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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Uma reflexão sobre a reação terapêutica negativa

 

A reflection on negative therapeutic reaction

 

 

André Soares Pereira Avelar*

Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID - Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é tomar o fenômeno da reação terapêutica negativa como expressão privilegiada da hipótese que aqui intitulo como: vazio psíquico. A reação terapêutica negativa visa contemplar os efeitos da pulsão de destruição na subjetividade, constituindo-se como um desafio permanente à prática psicanalítica. Em seguida serão esboçadas algumas estratégias clínicas sintonizadas com essa particular modalidade de sofrimento psíquico.

Palavras-chave: trauma, resistência, mutualidade.


ABSTRACT

The purpose of this article is to take the phenomenon of the negative therapeutic reaction as a privileged expression of the hypothesis that herein I call: psychologicalemptiness. The negative therapeutic reaction aims to consider the effects of the destruction drive in subjective aspects, constituting a permanent challenge to the psychoanalytic practice. Subsequently, a few clinical strategies attuned to this particular type of psychological distress will be outlined.

Keywords: trauma, resistance, mutuality.


 

 

Introdução

Um dos desafios que atualmente tenho vivido em minhas incursões teóricas é tentar compartilhar uma fração daquilo que vivo no cotidiano de meu consultório, em meu ofício de psicanalista. Tal prática é diária e consome grande parte de meu tempo de trabalho. Minha vontade de escrever é motivada pelo desejo de dividir algumas dessas experiências - e as reflexões que tais experiências me suscitam.

O nascimento da psicanálise se deu a partir da escuta de algo que, embora estivesse materializado no corpo, estava para além dele; ou, pelo menos, para além de uma determinada leitura deste. Na atualidade, o que está no cerne dos questionamentos psicanalíticos é a possibilidade de uma escuta daquilo que transcende os limites da representação. O conceito de inconsciente, a partir de 1923 (Freud, 1923-1925/1974), ganhou uma perspectiva mais ampla, constituindo-se não apenas como sede do recalcado, mas do próprio Id. O desafio do analista, então, passa a ser poder captar os efeitos da pulsão no psiquismo: daquilo que transcende o campo das representações mas que se apresenta no campo transferencial.

A ação pulsional abre espaço para a possibilidade de criação - voltaremos a esse tema mais adiante - uma vez que a mesma pode ser definida como uma permanente exigência de trabalho imposta ao psiquismo. Contudo, seu viés destrutivo não pode ser descartado; nele iremos nos debruçar na primeira parte de nosso trabalho. Optei em destacar a expressão freudiana: "pulsão de destruição", caracterizando-a como uma especificidade da "pulsão de morte"; acredito que Freud nos permite essa leitura. A pulsão de destruição define-se por sua tendência à indiferenciação. Relaciono a força dessa tendência com experiências arcaicas de desamparo, nas quais se pode supor a desvinculação com objetos primordiais. Tais experiências, obviamente, podem ser apenas inferidas; contudo, seus efeitos serão obviamente sentidos na clínica. Pouco importa aqui a realidade factual dessas experiências, o que está em jogo é a necessidade de construção de uma história que dê contorno ao vazio, cuja expressão é o sofrimento sem palavras.

Cabe então colocar em cena o fenômeno da reação terapêutica negativa: expressão clínica da tirania superegoica, por sua vez agente das pulsões de destruição. O superego, ao invés de ser tomado unicamente como agente da interdição (cujo caráter é nitidamente libertador), porta também um caráter sádico e impessoal, cuja marca é a mesma lógica da irracionalidade, presente no Id.

Minha hipótese é que a reação terapêutica negativa pode ser compreendida a partir de uma perspectiva mais ampla, extrapolando um determinado funcionamento psíquico. Esta pode ser compreendida tanto como uma modalidade de relação a se apresentar continuamente na relação transferencial - expressão privilegiada da desfusão pulsional - e não apenas como expressão de um determinado funcionamento psíquico. Entendo a reação terapêutica negativa como expressão do que denomino como vazio, modalidade discursiva que decorre da desfusão pulsional, mas que transcende uma cartografia estrutural da vida psíquica. Em outras palavras: o vazio - cuja expressão é a reação terapêutica negativa - independe de sua saída edípica. O vazio, dessa forma, transcende a estrutura, mas remete-se às ações das pulsões no processo de constituição subjetiva.

