Tal concepção, que coloca em pauta a interpretação próxima à verdade, e a construção aproximada ao saber, por si só é extremamente significativa, uma vez que por meio desses dois procedimentos explicita-se a disjunção entre o saber e a verdade. Saber e verdade, na ilusão totalizante do discurso científico, encontram-se sobrepostos. A razão se torna o principal instrumento de apreensão da realidade, ou seja, um método de apropriação da realidade. Isso significa dizer que a razão, o pensamento, em última instância, é um método que possibilita e potencializa investigações sobre o real. Por meio dela é possível que se conheça tudo, ela é a via de acesso seguro. Saber e verdade sobrepõem-se, identificam-se um ao outro. Já em Freud, tem-se o saber que se constitui a partir de uma verdade que nunca é dita em definitivo, sempre semidita, e sempre em construção. Vejamos, a partir dessas observações de que forma Freud menciona o tema da construção em alguns de seus casos clínicos.

 

Algumas pontuações clínicas de Freud sobre as construções em análise: a Jovem homossexual e o Homem dos lobos

Mesmo que Freud, por vezes, não se refira ao tema explicitamente, é possível encontrarmos o uso do termo e, por vezes, referências de como o processo de construção chegou a ser realizado.

No que se refere à "História de uma neurose infantil (o Homem dos lobos)" (1918/2010), vale considerar que a própria estrutura do caso organizada por Freud sugere algo a respeito desse trabalho de construção, uma vez que o intuito de Freud, nesse caso, é trabalhar o que é suscitado em um paciente adulto a respeito de questões diretamente relacionadas à sua infância. Além de interpretado, é um caso que efetivamente teve de ser construído.

Outro aspecto que nos chama a atenção refere-se às diversas dificuldades com que Freud tem de se haver frente ao caso. Exemplo disso são os impasses com os quais se depara diante da cena primária construída por ele, que teve como guia principal um sonho relatado pelo paciente em análise. O procedimento de Freud é, efetivamente, o de um estruturador dos indícios com os quais se defronta durante o processo analítico. Ele não se furta das dificuldades que levam à construção dessa cena, não recua diante dos impasses que lhe são apresentados. Nesse contexto, é interessante observar que um dos principais problemas com os quais Freud tem que lidar refere-se à veracidade daquilo que ele constrói, ou seja, se é possível que haja algum registro mnêmico que dê suporte à sua construção. Freud procura aqui algum elemento de que o fato ocorreu em termos históricos. Germina, já nesse caso, o que Freud viria a trabalhar anos mais tarde, no texto "Construções em análise". Trata-se da "mistura" observada em alguns de seus pacientes entre construção e lembrança. De acordo com Freud:

Quero dizer que cenas como a de meu paciente, de um período tão antigo e com tal conteúdo, e que possuem tal importância para a história do caso, em geral não são reproduzidas como lembranças, mas tem de ser gradual e laboriosamente adivinhadas - construídas - a partir de uma soma de indícios (Freud, 1918/2010, p. 70).

Mais adiante, no entanto, Freud defende e demonstra a convicção de que determinadas construções podem provocar em seus pacientes, de forma semelhante a um fragmento de memória. Nesse contexto, a confirmação das construções aparece, como temos mencionado, de forma indireta, por meio de sonhos, tendo influências diretas sobre os pacientes:

Sonhar é também recordar, embora sujeito às condições do período noturno e da formação do sonho. Esse retorno em sonhos explica, segundo creio, que nos pacientes mesmos se forme gradualmente uma firme convicção da realidade dessas cenas primordiais, uma convicção que em nada fica atrás daquela baseada na recordação (Freud, 1918/2010, p. 71).

Nesse contexto, tornam-se evidentes, em diversos níveis, as relações que a atuação do analista e o caso estabelecem com a verdade. Freud, nesse caso, submete uma cena construída, não necessariamente definitiva ou equivalente a acontecimentos históricos, a seu paciente e espera confirmações que possam surgir. Os sonhos que aparecem legitimam o essencial da cena e permitem a continuidade do tratamento.

Por outro lado, Freud, em seu texto, não é decisivo a respeito da cena primária. A hipótese levantada ele é explorada exaustivamente, mas ainda assim fica algo por se dizer a respeito. É certo que uma das observações do autor é a de que fantasias de crianças ou mesmo de adultos são elaboradas com materiais adquiridos em algum lugar (Freud, 2010/1918, p. 76), mas ainda assim a conclusão a que Freud chega sobre a realidade da cena primária não é definitiva, o que não deixa de ser coerente com a construção de um caso, pois não conseguimos acessar de forma categórica todo o material. Nesse sentido, é adequada aqui a observação de Mattos:

O texto sobre o "Homem dos Lobos" nos ensina o que é um caso construído em torno do real da clínica, pois toda a sua constituição, que foi orientada pelo sonho de Serguéi Pankejeff - o sonho dos lobos - evoca o real da cena primária e de suas consequências particulares para esse sujeito. É um caso que coloca diversas dificuldades e mesmo polêmicas em relação ao diagnóstico. Freud, no entanto, não deixou de valorizar seus impasses e dificuldades, propondo-nos, a partir deles, dar um passo e, assim, avançar em nossa clínica (Matos, 2011, p. 166-167).

