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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro June 2016

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre tempo e constituição do sujeito em Freud e Lacan

 

Considerations about time and constitution of subject on Freud and Lacan

 

 

Ana Rosa de Sousa Amor*; Daniela Scheinkman ChatelardI, II**

IEscola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL - Brasil
IIUniversidade de Brasília - UnB - Brasil

 

 


RESUMO

O presente estudo foi produzido com o intuito de explorar a dimensão do tempo na constituição do sujeito, de acordo com o pensamento de Jacques Lacan, em referência a um breve retorno a Sigmund Freud. Para explorar a concepção de tempo na psicanálise, foram utilizados artigos de Freud sobre a formação do aparelho psíquico e de Lacan sobre a constituição do sujeito do inconsciente. Procurar-se-á observar qual seria a compreensão de temporalidade própria da psicanálise: no que se refere ao a posteriori, cuja relevância para a vida psíquica Freud tanto sublinhou; assim como no que se refere ao tempo lógico, uma concepção lacaniana de tempo. O tempo, descontínuo, marcado por pausas e alternâncias, constitui o sujeito; modula o ato e possibilita desejar.

Palavras-chave: tempo lógico, a posteriori, constituição, sujeito.


ABSTRACT

The present study was produced for exploring a dimension of time on the constitution of subject, according to Jacques Lacan and referring to a short turn to Sigmund Freud. To explore a time notion on psychoanalysis, there were approached others Freud’s articles about mental apparatus either some others Lacan’s articles or seminars about unconscious subject. We will come to observe what would be the notion of time especially psychoanalytic: refer to a posteriori, that relevance for psychic life Freud always emphasized; so refer to logical time, a Lacanian conception of time. Time, not always continuing, taken by pauses, constitutes subject; inflects acts and allows to desire.

Keywords: logical time, a posteriori, constitution, subject.


 

 

Introdução

O presente estudo foi produzido com o intuito de explorar a dimensão do tempo na constituição do sujeito, de acordo com o pensamento de Jacques Lacan, e sua relação com a teoria freudiana. Para explorar a noção de tempo, serão utilizados alguns artigos de Sigmund Freud sobre a formação do aparelho psíquico e de Lacan sobre a constituição do sujeito do inconsciente. Procurar-se-á observar qual seria a compreensão de temporalidade própria da psicanálise: no que se refere ao a posteriori, cuja relevância para a vida psíquica Freud tanto sublinhou; assim como no que se refere ao tempo lógico, uma concepção lacaniana de tempo.

As formulações de Freud e Lacan sobre a relevância do tempo para a explicação dos processos psíquicos aparecem frequentemente na teorização de ambos. Alguns apontamentos na obra de Freud ajudam a compreender como Lacan toma a função do tempo na constituição do sujeito. Por isso, realizaremos inicialmente um breve decurso pela teoria freudiana para obtermos um melhor entendimento da temporalidade na constituição do sujeito na teoria lacaniana.

 

Tempo do trauma

Freud destaca ao longo de suas elaborações acerca da vida anímica a preponderância da dimensão temporal nos processos psíquicos e no tratamento pela fala, apresenta uma concepção de tempo que rompe com a noção de linearidade e progresso. Para ele, os acontecimentos psíquicos só são passíveis de sentido a posteriori, nachträglich1, no que isso implica de permanência e passagem do tempo. Ele nos fornece um fio: o depois retroage sobre o antes e o antes só se faz pelo depois.

As elaborações iniciais acerca dos eventos psíquicos configuram sua teoria do trauma, tal como consta no artigo "Estudos sobre a histeria" (1985/2006). Essas considerações demandam uma temporalidade específica, de forma que uma situação traumática só possa ser qualificada como tal posteriormente. Freud esbarra no traumatismo a cada passo que dá em direção a algum esclarecimento da vida mental; identifica um núcleo impenetrável de cunho traumático ao qual se remeterão a formação sintomática, a fantasia sexual, a realidade psíquica ou qualquer produção de sentido realizada pelo sujeito.

Freud desempenhou uma extensa investigação acerca da etiologia dos sintomas neuróticos. Ao realizar essa pesquisa, logo se deparou com o fato de que seus pacientes não podiam fornecer informações suficientes, uma vez que a causa de seus sintomas era desconhecida para eles. Ele segue o rastro dos sintomas: são as primeiras impressões da infância que fazem surgir o sintoma, o qual, por sua vez, persiste durante os anos subsequentes. O sintoma é, portanto, o que vem no lugar de outra coisa, uma metáfora.

A conexão entre um acontecimento infantil e um fenômeno patológico é mais uma relação simbólica do que causal. Há um acontecimento traumático na origem, factual ou fictício, cuja relevância está no fato de que não passará por completo e ressoará em sentido retroativo. Freud (1895/2006, p. 42) chama a atenção para o que vem a ser um trauma psíquico: aquilo que "age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação". O traumatismo pode ser compreendido como uma exterioridade que se mantém na estrutura psíquica.