Minha hipótese a respeito deste fenômeno clínico (descrito por Freud como a mais obscura e poderosa forma de resistência (Freud, 1925-1926/1974)), remete-se às experiências arcaicas nas quais o objeto fundante - primeiro objeto na fundação subjetiva - encontra-se radicalmente ausente ou demasiadamente presente na constituição subjetiva. Trata-se de um cenário originário no qual a possibilidade de coexistência, em seu sentido mais fundamental, encontra-se comprometida.

A ausência ou a presença maciça do objeto fundante no processo de subjetivação produzirá no indivíduo um radical sentimento de ameaça; isso significa então que o analista será percebido como alguém de que ele precisará se defender. Daí a importância da noção de "reação", como uma categoria distinta da noção de resistência, como bem assinala Laplanche (Pontalis, 1988, p. 55). Mesmo em gradações e periodicidades distintas, a reação terapêutica negativa é expressão de uma ameaça da ordem do excesso, seja excesso de presença ou excesso de ausência. Nessas modalidades de experiência de transferência o analisando pode vir a querer "engolir" as palavras do analista - sem, obviamente, digeri-las. Em tais casos, há uma demanda maciça pela resolução imediata dos problemas trazidos - todos com a marca da objetividade - demanda difícil de esquivar. Em outros, o que ocorre é uma reação ao analista, a todas as suas intervenções, posto que tudo que provém dele é ameaçador, posto que sua própria função é ameaçadora. Veremos, mais à frente, essa ambivalência de tais analisandos em sua procura pela análise.

Se não houver uma justa medida - sempre imperfeita na realidade da vida - entre o sujeito e seu objeto fundante, o primeiro será acossado pela desfusão pulsional e, consequentemente pelas pulsões de destruição. Estas são o índice da violência superegoica e de sua impessoalidade. Dito de outra forma: quanto menos houver condições para o reconhecimento subjetivo na origem, mais intensa será a violência superegoica; menos o superego atuará a serviço da realidade, e mais a serviço da lógica do Id, cujo princípio é a irracionalidade e desinteresse pelas condições do ego. A gênese freudiana da reação terapêutica negativa expressa essa ideia: o desamparo do sujeito melancólico gera um superego tirânico que, por sua vez produz um radical sentimento de incapacidade. Podemos, então, disso inferir que a ausência do objeto produz um incremento do aspecto mortífero de Tânatos. Nesse sentido, podemos entender que as pulsões de destruição apontam, em última instância, para a ausência das pulsões de vida e o incremento de uma pulsão mortífera no seio da vida psíquica; e a ação superegoica será a agente dessa destrutividade. Veremos agora, a partir do pensamento ferencziano, duas hipóteses nas quais o reconhecimento subjetivo não se opera, seja em função do excesso de ausência ou da presença do objeto.

Conforme dissera Ferenczi (1929/1992) em sua reflexão sobre a pulsão de morte, a velhice é o ápice da vida, enquanto a infância é seu polo oposto. Assim, se não houver um convite atraente para estar no mundo o sujeito pode vir a morrer de "causas naturais", ou desenvolver um pessimismo crônico em relação à vida. Interesso-me sobremaneira pelo termo "pessimismo" utilizado por Ferenczi, pois esquiva-se de uma categoria diagnóstica específica, valendo-se de um termo corriqueiro da subjetividade humana. Penso ser interessante essa proposta, pois nos permite pensar em determinadas situações clínicas de modo mais fluido, sem que sejamos obrigados a nos restringir a um determinado funcionamento psíquico. Além disso, Ferenczi alude a uma série de expressões somáticas deste "pessimismo". Estas podem ser consideradas como evidências clínicas da desfusão pulsional, instauradas a partir de experiências arcaicas de desamparo.

