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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro June 2016

 

ARTIGOS

 

É chegado o embate do século... XIX. Desejo versus nada, ou Freud, potência e vontade

 

Here it comes the struggle of the XIX century: desire versus nothing, or Freud, power and will

 

 

Gustavo Henrique Dionisio*

Universidade Estadual Paulista - UNESP - Brasil

 

 


RESUMO

Trata-se de "alocar uma questão" entre duas categorias aparentemente antagônicas provindas da filosofia e da psicanálise, tendo em vista a possibilidadede extrair consequências teóricas signicativas para o campo da clínica da depressão e dos transtornos alimentares. Sendo assim, o ensaio visa perguntar: 1) se a psicanálise freudiana recuaria diante de uma "entropia niilista", isto é, da irresistível apetência para o "nada da vontade" tal como proposta por autores do porte de Nietzsche e Schopenhauer; 2) Se seria possível ou exageradamente paradoxal esboçar uma prática analítica a partir dessas premissas, ou, do contrário, 3) se se concluir que a psicanálise investe em Eros em função de sua virtude originalmente terapêutica, o que restaria em termos de uma injunção niilismo-psicanálise? Como, enfim, seria possível articular uma fricção crítica entre a clínica psicanalítica e o conhecimento trágico?

Palavras-chave: desejo, nada, inconsciente, niilismo, clínica.


ABSTRACT

This article aims to "allocate a question" between two apparently antagonistic concepts, stemmed from philosophy and psychoanalysis, in terms to extract some significant theoretical consequences for the clinical field of depression and eating disorders. Thus, the essay aims to ask (and not to respond): 1) whether or not Freudian psychoanalysis retreat before a so called "nihilistic entropy", i.e., the irresistible appetite for the "nothing's drive" as proposed by Nietzsche and Schopenhauer, for example? 2) If it would be possible or overly paradoxical sketch an analytical practice from these premises, or at least forward one reflection that can be directed to the therapeutic field (psychoanalytic in this case); or else, 3) if it is found that psychoanalysis invests in Eros, due to its therapeutic virtue originally, what would be left in terms of a nihilism-psychoanalysis injunction?

Keywords: desire, nothing, unconscious, nihilism, psychoanalytic clinic.


 

 

Psicanálise e experiência estética

Seria possível medir, mais ou menos concretamente, os reais limites de uma teoria? E qual seria a extensão, por conseguinte, de seu alcance interpretativo em relação aos fenômenos que estuda? E de modo ainda mais radical, vale perguntar: poderia mesmo uma teoria explicar tudo a respeito do objeto sobre o qual se debruça?

É evidente que, para esta última pergunta, a resposta é, definitiva e obviamente, não; contudo, não seria ainda hoje pertinente repensar este "axioma popular" que contaminou grande parte de nossa cultura (inclusive a médica), expressão que acabaria se transformando irrevogavelmente na vulgata quase irrefutável do... Freud explica?

Ora, não é impossível dizer que, em seu livro O inconsciente estético (2009), o filósofo Jacques Rancière teria levantado à sua maneira, e tomadas as devidas precauções, uma pergunta que tangencia a primeira questão. Nessa reflexão, como se sabe, Ranci ère passa um bom tem po procurando iluminar os limites de uma certa interpretação psicanalítica (nomeadamente a freudiana, neste caso), embora ela não se debru ce, necessariamente, como faria indicar o título, sobre a obra de arte em si mesma; de outro modo, sua investigação se direciona ao que poderíamos categorizar, talvez mais precisamente, de "experiência estética" (isto é, nela incluída a própria obra de arte), ainda que não sejam essas, tampouco, as exatas palavras do autor.

Grosso modo , pode-se dizer que o objetivo principal de O inconsciente estético seria compreender as consequências filosóficas do amparo que Freud encontrou em determinadas figuras literárias específicas ou em certas obras de arte para definir o campo de "aplicação" psicanalítico. Uma vez que elas ocupariam um lugar estratégico na pertinência dos conceitos freudianos, ou ainda mais apropriadamente, na própria concepção do que seria a interpretação analítica, seja ela praticada dentro ou fora do consultório (e sobretudo fora), tais figuras se tornariam fundamentais na construção do edifício cujo andaime se traduz com o inconsciente freudiano.