Uma experiência que evoque afetos aflitivos - angústia - pode incidir no psiquismo na forma de trauma, reconhecido pelo efeito traumático. O trauma evoca um tempo estranho: que passa e não passa; pois, mesmo com o lapso temporal determinante para a formação sintomática, ele persiste sem sofrer desgaste. Esse efeito traumático insistente leva Freud (1895/2006, p. 43) a afirmar que "Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências".

Ele se impressiona com o fato de que experiências tão antigas possam continuar agindo intensamente e se dedica a investigar os motivos para a magnitude dessas experiências. Desconfia de motivos sexuais, mas isso não se explica facilmente. O impacto das experiências infantis mais primitivas reside no fato de que elas encontram um psiquismo em constituição; a própria constituição é consonante a essas experiências, é o enfrentamento do excesso de estimulação recebido precocemente por um organismo ainda sem recursos para processá-lo.

O aparelho psíquico descrito por Freud é, para ele, o resultado de um arranjo corporal proveniente de uma dependência infantil de longa duração, decorrente da condição de desamparo em que se encontra o filhote humano. O nascimento sempre prematuro do bebê humano lhe confere uma insuficiência de saída, uma impossibilidade que não será de todo superada e que marcará o corpo. Há um real intransponível na experiência original, sem captura possível, que restará ao longo de toda a estruturação do aparelho psíquico. Disso resulta o caráter traumático das primeiras experiências infantis e o impacto sobre o funcionamento do aparelho.

Para ele, Freud, esse aparelho psíquico é o resultado de um arranjo corporal proveniente de uma dependência infantil de longa duração, decorrente da condição de desamparo em que se encontra o filhote humano. O nascimento sempre prematuro do bebê humano lhe confere uma insuficiência de saída, uma impossibilidade que não será de todo superada e que marcará o corpo. Há um real intransponível na experiência original, sem captura possível, que restará ao longo de toda a estruturação do aparelho psíquico. Disso resulta o caráter traumático das primeiras experiências infantis e o impacto sobre o funcionamento do aparelho.

O psiquismo não está completo, sua constituição não se totaliza, pois possui uma falta irremediável - oriunda do desamparo primordial - vivificada pelo traumatismo. Para Freud a falha que o aparelho psíquico porta é, na verdade, o que lhe dá origem. Veremos que, para Lacan, o sujeito nasce dividido, de modo que qualquer mecanismo psíquico tem sua função implicada nessa divisão subjetiva. A vivência humana do tempo possui relação direta com essa divisão fundamental, o tempo, que incide na estruturação psíquica por meio de intervalos, pausas, retornos e saltos, salienta essa divisão e nos permite reconhecê-la.

 

Divisão psíquica - um corte temporal

Freud utiliza o termo Spaltung - cisão, divisão, clivagem, fenda - com maior expressividade em textos mais tardios, como "Compêndio de psicanálise" (1940 [1938]/2014) e "A cisão do eu no processo de defesa" (1940 [1938]/2007). A noção de divisão psíquica, porém, esteve presente ao longo de todo o trabalho freudiano. Os sistemas e as instâncias mentais se formam a partir de um limiar, possuem um núcleo de divisão em função disso e portam características do que os originou. Dessa forma, não há apreensão total e pura da realidade, pois ela adquire características do indivíduo, tornando-se fundamentalmente realidade psíquica.

A cisão do eu lança luz na estrutura do aparelho psíquico, tornando-o mais inteligível. A Spaltung pode de fato ser compreendida como uma tendência do aparelho, que comporta a falha, a falta. O furo já previsto no aparelho psíquico freudiano dá indícios de uma divisão que direciona seu funcionamento; tem-se, com isso, o fundamento para o sujeito dividido que habita o discurso do inconsciente. O eu tem duplo objetivo, tanto de cessar certas exigências pulsionais, como de cessar estimulações externas aversivas. Ele não logra completamente nenhuma das alternativas, fracassa no desligamento total, fica dividido: "não importa o que o Eu empreenda em seus esforços por defesa, se é recusar uma parte do mundo exterior real ou rechaçar uma exigência pulsional vinda do mundo interior, o resultado nunca é completo, sem resto [...]" (Freud, 1940 [1938]/2007, p. 171).

A Spaltung identificada por Freud é estrutural. Há uma fenda que nunca será curada, mas mantida com o passar do tempo. A síntese, tomada como função do eu, está sujeita a vastas perturbações e, na verdade, não chega a se realizar. O eu é uma organização que não se completa, pois tem como núcleo essa divisão, nasce de uma fronteira e se forma em torno dela. A constatação de uma divisão psíquica estrutural remete ao projeto freudiano inicial, que não foi abandonado de vez, como pode parecer com o descarte posterior das funções anatômicas. Ao contrário, ele mantém alguns aspectos essenciais na caracterização que faz do aparelho psíquico.

