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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro June 2016

 

ARTIGOS

 

Narcisismo e biopolítica

 

Narcissism and bipolitics

 

 

Nelma CabralI, II*; Dárcia Marques Tibúrcio**

IUniversidade Estácio de Sá - Unesa - Brasil
IIEspaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos - Brasil

 

 


RESUMO

Na clínica psicanalítica contemporânea, depressões, compulsões e automutilações mostram um predomínio do eixo narcísico sobre o eixo desejante e que tais formas de padecimento psíquico não advêm de um conflito como nas neuroses clássicas, mas de uma descarga direta do mal-estar no registro do corpo ou da ação. Entendendo que não há clínica psicanalítica sem cultura, este estudo objetivou fazer um mapeamento conceitual sobre o narcisismo na psicanálise, analisar as mutações na biopolítica e seus efeitos nos modos de subjetivações e nos sofrimentos psíquicos contemporâneos no que diz respeito ao narcisismo. Para sua realização, privilegiou-se a compreensão da relação entre narcisismo primário, responsável pelo surgimento da criança maravilhosa, e pulsão de morte e a leitura biopolítica das transformações nas estruturas familiares. Pode-se inferir que o individualismo extremo e as perturbações psíquicas na atualidade advêm da falta de representantes narcísicos primários que possibilitem ao indivíduo recorrer a eles nos momentos de desespero.

Palavras-chave: clínica psicanalítica, narcisismo, narcisismo primário, pulsão de morte, biopolítica.


ABSTRACT

In contemporary clinic of psychoanalysis, depression, compulsion and self-injury demonstrate the dominance of a narcissistic axis over the axis of desire and that such forms of psychic suffering don't derive from conflict as they did in the classical cases of neurosis. On the contrary, their origin is a direct discharge of dissatisfaction on the body's registry and its potential to act. Considering that there is no clinic of psychoanalysis without culture, this study aims to map out the conception of narcissism on psychoanalysis theory, surveying its mutations on nowadays biopolitics and subjectivity modes. In order to achieve such goal, this work has focused on the comprehension of the link between the primary narcissism, which creates the wonderful child, the death drive and the biopolitical interpretation of the changes in family's structures. One can come to the conclusion that extreme individualism and psychic disturbances in present time derive from the lack of the representation of primary narcissism, to which one can recur in moments of dissatisfaction.

Keywords: clinic of psychoanalysis, narcissism, primary narcissism, death drive, biopolitics.


 

 

Introdução

Na clínica psicanalítica contemporânea, depressões, compulsões e automutilações mostram um predomínio do eixo narcísico sobre o eixo desejante e que tais formas de sofrimentos advêm do registro do corpo ou da ação. Sociólogos, filósofos, historiadores, pedagogos vêm identificando o predomínio de um individualismo exacerbado e de uma conduta de indiferença em relação ao outro na caracterização da sociedade atual. Como traços marcantes do narcisista contemporâneo, observamos a dependência extrema do outro para validar sua autoestima, enfim, atestar sua existência. A busca de uma prova de existência varia da expectativa premente de inúmeras curtidas no facebook, de ser tuitado ao extremo, aos quadros de depressões, transtornos alimentares ou casos de automutilação, em que o sujeito produz dor em si mesmo. A constatação de que tais padecimentos modulam-se por um predomínio das forças da pulsão de morte e por uma precariedade narcísica travestida de brilho e gozo justifica este artigo.

Com o objetivo de compreender o narcisismo nos padecimentos psíquicos contemporâneos, consideramos necessário: mapear as concepções e formulações sobre o narcisismo no discurso freudiano como estruturante do eu, inventariando a que questões elas respondiam. E, além disso, partindo do pressuposto de que não há clínica psicanalítica sem referência à cultura, estabelecemos como critério fundamental para indagar o narcisismo na contemporaneidade problematizar o desdobramento da fórmula freudiana "Sua majestade o bebê", que possibilitou a concepção de narcisismo primário. Para cumprir esse projeto, fez-se necessário recorrer à concepção de Foucault de biopolítica e às leituras de Birman para analisar as mutações ocorridas na passagem da biopolítica da modernidade para a contemporaneidade, no que diz respeito às novas formas de organização da família.

O narcisismo foi introduzido na psicanálise a partir dos impasses advindos da experiência com a psicose, da problematização das perversões, da urgência em tematizar o eu e de outras experiências do cotidiano como o sono. Observamos que o tema ganhou relevância e se desdobrou com a abordagem da perda, da morte e da dor na economia psíquica. E se não encontramos no discurso freudiano uma tematização da relação desse conceito com o de pulsão de morte, é possível mostrar que não há narcisismo sem a pulsão de morte. Buscamos então em outros autores, como Leclaire (1977), que realiza essa articulação e mostra a importância da mesma no trabalho de análise, em que o narcisismo primário deixa atrás de si a representação de plenitude e de um gozo na criança maravilhosa.

Privilegiando a compreensão da relação entre narcisismo primário e pulsão de morte e a leitura biopolítica das transformações nas estruturas familiares, realizamos uma pesquisa bibliográfica dos autores que possibilitaram pensar a hipótese de que o individualismo extremo e as perturbações psíquicas na atualidade advêm da falta de representantes narcísicos primários que permitam ao indivíduo recorrer a eles nos momentos de desespero. Como estratégia de pesquisa, conjugamos uma leitura psicanalítica do narcisismo na qual o pensamento metapsicológico foi um requisito com uma leitura histórica e antropológica de compreensão da biopolítica restrita ao lugar da criança na passagem da modernidade para a contemporaneidade. Esperamos com este artigo, fornecer subsídios para compreensão das diversas formas de padecimentos psíquicos contemporâneos, marcados por um narcisismo que vem apontando para uma destituição de si, um vazio na existência e um predomínio da dor psíquica.

