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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

A hipocondria de Schreber: uma inflação narcísica?

 

L’hypocondrie de Schreber: une inflation narcissique?

 

 

Gabriela Costa MouraI, II*; Susane Vasconcelos ZanottiIII**

ICentro Universitário Tiradentes – UNIT - Brasil
IICESMAC - Brasil
IIIUniversidade Federal de Alagoas - UFAL - Brasil

 

 


RESUMO

Schreber, um dos mais notáveis casos clínicos de Freud, mencionou nas Memórias sua crise de hipocondria em um momento que antecedeu o desencadeamento de sua psicose. Suas queixas apontavam toda a atenção para o corpo: duvidava de seu peso, acreditava estar morto e em decomposição e afirmava que seu cérebro estava amolecendo a partir da crença de que conseguiram enlouquecê-lo. Segundo Freud, na hipocondria há a retirada do investimento libidinal dos objetos, concentrando-se no corpo a atenção quanto às sensações aflitivas e penosas. No narcisismo, da mesma forma, a libido é afastada do mundo externo e direcionada para o eu. O presente trabalho analisa a hipocondria na paranoia de Schreber a partir da hipótese de uma inflação narcísica. Para tanto, os conceitos hipocondria e narcisismo são apresentados, sob a ótica dos textos freudianos. Fragmentos do livro Memórias de um doente dos nervos, escrito por Daniel Paul Schreber e publicado em 1903, ilustram a hipocondria a partir da introdução ao narcisismo. Na teoria freudiana, o narcisismo denota uma retirada da libido dos objetos do mundo externo e direcionamento deste investimento para o eu. Com relação à libido do eu e à libido objetal, quanto mais uma delas é inflacionada, mais a outra se esvanece. De acordo com Freud, no caso do paranoico a condição da libido do eu parece ser inflacionada, ao passo que a libido objetal é esvaziada.

Palavras-chave: hipocondria, narcisismo, corpo, libido, paranoia.


ABSTRACT

Schreber, l'un des plus remarquables cas cliniques de Freud, a décrit dans les mémoires d'un névropathe sa crise d'hypochondrie au moment qui a précédé le déclenchement de sa psychose. Ses plaintes ont souligné toute l'attention pour le corps: doutant de son poids, croyant qu'il était mort et en état de décomposition, il affirmait que son cerveau se ramollissait et croyait qu'ils avaient réussi à le rendre fou. Selon Freud, dans l'hypocondrie il y a un retrait de l'investissement libidinal des objets en concentrant sur le corps les sensations pénibles et douloureuses. Dans le narcissisme, de la même manière, la libido est éloignée du monde extérieur et dirigée vers le moi. Le présent travail analyse l'hypocondrie dans la paranoïa de Schreber à partir de l'hypothèse d'une inflation narcissique. Par conséquent, les concepts de l'hypochondrie et du narcissisme sont présentés du point de vue des textes freudien. Fragments du Livre des mémoires d'un névropathe, écrit par Daniel Paul Schreber et publié en 1903, illustrent l'hypocondrie à partir de l'introduction au narcissisme. Dans la théorie freudienne, le narcissisme indique un retrait de la libido des objets du monde extérieur et le routage de cet investissement pour le moi. Pour ce qui a trait à la libido du moi (narcissique) et à la libido objectal, plus l'une s'intensifie plus l'autre disparaît. Selon Freud, dans le cas d'un paranoïaque, la libido narcissique se déclenche au fur à mesure que la libido objectal diminue.

Keywords: hypocondrie, narcissisme, corps, libido, paranoïa.


 

 

Introdução

Geralmente compreendida como uma preocupação excessiva do sujeito com seu estado de saúde (Volich, 2002) a hipocondria é objeto de investigação há séculos na história da humanidade e provoca questionamentos na medicina, na filosofia e na religião (Aisenstein, Fine, & Pragier, 2002). Para além dessa conceituação superficial, a hipocondria busca representar os enigmas de um corpo, caracterizando uma manifestação do humano (Volich, 2002).

A psicanálise, como um campo do conhecimento humano, interessa-se pela hipocondria desde Freud. Em seu texto "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides)", Freud (1911/1996) mencionou a hipocondria de Schreber como uma grave crise, no período em que esteve na clínica do Dr. Flechsig. A hipocondria constituiu também a segunda enfermidade de Daniel Paul Schreber como expressão de sua conflitiva corporal: com queixas de amolecimento do cérebro, crença de estar morto e de que seu corpo estava em decomposição, delimitando o corpo como objeto de horrores em nome de um intuito sagrado. Schreber ganhou o estatuto de "caso clínico" após a análise minuciosa que Freud (1911/1996) realizou a partir de sua autobiografia.

Memórias de um doente dos nervos, livro autobiográfico publicado em 1903 por Daniel Paul Schreber (1903/1995) é uma obra que resiste ao desgaste do tempo e conserva interesse e atualidade, principalmente para a psicanálise. A hipocondria faz parte da caracterização da paranoia de Schreber, e Freud (1911/1996) descreve os fenômenos corporais chamando-os de ideias hipocondríacas. Ao analisar a autobiografia de Schreber (1903/1995) revelou que o corpo é o ponto central de sua trama literária (Lacan, 1955/2010), atribuindo à hipocondria um tipo de investimento libidinal bastante particular (Freud, 1914/1996).