Freud (1925/2007), em "A negativa", detém-se em aspectos da constituição do psiquismo em que podemos mais uma vez observar o caráter fundante da cisão psíquica. A divisão se apresenta na tentativa de distinguir o interno do externo. O que se atribui à exterioridade ou à coisa (das Ding) na primeira etapa da constituição psíquica, em um primeiro juízo, é se ela é boa ou má. De acordo com a expressão mais antiga dos impulsos pulsionais, aquilo que é bom deve ser introduzido e aquilo que é mau deve ser expelido.

O juízo, em um segundo momento da constituição, após alguma diferença estabelecida entre dentro e fora do organismo, entre o que lhe concerne e o que não lhe concerne, deverá conferir ou não existência real à coisa representada no psiquismo. Trata-se de saber se uma representação pode ser reencontrada na realidade pela percepção, ou seja, se há identidade perceptiva. Tem-se, mais uma vez, uma questão de dentro e fora: o que for somente imaginado e, portanto, não-real, será subjetivo, por estar presente somente no interior; ao passo que o que for real estará também presente no exterior. Essas distinções são antes uma divisão necessária para a constituição prosseguir - o psiquismo se estrutura ao redor de uma fenda.

As representações se originam de percepções, podendo ser reproduzidas na ausência destas. Freud adverte-nos de que o confronto com a realidade, bem como com um objeto de desejo, só ocorre quando e se os objetos que outrora já trouxeram satisfação tiverem sido perdidos. O sujeito não procura assim encontrar um objeto pela percepção, mas reencontrá-lo. A separação entre subjetivo e objetivo não existe desde o início, uma distinção entre ambos se dá pela diferença existente entre o objeto percebido e a reprodução dele na memória, cuja representação não é inteiramente fiel. Fica retido no psiquismo o registro de traços do objeto, nunca sua totalidade; o objeto é deformado pela subjetivação. A totalidade é barrada ao sujeito e ao objeto.

A polaridade existente entre incluir e expulsar corresponde à polaridade das pulsões: a afirmação, Bejahung, refere-se à unificação, a Eros; a negativa, Verneinung, sucede a expulsão e pertence a Thanatos, à pulsão de morte. Enquanto a afirmação une, a negativa, proveniente de uma exclusão (Ausstossung) anterior e necessária para que se possa afirmar o que quer que seja, separa. O "não" estabelece a diferença para que a identidade possa ser afirmada, para indicar com um "sim" que houve semelhança entre o que está dentro e o que está fora.

O que se evidencia na análise da estrutura psíquica é que seus mecanismos são acessíveis apenas quando partimos de seus efeitos e os elucidamos retroativamente. É o que, por fim, veremos acontecer com o recalque, Verdrängung - mecanismo psíquico que direciona lembranças e esquecimentos e que, por isso mesmo, apresenta estreita relação com o tempo. O recalque só é observável através de um tempo transcorrido, temos notícia dos seus efeitos e das condições necessárias para sua realização quando alguma coisa não funciona muito bem, por disrupturas que aparecem com o tempo. Ele deixa rastros, indícios do retorno do recalcado.

Freud (1915/2004), no artigo dedicado ao recalque, salienta que esse conceito só é possível com a divisão entre consciente e inconsciente, sendo ele próprio um mecanismo que contribui para a instauração e manutenção dessa divisão. O recalque é um mecanismo que visa evitar o desprazer e, para tanto, promove um deslocamento do afeto. A finalidade de evitar desprazer chega a algum êxito também pelo tempo.

Freud explica então o processo de recalque por uma decomposição temporal. O recalque original, ou originário, Urverdrängung, inferido pelos efeitos do que lhe é posterior, consiste em interditar ao representante da pulsão a entrada e a admissão na consciência, estabelecendo um ponto de fixação que pode ser compreendido como início. A segunda etapa do recalque, recalque secundário, que Freud observa em funcionamento nos neuróticos em tratamento psicanalítico, refere-se a representações derivadas do representante recalcado original. O recalcado original exerce forte atração sobre tudo o que, de alguma forma, pode se conectar a ele.

O recalque não proliferaria por meio de novas representações capazes de trazer alguma mudança efetiva nos comportamentos do indivíduo, a fim de afastá-lo de situações que não lhe fossem prazerosas; não lograria êxito algum, não se realizaria se não existisse algo já recalcado antes, pronto para acolher o que for repelido pela consciência em um momento posterior. A possibilidade de logro, entretanto, é também a deixa para o retorno do recalcado. Os desvios feitos pelas mais variadas ligações com o recalcado original permitem o trânsito entre consciente e inconsciente e possibilitam seu retorno através do que pode representá-lo.

Por meio de uma alternância, de um vaivém psíquico, volta-se para a origem, de onde se partiu. Volta-se para a partida, para a falha que enseja o trabalho psíquico. Com o retorno do recalcado, sinal de que houve recalque, mas de que também houve fracasso, o sujeito se vê partido e se depara com o que o partiu, com sua divisão. Os deslocamentos permitem ao sujeito levar consigo traços da origem para, assim, distanciar-se dela. Os deslocamentos permitem distanciar-se da origem carregando-a. Não deixamos tudo para trás, carregamos conosco uma marca original, um sinal de onde viemos, um registro como "Made in Germany"2, para onde formos, seja como formos.