Em sua reflexão sobre o papel da família na vida infantil Ferenczi, 1928a/1992), o autor assinala que, contrariamente ao que se costuma conceber, não é a criança que deve se adaptar à família, mas a família que deve se adaptar à criança. Ferenczi, a partir desse ensaio, produz uma concepção divergente à de Freud, ao formular que o trauma do nascimento não seria tomado como um marco do sofrimento subjetivo, uma vez que, em tal experiência, a família está absolutamente voltada para as necessidades da criança. Assinala, porém, que a adaptação à cultura seria mais traumática, posto que as exigências de adaptação seriam impostas de forma mais imperativa, desprezando as condições do sujeito de atender tais demandas. Nesse sentido o autor refere-se a exigências como o asseio, a alimentação, o comportamento frente aos adultos como exemplos de situações mais dolorosas do que a experiência de nascimento. Trata-se de uma hipótese pela qaul o excesso de presença pode ser uma via de incrementos das pulsões de morte no psiquismo.

Cabe, contudo, reiterar: minha concepção da reação terapêutica negativa é, sobretudo, que ela seja uma problemática do campo de Eros. Entendo Eros como agente da vida psíquica. Este será o responsável pelo détour (Freud, 1920/1974), interferindo nas ações das pulsões de morte - sempre soberanas - no percurso inexorável até a morte. Nesse sentido, concordo com a proposição de Figueiredo: só haveria, em última instância, "pulsionalidades", desconectadas ou não, de seus objetos primordiais.

[...] adotando uma perspectiva teórico-clínica ferencziana - que a chamada "pulsão de morte" nada mais é que a pulsionalidade, ela mesma, quando não teve a felicidade (milagrosa) de encontrar seus objetos na hora e do modo necessários para que se interrompa o circuito da mera repetição e se possam organizar outros circuitos [...] (Figueiredo, 2000, p. 177).

O foco então de nosso trabalho aponta para um trabalho de Eros, no qual a prática clínica vai ser pensada como um esforço rumo à criação de novas modalidades de vinculação, principalmente nas situações nas quais as más relações com objetos primordiais demonstram a dificuldade do analisando para com o vínculo com os novos objetos; o analista é, sem dúvida, um deles e sentirá na pele essas dificuldades.

Convém adiantar a seguinte hipótese: entendo que a relação analítica será, ao mesmo tempo, espaço da expressão de séries psíquicas, previamente constituídas, e também espaço de inauguração; de constituição do novo.

Pensar, porém, em um trabalho de Eros implica cotejá-la com uma perspectiva clássica da psicanálise, na qual estamos acostumados a enxergar a prática clínica como um processo no qual as ideias de desconstrução e de implicação apresentam-se como cânones fundamentais. Sem de modo algum negá-las, percebo a pouca ênfase dada a uma série de tarefas prévias, essenciais ao trabalho clínico. Entendo ser necessário radicalizar o conceito de "construção". Voltaremos a esse ponto ao final de nosso trabalho. Vamos agora empreender um percurso rumo à revisão freudiana do conceito de superego e, consequentemente, à hipótese da reação terapêutica negativa.

 

A modificação do conceito de superego

Penso que as hipóteses oriundas do texto freudiano: "O ego e o Id" (Freud, 1923-1925/1974) ainda não foram suficientemente abordadas, mesmo tanto tempo após sua publicação. Entendo que a importância dessas formulações - e a revolução que as mesmas comportam - precisam ter mais espaço na transmissão do saber psicanalítico. Nesse texto Freud faz a seguinte afirmação, em meu entender, uma espécie de prólogo dos desafios que suas novas descobertas acarretariam:

Do ponto de vista da prática analítica, a consequência desta descoberta é que iremos parar em infindáveis obscuridades e dificuldades se nos ativermos a nossas formas habituais de expressão e tentarmos, por exemplo, derivar as neuroses de um conflito entre o consciente e o inconsciente (Freud, 1923-1925/1974, p. 30).

E, no que se refere à instância superegoica, vemos a mesma questão. É frequente vermos, no ensino da psicanálise, uma ênfase à lógica superegoica oriunda da primeira tópica, na qual o superego é a instância interditora do objeto edípico, da aspiração incestuosa - agente da lei. Essa função - vital para o bom desenvolvimento psíquico - de modo algum perderá seu lugar a partir das novas configurações com novas perspectivas. Estas são de naturezas distintas, absolutamente problemáticas, mas de grande relevância para a prática clínica.

