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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro June 2016

 

ARTIGOS

 

Freud e a religião: a ilusão que conta uma verdade histórica1

 

Freud and religion: the illusion that tells a historical truth

 

 

Kylmer Sebastian de Carvalho PereiraI*; Wilson Camilo ChavesI**

IUniversidade Federal de São João Del-Rei - UFSJ - Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho destina-se a percorrer textos freudianos no que tangem à religião e suas consequências psíquicas e históricas para o homem. Reflete-se sobre as teorizações de Freud quanto ao problema da religião. "Totem e tabu" versa, entre outros temas, sobre a origem do sentimento religioso e sua relação com o assassinato do pai primevo. "O futuro de uma ilusão" lança duras críticas ao pensamento religioso, tomando-o como uma ilusão amparada em profundos desejos da humanidade. Em "O mal-estar na civilização", Freud reconhece a função da religião como resposta frente ao desamparo, situando aí sua origem. "Moisés e o monoteísmo" mostra como a religião desvela um saber esquecido acerca de um povo, e, em certo sentido, de toda a humanidade. Conclui-se que, ao longo de sua obra, Freud constrói e retoma concepções acerca da religiosidade, tal como reconhece sua importância para o desenvolvimento intelectual e superação do sentimento de desamparo.

Palavras-chave: Freud, psicanálise, religião.


ABSTRACT

This work intends to search Freud's texts for instances about religion and its psychic and historical consequences to man, reflecting about Freud's theorizations about the question of religiosity. Totem and taboo presents, among other themes, a possible origin to the religious sentiment and its relation with the primal father's murder. Future of an illusion brings harsh criticism on religious thought, pointing it as an illusion, held together by some of the deepest desires of humanity. In Civilization and its discontents, Freud recognizes the role of religion as an answer to despair, and points this fact as its origin. Moses and monotheism shows how religion reveals a long forgotten knowledge about the Jewish people, and in a sense, about all mankind. We conclude that, thorough his work, Freud builds and reshapes conceptions about religiosity, finally recognizing the importance of religion to intellectual development and superation of the despair.

Keywords: Freud, religion, psychoanalysis.


 

 

Introdução

Ao longo de sua obra, Sigmund Freud expôs, por vezes, suas opiniões acerca da religião. Mesmo declaradamente ateu, Freud tinha interesse especial pela problemática religiosa - em pelo menos quatro momentos aborda diretamente o tema, a saber: em "Totem e tabu" (1913), "Futuro de uma ilusão" (1926), "O mal-estar na civilização" (1929), e, mais tarde, em "Moisés e o monoteísmo" (1938). Lacan, em Radiofonia (2003) - transcrição de uma entrevista que deu à rádio belga em 1970 - aponta a proximidade da leitura judaica da bíblia com a interpretação freudiana do discurso - do que se pode concluir, como fazem Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1999), que a psicanálise tem uma ligação inevitável com a questão do judaísmo.

Freud tematiza a religião cristã em três ocasiões - à parte " Moisés e o monoteísmo", suas principais problematizações quanto à questão religiosa tomam como exemplo e objeto principal de estudo o cristianismo. Assim, o objetivo deste trabalho é fazer um percurso histórico pela obra, levantando as contribuições freudianas à temática religiosa e analisando sua posição acerca dela, que muda ao longo do tempo, à medida que Freud desbrava o campo das manifestações inconscientes.

 

O totem, o pai, e o nascimento da religião

Freud, em meados de seu rompimento com Carl G. Jung, lança "Totem e tabu" entre 1912 e 1913. O texto - um ensaio tão psicanalítico quão antropológico - propõe dar uma origem histórica à proibição do incesto, abordando para tanto a questão do totemismo nas sociedades ditas primitivas e sua relação com a história individual dos pacientes neuróticos.