Há já na primeira formulação da teoria do trauma uma compreensão singular de temporalidade - a ênfase no a posteriori ( Nachträglichkeit ) - que será própria à psicanálise. O sintoma foi entendido por Freud como símbolo de uma causa precipitante. O fenômeno patológico do sintoma reaviva as lembranças recalcadas, uma vez que traços mnêmicos não se extinguem. As lembranças recalcadas, correspondentes a uma liberação sexual incontornável pelo psiquismo, só se tornam traumáticas por uma ação posterior. O trauma é a marca de um excesso que esteve presente no início, e que não deixará de estar presente no final.

O termo nachträglich, vastamente utilizado por Freud para caracterizar a dinâmica da vida mental, aparece com destaque especial na constituição do aparelho psíquico. Um momento posterior é necessário para a dedução daquilo que vem antes na constituição. O passado faz-se retroativamente, liga-se ao futuro e passa no presente - passagem e permanência estão implicadas no tempo. A temporalidade da psicanálise revela-se enquanto temporalidade do inconsciente. Os processos do inconsciente são intemporais, conforme Freud (1915/2006) os caracteriza, isto é, não se alteram com a passagem do tempo e não obedecem a uma linearidade. A lógica do a posteriori permite, assim, apreender algo do funcionamento inconsciente.

Existe um discurso fora da consciência que aproximou Freud da etiologia traumática do sintoma, a técnica para tratá-lo consistiu inicialmente em retroceder pela fala a momentos pregressos. O discurso vindo de fora, que apresenta o inconsciente, indica a direção da cura. O tratamento, é o que Freud percebe rapidamente, deve ser feito por meio da palavra, para que o processo psíquico originalmente ocorrido possa receber expressão verbal, para que seja possível conferir ao trauma um lugar no simbólico, uma vez que ele advém com a linguagem, é pela linguagem que se diz "trauma". Ele vê na cura, na fala, uma saída no simbólico.

Freud logo identifica a necessidade de considerar os acontecimentos a posteriori, nachträglich, pois as reminiscências se formam pelo tempo e o tratamento deve considerá-las. O tratamento é composto por voltas, exige tempo, assim como a constituição do aparelho psíquico. A relevância do tempo para o tratamento pela fala está prevista na técnica psicanalítica desde sua formulação inicial. A atenção ao discurso fora da consciência, decifrado por retroação, inaugura o tratamento psicanalítico e permanece fundamental para a psicanálise ao longo de seu desenvolvimento.

 

Tempo do inconsciente - que passa e não passa

Lacan, assim como Freud, ressalta a necessidade de se compreender a temporalidade no trabalho psicanalítico. O tempo, fundamental na constituição subjetiva, é determinante na análise. Lacan dedicou alguns de seus escritos e seminários à questão do tempo, colocando-a no cerne da discussão sobre o que seria o campo psicanalítico e sua ética.

A descoberta do inconsciente se encadeia às observações freudianas acerca do trauma psíquico, àquilo que constitui o núcleo das formações sintomáticas. A marca do trauma ausente da memória, mas de alguma forma presente, denota para Freud a clivagem psíquica. O sujeito é originariame-nte marcado por uma divisão. O inconsciente, conforme observa Lacan no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/2008), apresenta-se por pulsação, como abertura e fechamento, uma fenda que é trazida à luz por um instante, mas que logo em seguida se esvanece. O inconsciente é apreendido em uma experiência de ruptura, entre percepção e consciência, em um lugar intemporal, ou seja, no entre: há outro tempo em outra cena.

Lacan (1964) explicita a divisão do sujeito através da surpreendente constatação do inconsciente:

Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar - algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo "produzir-se", se apresenta como um achado (Lacan, 1964/2008, p. 32).

O inconsciente se manifesta como o que vacila num corte do sujeito, de onde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo. A modulação temporal confere ao inconsciente um caráter de descoberta, no que ele tem de efeitos produzidos retroativamente. A descoberta do inconsciente fura a teoria do conhecimento, pois ela é proveniente de um deslocamento do centro do saber ou, mais precisamente, de um descentramento.

Lacan (1953/1998), em "Função e campo da fala e da linguagem", volta-se para as implicações do tempo na estrutura subjetiva concernente à psicanálise. Ele procura falar de temporalidade por meio da técnica, busca o tempo do sujeito no tempo da cura e vice-versa. Menciona a duração da análise, alertando para o problema, identificado por Freud3, de fixar um fim. O tempo se refere, portanto, ao fim. A duração de uma análise é, antes de seu fim, indefinida, imprevisível. Não há prazo certo para a verdade do sujeito. Não se sabe quanto durará uma análise porque não se sabe a verdade de antemão. O tempo confere à psicanálise seus limites, indica os confins de seu campo.