Essa nova faceta do superego surge a partir da nova concepção de inconsciente inaugurada por Freud, pela qual ele deixa de ser restrito ao recalcado (o campo das representações) para ganhar uma perspectiva mais ampla, a partir da conceituação do Id. Freud toma de empréstimo esse termo de Groddeck, mas acrescenta novas significações, incluindo a dimensão intensiva no mapa do psiquismo. Assim, o inconsciente deixa de estar atrelado unicamente ao recalcado. Há um vasto terreno, marcado pela ausência de representações, cujas forças vêm a influenciar todo o aparelho psíquico, subvertendo as fronteiras tão bem definidas da primeira tópica. Mais do que isso, o que Freud vem a formular é a influência de forças primitivas nas instâncias mais elevadas da consciência. O ego, até então território da consciência, passa a ser influenciado por forças antagônicas, marcadas pela absoluta irracionalidade. No tocante à nova faceta do superego formulada por Freud, veremos como essa irracionalidade é presente em uma série de ações dessa instância, embora com uma "roupagem" de racionalidade.

Como dissemos, a instância superegoica possui uma faceta construtiva (a favor do laço social, uma vez que é uma barreira às aspirações incestuosas) e uma faceta destrutiva (marcada pela destrutividade, pela desfusão pulsional). É preciso que o analista compreenda a dimensão agressiva que habita toda atividade superegoica, frequentemente ancorada na busca de um ideal.

O ego será o alvo principal do seu aspecto mortífero - cuja expressão é o sentimento de culpa. Porém esse sentimento - inconsciente - não é sentido dessa forma, mas sim como uma inibição que, na prática clínica, comparece como uma resistência feroz ao trabalho analítico. Freud, a esse respeito, comenta:

Toda solução parcial, que deveria resultar, e noutras pessoas resulta, numa melhoria ou suspensão temporária de sintomas, produz nelas, por algum tempo, uma exacerbação de suas moléstias; ficam piores durante o tratamento, ao invés de ficarem melhores. Exibem o que é conhecido como "reação terapêutica negativa" (Freud, 1923-1925/1974, p. 65).

Freud, portanto, denomina como reação terapêutica negativa o fenômeno clínico de recusa à recuperação. Porém não se vale de explicações anteriores - como o apego, o ganho secundário com o sintoma - para compreendê-lo. Ao contrário, assinala que se trata de um fenômeno de outra natureza, a saber, a ação do supereu - do sentimento de culpa - na vida psíquica. O problema, diz ele, é que este sentimento não consegue ser compreendido enquanto tal. Sobre esse ponto, assinala:

[...] enquanto o paciente está envolvido, esse sentimento de culpa silencia; não lhe diz que ele é culpado; ele não se sente culpado, mas doente. Esse sentimento de culpa expressa-se apenas como uma resistência à cura que é extremamente difícil de superar (Freud, 1923-1925/1974, p. 66).

A dificuldade dessa condição é a seguinte: Freud assinala que tais sentimentos, diferentes dos componentes ideativos, não passam pelo registro da representação. Não chegam a ser pré-conscientes, como ocorre com as ideias; ao contrário, vão direto até à consciência. Assim, podemos deduzir que o sofrimento decorrente do sentimento de culpa não é problemático por ser inconsciente, mas por ser desprovido do campo das representações: sobre esse ponto, assinala: "a diferença é que, enquanto com as ideias Ics. devem ser criados vínculos de ligação antes que elas possam ser trazidas para o Cs., com os sentimentos, que são transmitidos diretamente, isso não ocorre" (Freud, 1923-1925/1974, p. 36).

E, logo em seguida, complementa: "Mesmo quando estão ligados a representações verbais, tornam-se conscientes, não devido a essa circunstância, mas sim, diretamente" (Freud, 1923-1925/1974, p. 36).

Ou seja: podemos entender o sentimento inconsciente de culpa como uma necessidade de punição que não é referida a um desejo inconsciente - recalcado -, mas sim a um sentimento inconsciente, que, por sua vez, é expressão não do recalcado, mas do Id. Dessa forma a exigência irracional de satisfação é acompanhada de uma exigência irracional de renúncia - ou de desempenho, com a mesma marca do Id. A violência do superego decorre da ausência de um mediador para suas pulsões, cuja consequência é a reação terapêutica negativa.