"Totem e tabu" começa analisando o totemismo das sociedades primitivas. Freud (1913/2013) aponta a relação inevitável entre o totem e a exogamia: em tais sociedades, a proibição do incesto ocorre não só em relação à mãe e às irmãs; antes, o homem primevo não pode manter relações sexuais com qualquer mulher com quem compartilha o totem - sua entidade animal protetora. A essa altura, Freud analisa também o conceito de tabu: aponta o fundador da psicanálise que a palavra tabu, nas primeiras sociedades humanas, designava algo entre o sagrado e o profano - quebrar o tabu era degradante justo por seu aspecto sagrado. Nas primeiras civilizações, com a proibição incestual vem também a proibição do assassinato do animal totêmico - também ele é um tabu. Freud desenvolve, daí, as relações entre o totemismo e o tabu nas primeiras sociedades humanas.

O trabalho culmina na elaboração de uma estória - um mito, propriamente - baseado nas descobertas darwinianas acerca das primeiras organizações sociais; que pretende analisar a relação entre o totemismo e a exogamia. Supõe:

O homem primevo originalmente viveu em pequenas comunidades, cada um com tantas esposas quantas podia obter e sustentar, que ele ciumentamente guardaria dos outros homens. Ou pode ter vivido sozinho com várias esposas, como o gorila; pois todos os nativos concordam em que apenas um macho adulto é enxergado num bando; quando o macho jovem cresce, há uma disputa pelo domínio, e o mais forte, matando ou expulsando os outros, estabelece-se como o líder da comunidade (Dr. Savage, citado por Darwin, citado por Freud, 1913/2013, p. 193-194).

A horda primeva é como provavelmente os primeiros homens se organizavam na terra. Nela, a exogamia se baseia num impedimento real - se o líder da horda é dono de todas as mulheres do clã, então nenhum outro homem pode se relacionar com suas consanguíneas. Freud continua seu mito:

Certo dia, os irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente. [...] O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No ato de devorá-lo eles realizavam a identificação com ele, e cada um apropriava-se de parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e a celebração desse ato memorável e criminoso, com o qual teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições morais, a religião (Freud, 1913/2013, p. 217).

Aqui, Freud inspira esses irmãos no "menino contemporâneo" - o último, como é sabido da psicanálise, desenvolve, na primeira infância, toda a sorte de sentimentos em relação ao pai; nutre por ele amor (por identificação) e ódio (pela rivalidade ao amor da mãe). Quanto aos irmãos, o ato de matar o pai deu cabo de seu sentimento de ódio, mas a culpa, compartilhada por cada membro da horda, preencheu seu lugar. Resolveram então essa ambivalência renunciando, cada um, a sua posse das mulheres da horda: criaram, de uma exogamia factual, uma exogamia simbólica; e, substituindo o pai pelo animal totêmico ao qual direcionaram seus sentimentos ambivalentes, criaram o totemismo.

Em essência, o totemismo vem para que se faça as pazes com o pai: em troca de sua proteção, promete-se não repetir o assassinato com o animal totêmico. É nesse ato primeiro, fundador do inconsciente, que reside a origem da religião, para Freud. Na religião, re-experimenta-se o assassínio do pai sem efetivamente matá-lo - isso concilia os sentimentos contraditórios de amor e ódio pelo genitor. Aqui, Freud faz uma pontuação acerca da eficiência da religião cristã em dar conta da ambivalência, quando substitui um primário deus-pai por um deus-filho, Jesus Cristo. O filho, no caso, não só perdoa a si mesmo e todos os outros membros da sociedade por seu sacrifício, mas também se torna um deus - no mesmo gesto, consegue o perdão do pai e toma seu lugar, completando aquilo que os irmãos originais não puderam fazer. Freud concluirá por fim que a sociedade funda-se na cumplicidade de um crime; a religião, da culpa que dele se segue; e a moralidade, em parte nas exigências da sociedade que então se constitui, e em parte na penitência demandada pelo sentimento de culpa.

Para a problemática da religião, dois pontos são chave em "Totem e tabu": o primeiro é que, para Freud, a religião nos faz re-experimentar o assassínio do pai primevo, de forma a conciliar a ambivalência de afetos quanto aos nossos pais - ela consiste na renovação da promessa feita ao pai de, em troca de seu amor e proteção, não mais assassiná-lo; o segundo é que a religião se coloca, para Freud, junto à origem da sociedade e com ela é intimamente ligada: é da culpa pela morte do pai primevo que surge o sentimento religioso, e é só a partir dele que essa mesma culpa se converte em moralidade, dando origem aos primeiros contratos sociais. Ambos os conceitos serão retomados mais tarde pelo pai da psicanálise.