A duração da análise se apresenta para Lacan como uma questão relativa tanto ao tratamento que se faz ao longo de várias sessões, quanto ao que se faz a cada sessão. A duração de cada uma das sessões diz respeito ao tempo de trabalho, que não possui um padrão fixado externamente. O inconsciente demanda tempo para se revelar; porém ele será mais bem apreendido pelo sujeito quanto menos este justificar o que quer dizer. O tempo que se oferece na análise está a serviço do inconsciente.

O inconsciente, isso se mede? Qual o tempo necessário para que ele se revele? O tempo do inconsciente e, por conseguinte, o tempo da análise é aquele em que algo acontece. A análise deve durar o suficiente para que o paciente se realize no trabalho, de modo que uma duração suficiente não equivale a uma precisão cronometrada: "o homem em sua autenticidade evoca a fala que dura" (Lacan, 1953/1998, p. 314). O tempo da análise pode ser compreendido como o tempo de dizer. Lacan não cede quanto ao valor que têm, para a análise, as sessões de duração não fixada.

O sujeito conta sua história no tempo - no tempo que ele tem para contá-la e no que ele tem para contar do tempo - sem precisar contar os minutos. Imbuída de uma dinâmica temporal, a narrativa que se desenrola é contada pela posição subjetiva no discurso: "O que se realiza em minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me estou transformando" (Lacan, 1953/1998, p. 301).

O passado não está dado, se faz só-depois (après-coup); além disso, aquilo que parece passado pode não ter passado e permanecer presente. O sujeito se constitui na busca de sua verdade; entretanto, ao realizar sua história, é no o futuro que ele toca a verdade. O futuro anterior4 abre para o sujeito seu sentido, descortinando a direção de seu desejo e impulsionando-lhe o movimento.

 

Tempo lógico: para constituir-se

O tempo apresenta-se, para Lacan, como uma instância lógica que engendra o sujeito. O sujeito do inconsciente é um efeito que só é atingido a partir da fundação de uma estrutura de linguagem que se configura em uma alternância temporal. "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada" é um artigo no qual Lacan (1945/1998) delineia a constituição do sujeito e a necessidade, intrínseca a esse processo, do tempo. Com esse intuito, ele apresenta um problema lógico, que se caracteriza como sofisma, sobre três prisioneiros. Ele mostra como o tempo incide num processo que se efetua por escansões, não por continuidade.

Trata-se, no sofisma, de três prisioneiros que são escolhidos pelo diretor do presídio para ter a chance de ganhar a liberdade. Ganhará a liberdade quem conseguir resolver primeiro um problema lógico que envolve os três. O problema é colocado a eles: há cinco discos que só diferem por sua cor — três discos brancos e dois discos pretos; sem dar a conhecer quais deles serão escolhidos, o diretor prende um disco nas costas de cada um dos prisioneiros, de modo que nenhum prisioneiro pode ver a cor de seu próprio disco, pode ver apenas a cor dos demais. Cada um poderá examinar seus companheiros, sem comunicar o resultado da inspeção, e o primeiro que puder deduzir sua própria cor é quem se beneficiará da liberdade. Para ter a liberdade, a conclusão do problema deverá ser fundamentada em motivos lógicos. Dadas as instruções e aceitas as condições, cada um dos três sujeitos é adornado com um disco branco, sem se utilizarem os pretos. Depois de se haverem considerado entre si, surge o motivo de concluir:

Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: "Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto". E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha conclusão (Lacan, 1945/1998, p. 198).

No sofisma, cada prisioneiro precisa afirmar quem ele é para ganhar a liberdade. Não há um tempo determinado para a realização desse trabalho sobre si mesmo, mas há um limite, que é dado pelos outros prisioneiros incumbidos do mesmo trabalho subjetivo, uma vez que podem realizá-lo mais brevemente. O tempo é dado pelo outro, o sujeito que deseja ser livre está inicialmente em atraso, visto que quem solucionar o problema lógico primeiro é quem terá a liberdade. Ocorre uma incursão lógica, como um imperativo. Esse progresso se dá sob a condição de escansões suspensivas, isto é, movimentos suspensos no raciocínio do sujeito. Porge (1998), em Psicanálise e tempo: o tempo lógico de Lacan, assinala que são as objeções ao problema que o caracterizam como sofisma e que fazem a solução existir como tal após as paradas e partidas do sujeito. Os tempos do erro estão integrados ao raciocínio, são necessários ao progresso lógico, ou seja, o tempo das objeções é fundamental para a validade do raciocínio, não lhe é exterior.

Lacan, ao tratar, nesse artigo (1945/1998), da constituição do sujeito - aquele que diz, e diz de si - aponta para a primazia do tempo. O que está em jogo no processo lógico é a prevalência da dimensão temporal, não espacial. O que mais importa na discussão do sofisma não é o que os sujeitos veem, mas o que eles descobrem positivamente por aquilo que não veem. O tempo incide enquanto negatividade do espaço. Kojève (1947/2002), em Introdução à leitura de Hegel, explicita que o ser do homem, por se alimentar de desejos nunca satisfeitos completamente, será devir e que a forma desse ser não será espaço, mas tempo. Tendo em vista que a formulação teórica de Lacan teve influências de Hegel e Kojève, pode-se destacar esse alcance da dimensão temporal na teoria lacaniana no artigo "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada" especialmente.