 

Em direção ao narcisismo e aos seus desdobramentos

A teorização sobre o narcisismo resulta da confluência do estudo das perversões, dos impasses colocados pela experiência com a psicose e das observações da vida psíquica das crianças e dos povos primitivos. Ao anunciar a urgência em tematizar um investimento libidinal originário no eu para dar conta da relação entre o eu, o sexual e o corpo, Freud (1914/1976) aponta para as mudanças por vir, entre elas, a de que o eu é um objeto privilegiado de uma variabilidade de objetos da pulsão sexual. Segundo Nicéas (2013, p. 34), com o narcisismo está dado "o passo clínico de Freud na construção do edifício das pulsões, dado unicamente em nome da direção que a libido toma numa clínica sob transferência".

Em seu artigo "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914/1976), Freud coloca em cena as questões em aberto desde os ensaios sobre a sexualidade, a passagem do autoerotismo para o amor do outro e o enraizamento do erotismo no somático para além da superfície e suas bordas, viabilizando as sensações e percepções do interior do corpo. De outro modo, questões teóricas sobre o endereçamento da libido ao se retirar dos objetos e sua proveniência, e simultaneamente questões advindas da clínica psicanalítica, um modo de economia libidinal que impede a emergência do amor de transferência.

Observamos que, com esse artigo, o narcisismo ganha o estatuto de um conceito necessário para dar conta da extensão da sexualidade a todo o psiquismo e aos demais órgãos e não apenas às zonas erógenas específicas enunciadas nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1976). É preciso destacar a exigência clínica e teórica não só da introdução da concepção de narcisismo na psicanálise, mas da concepção de um narcisismo primário e da retomada da problematização sobre a dependência do vivente humano do outro, de uma ação específica do outro, para se constituir psíquica e corporalmente. Podemos afirmar que uma das questões fundamentais do narcisismo é a suposição freudiana da existência de uma economia proveniente do narcisismo dos pais que possibilita a constituição do amor de si, numa anterioridade lógica ao amor ao outro. E a consequência fundamental dessa suposição é a enunciação de uma variedade de eus no campo psíquico e a introdução de uma economia narcísica a coexistir com a economia desejante (Freud, 1914/1976). Mas, antes de compreendermos esse desdobramento, consideramos importante acompanhar como Freud a partir da psicose pode inferir o narcisismo primário e diferenciá-lo do narcisismo secundário.

É na análise empreendida por Freud (1911/1976) do relato autobiográfico de Schreber que um percurso fundamental em direção ao narcisismo é delineado. Nessa análise, estabelece-se a delimitação entre neurose e psicose tendo como critério o investimento sexual no eu. Acrescenta-se a isso, a resposta à questão em aberto nos ensaios sobre a sexualidade, a saber: como se dá a passagem do autoerotismo para a escolha de objetos.

Com o caso Schreber (1911/1976) fica evidente como o indivíduo toma primeiramente a si mesmo e o seu próprio corpo como objeto de amor, antes de se dirigir a escolha de outros objetos. A constatação de que a libido retirada dos objetos do mundo evidencia um narcisismo anterior, em que o eu era o único objeto sexual, possibilita a suposição de que antes da libido se ligar aos objetos endereça-se a um eu real originário. Com essa mostração, o narcisismo é situado como um momento entre o autoerotismo e a escolha objetal, e em 1914, esse momento do endereçamento da libido ao eu é chamado de narcisismo primário. Optamos aqui por citar Freud:

Formamos assim a ideia de um originário investimento libidinal do Eu, de que algo é depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam. Essa parte da alocação da libido ficou inicialmente oculta para a nossa pesquisa, cujo ponto de partida eram os sintomas neuróticos. Notamos apenas as emanações dessa libido, os investimentos de objeto que podem ser avançados e novamente recuados (Freud, 1914/1976, p. 91).

A análise de Schreber mostra que sua desestabilização psíquica decorre de um modo específico de forte fixação no eu narcísico, em função de uma inflação libidinal. Como consequência a construção de uma unidade capaz de permitir o escoamento de grande fluxo de libido é comprometida. Em função dessa fixação e do modo como ela ocorre, diferentemente da neurose, que investe na fantasia, quando a libido se retrai dos objetos, na psicose, a relação com o mundo é sacrificada ao preço de uma catástrofe interior. É desse acúmulo de libido retido que o delírio de grandeza ganha força, possibilitando com isso uma tentativa de cura (Freud, 1911/1976).

É pela presença da megalomania na psicose que o discurso freudiano apresenta a necessidade de ampliar e explicitar o narcisismo decorrente da retração da libido dos investimentos objetais e que, em 1914, é nomeado de narcisismo secundário. Citamos Freud:

A libido retirada do mundo externo foi dirigida ao Eu, de modo a surgir uma conduta que podemos chamar de narcisismo. No entanto, a megalomania mesma não é uma criação nova, e sim, como sabemos, a ampliação e o explicitamento de um estado que já havia existido antes. Isso nos leva a apreender o narcisismo que surge por retração dos investimentos objetais como secundário, edificado sobre um narcisismo primário que foi obscurecido por influências várias (Freud, 1914/1976, p. 91).

Um outro caminho trilhado por Freud para justificar o narcisismo é a hipocondria, forma de sofrimento psíquico em que a dor expressa o adoecimento imaginário de um órgão. Se, em seus primeiros escritos, Freud insere a hipocondria no quadro da neurose de angústia e atribui a essa afecção um fracasso psíquico em capturar o excesso de excitação (Cabral et al., 2013), nesse artigo, em que tematiza o narcisismo, a hipocondria é uma forma de padecimento resultante de uma incidência exagerada de libidinização. Através das observações sobre o endereçamento da libido ao eu, Freud apresenta um outro modo de abordar o sofrimento hipocondríaco, relacionando-o com uma economia narcísica, na qual a libido retirada dos objetos não é dirigida para o eu, mas sim, para um órgão do corpo (Freud, 1914/1976).