Não obstante, e para demonstrá-lo, Rancière parte do pressuposto de que tais imagens seriam um testemunho "ótimo" da exist ê ncia de uma certa relação do pensamento com o não-pensamento, da presença do pensamento numa materialidade sensível onde supostamente não existiria pensamento, isto é, da imanência inadvertida de um no outro em relação dialética a partir de certo "estágio" do espírito humano. Nesse sentido, é assim que uma obra de arte seria pensamento que se apresenta como não-pensamento, ou seja, é pensamento em forma de corpo, pois, do contrário, ela não seria obra de arte mas, nesse caso, "filosofia", por assim dizer.

Lidar com essa dimensão do não-pensamento é, além disso, colocar em jogo aquilo que Alain Didier-Weill (1999) sugeriu a respeito da própria atividade de "experimentação" estética: toda obra de arte nos expõe necessariamente a uma sideração inicial - algo que Freud procurou conceituar, a certa altura, como Verblüffung - e que se traduz na maior ou menor condição de uma obra de produzir algum "desamparo da inteligência" no espectador. Com efeito, "se apenas pensamos", afirma Didier-Weill, "não apreciamos a música" (1999, p. 35). Ora, é só depois que nos ocorrerá a luz, é apenas uma vez passada a sideração que a inteligência começará a funcionar ainda que um tanto atordoada. Ela participa, evidentemente, do processo de recepção; no entanto, não é a inteligência, ou mesmo o pensamento - para já fazer friccionar a categoria que interessa - quem a determina.

Por conseguinte, no jogo da experiência estética, antes de pensar é necessário sentir . Porém, se se perde essa capacidade de se surpreender, de se ver siderado diante de uma obra (e talvez essa seja uma outra maneira de entender a "suave narcose" aludida por Freud em relação à obra de arte); se perdemos, enfim, essa capacidade de nos surpreender diante da experiência, eis o aparecimento do tédio (um nada?). E ele nos toma justamente pela via dessa incapacidade para a surpresa, nos retira o entusiasmo; mas o que a experiência com a arte promove, na mão contrária, seria a tentativa de nos retirar dessa condição pela via de uma verdadeira invocação: "Sim", responde à música o sujeito do inconsciente, "em ti estou em minha casa, e em mim estais em sua casa" (Didier-Weill, 1999, p. 103).

 

Inconscientes em jogo

Retomemos, contudo, a tese que Rancière almejou defender em seu estudo: que as condições de possibilidade do inconsciente freudiano se devem, em grande medida, senão em sua totalidade, ao que o filósofo chama de inconsciente estético. Tal inconsciente teria sido inaugurado junto com a modernidade e, obviamente, de acordo com condições históricas determinadas e não difícil localizáveis, embora com a particularidade de que isso tenha se dado em certo regime do pensamento no qual haveria uma total abertura para a coexistência de paradoxos e contradições no modo de encarar a arte. Além disso - continuemos com Ranciére -, esse regime estético, que suportaria o inconsciente estético, surgiu em contraposição a outro regime que o autor classifica como "representativo" ou "clássico", e que por sua vez funciona a partir de uma hierarquia pré-estabelecida de temas e de modos de composição que procuraria excluir daí quaisquer rastros de ambiguidade.

Para verificá-lo, Rancière se apoia numa pesquisa em torno de dois Édipos escritos depois de Sófocles. São eles o de Corneille e o de Voltaire (e não são os únicos, vale lembrar):

a) No século XVII, por exemplo, Pierre Corneille inventou uma narrativa de Édipo que suavizava o caráter trágico da peça, visando adaptá-la ao gosto da época e, assim, recuperar-se de seus fracassos literários recentes. Para escrever sua própria tragédia, contudo, Corneille mexeu em três elementos fundamentais da versão original: excluiu a cena dos olhos furados, suprimiu o excesso de oráculos e aumentou sua "tramicidade", leia-se, o jogo de esconde-esconde da narrativa, substituindo toda a sua verticalidade por uma escritura que marca o início do drama burguês. A meu ver, estamos aqui diante de um Édipo por assm dizer domesticado.

b) No século seguinte, Voltaire, por sua vez, defendeu a tese da "inverossimilhança" na obra de Sófocles; logo, para deixá-la mais crível, ele chegou a inventar um novo assassino, que não seria Édipo e sim Filocteto. Com isso, Voltaire procurou suprimir da narrativa todo um pathos do saber, pathos que se encontra na ambiçã o de É dipo em saber o que seria melhor não saber, mas também em sua ambiçã o de "n ão querer" ouvir o que lhe é revelado a torto e a direito pelas pistas da sequ ência narrativa. Tratar-se-ia, portanto, de um Édipo absurdo.