A temporalidade direciona a compreensão da constituição do sujeito no campo do desejo, de modo que a noção espacial de continuidade - imaginária - se esmaece frente ao sujeito lógico, sujeito do inconsciente e da linguagem. O tempo é marcado pelos intervalos, pelas pausas, não pela continuidade. Cronometrar o tempo, contar-lhe os minutos, fazê-lo contínuo, é espacializá-lo, imaginarizá-lo. É na alternância e na oscilação que o sujeito encontra alguma saída, uma saída no simbólico.

No sofisma são observadas duas escansões suspensivas, necessárias para a verificação de dois lapsos e três evidências. Por isso, de acordo com Lacan, é essencial o exame dos tempos constitutivos do sofisma, tomados como modalidades temporais que também compõem a constituição do sujeito. São três momentos de evidência que revelam valores lógicos: instante de olhar, tempo para compreender e momento de concluir. A instância temporal se apresenta de modo diferente em cada um desses momentos, o que revela uma descontinuidade tonal do tempo. É possível captar na modulação do tempo o próximo movimento do sujeito em direção à asserção de si.

O movimento lógico-temporal proposto por Lacan anuncia uma gênese lógica, por decantação do tempo, que coincidiria com o nascimento do psiquismo. Sobrevém uma gênese lógica, não exatamente ontológica. Lacan (1949/1998), em "O estádio do espelho como formador da função do eu", indica que o bebê sustenta sua postura diante do espelho, superando a precariedade dos movimentos, através de um apoio externo, para fixar a imagem no que ela tem de instantânea. O bebê humano reconhece como tal sua imagem no espelho, manifestando uma assunção jubilatória. O sujeito antecipa em uma miragem a sua maturação. A forma total do corpo só lhe é dada numa exterioridade. O estádio do espelho explicita que aquilo que existe no homem de despedaçado, de desvinculado, é o que estabelece sua relação com as percepções no plano de uma tensão original.

O narcisismo, momento constitutivo que Lacan retoma de Freud5, inserindo algumas modificações, pode ser compreendido como um processo que comporta uma alienação vital. O homem só percebe a unidade da imagem de seu corpo externamente e de maneira antecipada. A imagem que se obtém do corpo próprio é o princípio de toda unidade percebida nos objetos; essa unidade, porém, escapa a todo instante. Após alienar-se à imagem será preciso separar-se dela, pois a percepção parte de uma condição de discordância fundamental, não adaptação essencial.

A relação do sujeito com o objeto exprime uma temporalidade essencial para o funcionamento psíquico: se os objetos pertencessem somente ao plano imaginário, numa relação puramente narcísica com o sujeito, eles apareceriam instantaneamente e logo desapareceriam. Para que o objeto tenha alguma duração, tenha certa permanência, é preciso uma palavra que o nomeie, alguma articulação simbólica. Devido ao inacabamento inaugural, a experiência do sujeito é sempre relacionada ao corpo despedaçado, de forma que a emergência do sujeito do inconsciente é correlativa à desintegração da imagem de si. Esse processo comporta um resto de despedaçamento que não se objetifica; a unidade já é perdida ou nunca foi tida.

Para Lacan, o eu, enquanto imagem, é um objeto privilegiado dentre os demais. A imagem na qual a criança se reconhece torna-se referência tanto para seu corpo em uma miragem de unidade, isto é, seu eu, como se torna também a matriz simbólica em que o sujeito se precipita. Com a função simbólica, ele sai da captura narcísica para se situar alhures. O estádio do espelho demarca a função de alienação e desconhecimento do eu e a hipótese de um sujeito que surge no intervalo entre um significante e outro, como efeito de linguagem, de modo que não há correspondência entre eu e sujeito. Entre o sujeito do inconsciente e a organização do eu há dissimetria.

 

Tempo do sujeito

O sujeito poderá ser definido a partir da relação estabelecida com o objeto. O objeto é instituído ao sair da dinâmica inicial de indiferenciação entre eu e não-eu pela interferência da linguagem, cuja função é a de um terceiro na relação entre sujeito e objeto. A função do terceiro está atrelada ao Outro e esse grande Outro, é importante situá-lo, é alteridade radical, na medida em que ele não é conhecido, mas reconhecido.

O Outro, como define Lacan (1955-1956/2002) no seminário As psicoses, é de natureza simbólica. O sujeito, quando fala, dirige-se para além do que se vê, dirige-se ao Outro. O Outro não é o reflexo visto, não é o semelhante, é o lugar do significante. No Outro atam-se o reconhecimento de desejo e o desejo de reconhecimento. Esse Outro, simbólico, traduz a relação do sujeito com o significante e detém o enigma do desejo - "O que queres?" (Che voi?). O sujeito, porém, converte essa questão em demanda - "Que queres de mim?" (Que me veut-il?) (Lacan, 1962-1963/2005). Com isso, fica envolvido no tempo do Outro.