Para explicar esse modo de padecer psíquico, o recurso é o modelo do órgão genital excitado, visto que se apresenta dolorosamente sensível e é o centro de múltiplas sensações. Tal como o genital excitado, afirma Freud (1914/1976, p. 100), "é o órgão doente na hipocondria". A hipocondria advém de uma erotização excessiva de um órgão na constituição do narcisismo primário. Posteriormente, com a interrupção do investimento libidinal nos objetos, este retrai para o órgão, objeto de fixação, e através da dor expressa o acúmulo de investimento. Diferentemente da psicose em que a retirada da libido do outro se volta para o eu, na hipocondria recai sobre um órgão do corpo, evidenciando com isso uma falha do psíquico nos processos de simbolização. Na dor, o órgão toma a fala para si. Podemos inferir, através da hipocondria, que a relação entre ambos os registros, o somático e o psíquico, se é necessária, também pode ser falha e precária.

Cumpre-nos assinalar que se a psicose possibilita pensar o narcisismo e a constituição do eu, a hipocondria possibilita pensar o narcisismo e a constituição de um corpo próprio e responder outra questão: c omo sair da dispersão corporal das zonas erógenas para um registro do corpo como uma unidade?

 

O narcisismo estruturante do eu e de um corpo

O conceito de narcisismo introduzido por Freud na psicanálise difere da abordagem da medicina de Paul Näcke, Havelock Ellis e Krafft-Ebing, que haviam inserido o termo nos seus textos para abordar as psicopatologias sexuais no final do século XX. Das observações de fenômenos cotidianos do humano como o sono, a relação amorosa, a "onipotência do pensamento" e a crença na força mágica das palavras das crianças e dos povos primitivos Freud (1914/1976) estende o narcisismo à constituição de uma instância psíquica: o eu. Enquanto Näcke, Ellis e Krafft-Ebing tomam o termo numa dimensão negativa, patologizante, o das perversões sexuais, Freud (1914/1976) introduz o conceito na psicanálise positivando-o, na medida em que o concebe como estruturante do eu, responsável pela unificação do corpo e pela integração de ambos.

A teorização do narcisismo implicou a retomada da abordagem do eu na psicanálise. Se, em seu artigo "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1976), Freud concebe o eu como uma organização interna ao sistema ᴪ que trabalha retendo traços mnêmicos e construindo vias inconscientes, com a teorização do narcisismo a ênfase recai sobre a economia responsável pela constituição do eu e pela regulação de seu modo de funcionar. Podemos observar que, diferentemente do campo da filosofia oriunda da tradição cartesiana e do campo da psicologia moderna que formulam uma equivalência entre o eu e a consciência, a concepção do eu na psicanálise não é de uma unidade fechada resultante de estágios de desenvolvimento.

A passagem do autoerotismo para o narcisismo e deste para o amor de objeto não implica o desaparecimento dos modos de funcionamento anteriores. Pois, como concebe Freud (1915a/1976), trata-se da emergência em cada um desses momentos de um tipo de eu, o eu real originário, o eu do prazer-desprazer e o eu realidade e de um modo de funcionamento progressivo e regressivo. O que se evidencia é a reversibilidade da libido. Ou, em outras palavras, um modo de funcionamento libidinal como o de uma balança energética. Quanto mais libido do eu, menos libido do objeto e vice-versa. No sono, mais libido do eu, na vida amorosa, mais libido endereçada ao objeto amoroso.

Importante destacar que ao inaugurar um outro campo de pensabilidade sobre o eu, Freud (1914/1976) o faz articulando-o com a constituição do corpo. No caso Schreber, define o nascimento do narcisismo no momento em que a criança "começa a tomar a si próprio, seu próprio corpo, como objeto amoroso" (Freud, 1911/1976, p. 83). E a partir de seus estudos sobre a hipocondria estende a libidinização aos demais órgãos, e não apenas aos orifícios da superfície do organismo como apresentado nos ensaios sobre a sexualidade (Freud, 1905/1976).

Freud (1914/1976) denomina "erogeneidade" a atividade de um órgão qualquer enviar excitações sexuais para a psique, atuando como substitutas dos genitais e comportando-se de modo análogo a eles. Tal noção implica que qualquer órgão pode ser considerado uma zona erógena e que o autoerotismo não se reduz ao prazer e desprazer das manifestações da sexualidade na infância. Com a generalização da erogeneidade a todo organismo, a questão sobre a inscrição de uma gramática erótica nas regiões internas do organismo possibilita a representação e a experiência de densidade e volume corporal, ausente ou recusada em alguns sofrimentos psíquicos, como nos transtornos alimentares.

No autoerotismo não há eu e nem corpo narcísico, mas uma dispersão de zonas erógenas e um eu real originário. A saída da dispersão e a estruturação do eu e de um corpo dependem de uma nova ação psíquica, o narcisismo primário. Inferimos que é através dessa ação psíquica que uma relação de equivalência entre as zonas erógenas e entre cada uma delas e o todo é criada e uma unidade, ainda que precária, começa se estabelecer.

Seguindo a argumentação freudiana, tem-se que no início da vida psíquica, nesse tempo primordial de incorporação de objetos do mundo, não há ainda a separação sujeito e objeto e nem a diferença entre amar e odiar. Para sair dessa condição originária marcada pela indiferença e fechamento para o mundo, as necessidades e as fontes de mal-estar precisam não apenas dos cuidados de alimentação e higiene, mas fundamentalmente do investimento erótico da figura materna. Nesse início, insistimos na observação freudiana, há o autoerotismo e um eu real originário (Freud, 1915a/1976). Enquanto o primeiro é uma construção oriunda das interpretações realizadas pelo outro para atender a demanda do bebê, o eu real resulta das primeiras ligações das marcas psíquicas cuja finalidade é evitar o livre escoamento das excitações (Birman, 2009).