Cabe, porém, fazer uma ressalva no que se refere ao sentimento inconsciente de culpa. Freud, um ano mais tarde - em suas considerações sobre o tema do Masoquismo (Freud, (1924/1974) - faz uma revisão a respeito daquele. Alega que não é "psicologicamente correto" (Freud, 1924/1974, p. 208) falar em um sentimento inconsciente de culpa. Acredita, todavia, ser possível tomá-la como uma necessidade de punição, exercida pelo superego em relação ao ego. E, sobretudo, entende que a busca pelo sentimento inconsciente de culpa pode ser sustentada clinicamente: "Não podemos, porém, impedir-nos de julgar e localizar esse sentimento inconsciente de culpa, do mesmo modo como fazemos com o tipo inconsciente" (Freud, 1924/1974, p. 208).

Embora seja difícil para Freud sustentar metapsicologicamente a hipótese de um sentimento inconsciente de culpa, o autor enfatiza a importância de sustentá-lo na prática clínica como uma forma de agressividade marcada pela irracionalidade. Podemos fazer, então, a seguinte inferência: a hipótese de um sentimento inconsciente de culpa foi o modo encontrado pelo autor para captar a agressividade no espaço psicanalítico em seu sentido mais radical, cuja expressão clínica privilegiada é a reação terapêutica negativa.

Discorremos, portanto, sobre uma agressividade que precisa ser escoada, e, já que não pode seguir para o mundo externo, terá seu curso revertido para o próprio eu, sob a forma de um supereu sádico, que busca tiranizar o eu. O supereu irá condenar o eu, independente do que ele realmente tenha feito; basta que o eu tenha desejado fazê-lo. A respeito dessa indiferença entre o "agir" e o "desejar", podemos fazer algumas conjecturas. Primeiramente, recordemos que o supereu está diretamente ligado ao Id, e não ao mundo externo; portanto, o superego punirá o ego pela sua relação com o Id.

Assim, o superego se comporta em relação ao ego como uma autoridade não julgadora, mas tirânica: seus desejos - e não apenas seus atos - serão vistos pelo superego como fatores dignos de reprovação. Entra em jogo a temática da destrutividade, pois o sentimento de culpa é consequência da destrutividade que não pode escoar para o mundo externo. Freud retomará essa questão em seu texto sobre o mal-estar (Freud, 1930 [1929]/1974).

Isso quer dizer que a ação superegoica é muito mais violenta para com o eu do que a própria autoridade parental. O supereu é mais do que a autoridade parental (ou cultural); representa, sobretudo, a raiva infantil sentida em relação a essa mesma autoridade, raiva que, uma vez não tendo a possibilidade de ser canalizada para o mundo externo, volta-se para o eu a partir do supereu. Assim, podemos dizer que a crueldade do supereu é a raiva infantil frente à autoridade parental.

Retomemos, porém, o conceito de reação terapêutica negativa, expressão privilegiada da pulsão de morte, especialmente no que se refere à sua vertente destrutiva.

Pontalis (1988), a respeito da mesma faz algumas considerações importantes. Afirma que, frequentemente, o campo transferencial pode se transformar no campo do embate, seja este ruidoso ou silencioso. Sobre esse ponto, comenta:

[...] sua função de intérprete, de suporte da transferência, vai se apagando, ou, inversamente, que o analisando está, à parte as palavras que consegue dizer, inteiramente ocupado em exercer uma força ativa sobre - geralmente contra - o analista [...] (Pontalis, 1988, p. 61).

A questão que está em jogo é exatamente uma nova cartografia do campo analítico, pela qual o analista é, por sua função, uma ameaça, uma vez que o analisando demonstra ter uma relação de profunda ambivalência em relação ao seu objeto fundante. Em sua origem, o outro materno (aquele que exerceu essa função) o fez de maneira absolutamente problemática; fato que pode ser apenas deduzido a partir da forma persecutória pela qual o analisando enxerga o analista e o próprio convite transferencial. Sobre esse ponto acrescenta o autor: "Mas que elaborar quando toda a relação analítica já não passa de uma relação de forças? Quando os 'grandes batalhões' entram em cena, exit a liberdade de pensar. A gente enfrenta como pode" (Pontalis, 1988, p. 62).