O que se constitui como imagem ou como função simbólica não estava aí desde o início. Como vimos, o "antes" se faz na constituição e só-depois dela, a linguagem inclui o trauma na estrutura. O estádio do espelho fundamenta as operações de alienação e separação, formalizadas por Lacan (1964/2008) no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, presentes na constituição do sujeito, que emerge com o advento da fala.

A estrutura do sujeito é produzida, em um primeiro tempo, por sua alienação à linguagem. A alienação é, portanto, uma operação de identificação ao significante do Outro: o sujeito é marcado por um traço - a introdução primária de um significante, anterior ao próprio sujeito - para ser inscrito no campo do Outro e depois poder se identificar com outros significantes. O Outro marca no sujeito uma borda, inscreve-o no mundo da linguagem. Inicia-se uma troca de objetos variáveis, substitutos do objeto perdido. O Outro é o lugar em que se situa a cadeia de significantes que comanda o que vai poder presentificar-se do sujeito. O significante está primeiro no campo do Outro.

No entanto, o sujeito, em sua singularidade, não é todo determinado pelo significante do Outro. Para além da alienação, o sujeito inclui na sua constituição o que não se sujeita ao Outro. Na operação da separação, o sujeito se destaca do Outro. Trata-se do momento de se separar da determinação do Outro. O sujeito se constitui subtraindo-se, tornando o Outro incompleto. Uma falta é encontrada no Outro, no discurso, e retroage sobre a própria falta do sujeito. A separação do Outro retrocede sobre a falta, que é justamente o que permite ao sujeito aceder a si mesmo.

O sujeito é conduzido, pela dialética de sua constituição, da alienação à separação. A dialética dos objetos do desejo faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro. O enigma do desejo não é respondido diretamente, uma falta engendrada por um tempo precedente serve para responder à falta suscitada pelo tempo seguinte. É no limite das identificações, no que o desejo do Outro é desconhecido, no ponto de falta, que se constitui o desejo do sujeito. Tal falta é estrutural e propulsora de sua divisão.

Enquanto estiver preso ao tempo do Outro, capturado em uma continuidade, o sujeito não pode emergir, pois ele será justamente o que advém do intervalo. Retomando os tempos constitutivos do sofisma trabalhado por Lacan, é possível identificar um tempo de alienação, necessário para que o sujeito advenha. O tempo para a compreensão detém essa alienação necessária, para só-depois advir o sujeito. O que está em jogo nesse processo é a relação do sujeito com seu desejo, mas isso não se estabelece de uma vez, se faz com o tempo. Se o instante de olhar introduz o sujeito em uma situação na qual ele ainda não é, mas virá a ser o sujeito da enunciação, o tempo para compreender coloca-o na condição de outro, ele é seu eu-especular. Tudo o que sabe sobre si é o que apreende do outro, seu semelhante. Esse tempo de compreensão revela o outro e o objeto, é o que se atinge com o conhecimento, com a especulação exaustiva a que o sujeito se entrega.

A compreensão não é suficiente para aceder a si, pois não se trata aqui de conhecer a si mesmo: "O homem absorvido pelo objeto que ele contempla só pode voltar a si por um desejo" (Kojève, 1947, p. 11). Ao se separar do Outro, o sujeito encontra no desejo a saída para a sua condição de alienação. No entanto, só tendo se alienado ao desejo do Outro para se defrontar com o próprio desejo. Foi necessário desejar o desejo do outro, "desejar que o valor que eu sou ou que represento seja o valor desejado por esse outro" (Kojève, 1947, p. 14).

O sujeito, aquele que deseja, se constitui em torno de um centro que é o outro, o primeiro acesso que ele tem ao objeto é enquanto objeto do outro. Não há outro desvio para que o sujeito descubra o que lhe falta como objeto de seu desejo. A direção da asserção no momento de concluir sobre si é o desejo do sujeito da enunciação, daquele que diz. Uma direção para o desejo se delineia com a constituição subjetiva, e não é sem o trauma psíquico - indelével - pois desejar implica realizar voltas, desvios, escansões. O sujeito, passando pelo momento presente, veicula passado e futuro, sem sobrepor um ao outro; é assim conduzido por seu desejo a um tempo que lhe permite parar e prosseguir para seguir se revirando e se transformando.

 

Tempo de dizer

Lacan (1970/2003) evoca o tempo para explicar a função da fala no tratamento psicanalítico. Em "Radiofonia", ele oferece algumas elaborações sobre o dizer na psicanálise, ressaltando o efeito obtido pela fala, que não é de comunicação, mas de deslocamento do discurso. As formações do inconsciente levam o sujeito a dizer através da palavra que não lhe vem, que lhe escapa, que lhe falta; é o que ocorre, por exemplo, no ato-falho. Os tropeços na linguagem revelam que o tempo não corre assim tão continuamente. As interrupções da narrativa diacrônica, por interferências inesperadas da linguagem habitada pelo sujeito, alteram o curso do que vinha sendo dito e indica que o encadeamento diacrônico está submetido a uma estrutura sincrônica da linguagem que concerne ao sujeito falante.