Para sair desse modo único de funcionamento, o autoerotismo, constituir outros eus, ter um corpo próprio e tornar-se um ser na relação com o outro, faz-se necessária uma nova ação psíquica (Freud, 1914/1976). E o que seria essa nova ação psíquica, se não o investimento narcísico dos pais no filho, condensado na fórmula freudiana "Sua majestade o bebê"? Freud não especifica o que seria essa nova ação psíquica, mas, ao trazer para a discussão a dificuldade em inferir um narcisismo primário, que não é dado diretamente à observação, e mostrar que ele emerge a partir do narcisismo dos pais que ressurge com o amor pelo filho e a idealização que fazem do mesmo, possibilita pensar essa aproximação. Supõe-se que a ação dos pais de alçar a criança ao lugar soberano com vistas a realizar todos os sonhos que não puderem realizar, seja de perfeição, seja de completude, seja de felicidade, constitui a ação psíquica.

A hipótese do narcisismo primário como condição para emergência do eu-do-prazer é inferida da idealização que os pais projetam em seus filhos. Trata-se de uma idealização que permanece inconsciente, o narcisismo dos pais que renasce e se volta para o filho elevando-o a uma condição de soberano. O reconhecimento desse narcisismo possível de ser deduzido a partir da forma como os pais olham, cuidam e investem no filho projetando para ele um futuro de realizações e de feitos, que não puderam concretizar para si.

Instituída no lugar de "Sua majestade o bebê" a criança atribui ao outro tudo que é mau e desprazeroso e a si tudo que é bom e prazeroso. A assunção a tal posição é condição necessária para sair do estado de indiferenciação e para que a separação entre eu e o outro possa ser realizada. O eu que surge dessa estruturação narcísica é o eu-do-prazer, que se sustenta no amor de si (Birman, 2009), e é fundamental para a integridade subjetiva, pois possibilita ao sujeito a ele recorrer cotidianamente no sono, na experiência do sonhar, no trabalho de luto e nos momentos de desespero.

A saída do amor de si para o outro, ou, de outro modo, a instituição de uma economia reversível, não se dá sem perturbações no narcisismo primário, perturbações essas que impelem a criança a se defender e a relançar o endereçamento da libido em outras direções, isto é, para outros objetos. Operação necessária e difícil, o recalque, pois exige do sujeito se haver com a ameaça de castração que Freud (1914/1976, p. 109) resume "na angústia relativa à perda do pênis no menino e na inveja do pênis na menina".

Assim, a viabilização do amor ao outro exige a perda dessa posição soberana, nunca realizada completamente, como pode se ver adiante, e o reconhecimento de que o outro e o mundo podem ser fontes de experiências de satisfação. Para o eu se estruturar é preciso afastar-se dessa posição da criança majestosa, ou seja, afastar-se do narcisismo primário, o que exige a imposição de um ideal de Eu constituído a partir das figuras parentais e seus representantes de modo que a libido possa se deslocar nessa direção. Relacionando repressão, libido e ideal de Eu, Freud (1914/1976) estabelece uma nova hipótese para a proveniência do recalque - não mais o eu, mas o amor de si - e que a condição para o recalque é a formação desse ideal . Importa observar que, para não se privar completamente do narcisismo, o sujeito, em formação, procura readquiri-lo nessa forma do ideal do Eu. Como escreve Freud, " O que ele projeta diante de si como seu é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal" (Freud, 1914/1976, p. 111).

Com a formação de ideais do eu, garante-se, por um lado, a saída de uma condição mortífera, a do narcisismo primário e, por outro lado, a possibilidade de tentar recuperá-lo através do narcisismo secundário. Com essa argumentação a conclusão do percurso edípico e com isso a escolha da neurose passa a ter como critério decisivo a paixão em retornar ao seu ideal de eu, o que evidencia, segundo Kehl (2011, p. 17), a assunção da importância dada à perda do narcisismo primário.

 

Narcisismo primário e pulsão de morte

A questão que se coloca no desenvolvimento deste artigo diz respeito à relação entre a fórmula "Sua majestade o bebê", que dá sustentação à argumentação freudiana do narcisismo primário, e a pulsão de morte. Se Freud não realiza essa articulação por considerar o aparelho psíquico ainda sob o domínio do princípio do prazer, e não ter ainda introduzido o segundo dualismo pulsional, considera-se com Leclaire (1977) e outros psicanalistas que não há narcisismo sem a pulsão de morte.

A distinção freudiana de duas regressões temporais, uma até o narcisismo primário e outra até a satisfação alucinatória do desejo, que ocorrem no sono e no sonhar respectivamente, possibilita pensar que no sono o que predomina são as forças silenciosas da pulsão de morte, e no sonho as forças da pulsão de vida. Para sustentar essa inferência recorremos à descrição, feita por Freud (1915b/1976), de que no estado do sono ocorre uma retração libidinal quase total do mundo externo, uma ausência total de estímulos. E a analogia do estado do sono com a volta a um estado inicial da vida, expressa na constatação de que a condição de repouso do sono é análoga a um desnudamento psíquico. Como escreve Freud, no sono há uma renúncia por parte do sujeito de suas aquisi ções psíquicas, " uma extraordinária aproximação [...] à situação que foi o ponto de partida de seu desenvolvimento vital" (Freud, 1915b/1976, p. 253 ).

Peres (2011) argumenta que através de dois temas, morte e desilusão, Freud reflete em "Luto e melancolia" (1917/1976) sobre o esvaziamento do eu e assinala que nessas reflexões o conceito de pulsão de morte apresentado anos mais tarde adquire força. Podemos extrair da diferença que Freud estabelece entre o luto e a melancolia o relevo conferido ao luto para pensar as diversas perdas do vivente humano e a consideração da melancolia como um adoecimento do narcisismo. Se o luto remete à experiência de perdas que ganharam algum sentido, a melancolia remete à dor de um vazio sem nenhum sentido.