A partir disso, é como se ambos os escritores, ao mesmo tempo que desaprovam esse herói impossível, acabassem consequentemente desaprovando também toda a psicanálise - a "edipiana" ao menos - ao mostrar o quanto haveria, aí, de falseamento em suas próprias origens figurais. Nessa medida, mas pensando agora em Freud, é como se fôssemos obrigados a dizer que o complexo de Édipo n ão seria algo factível - e isso é evidente -, mas não apenas: a ideia nos autorizaria a pensar, ao fim e ao cabo, que o complexo não seria factível sequer no inconsciente. Em outras palavras, tais exemplos conduziriam, ainda que por uma via indireta, a um sério questionamento da universalidade do Édipo uma vez que ele seria um personagem "defeituoso", bem como o tema e a ordem representativa que regem essa criação dramática escolhida deliberadamente por Freud para então fundar sua teoria e sua clínica sobre os processos de subjetivação.

Com efeito, parece não ser cabível ao espírito representativo/clássico a existência dessa enorme identidade de contrários, desse espaço onde o pathos convive com o logos e não se opõe a ele; esse alto teor de ambiguidade ganhará sua força plena apenas no momento seguinte, isto é, com o advento do Romantismo no século XVIII. Nessa medida, Rancière destaca a situação histórica quando da invenção da psicanálise, ja que ela teria surgido sob um ponto de convergência temporal muitíssimo particular, a saber: trata-se desse momento no qual filosofia e medicina se colocaram reciprocamente em causa "para fazer do pensamento uma questão de doença e da doença uma questão do pensamento" (Rancière, 2009, p. 26). Nessa perspectiva, cabe advertir que a psicanálise teria nascido, portanto, no exato momento em que os heróis filosóficos serão encarnados por Schopenhauer e Nietzsche, pensadores que procuram estabelecer, de modo mais preciso, o que haveria de não-pensamento no pensamento, ou melhor, o que haveria de pathos no logos (e não o contrário), de modo a fazer o homem mergulhar de uma vez por todas no "puro do sem-sentido da vida bruta ou no encontro com as forças das trevas" (Rancière, 2009, p. 33).

 

Arte, pensamento: fronteiras da interpretação

Mas é também um momento no qual a literatura celebra a dimensão sintomática da palavra, esse grande "acontecimento crítico" que surgirá com Ibsen, Zola e, sobretudo, Balzac, conforme sugere Georges Didi-Huberman (1994), configurando uma escrita que desregula a ordem natural das coisas ao revelar que aquilo que à primeira vista nos parece insignificante na verdade não o é. O caráter sintomático da palavra é aqui representado por uma dupla determinação, regrada segundo relações de abertura e fechamento que se definem reciprocamente: enquanto abertura, por um lado, ela é indício, metonímia porque perfaz a parte que, ao se apresentar, traz consigo o todo; por outro, ela também é muda e esconde aquilo que não se apreende pela parte, administrando assim um processo metafórico de condensação (Lacan, 1999; Dor, 1989).

O que mais nos interessa, contudo, é o fato de que estamos diante de toda uma literatura que inaugurará a força do detalhe, que de anódino se transformará naquilo que mais interessa no interior da narrativa, pois a partir de agora bastará o detalhe para se dizer tudo o que é necessário dizer... (Didi-Huberman, 1994; Dionisio, 2012). A palavra do detalhe, por ser uma palavra muda, "silencia gritando" ao indicar que "tudo fala aí". Nessas circunstâncias, e de modo a se destacar um paralelo evidente com a clínica psicanalítica - e isso desde o seu princípio -, já não haveria mais uma hierarquia estática entre o que deve ou não deve ser ouvido porque nada, daqui por diante, pode ser considerado desprezível. Em outras palavras, é possível dizer que essa literatura desierarquizou a ordem anterior, impossibilitando a existência de uma relação de dominação do pathos pelo logos1. Em termos propriamente literários, não mais "existem temas nobres e temas vulgares", lê-se em O inconsciente estético, "muito menos episódios narrativos importantes" que subjugariam "episódios descritivos acessórios". No interior de um tal zeitgeist não existirá, portanto, "episó dio, descri ção ou frase que não carregue em si [mesmo toda] a potência da obra" (Rancière, 2009, p. 37).