 

O desamparo e a ilusão

Em 1927, Freud escreve um texto um tanto violento dirigido à religião - talvez refletindo no papel o desamparo absoluto que sentia, dado que à altura seu câncer já se encontrava em fase avançada e viver lhe trazia grandes desconfortos (Gay, 1988/2012). Retomando a leitura do sentimento religioso como uma neurose universal - ideia inicialmente discutida em um artigo de 1907, "Os atos obsessivos e práticas religiosas", Freud, em "O futuro de uma ilusão", procura responder por que os homens, que tanto avançaram na complexidade de suas relações, continuam a depositar sua fé em algo tão etéreo quanto a religião.

Inicia sua análise apontando o fracasso do processo civilizatório: não há uma distribuição igual das riquezas materiais; as leis não garantem a proteção contra a violência da humanidade; e, por mais que controlemos a natureza, somos completamente passivos às imprevisibilidades. Freud dirá que ao passo que os dois primeiros impasses dão-se na esfera individual - a saber, na vontade que cada indivíduo tem de destruir a sociedade; o último se dá na esfera da sociedade como um todo - afinal, a natureza aflige a todos por igual e o controle dela sempre se deu na esfera social (Freud, 1930/1978).

O ser-humano, animal insignificante, está entregue ao revés da natureza, com seus terremotos, furacões e tempestades, e nada pode fazer de prático quanto a isso. Assim, teorizará Freud (1930/1978), o homem, para dar conta dos fenômenos sobre os quais não é capaz de exercer controle algum, humaniza-os. É assim que surgem os deuses - como respostas práticas e simbólicas diante do imprevisível - e eles, quase que por displicência, surgem enquanto pais: os criadores da humanidade, e, assim, seus possíveis destrutores. É assim que surge a religião.

O homem reproduz com a natureza a primeira relação que tinha com os pais - e, convenhamos, não poderia ser de outra forma. Afinal, ambos se apresentam - os pais na primeira infância, e a natureza na vida adulta - como, ao mesmo tempo, aqueles que possibilitam a vida, e, por conseguinte, aqueles com o poder de tirá-la. Eis aqui onde a psicanálise pode contribuir para a compreensão da religião - a natureza, tal como os progenitores, passa a fornece uma resposta - no discurso - para o desamparo humano. Freud não se atém mais que brevemente a esse tema, e parte então para a análise da função atual da religião. Freud nos dirá, sobre as ideias religiosas, que essas con sistem em afirmações sobre fatos e condições da realidade que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e reivindicam nossa crença. Assim, são análogas aos ensinamentos escolares - ainda que os últimos tenham alguns argumentos a seu favor: todo conhecimento escolar, adquirido pela ciência, é suscetível a provas, ao passo que o mesmo não se pode dizer da religião.

Os argumentos em favor da verdade religiosa usualmente resumem-se em três:

Em primeiro lugar, os ensinamentos merecem ser acreditados porque já o eram por nossos primitivos antepassados; em segundo, possuímos provas que nos foram transmitidas desde os tempos primevos; em terceiro é totalmente proibido levantar a questão de sua autenticidade (Freud, 1927/1978, p. 104).

Freud critica os três: quanto ao primeiro, aponta que, já que nossos antepassados eram tão menos inteligentes que nós, nada ganhamos em acreditar neles; rebate o segundo apontando que tais provas são usualmente falsificadas e cheias de contradições; e a terceira, ela mesma, aponta uma séria fraqueza da religião - afinal, se o questionamento de alguma ideia é punido com a tortura ou a morte, é sinal de que essa ideia não se sustenta tão bem por si só. Se, das ideias mais valorizadas pela humanidade, a religião é ao mesmo tempo a mais sólida e menos bem fundamentada, o que faz com que tal contradição aconteça? Para Freud, isso se deve a um problema psicológico - mais especificamente, um desejo psicológico da humanidade. A religião, dirá Freud, encontra sua força no fato de que ela fornece um pai, solucionando o desamparo humano; uma ordem moral mundial que assegura a justiça entre os homens; e a vida eterna, solucionando o problema da morte - ou seja, a religião fornece uma resposta aos desejos mais antigos da sociedade. É, assim, uma ilusão.