A esse respeito Freud (1914/1996), em seu texto "Sobre o narcisismo: uma introdução", afirma que o narcisismo pode ser analisado quando a libido é afastada do mundo externo e direcionada para o eu: na hipocondria há a retirada do investimento libidinal dos objetos, concentrando-se no corpo a atenção quanto às sensações aflitivas e penosas. Ainda afirmou que é possível suspeitar da íntima relação entre hipocondria e paranoia, indicando a dependência da libido do eu. Se a hipocondria em sua relação com a paranoia indica uma dependência da libido do eu e o narcisismo é constituído pela concentração de investimento libidinal no eu, no caso Schreber será a hipocondria uma inflação narcísica? Com intuito de responder a essa indagação, o presente estudo teórico tem como objetivo analisar a hipocondria na paranoia de Schreber a partir da hipótese de uma inflação narcísica.

 

A pesquisa

Esta pesquisa caracteriza-se como uma investigação teórica em psicanálise, com vistas ao aprofundamento dos fundamentos teóricos freudianos. Para tanto, os conceitos de hipocondria e narcisismo serão abordados a partir das teorizações de Sigmund Freud. Garcia-Roza (1993) comenta que a pesquisa teórica propõe submeter a teoria psicanalítica a uma análise crítica e reflexiva, com vistas à verificação de sua lógica interna, na revisão da estrutura dos conceitos e as variadas possibilidades de sentidos. Desse modo, fragmentos do caso Schreber serão utilizados no presente trabalho para ilustrar esta investigação teórica.

Os principais textos freudianos utilizados como referência para este trabalho são: " Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides)" de 1911 e "Sobre o narcisismo: uma introdução" de 1914. Esses textos compõem o eixo da discussão tomada neste trabalho. Outros textos também importantes foram utilizados, a saber: " As neuropsicoses de defesa" de 1893, " Rascunho H. Paranoia" de 1886, " Rascunho K. As neuroses de defesa (Um conto de fadas natalino)" de 1886, "A Psicoterapia da histeria" de 1893 e "Uma neurose demoníaca do século XVII" de 1923.

Na produção teórica de Lacan as principais referências para este trabalho são O Seminário, livro 3: as psicoses, de 1955/1956 e o texto "Ideal do eu e eu-ideal", de O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, de 1953/1954. Ambos os trabalhos tratam da hipocondria em sua discussão, mesmo que de forma breve. Entretanto, fomentam a base teórica para esta investigação, já que Lacan retorna aos fundamentos freudianos para elaborar seus trabalhos.

Para fundamentar essa discussão o trabalho inicia-se com um percurso da elaboração do conceito hipocondria na teoria freudiana, com vistas à hipocondria na paranoia, a partir da análise do "caso Schreber". A hipocondria relaciona-se à histeria, à neurose obsessiva e à psicose na elaboração teórica de Sigmund Freud. Contudo, é com a análise do "caso Schreber" que Freud supõe a relação de aproximação entre a hipocondria e a paranoia, com vistas ao narcisismo. Com base na teoria da libido proposta em seu texto "Sobre o narcisismo: uma introdução" Freud (1914/1996) abordou que na hipocondria ocorre o retraimento da libido ao eu com um esvaziamento da libido objetal, o que pode ser denominado de narcisismo. Nesse sentido, posteriormente a conceituação da hipocondria na teoria freudiana segue a hipocondria no "caso Schreber", com uma breve apresentação deste caso. A articulação hipocondria e narcisismo é fundamentada pelos trabalhos de Sigmund Freud sobre o narcisismo e sua análise da autobiografia de Schreber; são utilizados fragmentos e recortes de seu livro como ilustração clínica para este trabalho.

 

A hipocondria na teoria freudiana

O percurso do conceito de hipocondria na psicanálise inicia-se com os trabalhos freudianos, distintos do saber daquela época, em que o médico abordava o hipocondríaco como doente imaginário. Freud (1923/1996) apresentou em seu texto "Uma neurose demoníaca do século XVII" que no passado as neuroses eram entendidas como oriundas da possessão demoníaca. Nas palavras de Freud:

Não precisamos ficar surpresos em descobrir que, ao passo que as neuroses de nossos pouco psicológicos dias de hoje assumem um aspecto hipocondríaco e aparecem disfarçadas como enfermidades orgânicas, as neuroses daqueles antigos tempos surgem em trajes demoníacos (Freud, 1923/1996, p. 87).

A origem demoníaca atribuída às manifestações patológicas, oriundas do conhecimento religioso, altera-se para o reconhecimento como algo nuclear do funcionamento neurótico (Volich, 2002). Desse modo, a hipocondria como uma organização psicopatológica (Aisenstein et al., 2002) deixou de ser compreendida como uma doença imaginária, como um medo de adoecer, para ser significada de uma outra maneira. Assim, as contribuições freudianas à nova concepção sobre a hipocondria fizeram avançar novas reflexões, de modo a questionar sobre a experiência do sujeito com seu corpo, delimitando a perspectiva subjetiva, delineada pelos processos inconscientes (Volich, 2002).