O posicionamento do sujeito no discurso, sua forma de construir um mundo, varia de acordo com as alternâncias temporais, com as paradas e escansões. Para Lacan (1970/2003, p. 405), "Seguir a estrutura é certificar-se do efeito da linguagem". A estrutura faz traço de um projeto por vir: "só tendo ali ser de fato, por ser dito de algum lugar" (Lacan, 1970/2003, p. 406). A linguagem confere ao sujeito um lugar para a origem e uma veiculação para o ser. O ser atrelado à estrutura ganha corpo, o simbólico toma corpo. O corpo de linguagem portará uma marca originária, marca do ser, como o "Made in Germany" mencionado por Freud.

A introdução do significante no corpo habitado pela fala não deve ser tomada como uma coisa, pois ela se refere a uma falha estrutural. O ser nasce da falha que o ente produz no dizer, sendo o tempo uma condição para que isso se dê: "é preciso tempo para fazer traço daquilo que falhou em se revelar de saída" (Lacan, 1970/2003, p. 427). Freud já havia identificado a função do tempo no tratamento psicanalítico em virtude mesmo da preponderância da fala, pois o psicanalisando precisa de tempo para dizer. O tempo do qual o sujeito precisa é aquele que incide na falha, que retroage sobre sua falta fundamental, que o estrutura, dividindo-o.

A fala se alastra por poder evocar significantes do Outro concernentes ao sujeito. Ela evoca mais do que informa, o efeito produzido pela fala pode ser no sentido do não-sentido (non-sens). Nesse sentido, o dizer é livre. Caso possamos assentir à liberdade do dizer, os efeitos significantes se farão ressoar, essa é a aposta para o tratamento psicanalítico. Lacan lembra-nos de que o psicanalisando vai à análise para se dizer mais do que para se instruir, e de que o psicanalista suporta por tempo suficiente o tempo do qual o psicanalisando precisa para isso.

 

Por fim

O aparelho psíquico, cuja propriedade de conservação e liberação constrói percepções e memórias, se constitui através da busca por uma impressão anterior, uma satisfação esperada, uma identidade perceptiva, um afastamento de alguma situação hostil, ou, fundamentalmente, de algo que falta. O movimento proveniente dessa busca, que poderá se transformar em desejo, torna o tempo essencial ao funcionamento do aparelho. O movimento propiciado pela não-satisfação apresenta ao sujeito a dimensão do tempo, de forma que podemos pensar que, em função desse movimento que conjuga tempo e desejo, o tempo criará o desejo e vice-versa.

A temporalidade da psicanálise é composta de furos, de descontinuidade. O tempo que concerne ao inconsciente oferece estofo ao ser. Um estofo para o ser, longe de ser uma imagem, é um corpo de linguagem, no qual também não encontraremos todo o ser, apenas o que puder ser corpsificado (corps(e)ification6). O imaginário serve ao ser por não mostrar toda a realidade, por falhar em revelar tudo de uma vez. O dizer toca o ser, na medida em que há sempre um fosso entre o que o sujeito enuncia e o fato de ser ele que o enuncia. O ser advém daí, do que não se fecha no dizer. Escorre pelo dizer aquilo que do ser resiste à simbolização. O impossível de ser simbolizado - impossível de ser - é o limite pelo qual se instaura a categoria do real. Na análise, trata-se de, oportunamente, produzir o sujeito como efeito da linguagem e de fazer nascer o ser como falha do dizer. Trata-se de um aqui (hic) que se faz agora (nunc), propiciado pelo momento de concluir o tempo para compreender o instante de olhar.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 01/02/2014
Aprovado para publicação em: 07/4/2014

 

 

*Dedica-se à clínica psicanalítica. Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB).
**Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL). Doutora em filosofia pela Université de Paris VIII. Professora da Graduação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Departamento de Psicologia Clínica na Universidade de Brasília (UnB).
1Laplanche e Pontalis (2001) apontam no Vocabulário da psicanálise que os termos Nachträglichkeit (substantivo) e nachträglich (adjetivo e advérbio) são utilizados recorrentemente por Freud para expressar sua compreensão de temporalidade no que se refere à causalidade psíquica.
2Alusão feita por Freud (1925/2007) em "A negativa", que reaparece em outros artigos, para se referir a um sinal de origem, a uma marca original.
3Em "História de uma neurose infantil" (1918/2006) e "Análise terminável e interminável" (1937/2007).
4Na língua portuguesa o futuro anterior corresponde ao tempo verbal futuro do presente composto. Perini (2010), em Gramática do português brasileiro, elucida que a ideia presente nesse tempo verbal é justamente a de um futuro anterior, por se referir a um evento futuro temporalmente precedente a outro evento também futuro. O exemplo que escolhe para expressar este tempo é: "já terei terminado".
5Em "À guisa de introdução ao narcisismo" (1914/2004).
6Termo usado por Lacan no seminário Mais, ainda (1972-1973) para designar o corpo tomado de linguagem.

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