Isso posto, conclui-se que o interesse de Freud pela poesia e pelas artes em geral pode se localizar num ponto específico dessa convergência há pouco isolada: o psicanalista não teria desejado outra coisa senão "intervir na ideia do pensamento inconsciente que normatiza as produções do regime estético da arte". Em outros termos, tratar-se-ia de "pôr ordem" - e aqui é preciso destacar a ideia de ordem - "na maneira como a arte e o pensamento da arte jogam com as relações do saber e do não-saber, do sentido e do sem-sentido", enfim, "do real e do fantástico", e de cujo jogo se espera um resultado relativamente claro (aos psicanalistas): a regulação de uma certa ordem.

Vejamos mais de perto: diante da obra de arte, a posição de Freud se revela rigorosamente ambígua porque ao mesmo tempo que ele deu voz à palavra muda, palavra que se vale do campo do não-dito e que deixa os rastros/vestígios de uma dada história, isto é, quando então Freud restituíra a potência dessa palavra-sintoma, tão necessária à escuta do analista, ele também impôs, em última instância, o triunfo de uma vocação hermenêutica de caráter elucidativo e interpretativo, procurando deste modo dominar, ainda que se maneira indireta, aquilo que Jacques Ranciére (2009, p. 52, grifos meus)conceituou como " entropia niilista inerente à configuração estética da arte".

Em que sentido seria possível defender essa suposta "vontade de dominação" em Freud? Em certa medida ela pode ser pensada a partir de dois aspectos estruturais do pensamento estético freudiano, afirmação com a qual os psicanalistas ainda têm muito a que se debater: primeiro, de que Freud daria mais importância ao conteúdo em detrimento da forma - uma justificativa que também pode esclarecer, em parte ao menos, seu pouco interesse pela música, como é sabido; segundo, de que investir na análise do conteúdo pode se traduzir em uma vontade de encontrar, e por conseguinte escrutinar, o nó fantasmático de um autor ou de uma personagem, criando desse modo uma narrativa clínica na qual imperaria sempre a melhor "intriga causal" possível, negligenciando, em razão disso, tudo aquilo que não cabe na configuração do fantasma. Com esse procedimento, é como se Freud tentasse reafirmar, o mais obstinadamente possível, que a realidade deve triunfar sobre a fantasia - e, a título de exemplo, é o que de fato ocorre em sua leitura da Gradiva, de Jensen (Freud, 1996). Sem nunca abrir mã o de ser cientista, Freud acabaria "forçando" o prevalecimento da racionalidade causal em suas aventuras de recepção estética.

Em outros termos, podemos ainda concluir que, com relação ao inconsciente estético, Freud teria escolhido a sua entrada e a sua saída: sim, é necessário reconhecer que com a emergência da psicanálise ele elevou à última potência o poder da palavra-sintoma, a indiciária palavra muda do detalhe, como assim vimos. Não obstante, essa restituição não o conduziu a realizar igual operação em outra modalidade de palavra, que já não é palavra muda mas surda, e que muito interessa a este projeto de pesquisa: por palavra surda se deve entender, mais especificamente e ainda conforme Rancière, as potências anônimas e insensatas da vida, reino selvagem do "desconhecimento radical" ou da pura negação. Assim a palavra surda designa aquela que "não fala a ninguém e não diz nada" (Rancière, 2009, p. 39), é a palavra anônima e fora-de-sentido que reside por detrás de "toda consciência e significado" e cujo solilóquio vem arrastar o sujeito para o caminho da grande renúncia, para um lugar talvez irrepresentável no qual o suicídio poderia ser o único caminho para a liberdade, ou ainda, para a emancipação.