Freud pode esboçar uma compreensão da hipocondria nas dinâmicas narcísicas em suas elaborações teóricas: "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides)", texto publicado em 1911 e que trata da análise das Memórias de um doente dos nervos, livro de Daniel Paul Schreber (1903/1995); e em "Sobre o narcisismo: uma introdução", texto publicado em 1914 que aborda as principais noções freudianas sobre a hipocondria em sua relação com a paranoia. Assim, há uma estreita relação entre a hipocondria e a paranoia, abordada por Freud já naquele tempo. Ao fazer essa relação, nota que a hipocondria pode ser analisada como uma sensação de aflição no corpo, que delimita uma concentração da libido nos órgãos de interesse para o hipocondríaco, da mesma maneira que ocorre na doença orgânica (Freud, 1914/1996). Como na histeria, em que as manifestações do corpo independem da existência de uma lesão orgânica real na parte do corpo afetada pelas sensações penosas (Volich, 2002).

O mestre vienense (1893/1996), em seu texto "A psicoterapia da histeria", faz menção à hipocondria ao tratar da histeria e seu método de tratamento, alertando para o fato de que a concepção da hipocondria não deve ser entendida como um sintoma de "medo da doença", geralmente abordada pelo senso comum. Desse modo, de acordo com o pensamento freudiano, a hipocondria parece estar vinculada de forma mais íntima à angústia que a sensação de medo (Volich, 2002).

No mesmo texto, Freud (1893/1996) abordou a relação entre a hipocondria e a neurose de angústia e atribui aos fatores sexuais as causas determinantes, destacando a hipocondria como um dos principais fenômenos que expressam a neurose de angústia, sempre relacionada à angústia com o corpo. Segundo Volich (2002), a partir de sua clínica, com o tempo Freud pode sustentar algumas hipóteses que relacionavam angústia, sexualidade, as psiconeuroses e as neuroses atuais.

As queixas hipocondríacas são caracterizadas pelas sensações corporais, e não somente por uma questão imaginária, e ocupam um lugar importante entre as manifestações corporais situadas no âmbito da neurose. Há a precondição da existência das sensações corporais aflitivas, vinculando uma relação íntima com a angústia (Volich, 2002). Freud (1894-1895/1996) propõe que:

Para uma das formas da expectativa angustiada - a que se relaciona com a saúde do próprio sujeito - podemos reservar o velho termo hipocondria. O auge alcançado pela hipocondria nem sempre é paralelo à expectativa angustiada geral; requer como precondição a existência de parestesias e sensações corporais aflitivas (Freud, 1894-1895/1996, p. 95).

Com as elaborações teóricas sobre a proximidade entre a hipocondria e a angústia Freud (1896/1996) mencionou as manifestações hipocondríacas nas neuroses obsessivas, em que atribuiu à culpa uma relação com a hipocondria. Desse modo, o temor hipocondríaco não está relacionado à etiologia da neurose, mas sim ao mecanismo do deslocamento, característico da neurose obsessiva: "dessa forma, as ideias hipocondríacas surgem como suportes da auto-recriminação e da culpa deslocadas com relação às representações recalcadas" (Volich, 2002, p. 89).

No "Rascunho K. As neuroses de defesa (Um conto de fadas natalino)" Freud (1896/1996) abordou sobre o afeto da autocensura, destacando a forma como pode ser transformado em outros afetos, delimitando-o nas neuroses obsessivas:

O afeto da autocensura pode ser transformado, por diferentes processos psíquicos, em outros afetos, os quais, depois, entram na consciência mais claramente do que o afeto como tal: por exemplo, pode ser transformado em angústia (medo das consequências da ação a que se refere a autocensura), hipocondria (medo dos efeitos corporais), delírios de perseguição (medo dos seus efeitos sociais), vergonha (medo de que outras pessoas saibam), e assim por diante (Freud, 1896/1996, p. 271-272).

A hipocondria aparece relacionada à culpa e à autoacusação, e pode ser considerada como uma das formas de expressão e transformação do afeto ligadas à neurose obsessiva. No Caso do "Homem dos ratos" a dúvida é apresentada como uma das questões centrais da neurose obsessiva. A dúvida está relacionada à hipocondria na medida em que o sujeito "[...] duvida de sua saúde, do funcionamento de seus órgãos [...]" (Volich, 2002, p. 94).

Nesse sentido, a dúvida com relação ao seu estado de saúde possibilita que o sujeito procure o médico para lhe assegurar que está tudo bem, porém a dúvida pode colocar em xeque as palavras do médico: ele duvida de seu estado de saúde. Isso pode ser considerado pelo hipocondríaco como uma contestação com relação às suas queixas, afirmando a certeza de que seus males corpóreos se fazem presentes. Essa certeza que atesta que o sujeito sofre de aflições corpóreas, com sensações penosas, aproxima-o da paranoia. Desse modo, o médico passa a não ser mais confiável, a qualidade dos exames parece ser insatisfatória, e uma desconfiança ronda o hipocondríaco na relação com seu corpo (Volich, 2002). A convicção sobre os males corpóreos faz uma aproximação com a dinâmica paranoica, pois: "[...] a ruminação hipocondríaca em torno do funcionamento de seus órgãos e de sua saúde revelaria, na verdade, uma verdadeira falha, não da função corporal, mas da representação corporal e da relação ao outro" (Volich, 2002, p. 94).