O trabalho de luto revela que as experiências das primeiras perdas, como a do envoltório placentário, a do desmame e outras que seguem a essas, foram atravessadas por uma relação acolhedora que ofereceu, no jogo de presença-ausência, algum sentido para as dores advindas daí. A melancolia também remete a acontecimentos precoces e irreparáveis do início da vida, evidenciando que a dor do vazio na qual o vivente humano se viu lançado não foi apaziguada de algum modo. A melancolia revela a falta de um reconhecimento de si, a ausência do Outro fornecendo a base para a estruturação do eu. É por essa razão que na melancolia há uma identificação do eu com o objeto perdido, o que acarreta um ataque constante, um ódio vingativo presente na satisfação do melancólico em humilhar a si próprio.

As inúmeras batalhas travadas pelo melancólico entre o ódio e o amor ocorrem no sistema inconsciente, onde habitam apenas os traços mnêmicos de coisas, e remetem a experiências dolorosas de perda para as quais não se produziu sentido algum (Freud, 1917/1976). Daí, podemos inferir que a melancolia, como modelo privilegiado das neuroses narcísicas, evidencia não só um comprometimento no narcisismo primário, mas também a ausência de inscrição de um representante psíquico, característica essa específica da pulsão de morte. Acrescenta-se a essa observação que o ódio, a partir do segundo dualismo pulsional, tem sua proveniência na pulsão de morte (Freud, 1920/1976).

Recorremos a Kehl (2011), que, em sua argumentação, considera a identificação narcísica inconsciente com o objeto perdido insuficiente para compreender as autoacusações do melancólico, para insistirmos na afirmação de que a relação entre narcisismo e pulsão de morte pode ser inferida do artigo freudiano "Luto e melancolia" (1917/1976), embora ainda não explicitada e nem enunciada. E a sua observação de que a crueldade presente na melancolia "se deve também à desfusão entre Eros e Tânatos, que libera o gozo da pulsão de morte do limite imposto pelos investimentos parciais efetuados pelas pulsões de vida" (Kehl, 2011, p. 20).

Do mapeamento realizado no discurso freudiano, podemos inferir que os sofrimentos psíquicos advindos de uma perturbação na estruturação narcísica podem ser explicados por alguns fatores, um quantitativo, uma inflação da libido do eu ou uma deflação, um temporal, o momento da fixação no narcisismo primário, e a primazia na estruturação narcísica das forças da pulsão de morte sobre as forças da vida.

Em seu livro Narcisismo de vida. Narcisismo de morte (1988), Green articula a teoria freudiana do narcisismo com o último dualismo pulsional. Em sua argumentação sustenta que o narcisismo primário é habitado também por um silêncio e que a hipótese de um narcisismo de morte que tende à abolição de tensões até o nível zero faz-se necessária para pensar a complexidade do narcisismo como estrutura. A partir do que desenvolvemos até aqui e da hipótese de Green, podemos afirmar que, se o narcisismo é responsável pela constituição do eu e necessário à ordem vital, o narcisismo também pode ser nefasto, impedir a vida ou acarretar sofrimentos narcísicos se na constituição subjetiva houver uma fixação no narcisismo primário, seja por uma inflação libidinal ou por uma deflação libidinal, impedindo a instauração de uma economia narcísica reversível.

Para pensarmos a relação entre o narcisismo primário e a pulsão de morte e indagarmos sobre o narcisismo na contemporaneidade, o caminho percorrido foi o trabalho de Leclaire, em Mata-se uma criança (1977). A partir de uma formulação instigante sobre o bebê majestoso de Freud, Leclaire nos conduz a pensar as aventuras da experiência analítica que não segue, como já havia demonstrado Freud, a objetividade e os critérios da lógica científica.

Leclaire trata o bebê majestoso freudiano, advindo do narcisismo dos pais, como a criança maravilhosa. De modo surpreendente, o autor introduz o que ele chama do mais inquietante e original fantasma, condensado na fórmula "mata-se uma criança" (Leclaire, 1977, p. 10), e mostra que tal fantasia torna-se uma condição necessária para que a criança perca sua posição soberana e assim possa advir como sujeito.

Mas quem é esse bebê majestoso de que fala Freud e que Leclaire nomeia de criança maravilhosa?

Através da análise de vários casos clínicos, Leclaire apresenta a criança maravilhosa efeito do narcisismo primário que se faz presente na constituição psíquica. E demonstra que na clínica psicanalítica há sempre uma criança a matar e um luto a cumprir repetidamente, posto que na medida em que se começa a matá-la é que o sujeito falante pode emergir. Essa é uma das visadas do trabalho analítico na clínica das neuroses clássicas ou em que a construção narcísica foi feita.

A criança a matar é a criança onipotente, que exerce seu fascínio protegida e beneficiada pelos pais das restrições da existência humana: dor, mal-estar, desprazer. Sem acesso a uma fala que lhe é própria, a criança soberana precisa de um limite à sua onipotência, à idealização de completude e ao seu reinado de gozo.

Na problematização dessa formulação indeterminada, Leclaire é muito claro a respeito de quem é a criança maravilhosa, a criança identificada com o que só pode ser conhecido pelos efeitos do inconsciente e que remete aos signos de idealização de perfeição dos pais. O que se tem de matar é a representação do representante inconsciente da fantasia do pai ou da mãe, investido no inconsciente pelo sujeito como um representante privilegiado. Citando Leclaire:

Tal representante vai ser investido como um representante que nunca foi e nem será o seu, e que, no entanto, por sua absoluta estranheza, vai constituir o mais secreto e até o mais sagrado (pode se entender sem valor pejorativo, abjeto), daquilo que ele é. É a esse representante que chamo de representante narcísico primário (Leclaire, 1977, p. 18).