Então, Freud põe-se a criticar severamente a persistência da religião na sociedade. Aponta que, se a religião não é efetiva em tornar o homem mais feliz, não há necessidade de um deus. Assim, afirma que a queda da religião é mera questão de tempo, e, nesse sentido, preocupa-se que, caso as ideias religiosas caiam e nada venha em seu lugar, a sociedade entre em rebelião e desrespeite as regras que ela própria erigiu. Freud associa aqui a religião à neurose obsessiva infantil, apontando que se as crianças, no processo civilizatório, têm que passar por uma fase neurótica, ao passo que a humanidade teve que passar pela religião para obter o mesmo intento. Se essa relação é correta, as ideias religiosas fatalmente se dissiparão no processo de crescimento, como deve ocorrer com todo ser humano. Assim, o que Freud propõe é que dispensemos as explicações religiosas aos fenômenos da vida cotidiana. Além de tirar o caráter ilusório do pacto social - o que estaria destinado a esfacelar-se -, abandonar a explicação religiosa possibilitaria um sistema de leis baseado em regras históricas, sociais e, assim, mutáveis. Isso tornaria os homens ao mesmo tempo mais responsáveis por suas decisões, e mais "educados para a realidade" (Freud, 1927/1978) - isto é, mais aptos a lidar com o mal-estar. Para que o abandono da religião aconteça, porém:

[Os homens] Terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o centro da criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma Providência beneficente. Estarão na mesma posição que uma criança que abandonou a casa paterna, onde se achava tão bem instalada e tão confortável (Freud, 1927/1978, p. 123).

Freud admite, assim, que a tarefa de abandonar a religião é custosa à humanidade, e aí reside sua maior dificuldade. Porém reforça que é esse o caminho inexorável da humanidade - é da ordem de seu amadurecimento, segundo Freud, que abandone suas ilusões e passe a, efetivamente, encarar a realidade. A esse fim, aponta o conhecimento científico como a saída racional ao mito religioso.

Esse texto é de extrema importância para a problemática da religião em Freud. Aqui, ele toma uma postura antropológica acerca do surgimento da religião, e, pensando em como ela se dá enquanto fenômeno social, faz uma relevante descoberta. Deslocando-se da importância da culpa no desenvolvimento da religião, Freud depara-se com outro mecanismo que dá força ao sentimento religioso - ele se origina da crença em uma ilusão. O que a religião faz é dar conta do desamparo humano por meio de uma ilusão a partir da qual somos protegidos por uma instância maior - um pai. É por esse caráter - o de realizar ilusoriamente os desejos mais antigos da humanidade de justiça e proteção - que o conhecimento religioso independe de comprovações empíricas: é sempre um ato de fé.

 

A culpa como mola propulsora do sentimento religioso

Em 1930, Freud publicou "O mal-estar na civilização", quase uma continuação de seu texto anterior. Aqui, faz contribuições indispensáveis para aproximar as ideias de "Totem e tabu" e "O futuro de uma ilusão", destacando de novo a importância da culpa para o sentimento religioso.

No texto, conta Freud (1930/1978) que, na infância, toda criança deve, em dado momento, abrir mão de seus amores e ódios intensos pelos pares parentais e recalcar tais sentimentos. Para atingir tal intento, a cultura proíbe o incesto e o parricídio, e tais leis ficam interiorizadas no psiquismo do homem de tal forma que ele não consegue mais sentir prazer nesses desejos - antes, sente culpa. As imposições culturais, porém, não garantem a extinção de desejos imorais: apenas impedem sua satisfação. Assim, é mais correto pensar no psiquismo como uma batalha constante entre pensamentos inconscientes e o recalque do que imaginar a barra do recalque como um muro, estático, de onde nada sai. Se o psiquismo parece rejeitar a cultura, resta saber como é que, não obstante, acabamos por nos inscrever na sociedade e dela fazer parte. Freud apontará que o primeiro mecanismo civilizatório é a tarefa identificatória - o que somos e como nos reconhecemos depende sempre de um outro que nos legitime; assim, identificamo-nos, na primeira infância, com os membros da sociedade mais próximos de nós: os pais. Isso garante a entrada na cultura e, com ela, o recalque.