Lembremo-nos que a reação terapêutica negativa foi tomada como paradigma da melancolia (Freud, 1930 [1929]/1974): na origem de processo de subjetivação, o objeto fundante se fez ausente ou presente demais. Dessa forma, para existir, o analisando, comumente, recorrerá à ação, absolutamente necessária, seja para evitar ser engolido pelo outro, seja para sobreviver à sua radical ausência. Tomamos aqui a mesma como um modo de sobrevivência. Sobre essa hipótese assinala Pontalis:

A reação terapêutica negativa surge então como resistência, mas, desta vez, no sentido vital e quase heroico do termo, diante daquele que afirma querer apenas o nosso bem, quando tudo que pedimos é para respirar o ar puro (Pontalis, 1988, p. 73).

E, sobre a demanda exaustiva que tais casos nos exigem, cabe lembrar a hipótese de Figueiredo, para a qual é preciso que o analista busque uma posição de reserva, de modo a ter a sua condição de escuta preservada. Sobre esse ponto, assinala:

A posição é a da reserva, manter sua atenção reservada, (desatenta) para o irrelevante, manter seu ouvido reservado (o terceiro ouvido) para o inaudível, seu olhar reservado (o segundo olhar) para as variáveis de background, manter sua fala reservada para interpretações surpreendentes (uma fala acontecimental) (Figueiredo, 2000, p. 38).

Ou seja, reserva e neutralidade não se confundem. A reserva assinala exatamente para o modo possível de estar com o analisando, sendo assim o paradigma de uma ética clínica. Voltaremos a essa parte ao final deste trabalho.

Um outro autor de grande importância nesse sentido é Bion. A partir da conceituação kleiniana de identificação projetiva, irá formular importantes reflexões a esse respeito. Assinala que o bebê, em seu processo primitivo de constituição, terá que projetar sua angústia (indizível, em decorrência de sua precariedade psíquica) na mãe, para que esta possa assimilar essa angústia, suavizá-la e, sobretudo, devolvê-la para o bebê a partir de um processo de significação. Dessa forma este poderia construir seu psiquismo a partir de um gradativo processo de identificação. O êxito desse processo pressupõe a existência de um objeto que possa ser continente dessas projeções. O problema é quando o outro não é capaz de assumir tal função. O autor faz alusão à irrupção de um sentimento de angústia paralisante, capaz de impedir o exercício dessa atividade. Segundo as palavras do autor este paciente: "tivera que lidar com uma mãe que não conseguia tolerar experimentar tais sensações e reagia ora barrando-lhe o ingresso, ora tornando-se presa de uma ansiedade que decorria da introjeção das sensações do bebê" (Bion, 1988, p. 96).

A consequência disso é que o sujeito irá desenvolver uma relação de profunda ambivalência com o analista, uma vez que precisa confiar nele mas nutre um sentimento de desconfiança em relação ao mesmo em função de suas tumultuadas relações com seu objeto materno. A consequência disso é a presença dos "ataques ao elo de ligação", cuja expressão é a agressividade dirigida ao analista. A esse respeito acrescenta: "Os ataques ao elo de ligação, portanto, são sinônimos dos ataques à paz de espírito do analista e, originariamente, da mãe" (Bion, 1988, p. 96).

E, nesse sentido, entra em cena uma estratégia clínica, de grande importância para nosso trabalho, a saber, o conceito de rêverie, que é, exatamente, a capacidade do analista de exercer a percepção que foi ausente no processo de subjetivação do paciente. A rêverie é um operador clínico cujo objetivo é sustentar uma abertura aos acontecimentos que transcendem os limites do psiquismo.

Há uma consciência rudimentar no bebê - descrita por Bion com a matriz da função alfa (Bion, 1988, p. 105). Trata-se da gênese do pensamento, base do desenvolvimento psíquico. Ocorre que esse processo depende da rêverie do outro materno, ou seja, na capacidade do outro fundante de poder emprestar sua sensibilidade; esta precisa estar a serviço das necessidades do bebê. Tomo-a como um modo de porosidade frente à angústia indizível do bebê.

O prejuízo da função alfa e suas consequências - os ataques ao elo de ligação - refletem entraves clínicos cuja relação com a reação terapêutica negativa acredito ser bastante possível. Dessa forma a rêverie é um modo de porosidade - uma escuta "distraída" - que está atenta àquilo que não pode ser integrado mas que, nem por isso, deixa de comparecer no campo transferencial. É necessário que o analista possa suportar a ambivalência de seu analisando (pela qual confiança e agressividade alternam-se de modo bastante agudo) e, pela rêverie, possa integrar os elementos responsáveis pelo sentimento de ameaça que permeia o sofrimento psíquico de seu paciente.