Outro caso que toca em pontos de nossa investigação é o caso conhecido como o da Jovem Homossexual, denominado "A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher", de 1920, que retoma a diferenciação feita anteriormente entre a quem deve ser atribuído o trabalho de construção, ao analista ou ao analisante. Freud, ao fazer alguns esclarecimentos a respeito de como procedeu nesse caso, faz uma divisão em duas etapas do trabalho analítico. Na primeira, que ele relaciona ao próprio analista, se colhem informações necessárias e se revela ao paciente algo a respeito do distúrbio do qual ele sofre. Já na segunda, o próprio paciente se debruça sobre o que lhe é revelado e acrescenta e/ou corrige conteúdos com os quais teve contato. Apesar da divisão didática, Freud nos diz que: "essas duas fases do curso do tratamento analítico não estão sempre nitidamente separadas uma da outra, o que só pode acontecer quando a resistência obedece a certas condições" (Freud, 1920/1996, p. 163).

Uma passagem como essa nos remete, em princípio, à vinculação realizada por Freud entre a construção e o analista, na qual a construção é vista como algo exclusivo do analista, um trabalho só dele. Ao mesmo tempo, aproxima-nos da complementaridade entre interpretação e construção. No entanto, se formos tentar seguir a trilha de Freud e nomear cada etapa dividida nesse caso por ele, encontramo-nos em dificuldade. Por mais que encontremos no artigo "Construções em análise" (1937/1996) a noção da construção enquanto um trabalho preliminar, parece-nos que ela permeia ambas as etapas do processo analítico, não necessariamente e somente de maneira preliminar. Na primeira, além de se colher informações necessárias para o caso, já existe a submissão do que ocorre ao próprio paciente, o que não deixa de pressupor que alguma construção já tenha sido feita. Em segundo lugar, é próprio também da construção o que ocorre na segunda etapa, a saber, o acréscimo ou a correção do que havia sido revelado. Nesse sentido, parece-nos que vincular a construção somente ao analista (como Freud propõe) ou ao analisante (de acordo com a leitura de Miller sob a perspectiva lacaniana) faz com que se perca a própria dinamicidade do processo. Temos a impressão, assim, que a construção é algo que se vincula ao processo analítico, e que é o dispositivo, ou mesmo o discurso analítico, que possibilita que ela ocorra, o que desloca a ênfase e a tensão entre analista e analisante.

Ainda a respeito do caso da "Jovem homossexual", cabe a observação elaborada por Freud a respeito de peculiaridades do inconsciente. Aqui, o autor remete-nos à discussão anterior feita a respeito do que é confirmado ou refutado pelo paciente, mas em um nível de sofisticação ainda maior, uma vez que Freud localiza no decorrer do caso sonhos que sugerem a ele interpretações que não vão na mesma direção de outros indícios colhidos durante a análise. Ao trabalhar esses sonhos, Freud afirma que:

A contradição entre eles (os sonhos) e as afirmativas da jovem na vida desperta, na ocasião, era muito grande. [...]. Advertido por uma ou outra ligeira impressão, disse-lhe certo dia que não acreditava naqueles sonhos, que os encarava como falsos ou hipócritas e que ela pretendia enganar-me, tal como habitualmente enganava o pai. Eu estava certo; após havê-lo esclarecido, esse tipo de sonho cessou (Freud, 1920/1996, p. 176).

Nesse contexto, é digno de nota que mesmo que tenhamos a experiência da construção como uma experiência inacabada, nem por isso o material colhido não deva ser tratado com rigor. A evolução do caso, e a forma como se estabelece a transferência entre analista e analisante, portanto, encontra-se em outro plano, plano este que é diferente do argumentativo, mas que de qualquer forma não deixa de orientar o tratamento.

 

Algumas observações sobre a perspectiva da construção: a posição interpretativa

Ao realizar esse breve apanhado a respeito de como Freud lida com a noção de construção de um caso em alguns de seus textos, e tendo em mente que a perspectiva da construção pode ser considerada como uma importante metodologia que se propõe orientar um trabalho possível em um tratamento, tanto em consultório como em um ambiente institucional, consideramos que algumas observações se fazem necessárias sobre a posição interpretativa, visto que, aparentemente, existe um deslocamento significativo na abordagem dela.

Para Freud, observamos que a interpretação age como um pedaço de algo maior. A cada interpretação realizada, novos elementos surgem, que são a seguir trabalhados pelo analista. No momento seguinte, esses elementos são devolvidos ao paciente, colhe-se o que surge, e assim por diante. Trata-se de uma abordagem que opera principalmente por meio do saber, a construção estrutura-se enquanto um saber que se serve da interpretação para avançar. Construção e saber encontram-se aqui indissociados, porém não identificados.