Freud aponta que o modo propriamente humano de se inscrever no mundo é buscando o prazer e evitando a dor. Assim, o homem vive em busca da impossível satisfação completa de seus desejos. Antes de fundada a sociedade, cada um tinha liberdade para gozar com o que quisesse - isto é, até que um outro, mais forte, impusesse seu gozo àquele. Assim, a sociedade surge, em primeiro momento, para garantir a segurança: contra o corpo mesmo, que inevitavelmente sofre com as marcas do tempo; contra o mundo externo, cuja força aterrorizante somos incapazes de dominar ainda hoje; e, principalmente, contra os outros membros do grupo humano. Continua que, no ser humano, há originariamente uma vontade aterradora e destrutiva de descarga pulsional, representada por Tânatos. Aqui, fala do conceito de pulsão de morte, que aparece pela primeira vez em "Mais além do princípio do prazer" (1921) - nesse texto, conclui que o desejo humano é a morte: o cessar de todas as necessidades. Assim, em "O mal-estar...", o que Freud propõe é explicar como a civilização converte parte do caráter destrutivo da pulsão em uma via de estabelecimento de relações: a pulsão de vida, representada por Eros.

A barbárie precede a sociedade: sujeitos guiados por uma pulsão sexual desenfreada acabam por, inevitavelmente, violentar uns aos outros. Assim, a sociedade nasce como uma garantia de sobrevivência: mesmo que uma sociedade seja justa e igualitária, o princípio fundador dessa será a proibição da satisfação absoluta das vontades, em prol do bem comum. Assim, qualquer sociedade nasce, obrigatoriamente, fundada no recalque das pulsões destrutivas. No entanto, Freud aponta que o recalque das pulsões não funciona tão bem assim. A energia impedida de se descarregar exige um trabalho do psiquismo, e é nesse ponto que ocorre a maior influência da cultura sobre os sujeitos: para que o recalque funcione, a energia livre no aparelho psíquico é convertida numa instância contendo as expectativas, censuras e imposições da civilização: o supereu. Ora, se o "agente" civilizatório no nosso psiquismo é formado por uma energia originariamente destrutiva, não restam dúvidas de que esse caráter se manifestará de alguma forma. É assim, explica Freud, que surge o caráter tirânico do supereu que, nos neuróticos, exerce seu poder provocando a culpa obsessiva e as enervações e sabotagens histéricas. Freud continua a mostrar os impasses entre a natureza humana e a sociedade ao longo do texto, concluindo-o sem ver resposta possível ao embate entre essas duas inexoráveis forças em nosso psiquismo.

No que concerne à religião, Freud fornece aqui a chave para articularmos "Totem e tabu" e "O futuro de uma ilusão": se é com a culpa oriunda da morte do pai primevo que surge a religião, como aponta o primeiro texto; e se essa culpa, em termos sociais, é oriunda do ódio fundamental de todo ser humano pela humanidade; então a religião realmente é análoga a uma neurose universal, e seu caráter ilusório se aproxima da estrutura de uma fantasia. Isso explica ainda a relação entre a religião e a moralidade: se é de um assassinato que ambas se originam, e a primeira configura como uma tentativa de dar conta da agressividade desferida ao pai, a segunda nada mais é que o redirecionamento, socialmente operado pela religião - aos moldes do supereu - dessa agressividade de volta ao próprio sujeito, em forma de proibições morais.