Na compreensão da paranoia a dúvida, a culpa e a autorrecriminação constituíam um eixo fundamental para reflexão. A diferença que marca a paranoia é que a dúvida e a culpa são experienciadas pelo sujeito como vindas de "fora" através do mecanismo da projeção. No "Rascunho H. Paranoia" de 1895, Freud (1895/1996) situa a paranoia como uma psicose intelectual, apresentando distúrbios afetivos, como os delírios. Em sua forma tradicional, a paranoia pode ser compreendida por Freud (1895/1996) naquela época como um modo patológico de defesa diante de situações intoleráveis.

Nesse documento, Freud (1895/1996, p. 256) irá situar que "[...] o propósito da paranoia é rechaçar uma ideia que é incompatível com o eu, projetando seu conteúdo no mundo externo". Cromberg (2010) comenta que na paranoia há a persistência da rejeição de uma ideia intolerável para o eu. Essa transposição para o fora ocorre devido a um mecanismo psíquico chamado projeção que, segundo Freud (1895/1996), comumente ocorre também na vida normal.

Na paranoia há um excesso na utilização do mecanismo da projeção e exacerbação das ideias projetadas: "trata-se, pois, de um abuso do mecanismo da projeção para fins de defesa" (Freud, 1895/1996, p. 256). Ele ainda sugere que algo análogo ocorre com as ideias obsessivas, abordando o mecanismo da substituição, como no caso do colecionador, do montanhista, etc. Para o autor (1895/1996) o excesso do uso do mecanismo da substituição no caso das neuroses obsessivas também tem a finalidade de defesa.

Desse modo, oferece diversos exemplos de casos para demonstrar seu pensamento, como o do alcoólatra que dificilmente irá admitir sua impotência diante da bebida e projeta defensivamente a culpa para sua mulher, nos delírios de ciúme. A referência à hipocondria se faz presente já nesse documento de 1895, relacionando hipocondria e paranoia:

O hipocondríaco vai se debater, durante muito tempo, até encontrar a chave de suas sensações de estar gravemente enfermo. Não admitirá perante si mesmo que seus sintomas têm origem na sua vida sexual; mas causa-lhe a maior satisfação pensar que seu mal, como diz Moebius, não é endógeno, mas exógeno. Logo, ele está sendo envenenado (Freud, 1895/1996, p. 257).

A partir da perspectiva da projeção o hipocondríaco percebe como sendo de fora aquilo que remete a si mesmo. Nesse sentido, a hipocondria fornece elementos para as ideias persecutórias, transferindo para uma fonte externa ao sujeito as ameaças a ele. Há uma impossibilidade de o paranoico reconhecer em si mesmo a fonte e a origem de suas ideias hipocondríacas. Estas, por sua vez, manifestam-se articuladas ao delírio a partir de um movimento projetivo (Volich, 2002).

Com isso, parece evidente para Freud (1895/1996) que a defesa parte da ideia de que algo ameaça o eu e este, para se preservar, projeta para o exterior o que advém daquilo que o aflige: "toda defesa é o resultado de uma necessidade imperativa de proteger o ego de representações que possam ameaçá-lo" (Volich, 2002, p. 97). Dessa forma, há na defesa uma questão narcísica, já apontada por Freud (1895/1996) nesse período - em todos os casos a ideia delirante parece ser algo intolerável, sendo rechaçada do eu: os paranoicos "amam seus delírios como a si mesmos" (Freud, 1895/1996, p. 257).

Nesse sentido, a elaboração teórica freudiana sobre a hipocondria apresenta-se na articulação entre a projeção e a intensidade da defesa narcísica, referindo-se à paranoia e sua íntima relação com o mecanismo da projeção. Assim, segundo afirma Volich (2002), a hipocondria passa a ser frequentemente associada à paranoia na construção teórica freudiana. Essa posição é reiterada mais tarde em outros documentos, como em seu texto sobre o narcisismo, onde elabora a teoria da libido, e em uma carta a Jung em 1907, ressaltando a relação íntima entre hipocondria e paranoia.

Ao abordar a relação entre hipocondria e paranoia, Freud (1895/1996) afirma que a projeção consiste no principal mecanismo da dinâmica dessa relação. O hipocondríaco vivencia uma experiência em que parece travar uma batalha contra si mesmo. Um exemplo dessa dinâmica paranoica e hipocondríaca é o "caso Schreber", que fornece ilustração clínica e articulação teórica que permitem avançar na discussão. Nesta pesquisa, o caso é utilizado para abordar essa dinâmica narcísica em que se apresenta a hipocondria em sua relação com a paranoia.

Desse modo, o "caso Schreber" é discutido com o objetivo de ilustrar a análise da relação entre hipocondria e paranoia na vertente da dinâmica narcísica. É a partir desse trabalho que Freud (1911/1996) pode elaborar de forma mais concisa a concepção sobre a hipocondria, que mais tarde será retomada em seu texto sobre o narcisismo e a teoria da libido. O conceito de narcisismo ocupa uma posição privilegiada na obra freudiana, na medida em que Freud afirmou ocorrer o retraimento da libido ao eu na paranoia (Volich, 2002). Assim, a discussão sobre narcisismo e hipocondria segue seu percurso a partir da investigação da hipocondria de Schreber (1903/1995).