Sobre esse ponto, Ogden (2013) faz importantes observações, uma vez que toma a rêverie como uma forma particular de escuta, uma vez que vai na contramão de determinados cânones da prática psicanalítica clássica. Nesse sentido a rêverie reflete uma modalidade de escuta paradoxal, uma vez que representa uma intervenção absolutamente surpreendente e inesperada, posto que alude a um acontecimento cujo sentido só pode ser compreendido a posteriori. Sobre esse ponto, assinala:

A rêverie é uma bússola emocional com a qual eu conto intensamente (mas que não posso claramente interpretar) para me orientar na situação analítica. Paradoxalmente, enquanto ela é crucial para minha habilidade de ser analista é, ao mesmo tempo, a dimensão da experiência analítica menos merecedora de escrutínio analítico (Ogden, 2013, p. 149).

O autor chama a atenção para o aspecto paradoxal da rêverie, uma vez que a mesma comparece na cena analítica de modo antagônico a uma determinada cartilha do fazer psicanalítico. Em outras palavras: o analista sente-a como um desvio de sua prática. Sobre esse ponto, complementa:

O tumulto emocional associado à rêverie é usualmente vivenciado como se originalmente, se não inteiramente, refletisse o modo pelo qual não se está sendo analista naquele momento. Essa dimensão da experiência do analista é frequentemente sentida como manifestação de seu fracasso em ser receptivo, compreensivo, observador, atento, aplicado, inteligente, compassivo e assim por diante (Ogden, 2013, p. 150).

Mais do que uma estratégia, penso que a rêverie é uma ética, um lugar a ser ocupado, a partir da busca por uma porosidade no exercício da função analítica. A mesma, sempre compreendida no a posteriori, exige do analista uma profunda avaliação dos acontecimentos da experiência transferencial. Estes costumam levar o analista à realização de uma série de atos, a princípio estranhos à prática psicanalítica. A rêverie é expressão de um atravessamento, de abertura ao que não tem "inscrição" na realidade psíquica e que, de outro modo, mantém-se excluído da cena analítica.

Pode-se perceber a inspiração ferencziana na noção de rêverie, mais especificamente no que diz respeito à sua hipótese denominada como sentir com (Ferenczi, 1928b/1992, p. 30). O autor defende a ideia de uma metapsicologia do analista em sessão, pela qual o sentir, longe de qualquer caráter místico, é um sentir a serviço da consciência. Tal ideia poderia se traduzir da seguinte forma: "O que sinto enquanto escuto meu analisando?". Sobre esse ponto, salienta: "É evidente que num analista bem analisado, os processos de 'sentir com' e de avaliação, exigidos por mim, não se desenrolarão no inconsciente, mas no nível pré-consciente" (Ferenczi, 1928b/1992, p. 42).

Isso é importante, pois o conceito ferencziano de sentir com não pode ser álibi para uma sucessão de atuações, para o livre curso dos humores do analista. A ética psicanalítica exige uma grande atenção para os acontecimentos da esfera transferencial, de modo que estes possam sair da esfera da ação para a esfera da representação. Ferenczi alude à possibilidade de uma percepção de atravessamentos transferenciais no momento mesmo em que eles se apresentam. Trata-se, sem dúvida, de uma ampliação dos limites clínicos da sensibilidade do analista ou, por que não dizer, uma ampliação da rêverie do analista.

No tocante à questão superegoica, Ferenczi, a partir de sua noção de "hipocrisia profissional", faz menção aos perigos da relação transferencial, posto que a suposição de saber e a assimetria da relação analítica podem fazer com que a violência superegoica possa encontrar nessa relação um campo fértil para a instauração de seus aspectos destrutivos. Não é à toa que vai ser um crítico da "neutralidade" e frieza do analista, uma vez que isso pode fomentar o assujeitamento do analisando. Sobre esse ponto, comenta: "Nada de mais nocivo em análise do que uma atitude de professor ou médico autoritário. Todas as nossas interpretações devem ter mais o caráter de uma proposição do que uma asserção indiscutível" (Ferenczi, 1928b/1992, p. 36).