 

O pai primevo, o monoteísmo e o retorno do recalcado

"Moisés e o monoteísmo" é um texto de 1938, publicado após certa resistência do próprio pai da psicanálise. Peter Gay (1988/2012) afirma que, para Freud, foi um desafio escrever esse texto, e publicá-lo foi outro. A obra, dividida em três ensaios, tem uma proposição audaciosa: a de que Moisés era não judeu, mas egípcio. A partir dela, Freud põe-se a escrever um romance histórico com o qual pretende explicar a origem do povo judeu e de seu sentimento de judeidade. O texto apresenta problemas: Freud parece descuidado ao estruturar seu argumento, tomando muitas vezes o que ele próprio considera hipotético como fatos incontestes, o que faz com que o autor pareça perdido em sua própria narrativa. Foi assim que a maioria dos comentadores de Freud analisou o texto, como aponta Richard J. Bernstein em Freud e o legado de Moisés (2000). Segundo ele, os principais críticos de Moisés propõem tomar fatos externos à obra como objeto de análise, na busca de compreender o que motivou Freud a escrever como escreveu. Essa leitura, porém, deixa a própria letra freudiana em segundo plano em contraposição a possíveis acontecimentos externos reais - postura malfadada na psicanálise desde a queda da teoria freudiana da sedução. Propondo uma outra leitura, Bernstein parte do próprio "Moisés e o monoteísmo" na busca da compreensão do mesmo, atentando-se ao conteúdo manifesto e latente do texto para interpretar as intenções de Freud ao redigi-lo. A visão de Bernstein servirá de amparo às articulações entre "Totem e tabu" e "Moisés", mais tarde.

O enredo do romance histórico freudiano conta que o monoteísmo nasceu entre os egípcios, quando o faraó Amenófis IV estabeleceu a adoração exclusiva ao deus-sol, Aton, como religião do estado e nomeou-se Aquenáton. A religião de Aton, segundo Freud, rejeitava o antropomorfismo, a magia, a bruxaria e a noção de vida após a morte. Quando Aquenáton morreu, sua religião herética foi rapidamente desfeita, tornando o Egito novamente politeísta. Moisés era possivelmente um nobre egípcio, monoteísta fervoroso, que, na tentativa de salvar a religião de Aton da extinção, liderou uma tribo semita, libertando-a da servidão, na criação de uma nova nação. Exigiu então a circuncisão (um costume originalmente egípcio, segundo Freud) e proibiu as imagens. A massa de escravos, incapaz de suportar as exigências libidinais da nova e rigorosa fé, assassina Moisés, e recalca o acontecimento. Mais tarde, os israelitas conhecem Iahweh, o deus vulcânico de tribos semitas em Madiã com quem formam um compromisso, tornando Iahweh o deus nacional. O Deus de Moisés, então, funde-se a Iahweh, e um sacerdote madianita passou a responder pelos feitos de Moisés, seu homônimo. Ao longo do tempo, Iahweh toma mais e mais a forma imaterial e universal do Deus mosaico, mas a lembrança do assassinato de Moisés nunca veio à tona entre os judeus. Freud teoriza então que o cristianismo rememora, mesmo que de forma oculta, o assassinato de Moisés na morte de Cristo e sua redenção.

É importante - antes de descreditar "Moisés e o monoteísmo" pela ausência de provas que sustentem suas afirmações - atentar ao que Freud aponta ser a intenção desses ensaios: contribuir com uma aplicação da psicanálise; está ciente, inclusive, que seu argumento "sem dúvida impressionará apenas aquela minoria de leitores que se acha familiarizada com o pensamento analítico e está capacitada a apreciar suas descobertas" (Freud, 1938/1980, p. 11). Assim, a leitura desse texto freudiano deve considerar o que Freud traz ali de propriamente psicanalítico - em que os conceitos da psicanálise contribuem para o entendimento da obra. Dirá ainda:

por que, poder-se-á perguntar, trouxe eu essa investigação a público? Lamento dizer que mesmo minha justificação para fazê-lo não pode ir além de sugestões, pois, se permitirmos ser levados pelos dois argumentos que apresentei aqui, e se nos dispusermos a tomar a sério a hipótese de que Moisés era um egípcio aristocrata, perspectivas muito interessantes e de grande alcance se abrirão. Com o auxílio de algumas suposições não muito remotas, poderemos, acredito, compreender os motivos que levaram Moisés ao passo fora do comum que deu, e, intimamente relacionado a isso, poderemos conseguir um domínio da possível base de uma série de características e peculiaridades das leis e da religião que ele forneceu ao povo judeu, e, ainda, seremos levados a importantes considerações relativas à origem das religiões monoteístas em geral (Freud, 1938/1980, p. 9).