 

A hipocondria no caso Schreber

O "caso Schreber" é considerado um dos mais notáveis casos clínicos de Freud, juntamente com outros como: Anna O., Homem dos ratos, Homem dos lobos, Pequeno Hans, etc. Chama atenção por seu caráter particular: é o único caso em que Sigmund Freud analisa um texto autobiográfico; Freud e Schreber nunca se encontraram pessoalmente (Carone, 1995).

O relato autobiográfico no qual Freud (1911/1996) se debruça é Memórias de um doente dos nervos, publicação de Daniel Paul Schreber (1903/1995), uma narrativa de sua história pessoal e clínica durante o período em que esteve internado em casa de saúde. Schreber publicou seu livro em 1903 com a crença de que sua produção iria contribuir para a pesquisa científica. Sua publicação parece ter sentido. Sua obra resistiu ao tempo, conservando interesse, principalmente ao campo psicanalítico. Sua crença e ambição foi fundamentada a partir do trabalho de Sigmund Freud (1911/1996), que transformou seu livro em um documento científico de grande valia para aqueles que se ocupam do estudo das psicoses (Carone, 1995).

Freud (1911/1996), em seu texto "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia", interrogou-se sobre a relação entre hipocondria e paranoia, assinalando que os sintomas hipocondríacos estão intimamente relacionados a essa afecção. A hipocondria de Schreber apresentou-se de forma bastante peculiar; a ênfase no corpo é constatada em suas construções paranoicas. Queixa-se de violência contra seu corpo, a qual remete a uma submissão penosa e um destino irreparável que é necessário perpassar (Schreber, 1903/1995), juntamente com pensamentos de morte, queixas de amolecimento do cérebro, com a crença de que estava morto e em decomposição (Freud, 1911/1996). A natureza incomum de sua hipocondria é de interesse nesta pesquisa.

Schreber (1903/1995) mencionou em seu livro uma crise de hipocondria com ideias de emagrecimento, "[...] manifestações delirantes não-sistematizadas e duas tentativas de suicídio" (Carone, 1995, p. 12). O primeiro diagnóstico de Schreber em 1884 é hipocondria. Na época de seu casamento foi acometido por um episódio de hipocondria sem ser hospitalizado. Relatou (1903/1995) em suas Memórias que em sua primeira doença foi intoxicado por brometo de potássio receitado pelo Dr. Flechsig, afirmando que "[...] teria podido me livrar bem mais depressa de certas ideias hipocondríacas que então me dominavam, como a de emagrecimento [...]" (Schreber, 1903/1995, p. 54).

Em suas Memórias, Schreber (1903/1995) afirmou que a balança da clínica da universidade era desconhecida e de uma construção peculiar, delimitando sua dúvida com relação ao peso de seu corpo. Queixava-se ter perdido até vinte quilos, mesmo a balança registrando apenas dois. Estava convencido de que os médicos o enganavam de propósito com relação ao seu peso. Freud (1911/1996) refere-se a essas manifestações como ideias hipocondríacas.

Na época em que sua esposa sofreu dois abortos espontâneos é internado pela primeira vez, por cerca de seis meses, entre 1884 e 1885. Após alta hospitalar reassumiu as atividades profissionais como juiz-presidente do Tribunal de Leipzig. Em 1893, o ministro da justiça visitou Schreber para anunciar pessoalmente sua nomeação para o cargo de juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden, o que representou para Schreber o ponto máximo e último de sua carreira. Nessa época produz-se um sonho, o de que sua antiga doença havia voltado, e como era bom ser uma mulher no ato da cópula. É internado novamente e seu diagnóstico é "dementia paranoides". Ao longo de sua doença Schreber (1903/1995) acreditava-se incurável:

Desse modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim (em março de 1894), que tinha como objetivo, uma vez reconhecido o suposto caráter incurável da minha doença, confiar-me a um homem de tal modo que minha alma lhe fosse entregue [...] (Schreber, 1903/1995, p. 67).

Essa conspiração era algo em que Schreber (1903/1995) acreditava - e não duvidava da participação do Prof. Flechsig, seu médico, nela. Nesse mesmo período tornou-se vice-presidente do Tribunal Regional de Chemnitz, o que atestava sua carreira de jurista que evoluía regularmente. Schreber (1903/1995) atribuiu a sensação de fadiga intelectual ao momento de candidatura ao Reichstag e quando assumiu o posto de presidente da Corte. Segundo Lacan (1955-1956/2010, p. 41) as esperanças de paternidade de Schreber não foram satisfeitas, entre a primeira e a segunda crise, marcando o que pode ter sido determinante para sua doença: "[...] as determinações iniciais da psicose de Schreber devem ser procuradas nos momentos de desencadeamento das diferentes fases de sua doença". Ainda de acordo com Lacan (1955-1956/2010) parece haver uma relação entre a promoção ao cargo de presidente e o desencadear da crise, já que a função de presidente confere a responsabilidade e autoridade pertinente ao próprio cargo.