Tais representantes inconscientes, por serem objetos do recalque originário, não são acessíveis à consciência, apenas os seus derivados sob a forma do sintoma ou da fantasia. A perda da representação narcísica primária e a elaboração de seu luto implica a operação de castração. Sem a castração não há clivagem "que confere à criança maravilhosa seu estatuto de representante inconsciente, radicalmente 'recalcado' daquilo que se ordena como sistema consciente" (Leclaire, 1977, p. 30). É preciso perder o poder fascinante retirado das representações do falo presente nas formulações conscientes. É preciso perder a soberania infantil, isso significa perder os atributos condensados na ideia de completude e, simultaneamente, em algo da ordem do ser.

Quanto às figuras que podem ocupar o lugar do agente da ação, elas variam, são indefinidas. Pode ser o pai, a mãe ou o próprio sujeito. Mas o psicanalista não pode se furtar a esse lugar ou deixar de viabilizá-lo no exercício de sua clínica. De fato, pois para sustentar-se no lugar desejante é preciso continuar matando a criança maravilhosa, que se apresenta através dos representantes narcísicos primários, dado que ela sempre renasce das cinzas e, por isso mesmo, danificada em seu fascínio.

Conclui-se do exposto até aqui que se, por um lado, é preciso perpetrar a morte da criança maravilhosa, é essa morte irrealizável que proporciona o sono, possibilita ao sujeito suportar experiências de dor física e a ela recorrer em momentos de desespero.

 

Mutações na biopolítica

Considerando que não há clínica psicanalítica sem considerar a cultura, importa mapear as mutações ocorridas na passagem da modernidade para a contemporaneidade que contribuíram para o surgimento de uma cultura centrada no eu, na exigência de perfeição, na exibição performática e na transformação do cotidiano em espetáculo sem fim. Nas análises e reflexões de publicações recentes do campo das ciências humanas sobre as características da sociedade contemporânea, individualismo, espetáculo, consumo, efemeridade do tempo e fragilidade nas relações afetivas são consideradas características de uma cultura em que predomina um narcisismo nefasto ou patológico.

Observa-se, nessas manifestações do narcisismo, que ele encobre um vazio existencial, descrito como "uma vivência aterrorizante, um sentimento de que, em algum nível da consciência, o sujeito não é ninguém, onde sua identidade sofreu um colapso e que lá no fundo não existe ninguém" (Lasch, 1983, p. 47). Tal experiência leva os indivíduos a uma busca desenfreada de glória, fama e aplauso, evidenciando assim uma dependência extrema do outro. Tem-se aí um paradoxo, pois, ao mesmo tempo que vivem para si como se bastassem a si mesmos, os indivíduos narcisistas dependem constantemente do olhar do outro para validar sua autoestima. Seguindo a teorização freudiana (1914/1976), pode-se dizer que essa dependência aponta para um comprometimento na estruturação narcísica que leva o sujeito a tomar o outro como uma extensão de si e não como um ser diferente. Ou seja, não reconhece uma separação entre o si e o outro, que existe apenas como palco para sua exibição.

A hipótese presente nas publicações psicanalíticas recentes é de que as transformações nas formas de organização familiar na passagem da modernidade para a contemporaneidade afetou de modo considerável os modos de subjetivação e de padecer psíquico (Birman, 2007a). Antes é preciso registrar que o uso do termo padecer psíquico e não sofrimento psíquico tem a intenção de demarcar a ausência de conflito psíquico e a incidência de um comprometimento na estruturação narcísica articulado com as forças de destruição.

Acrescentam-se a essa hipótese a ideia de que a criança maravilhosa não ocupa um lugar a-temporal e a-histórico e a pretensão de analisar as condições biológicas e históricas da emergência da criança soberana e os seus destinos na contemporaneidade. Para realizar tal análise o recurso será a concepção foucaultiana de biopolítica dado que ela possibilita entender a posição da criança nas transformações das famílias na passagem da modernidade para a contemporaneidade.

Ao empreender uma análise genealógica da disseminação do poder, Foucault (2003) assinala que a política na modernidade deve ser pensada a partir da relação da história com a vida. É nessa direção que a noção de biopolítica é trabalhada por Foucault como forma de apreender como o Estado moderno tomou para si a gerência e controle sobre os fenômenos da vida, gerindo-os desde o nascimento até a morte. Em sua análise, a biopolítica foi a invenção de uma nova técnica de poder no século XVIII indispensável ao investimento sobre o corpo vivo e a utilização de suas forças e que responde por um fenômeno novo, "[...] a entrada da vida na história - isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder - no campo das técnicas políticas" (Foucault, 2003, p. 133).

Em questão na estruturação da biopolítica, nesse contexto histórico, era a articulação entre o exercício do poder e o saber sobre a vida e busca de uma nova discursividade em que a vida é o objeto do poder. Importante observar que o funcionamento da biopolítica teve como questão fundamental a sexualidade, concebida por Foucault (2003) como um dispositivo histórico que, através da pedagogia, da medicina e da economia exercia, a vigilância sobre o sexo das crianças, a fisiologia sexual das mulheres e a ordenação dos nascimentos.

Foucault designa biopolítica "o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do saber-poder um agente de transformação da vida humana" (Foucault, 2003, p. 134), e demonstra como a criança é um dos elementos privilegiados do biopoder que surge com a modernidade, e é dirigido ao homem espécie. Não é demais insistir que o que se busca com a biopolítica na modernidade é a promoção, o máximo possível, da qualidade de vida da população, tendo em vista ser esse o critério determinante de riqueza das nações.

Considerada como futuro da nação, capital simbólico por excelência, a criança ganha uma valorização na modernidade até então jamais vista, mas essa valoração não é devida ao progresso da ciência como se poderia pensar, mas a um dos critérios de avaliação da riqueza das nações, a qualidade de vida de sua população. E também não é apenas de ordem numérica, não está voltada para a quantidade de crianças, mas, sim, para o modo de gerir essa época da vida visando garantir que o adulto por vir possa ser contabilizado como fazendo parte da população qualificada, bem educada, normal e saudável (Foucault, 2011). Visando atingir esse objetivo, os dispositivos da biopolítica, através das instâncias como escola, família, pai e mãe, em que a figura da mulher mãe é eleita para a mediação, tomam a criança como um de seus alvos privilegiados.