Aqui, fica claro o intento de Freud: mais do que contar sua versão da história do judaísmo, o fundador da psicanálise pretende, com seu romance histórico, desvelar as peculiaridades do povo judeu e levantar importantes considerações acerca da origem das religiões monoteístas. Nosso interesse nesse texto, assim, é situar as contribuições de Freud para a compreensão da religião em seu "Moisés".

Antes de continuarmos, um ponto deve ser esclarecido: o que é verdade histórica - conceito de que se utiliza para analisar a figura de Moisés e sua distorção bíblica - para Freud? Como apontam Couto e Alberti,

o que Moisés e monoteísmo (1939) indica é que verdade histórica não é aquela que se sustenta tão somente nos fatos ocorridos, é preciso ainda estabelecer, minimamente, as causas que deram origem aos fatos, do mesmo modo atentar para as consequências que o fato gera (Couto & Alberti, 2013, p. 90-91).

Ou seja, retornando às lendas, mitos, fábulas e contos, pode-se atingir certa quanta de compreensão sobre a história, para além das distorções que a religião inevitavelmente opera sobre ela, na tentativa de legitimar-se enquanto crença. A verdade histórica configura-se, então, como aquilo que está oculto, por trás da história contada - se é assim, a verdade histórica não é outra senão a verdade inconsciente. Freud sem dúvidas tratá-la-á assim na última parte de "Moisés e o monoteísmo", na qual põe-se a explicar, em analogia ao trabalho de análise, como foi distorcida a verdadeira história da religião mosaica por meio de condensações e ocultamentos.

Há, no romance histórico freudiano, cinco eventos imprescindíveis para compreendermos sua hipótese: o assassinato do pai primevo e a renúncia à liberdade que se seguiu (como descrita em "Totem e tabu"); a exigência que Moisés exerceu sobre o povo semita para que adorasse um deus absoluto e sem representação sensória - o que se configurou, ao mesmo tempo, como um avanço em intelectualidade (Freud, 1938/1980, p. 60) e uma renúncia pulsional, já que abandonar uma deusa-mãe em prol de um deus implica no abandono da dimensão corporal da gravidez em prol do poder do pai, sempre interditor; o consequente assassinato de Moisés, perpretado por seus seguidores, incapazes de se submeterem às exigências de seu líder; o esquecimento do ocorrido pelos semitas, o que Freud aproxima à latência entre o trauma e sua expressão sintomática na neurose individual; e, por fim, a fusão dos israelitas aos madianitas, que permitiu a condensação do deus mosaico e de Iahweh, finalmente, no deus judeu, que com o tempo assumiu mais e mais características de Aton, o deus de Moisés.

Por meio da psicanálise, Freud analisará essa sequência de eventos de forma análoga ao desenvolvimento de uma neurose, ciente da dificuldade que é transpor, com os devidos cuidados, uma teoria individual para a psicologia grupal. Sua conclusão é a seguinte: o esquecimento do assassinato do pai primevo, trauma fundante da sociedade e de sua influência sobre os homens, recalca a própria vontade de assassinato do pai, mas ela continua a existir, inconscientemente; esse movimento, individualmente, se expressa no complexo de Édipo das crianças, que, castradas, esquecem-se de seu intento homicida por meio da internalização da lei. Quando Moisés impõe a adoração a um deus-pai, absoluto e invisível, exige uma nova renúncia em prol da intelectualidade - se o pai é sempre incerto, e assim, nomeado, acreditar num deus paterno significa renunciar ao natural em prol da intelectualidade. Tal exigência é demais para os semitas, que o assassinam, reencenando a morte do pai primevo sob a imagem de Moisés. O assassinato de Moisés é abandonado pela história oficial, sobrevivendo, de acordo com Freud, apenas pela tradição oral dos profetas - a esse movimento Freud aproxima o período de latência na neurose individual, no qual o trauma é esquecido, mas nem por isso deixa de dar pistas de que aconteceu. Quando os israelitas finalmente se fundem à tribo de Madiã, passando a adorar Iahweh e atribuindo a outro Moisés os feitos de seu antigo líder, tecem um mito que deixa de lado a morte de Moisés, e, ao longo do tempo, impõe mais e mais as características do deus mosaico - e do próprio Moisés - a Iahweh, num processo análogo à condensação (Freud, 1938/1980).