Com a posse no cargo de juiz-presidente apareceram as crises de angústia e de insônia, constituindo suas queixas. Parece ter sofrido uma intensa sobrecarga, além do desafio que o trabalho iria lhe colocar, momento em que a hipocondria manifesta-se novamente: "No início de seu internamento ali, expressava mais ideias hipocondríacas, queixava-se de ter um amolecimento do cérebro, de que morreria cedo etc." (Freud, 1911/1996, p. 24). A hipocondria de Schreber (1903/1995) demonstra o corpo e suas experiências: seus órgãos fragmentavam-se no ato da alimentação, mas era revigorado após os milagres divinos.

Concorreu às eleições parlamentares pelo Partido Nacional Liberal, sofrendo uma derrota e um insulto publicado em um jornal da Saxônia: "Quem conhece esse tal de Dr. Schreber?". O insulto parece ter lhe causado sério desconforto, pois foi criado no culto orgulhoso dos méritos de seus antepassados, como seu pai, um grande estudioso de sua área de atuação. O Dr. Schreber provinha de uma família abastada e culta e seus familiares deixaram um legado literário célebre. "Os livros de seu bisavô, por exemplo, tinham por lema a frase ‘Escrevemos para a posteridade'" (Carone, 1995, p. 10). O pai de Schreber também escrevia, era autor de vários livros sobre ginástica e educação de crianças, sendo a medicina ortopédica uma de suas formações acadêmicas, assim como também a pedagogia. Assim, ele projetou e construiu vários aparelhos ortopédicos para garantir a postura ereta da criança durante o dia e também durante o sono. Sua doutrina educacional era rígida e moralista, segundo Carone (1995). Schreber tinha quatro irmãos, sendo que seu irmão mais velho suicidou-se aos 38 anos de idade. Sua infância ficou marcada pelo despotismo paterno.

Schreber faleceu em abril de 1911, após ter sofrido uma crise de angina, com sintomas de dispneia e insuficiência cardíaca. Segundo Carone (1995, p. 11): "Daniel Paul terminou seus dias demenciado, depois de um total de mais de treze anos da sua vida passados em sanatórios psiquiátricos". Schreber tornou-se o louco mais famoso da história psicanalítica.

 

Hipocondria e narcisismo

A hipocondria, segundo Freud (1914/1996) em seu texto clássico "Sobre o narcisismo: uma introdução", caracteriza-se por sensações de aflição no corpo, denunciando um investimento da libido bastante peculiar. Na ordem da dependência da libido do eu, a hipocondria faz concentrar no órgão, no corpo, a libido que antes foi retirada dos objetos do mundo externo. Na dinâmica narcísica o sujeito toma seu próprio corpo como objeto de amor, caracterizando o que pode ser chamado de narcisismo primário (Freud, 1914/1996). A escolha de objeto só se efetiva posteriormente, podendo esse objeto ser outra pessoa.

A partir da análise do "caso Schreber" realizada por Freud (1911/1996) é possível explicitar a paranoia como a ocorrência da retirada da libido de pessoas e coisas do mundo externo em direção ao eu, o que pode ser denominado narcisismo. Se a libido do eu é superinvestida, a libido objetal esmaece. Em Schreber é possível observar um excesso de investimento libidinal no eu.

A hipocondria, da mesma forma que a doença orgânica, manifesta-se em sensações corpóreas aflitivas e penosas, tendo sobre a distribuição da libido o mesmo efeito que a doença orgânica. O hipocondríaco retira tanto o interesse quanto a libido - a segunda de forma especialmente acentuada - dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção (Freud, 1914/1996, p. 90).

De acordo com Freud (1914/1996) a hipocondria parece estar em uma relação de dependência da libido do eu. No hipocondríaco, o investimento libidinal que deveria estar voltado para o mundo externo retorna para o corpo, para os órgãos de seu interesse.

O mesmo movimento de investimento ocorre na doença orgânica e na hipocondria: o sujeito retira a libido antes investida nos objetos e reinveste em seu próprio eu (Freud, 1914/1996), no que se vê a noção de corpo erógeno destacada. Zuberman (2003) afirma que o sentido de erogeneidade destacada por Freud em seu trabalho sobre o narcisismo se refere à propriedade de todo órgão adquirir valor fálico. A hipocondria coincide com a doença orgânica com relação a alterações orgânicas e investimento libidinal.

Freud (1914/1996, p. 91) abordou a dependência da libido do eu expressa na ideia de um "represamento da libido do eu" que tem relação com a hipocondria e a paranoia: "[...] podemos suspeitar que a relação da hipocondria com a parafrenia é semelhante à das outras neuroses ‘reais' com a histeria e a neurose obsessiva [...]". Justifica a relação que a hipocondria estabelece em sua dependência da libido do eu, estando as outras na mesma dimensão, só que na ordem da libido objetal.

Sobre a dinâmica narcísica Jacques Lacan (1953-1954/1996, p. 153 ) citou o humorista Busch e a dor de dentes:

A dor de dentes que ele sente vem suspender todos os seus devaneios idealistas e platonizantes, bem como a sua inspiração amorosa. Esquece o curso da bolsa, os impostos, a tábua de multiplicação etc. Todas as formas habituais do ser encontram-se de repente sem atração, nadificadas. E agora, no buraquinho, habita o molar. O mundo simbólico do curso da bolsa e da tábua de multiplicação é inteiro investido de dor.