Desse modo, o projeto biopolítico de prevenção e promoção da saúde e da educação da população incidiu na ordem familiar. A família extensa deu lugar ao surgimento da família moderna, nuclear, monogâmica, organizada no espaço privado, garantindo a preservação da intimidade dos pais e dos filhos. A distribuição de papéis foi bem delimitada para cada um de seus componentes, o do homem no espaço público e de trabalho garantidor do sustento dos demais componentes da família, o da mulher/mãe restrita ao espaço doméstico com seu capital libidinal direcionado para a responsabilidade de zelar pelo capital simbólico e futuro da nação, o filho. O homem teve o seu poder paterno relativizado na medida em que coube à mãe a gestão da educação e da saúde dos filhos, mas manteve-o na esfera da punição quando o filho ultrapassava os limites estabelecidos (Birman, 2007a).

Para garantir a saúde da população duas figuras foram consideradas fundamentais, a mulher e a criança. Com isso, a medicalização da família como estratégia biopolítica incidiu, em especial, sobre o corpo e a sexualidade das crianças e das mulheres. Segundo Foucault (2003), as estratégias que possibilitaram o desenvolvimento específico de saber e poder em torno do sexo - e que tiveram a família como instituição privilegiada para o exercício de ordenação dos indivíduos e do social - foram a histerização da mulher, a pedagogização do sexo da criança e a socialização das condutas de procriação.

Se Foucault sustenta em entrevista a sua hipótese de que a histeria feminina não resulta apenas da repressão, mas da mudança na biopolítica do séc. XIX, Freud, afastando-se da leitura de teoria nervosa da histeria realiza, como mostra Birman (2001), através da ênfase na repressão e na causalidade sexual, uma desconstrução do dispositivo biopolítico da hereditariedade-degenerescência. E, com "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1976), a desconstrução das aberrações sexuais, apresenta uma outra teoria da sexualidade, na qual admite uma sexualidade infantil perverso-polimorfa.

Encontramos desde os primeiros escritos freudianos sobre a histeria uma crítica à moral sexual de sua época e a imputação a esta a produção dessa modalidade de mal-estar. Mas é no artigo em que relaciona a moral sexual civilizada com as doenças nervosas que Freud (1908/1976) mostra as consequências das transformações biopolíticas nos modos de subjetivação e de sofrimento neurótico da modernidade. Não é demais insistir que, nessas mutações, coube à mulher o investimento libidinal sobre o filho, ao pai coube ser o agente da castração.

Freud (1908/1976) deduz que os adoecimentos neuróticos mostram o preço pago pelo sujeito às exigências de renúncia pulsional feita pela moral sexual civilizada da modernidade. Regulada pelo dispositivo da reprodução e da ordem familiar monogâmica, os imperativos da pulsão sexual em busca de satisfação precisavam ser sacrificados e as mulheres foram as que pagaram com seu corpo e seu capital libidinal o maior preço. Prova dessa asserção, de que na estratégia biopolítica da modernidade a mulher teve seu capital libidinal confiscado e redirecionado apenas para o exercício da função materna, é a incidência da histeria nas mulheres e de traços melancólicos profundos, como podemos constatar nas análises de Freud das mães de suas histéricas e da homossexualidade feminina.

É preciso enunciar aqui que a articulação a ser tecida entre narcisismo e biopolítica tem como referência central da psicanálise a perspectiva genealógica com que Birman (2007b) pensa o discurso freudiano, principalmente a partir da concepção de biopolítica de Foucault. E que a questão que se coloca para o desdobramento deste artigo é sobre o lugar e o investimento da criança frente à nova ordem familiar, não mais centrada na família monogâmica, heterossexual e com atribuições de funções não mais restritas a cada um dos componentes da família nos cuidados com os filhos.

As transformações, que vêm produzindo novas formas de organização familiar e de conjugalidade, a partir dos movimentos feministas, da inserção da mulher no mercado de trabalho, das tecnologias contraceptivas, dos movimentos gays, das novas formas de fabricação de crianças possibilitadas pelas novas tecnologias reprodutivas e toda uma série de legislação e produção científica sobre essas questões, são radicais e apontam para a exigência de o campo psicanalítico pensar os seus efeitos na cultura e nos modos de subjetivação.

Se, por um lado, com os novos arranjos familiares, as figuras parentais puderam sair da substancialização a que estavam aprisionadas e exercer as funções paterna e materna, sem um atrelamento fixo da figura à função, por outro lado constatou-se a falta de condições e referenciais para lidar com as situações advindas dessas novas configurações. É inegável a dependência crescente dos pais para criarem seus filhos do auxílio dos mais diversos especialistas e a busca de novos espaços para o filho que não se restringem mais ao espaço doméstico. A inserção de outras figuras não parentais, anônimas, que não participaram das expectativas singulares investidas em cada criança no seu universo familiar, que cuidam de várias crianças ao mesmo tempo - e não apenas de uma - e podem entrar ou sair da vida delas a qualquer momento, apontam para o vazio deixado pelas figuras parentais.

Soma-se a essa nova configuração um narcisismo esvaziado dos pais ou mesmo nefasto, sem articulação com o desejo em relação ao filho. Se, no modelo da família nuclear burguesa, o pai tinha um projeto de vida próprio, nas novas formas de arranjos familiares ambos os pais não só têm um projeto de vida próprio como, muitas das vezes, competem entre eles. A saída da mulher do espaço doméstico em busca de um projeto identitário, a entrada no campo do trabalho implicou num vazio e, consequentemente, em mudanças radicais que impactam as crianças e os jovens, pois, como argumenta Birman (2007a), os homens não voltaram para o espaço doméstico para compensar a ausência da figura materna.