Com a finalidade de dar maior concretude à argumentação, podemos encontrar esses traços niilistas na solução de romances como o Doutor Pascal, de Émile Zola (1893), no qual se assiste a um incesto que é banalizado e até mesmo "regenerador" no interior da narrativa. Ora, seu desenlace nos daria a ver algo dessa ordem diabólica quando revela a cena em que um bebê, fruto desse incesto e inconsciente de qualquer tabu, levanta seu punho de modo a afirmar a "força cega e bruta da vida que assegura sua perpetuidade" (Rancière, 2009, p. 66). Nessa tradição, haveria também a conclusã o de Romersholm, a conhecida peça que Ibsen publicou em 1886 e que a propósito fora o objeto de análise de Freud em "Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalí tico" (1996). Nessa análise, Freud não abre nenhum espaço para pensar uma conclusão na qual poderia vigorar a vitória de pathos, que no caso do livro seria representada pelo suicídio dos personagens principais. Se Rebecca se mata no final da trama, por exemplo, não é porque se depara com o sem-sentido inescapável da vida, mas porque supostamente manteve uma relação incestuosa com o padrasto que na verdade devia ser seu pai biológico; ou mesmo se ele o fosse "na fantasia", talvez a resposta pudesse ser a mesma - esta é, com efeito, a hipótese freudiana. Ao fim e ao cabo, é como se suas análises buscassem desse modo sustentar uma resist ência à entropia niilista apontada por Rancière, fenômeno que Freud detecta embora recuse nessas obras que nascem com o advento do regime esté tico. É como se houvesse, e isso não sem alguma ironia, uma sintomática Ichspaltung no seio da teorização freudiana, solução que se dá pela via de reconhecimento e recusa face às forças do desligamento. Em outras palavras, a crítica dirigida à psicanálise nos exigiria indagar, em suma, tal como outrora fizera Leibniz (1979), em A origem de todas as coisas, logo na passagem do século XVII para o XVIII - afinal, por que deve haver um porquê?2

Outra situação de significativa importância: a conclusão proposta por Freud em sua análise do Moisés de Michelângelo (1996) se encaixaria na mesmíssima lógica, haja vista que o psicanalista procurou revelar, ali, a medida de capacidade desse personagem em dominar a sua ira, quer dizer, a virtude de conseguir se abster da vontade (pática) de destruir as tábuas da lei. Por meio de um procedimento de investigação que caminha pelas malhas do detalhe - por sinal muito psicanalítico, como se viu há pouco -, a estátua passa a ser uma representação do triunfo da retidão, já que pela pena freudiana Moisés se transformou em um senhor de si, ao contrário do Moises bíblico, em quem a serenidade não reinou sobre os afetos, sobre sua cólera. E, embora saibamos que o inconsciente freudiano não é diferente do inconsciente estético quanto ao fato de que é inaugurado já sendo um locus onde também sobrevive a identidade dos contrários porque abriga a contradição, com essa interpretação da estátua Freud nos colocou frente a uma cena clássica analisada classicamente: trata-se de uma vinheta interpretada na chave de um sistema representativo cuja lógica visa reconduzir a paixão à ordem. Cabe destacar que, se por um lado é possível dizer que Freud apenas analisa o que vê (ou o que escuta) na imagem, por outro é preciso reconhecer que a escolha específica de uma obra a ser analisada (feita, aliás, para compor o túmulo do Papa Júlio II) não pode ser encarada como algo sem consequências.

 

Niilismo e psicanálise?

Não obstante, isso que se caracterizou até o momento como "forças de desligamento" seria, em termos de produção artística, a principal característica absorvida pela passagem do regime representativo ao regime estético, regime este inaugurado com um inconsciente da arte que fez coincidir a identidade dos contrários a ponto de fagocitar: uma absorção do logos no interior do pathos, embora com uma preval ê ncia do pathos sobre o logos . Ora, não seriam esses temas algo do maior interesse para um filósofo como Arthur Schopenhauer, o reconhecido teórico do "nada da vontade" e da "potência como representação"? Ou ainda para um Friedrich Nietzsche (1998, p. 111), para quem a última vontade do homem seria justamente a vontade de nada?

Em outras palavras, por que o homem de razão nãoescolheriaa paz do não-ser? Nas "Contribuições à doutrina da afirmação e da negação do querer-viver" de Schopenhauer lê-se, por exemplo: "Contra certas objeções ridículas" - o filósofo está atacando Hegel - "advirto que a negação do querer-viver de maneira alguma significa a eliminação de uma substância, mas o simples ato do não-querer", ou seja, "o mesmo que até agora quis, não quer mais" (1999, p. 291). Ora, se a vontade é a coisa-em-si, ela só pode se expressar por meio do querer-viver3; logo, a negação da vontade é, tão simplesmente, o não querer-viver, ou melhor, a constatação do absurdo que a vida é. Sem mais4.

Daí minha aposta a respeito de um "embate" entre a suma niilista e o conceito de desejo - o tão famigerado Wunsch freudiano: de acordo com Schopenhauer, por exemplo, o simples querer, ou ter uma vontade, se traduziria quase que imediatamente em sofrer, uma vez que o querer já pressupõe desejar; e de sua parte o desejo, sendo ele mesmo "uma falta daquilo que se deseja", é também "uma forma de dor"... Ou quem sabe ainda pior: a satisfação plena da ordem desejante teria como consequência o tédio, essa "terrível dor que se sente quando a vontade deixa de ter objeto e se manifesta como pura pulsão em falta", como sugere Constâncio (2012, p. 48). Freud, como se sabe, só apostava o fim do desejo com o fim do sujeito, ou seja, com a sua morte. Robert Pippin, de outro modo, chega a conceber o niilismo de Nietzsche como um fracasso do desejo (Pippin, 2010, p. 19), literalmente falando.