Com base no texto freudiano sobre o narcisismo a hipocondria pode ser considerada como uma neurose que depende da libido do eu, contrariamente às outras que dependem da libido objetal, a partir do O seminário: livro 1: os escritos técnicos de Freud (Lacan, 1953-1954/1996).

Constituindo a paranoia de Schreber desde o início, a hipocondria faz parte de suas tramas delirantes, que demonstram o corpo como centro do narcisismo e violência: alucinações visuais e auditivas, crença de estar morto, corpo em decomposição e amolecimento do cérebro (Schreber, 1903/1995). De acordo com Freud (1914/1996) em seu texto "Sobre o narcisismo: uma introdução", o narcisismo pode ser analisado quando a libido é afastada do mundo externo e direcionada para o eu, enquanto na hipocondria há a retirada do investimento libidinal dos objetos, concentrando-se no corpo a atenção as sensações aflitivas e penosas. Voltamos aqui à questão que orienta esta pesquisa: a hipocondria no "caso Schreber" pode ser considerada uma inflação narcísica?

Segundo Freud (1911/1996) a paranoia de Schreber é constituída por ideias hipocondríacas que consistem em sensações desagradáveis e de muito pesar no corpo. Desse modo, deixa-se o interesse pelas coisas do mundo, voltando-se o mesmo para os órgãos de interesse do sujeito, delineando seu sofrimento. Assim, o investimento libidinal, que antes era voltado para as coisas do mundo se volta, nesse caso, para o eu do hipocondríaco, concentrando-se nos órgãos erotizados. Para Freud (1914/1996, p. 90, grifo nosso): "O hipocondríaco retira1 tanto o interesse quanto a libido - a segunda de forma especialmente acentuada - dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção".

O movimento de investimento libidinal nos órgãos e a retirada deste dos objetos do mundo externo caracterizam o sujeito hipocondríaco. Então, se a libido é "retirada de forma acentuada" dos objetos do mundo externo e volta-se para o eu, pode-se afirmar que, ao concentrar-se no corpo, ocorre uma inundação da libido?

A partir de Freud (1914/1996) é possível afirmar que o narcisismo pode ser analisado pelo modo como um sujeito lida com seu corpo, denotando uma contemplação. A teoria da libido explicitada no texto freudiano sobre o narcisismo pode explanar sobre a demência precoce e a esquizofrenia, pois Freud (1914/1996) afirma que a perda de interesse pelo mundo externo também ocorre na histeria e na neurose obsessiva quando o adoecimento persiste, mas os neuróticos não desistem totalmente de sua relação com a realidade: "[...] de modo algum corta suas relações eróticas com as pessoas e as coisas" (Freud, 1914/1996, p. 82). O que ocorre é a introversão da libido, o neurótico recorre à fantasia quando desiste de sua relação com a realidade enquanto sua doença é vigorosa. Há uma substituição dos objetos na fantasia dos neuróticos.

O que ocorre na paranoia difere do que ocorre na neurose na medida em que na retirada da libido investida em pessoas e coisas não há a substituição pela fantasia como no modo neurótico. Essa substituição ocorre de maneira secundária, podendo constituir uma tentativa de recuperação (Freud, 1914/1996).

Em sua elaboração teórica a partir da análise da obra schreberiana, Freud (1911/1996) abordou que as ideias hipocondríacas explicitavam o quadro clínico de Schreber, pontuando um nível alto de hiperestesia:

Mais tarde, as ilusões visuais e auditivas tornaram-se muito mais frequentes e, junto com distúrbios cenestésicos, dominavam a totalidade de seu sentimento e pensamento. Acreditava estar morto e em decomposição, que sofria de peste; asseverava que seu corpo estava sendo manejado da maneira mais revoltante, e, como ele próprio declara até hoje, passou pelos piores horrores que alguém pode imaginar, e tudo em nome de um intuito sagrado (Freud, 1911/1996, p. 24).

Segundo Freud (1911/1996) a inacessibilidade e o estupor alucinatório caracterizaram a paranoia de Schreber: sentava-se de forma extremamente rígida, demonstrando intensa preocupação com seu estado patológico. Essas experiências patológicas lhe causavam tanto sofrimento, tanta tortura e violência que ansiava pela própria morte.

A experiência de milagres em seu corpo era confirmada pelas vozes que Schreber escutava (Schreber, 1903/1995). Segundo Freud (1911/1996), alguns órgãos do corpo sofreram tantos danos que qualquer homem em seu lugar não teria sobrevivido à morte: vivia sem intestino, sem estômago, quase sem pulmões, com as costelas despedaçadas, sem bexiga. "[...] costumava às vezes engolir parte de sua laringe com a comida etc." (Freud, 1911/1996, p. 28). Mas, como era imortal, os milagres divinos sempre o restauravam:

Nos primeiros anos da sua doença, teria sofrido distúrbios em certos órgãos do corpo que facilmente teriam levado à morte qualquer outra pessoa: viveu muito tempo sem estômago, sem intestinos, quase sem pulmões, com o esôfago dilacerado, sem bexiga, com as costelas esfaceladas, algumas vezes teria engolido parte da sua laringe junto com a comida etc., mas milagres divinos ("raios") sempre restauravam o que fora destruído e por isso ele, enquanto for um homem, será absolutamente imortal (Carone, 1995, p. 289-290).