O panorama atual revela a mudança do lugar do filho no projeto dos pais, que não é mais o de "Sua majestade o bebê", tal como descrito por Freud. Deixado para depois da realização profissional, da aquisição de tal ou qual bem, da realização de tal ou qual viagem, a criança é um projeto secundário, terciário que muitas vezes só se faz presente frente às limitações de ordem biológica como uma opção que não deve ser descartada na composição do projeto narcísico dos pais.

Observa-se, por um lado, uma ocupação programada da vida da criança com inúmeras atividades desde muito cedo - que incentivam a performance e a socialização compartilhada - acarreta a restrição do jogo infantil e a possibilidade de fantasiar, comprometendo desse modo a constituição subjetiva e constituição corporal. Por outro lado, observa-se a transformação da criança em objeto de manipulação do outro, seja pela via do abuso sexual, seja pela via da psiquiatrização e medicalização: a criança fica impedida de ascender à posição de sujeito desejante.

A medicalização do espaço social como recurso da estratégia biopolítica para regular os corpos individuais e coletivos cresceu exponencialmente e produziu novos fenômenos. Transformado em bem supremo e objeto privilegiado de investimento excessivo do indivíduo em termos de tempo e dinheiro, o corpo evidencia na contemporaneidade, através de várias práticas e padecimentos psíquicos citados anteriormente, a forma devastadora como foi atingido em função da mutação na economia narcísica das figuras parentais sobre os filhos.

Em termos de idade da vida, o crescimento exponencial do processo de medicalização vem incidindo sobre a infância de forma brutal e perturbando a constituição do eu e da unidade corporal. Como se pode observar, o processo de medicalização ganha conotações inimagináveis numa sociedade na qual os valores do mercado se estendem a praticamente todas as esferas da vida, em que a primazia é o objeto e não mais o sujeito, em que as pessoas são transformadas ora em mercadorias, ora em consumidores. Como consequência a criança tomada como objeto, além de ser desqualificada de seu lugar de sujeito desejante, não ocupa a posição de criança maravilhosa que assegura a constituição da autoestima (Birman, 2008). E, sem a construção narcísica, não há o que perder, pois o que se tem é o vazio, desértico e árido.

 

Considerações finais

As mutações da biopolítica mostram os efeitos na cultura e na clínica psicanalítica da estruturação narcísica dos padecimentos anoréxicos, bulímicos, nas automutilações e nas depressões. Como pode ser observado no desenvolvimento do artigo, o narcisismo contemporâneo não apresenta as mesmas características inventariadas por Freud, o que não quer dizer que elas não apareçam. De outro modo, n ão se trata de uma inflação libidinal, pelo contrário, mas de uma precariedade muito grande de investimento narcísico que possibilite a constituição da criança maravilhosa, especificamente de representações dos representantes narcísicos primários.

Pensar com Green (1988, p. 239) na metáfora da mãe morta, "uma mãe que permanece viva, mas que está, por assim dizer, morta psiquicamente aos olhos da pequena criança de quem cuida", implica em considerar uma relação mãe-bebê inicial de investimentos e cuidados em que fica evidente um investimento libidinal no filho, interrompido por algum acontecimento que leva a uma ruptura brutal do investimento materno . Dentre os acontecimentos assinalados, a perda de um filho, ou de algo que produz uma ferida narcísica na mãe e a leva a deprimir-se. Sem ter como produzir um sentido para o que se passa, e sem obter nenhuma reparação nas tentativas empreendidas, o bebê põe em cena uma série de defesas, dentre elas, a principal é o movimento de "desinvestimento do objeto materno e a identificação inconsciente com a mãe morta" (Green, 1988, p. 249).

É inegável a importância da leitura de Green da mãe morte para a clínica psicanalítica, mas consideramos que a mesma realiza um trabalho de reflexão clínica e teórica sobre o sofrimento narcísico resultante de uma ruptura, uma interrupção do investimento na criança. Ou seja, o filho é alçado ao lugar de "Sua majestade o bebê" ou de "criança maravilhosa" e, de forma catastrófica, é destronado desse lugar muito antes do tempo.

Nossa proposta aqui foi pensar não uma retirada no investimento libidinal, mas a saída de cena, em função das mutações na biopolítica no que diz respeito à ordem familiar, da fórmula "Sua majestade o bebê". De outro modo, a ausência do narcisismo dos pais num trabalho de narcisação positiva do infante.

Conclui-se que a falta de investimento libidinal necessário à constituição de um corpo pulsátil e do eu e com isso a possibilidade dos desdobramentos necessários para transitar entre o amor de si e o amor do outro e vice-versa produz modos de padecimento que se apresentam por um vazio subjetivo, a sensação de despossessão de si, a falta de ânimo para viver, como se queixam os deprimidos. Ou como gritam os que se automutilam, que precisam produzir dor em seu corpo para se sentirem existentes. Ou dos que padecem de bulimia e anorexia que evidenciam a preocupação excessiva com a imagem corporal, dado que para além de outras observações de outra natureza, é a única garantia que ainda possuem de sua existência, seu corpo magro ou esquelético.

Se o narcisismo presente nessas formas de padecimento evidencia que a construção narcísica da criança maravilhosa não foi realizada, que não houve um bebê soberano, que não há representação do representante inconsciente da fantasia do pai ou da mãe para perpetrar a morte irrealizável, fica claro que a tarefa na clínica psicanalítica não pode ser aquela proposta por Leclaire de não cessar de perpetrar a morte da criança do narcisismo primário e que é necessário pensar outros modos de manejos clínicos, o que exige um outro percurso de pesquisa para o qual esse aqui foi o ponto de partida.

 

 

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Artigo recebido em: 01/02/2015
Aprovado para publicação em: 29/06/2015

 

 

*Psicanalista, Profª Titular do Curso de Psicologia da UNESA/RJ. Pesquisadora Produtividade, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos.
**Psicóloga Clínica. Graduada em Psicologia e em Pedagogia com especialização em Psicopedagogia pela UNESA/RJ.

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