Elaborará, ainda, que a morte de Jesus é uma repetição do assassinato de Moisés, mas ela traz algo de novo: não é mais o pai que morre, mas o filho, que pode então tornar-se, ele próprio, deus. Essa história redime os cristãos do assassinato de Moisés, além de trazer um conforto ao sujeito, inibido pela sociedade em suas mais internas vontades - o advento de um paraíso gera a possibilidade de tornar-se absoluto como o pai e gozar como ele; o fato de que a redenção só é possível após a morte admite também, mesmo que de forma oculta, a impossibilidade de um gozo absoluto na terra. É, como discorre Freud (1927/1978), uma ilusão que dá conta do desamparo do homem.

Se tomamos "Moisés e o monoteísmo" não em sua correção com os fatos históricos, mas em sua capacidade de remontar a origem da religião ao assassinato do pai primevo por meio de um romance histórico que se sustenta mais em seus argumentos psicanalíticos do que em sua acurácia histórica, podemos ver o que Freud faz: analogamente ao mito da horda primeva, apresentado em "Totem e tabu", ele elabora um mito acerca da figura de Moisés para ilustrar em quais vontades e inibições humanas uma religião se apoia para ganhar força e tornar-se universal ao longo da história. Nesse sentido, Moisés é um texto imprescindível para a compreensão da perspectiva freudiana sobre a religião - esta está intimamente ligada aos fenômenos inconscientes, ao complexo familiar com o qual se defronta todo sujeito humano, e, tal qual uma neurose, desenvolve-se e reinventa-se por repetições sucessivas, que trazem sempre um elemento novo que muda os rumos da história: do sujeito e de uma sociedade, respectivamente.

 

Conclusão

Freud lida, ao longo de toda a sua obra, com a questão da religião, nunca a tomando da mesma forma. Em "Totem e tabu", trata-a sob a visão de um antropólogo, buscando encontrar qual foi o seu papel nas primeiras sociedades humanas. Em 1927, desfere um violento golpe à crença religiosa em "O futuro de uma ilusão", no qual conclui que a ciência é a alternativa intelectual necessária à crença religiosa, que sustenta sua força numa mentira reconfortante - ainda que reconheça o importante papel da religiosidade na história humana e a eficácia da ilusão contra o desamparo. Em 1930, aponta a religião como uma das tentativas de proteger-se contra o inevitável mal-estar proveniente da civilização, e estende a relação entre a moralidade e a religiosidade: se o que dá conta do mal-estar é uma inibição dos intentos violentos por meio de uma lei que passa a violentar o próprio sujeito, é a religião que, com a ilusão da proteção divina, oferece a recompensa a essa pesada renúncia pulsional.

"Moisés e o monoteísmo", como que para ordenar todos os escritos freudianos sobre a religião, conta um romance histórico no qual Freud consegue ligar o assassinato do pai primevo, a relação da religião com as inibições morais, a história da tradição judaico-cristã e a estrutura de fantasia que tem a religião. Com o esquecimento do assassinato de Moisés e o surgimento da religião judaica, Freud consegue ilustrar como a religião opera para dar conta das pulsões destrutivas frente ao pai por meio de uma ilusão que, ao ocultar tais vontades, rememora-as por meio da culpa e, no cristianismo, da redenção. Assim, "Moisés e o monoteísmo" condensa as contribuições de Freud acerca da religião num texto à primeira vista confuso, mas que, por fim, consegue unir todo o ponto de vista freudiano acerca da religiosidade, tal como reconhecer sua importância para o desenvolvimento intelectual e para a manutenção do mal-estar ao longo da história da humanidade.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 11/05/2016
Aprovado para publicação em: 22/05/2016

 

 

*Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil.
**Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, professor da graduação e pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal de São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil.
1Este texto é fruto de uma pesquisa de Iniciação Científica que está inserida em uma pesquisa mais ampla financiada pela FAPEMIG (Edital Universal, março 2013).

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