A paranoia de Schreber é caracterizada pela sua hipocondria, que se manifesta não só no início de sua crise, mas o acompanha durante todo o tratamento na casa de saúde. Freud (1911/1996) abordou a importância de dirigir a atenção para o narcisismo, como um estádio do desenvolvimento da libido, entre o autoerotismo e o amor objetal:

O que acontece é o seguinte: chega uma ocasião, no desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne suas pulsões2 sexuais (que até aqui haviam estado empenhados em atividades auto-eróticas), a fim de conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a si próprio, seu próprio corpo, como objeto amoroso, sendo apenas subsequentemente que passa daí para a escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto (Freud, 1911/1996, p. 68).

De modo especial na paranoia, a libido tem seu movimento de investimento utilizado de forma particular (Freud, 1911/1996). Com o objetivo de "engrandecimento do eu", a libido faz um retorno ao estádio do narcisismo e volta-se para o eu. Nesse estádio, o eu parece ser o "único" objeto sexual de uma pessoa. Freud (1911/1996) afirmou que "[...] os paranoicos trouxeram consigo uma fixação no estádio do narcisismo [...]" (Freud, 1911/1996, p. 79), o que leva à ideia de "inflação" como hipótese deste trabalho, assim como o de "engrandecimento do eu" tomado por Freud (1911/1996). Nesse sentido, se o "único" objeto sexual no narcisismo é o eu e este se "engrandece", o narcisismo na paranoia é inflacionado, corroborando a hipótese desta investigação.

Na abordagem entre a libido do eu a libido do objeto, quanto mais a libido se concentra em um lado, mas a outra se esvanece. Essa afirmação pode ser confirmada a partir de Freud (1911/1996), pois na paranoia a libido do eu é superinvestida, é inflacionada, ao passo que a libido objetal é esvaziada, sendo o eu o seu "único" objeto de investimento libidinal. Como já abordado anteriormente, a libido é "retirada" dos objetos do mundo externo. Desse modo, a hipocondria no "caso Schreber" consiste em uma inflação narcísica apoiada no fato da retirada de libido objetal e inundação da libido do eu, circunscrevendo o corpo como palco de suas aflições e seu sofrimento.

 

Conclusão

O fenômeno hipocondríaco foi relacionado à paranoia por Freud (1914/1996) com a formulação do conceito de hipocondria a partir das dinâmicas narcísicas. Esta, compreendida como uma sensação penosa e aflitiva no corpo, foi relacionada à paranoia a partir da elaboração teórica sobre o narcisismo e a teoria da libido (Freud, 1914/1996). Nesse sentido, a hipocondria passa a ser frequentemente associada à paranoia na elaboração teórica de Freud, em uma articulação entre a projeção e a intensidade da defesa narcísica (Volich, 2002).

Desse modo, é possível concluir que a hipocondria de Schreber demonstra uma inflação narcísica por apresentar um represamento da libido do eu, com um excesso de investimento libidinal particularmente característico das dinâmicas narcísicas e paranoicas. A libido concentra-se no órgão, no corpo (Freud, 1914/1996), de forma a expressar um fenômeno corporal psicótico (Lacan, 1955-1956/2010). Em alusão ao narcisismo, para Freud (1914/1996) a libido é afastada dos objetos do mundo externo e direcionada para o eu. Assim, ocorre na hipocondria a retirada do investimento libidinal dos objetos e a consequente concentração desta no corpo próprio.

Toda a atenção volta-se para o corpo e as sensações caracterizam-se como muito penosas e aflitivas. Na paranoia a libido é retirada do objeto e utilizada com o intuito de "engrandecimento do eu", de forma a fazer um retorno ao estádio do narcisismo. Deste modo, de acordo com Freud (1914/1996), o eu é o único objeto sexual do paranoico, levando a ideia de que o narcisismo é inflacionado.

Entre a libido do eu e a libido objetal, quanto mais uma é empregada mais a outra se esvazia. A hipocondria consiste em uma inflação narcísica porque há a retirada da libido do objeto para uma inundação da libido do eu que se concentra nos órgãos que prendem a atenção do hipocondríaco (Freud, 1914/1996).

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 20/06/2015
Aprovado para publicação em: 17/01/2016

 

 

*Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL, professora adjunta I do Centro Universitário Tiradentes – UNIT (campus Maceió), professora do curso de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Saúde Mental (CESMAC), membro efetivo do Toro - Escola de Psicanálise.
**Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com estágio de doutorado no Departamento de Psicanálise (Université Paris 8). Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Membro do Laboratório de Pesquisas em Psicanálise/UFAL.
1O verbo "retirar" apresenta o modo como a dinâmica libidinal na hipocondria se estabelece. Essa retirada do interesse e da libido sustenta a hipótese de inflação tratada neste trabalho.
2Vale salientar que termo pulsão foi aqui utilizado para substituir o termo instinto.

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