Para defender Freud, há de se pensar que uma possível "solução" de sua parte só teria surgido anos depois, isto é, em 1920, com a teorização sobre a pulsão de morte, a essa altura já publicados os artigos de metapsicologia, tudo isso que porventura o conduzisse a empreender um olhar diferente. Portanto, seria necessário reconhecer, nessa conjuntura, que os textos estéticos de Freud, inclusive o último aqui citado, são todos datados em período anterior a "Mais-além do princípio de prazer" (1996), o que em certa medida o aliviaria da crítica proposta por Rancière. Contudo, parece que a questão ainda deseja permanecer aberta, pois não seria o caso de perguntarmos, na condição de psicanalistas, clínicos portanto,

•se a psicanálise, a freudiana ao menos, recuaria de fato diante dessa entropia niilista, dessa irresistível apetência para o "nada da vontade" teorizado por Schopenhauer e Nietzsche, por exemplo? Se a resposta for afirmativa, pode ser de grande valia ensaiar um porqu ê a partir do conceito de desejo (Wunsch) em Freud e, muito provavelmente, também em Lacan, o que já nos encaminharia, em hipótese, aos campos da anorexia (Bidau, 1998) - em relação à vontade de nada - e da melancolia (Kristeva, 1987) - em direção ao nada da vontade;

•se seria possível ou exageradamente paradoxal esboçar uma prática analítica a partir dessas premissas, ou ao menos encaminhar uma reflexão que possa se direcionar a um campo terapêutico (psicanalítico, no caso) que seria rente a essas considerações teóricas?

•do contrário, se concordarmos que a psicanálise investe em Eros em função de sua virtude originalmente terapêutica, o que restaria em termos de uma injunção niilismo-psicanálise?5 Como, enfim, poderíamos articular uma fricção crítica entre a clínica psicanalítica e o conhecimento trágico?6

Tais questões encaminhariam um proveitoso campo de pesquisa aos psicanalistas nos dias de hoje. Afinal, não parece ser preciso investigar muitos divãs para verificar a presença desse nada na vida do sujeito na contemporaneidade.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 28/03/2015
Aprovado para publicação em: 19/04/2015

 

 

*Professor de Graduação e Pós-graduação no Departamento de Psicologia Clínica da Unesp-Assis.
1Talvez fosse necessário acrescentar um vice-versa ao argumento; não o adoto, entretanto, pois toda a história da arte que surgiu após a Antiguidade Clássica nunca experimentou o contrário, isto é, com exceção daquele período, nunca antes havíamos assistido ao pathos dominando o logos.
2Como Leibniz, talvez valesse mesmo questionar, embora o contexto em jogo seja eminentemente metafísico: "por que alguma coisa em vez de nada?"
3O que não escapa de uma possível articulação com o Aufhebung proposto por Freud: sim, diria o bebê ao nascer, pois, com efeito, ele não pode "negar" a vida.
4É certo que, por outro lado, temos de reconhecer que Rancière em momento algum menciona que, de sua parte, Schopenhauer articula a negação da vontade com a ascese cristã, isto é, o cristianismo como negação de si mesmo e, daí, o caminho para a salvação. Tratar-se-ia de um pessimismo ateu, isto é, talvez ainda não niilista no ponto ao qual chegará Nietzsche. Ainda assim, a meu ver isto não elimina a pungência da questão: por que para o não-querer-viver, para o não-ser deve-se haver os seus motivos, mesmo que inconscientes?
5De antemão, cabe declarar minha aposta em uma hipótese a ser pensada a partir dessa figura literária de grande importância: Bartleby, o singular escrivão criado por Melville em 1853, e analisado com maestria por Gilles Deleuze (2011) e Giorgio Agambem (1993), autores que deverão vir em auxílio a essa indagação.
6Essa noção de conhecimento trágico foi forjada por Nietzsche, é sabido, com a qual ele acabou estabelecendo certas "tautologias" para pensar o enigma como enigma ou o absurdo como absurdo.

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