No entanto, percebemos, na perspectiva de outros autores, o rompimento entre o trabalho de construção e a interpretação. Viganò (2012), autor que se debruça sobre as possibilidades de se construir um caso em um contexto institucional, argumenta a respeito do risco de que a interpretação vincule-se rigidamente ao saber, tendo como efeitos o total silenciamento do sujeito em tratamento. Nesse sentido, o perigo é de que a interpretação que se faz da fala de um paciente torne-se mais importante que o próprio paciente. O saber, que poderia ser usado como um instrumento para a apreensão do que está em jogo em um caso, torna-se extremamente consistente, e poucas possibilidades de manejo do tratamento emergem daí.

O movimento que observamos, frente a esse perigo, é a desqualificação da interpretação na instituição, isto é, a desqualificação da interpretação enquanto ferramenta para o desenvolvimento de um trabalho em equipe que busque a construção do caso (Viganò, 2012; Teixeira, 2010). Não se interpreta, espera-se o movimento do sujeito para a execução do trabalho de construção.

Um paciente que sempre chegou antes da hora, um dia chega atrasado; é preciso notar que aquele foi um bom dia. Pode ser, também, que um dia ele falte - é uma mensagem; é importante construir isso. Não é uma frase inteira, não se pode interpretá-la nem lhe dar um sentido; é suficiente notar que aconteceu alguma coisa - esse paciente fez um ato. Durante três meses, ele vinha todos os dias e não era um ato; um dia não vem, aquilo é um ato. É importante registrar isso e fazer notar. Isso é a construção. Se nos lançássemos a fazer uma interpretação, a pensar: Ah, ele não veio por isso ou aquilo, nos o esmagaríamos com o nosso saber (Viganò, 2012, p. 123).

Mas seria uma crítica como essa vinculada necessariamente a perspectiva freudiana? O que percebemos é que a ênfase encontra-se na tentativa de descarte de saberes prévios que se tem a respeito desse mesmo caso, entendendo-se que esses saberes podem proporcionar o apagamento do sujeito em tratamento. Percebe-se, portanto, que a interpretação, quando colocada em oposição à construção do caso clínico, é encarada de uma forma mais ampla. Vincula-se a ela o amordaçamento do sujeito, com um enfoque especial ao caso das psicoses. Inclui-se nessa perspectiva não somente a interpretação sob a ótica psicanalítica, mas todo e qualquer sentido rígido que se possa atribuir ao caso, inviabilizando assim a condução do caso.

Encontramo-nos, portanto, com duas diferentes perspectivas: em uma delas, o saber que se tem sobre um paciente (seja ele vinculado à interpretação ou não) é tido como o sinônimo de uma verdade considerada como definitiva, versão essa que anula o sujeito. De outro lado, tem-se o saber que se estrutura por meio de efeitos de verdade, pelo que o trabalho de construção pode vir a se realizar.

Assim, a construção, nesse sentido, nada mais é que uma das maneiras de nos aproximarmos da verdade daquele sujeito. Tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, temos com a construção aproximações gradativas e não definitivas de um "núcleo de verdade" daquele sujeito, para utilizarmos a expressão de Freud. É justamente aí que se encontra o parentesco entre a construção e o delírio, ambas enquanto construções que revelam algo que estruturalmente se equivoca no momento mesmo em que se revela. De acordo com Freud:

Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que erguemos no decurso de um tratamento analítico - tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que substituir o fragmento de realidade que está sendo rejeitado no passado remoto. [...]. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada (Freud, 1937/1996, p. 286).

Para realizar essa analogia, Freud baseia-se na observação de que determinadas construções ganham o estatuto de lembranças recuperadas. A hipótese é a de que pode haver na construção, assim como no delírio, um "núcleo de verdade" (Freud, 1937/1996, p. 286), que viabilizaria a ocorrência de um tratamento possível. Assim, o saber oriundo de uma construção e de um delírio teria como subsídio a verdade daquele paciente. Essa verdade, ao se manifestar na enunciação, surgiria de forma indireta, o que é bastante claro nas palavras de Freud que se seguem, em que ocorre certo deslocamento da atenção do sujeito, indo do acontecimento para detalhes insignificantes desse mesmo evento:

Fiquei impressionado pelo modo como, em certas análises, a comunicação de uma construção obviamente apropriada evocou nos pacientes um fenômeno surpreendente e, a princípio, incompreensível. Tiveram evocadas recordações vivas - que eles próprios descreveram como ultra-claras, mas o que eles recordaram não foi o evento que era o tema da construção, mas pormenores relativos a esse tema (Freud, 1937/1996, p. 284).

Daí a importância das confirmações indiretas que surgem diante de certo material, e que de alguma forma guiam o trabalho possível. A interpretação (tal como encontramos no texto freudiano), no mesmo sentido que a construção, teria também relação com esse núcleo de verdade, porém como uma forma de organização diferente. Nesse sentido, tanto interpretação como construção teriam um eixo comum, no momento em que fossem submetidas ao equívoco: "não podemos agarrar a verdade senão na equivocação" (Miller, 1996, p. 103).

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 11/02/2016
Aprovado para publicação em: 18/06/2016

 

 

*Psicanalista. Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Preceptor do Programa de Residência Multiprofissional do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
**Psicanalista. Doutor em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Associado do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

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