Ferenczi utiliza um vocábulo bastante coloquial - o termo: "modéstia" - para problematizar o papel do analista. Afirma que a modéstia refere-se aos limites do saber do analista e, por que não dizer, de seu próprio poder. Lembremo-nos do perigo do poder do outro na violência superegoica, seja pela sua ausência, pela sua presença maciça. Não são poucas as reflexões do autor a esse respeito, principalmente ao final de sua obra, no qual sua exclusão da comunidade psicanalítica estava em franco processo (Bonomi, 2001).

Uma das passagens mais importantes a respeito encontra-se em sua hipótese a respeito da confusão de línguas (Ferenczi, 1932/1992). A criança, frente ao desmentido do adulto, passa a se responsabilizar pelo evento traumático. A consequência disso é a perda de sua convicção a respeito de sua percepção da realidade.

Entendo que a experiência traumática deva, em certa medida, comparecer na experiência analítica com o objetivo de ser ressignificada. Essa prática pressupõe, contudo, que o analista possa estar em um lugar distinto daquele que, na fantasia de analisando, ocupa o lugar de agressor. Dessa forma o analista deve estar atento para não assumir uma função superegoica. Não faltarão oportunidades para tal. Sem perceber o analista pode encarnar o modelo superegoico e ser um agente do desmentido traumático. Sobre esse ponto comenta o autor: "uma verdadeira análise de caráter deve pôr de lado, pelo menos passageiramente, toda espécie de superego, inclusive o do analista" (Ferenczi, 1932/1992, p. 40).

Conforme vimos anteriormente, é nítida a valorização do autor às reformulações freudianas relativas à temática superegoica. A ação tirânica do superego - expressa pelo sentimento inconsciente de culpa - está no centro de seus questionamentos clínicos: "o meu combate só se volta contra a parte do superego que se tornou inconsciente e, desse modo, ininfluenciável" (Ferenczi, 1928b/1992, p. 42).

Dessa forma o trabalho analítico, tem como pressuposto ético na clínica ferencziana, a queda do analista de seu pedestal, como tão bem salienta Birman (1996), em uma de suas reflexões a respeito do autor. Ao longo de toda sua obra é possível detectar a ênfase à complexidade da transferência, enquanto território, por excelência, da mutualidade.É o modo encontrado pelo autor para conceber uma ética clínica atenta aos riscos da ação analítica.

Mais do que se opor a uma prática psicanalítica clássica, tal ideia se opõe a uma perspectiva ortodoxa da psicanálise. Coelho Junior (2000) lembra-nos que há uma diferença entre a corrente clássica da psicanálise (exercida por Freud) e uma corrente ortodoxa, relativa ao fervor de alguns de seus seguidores que defendiam a continuidade fidedigna do pensamento freudiano, sem admitir mudanças em sua prática.

Meu propósito é sustentar essa dupla oposição: entendo que o pensamento ferencziano, embora contemporâneo a Freud, propõe hipóteses que potencializam a atualidade das ideias mais inovadoras do pai da psicanálise. Ao mesmo tempo, Ferenczi apresenta questionamentos ao pensamento freudiano - até hoje pouco compreendidos. Estes são comumente entendidos como uma afronta às correntes ortodoxas da psicanálise, que enxergam todo desvio de uma prática estritamente freudiana como uma atividade não psicanalítica. Zygouris (2011), a esse respeito, defende uma prática psicanalítica "impura", na qual a flexibilização do fazer analítico é fundamental.

 

Algumas considerações

A reação terapêutica é consequência de uma série de experiências - sempre deduzidas - que impediram a constituição de uma relação, em seu sentido mais fundamental, ou seja: a presença efetiva de duas pessoas. Entendo, portanto, a reação terapêutica negativa como uma problemática da ordem do vazio.

A problemática do vazio refere-se, sobretudo, a um "mau encontro", no qual as condições fundamentais para o estabelecimento de uma relação efetiva encontram-se ausentes. A presença do par relacional, desse modo, só pode se dar de forma deveras problemática: ou de forma bastante ruidosa ou a partir da instauração de uma invisibilidade. Em outras palavras: a deflagração de experiências arcaicas de angústia no par sujeito/objeto produzem o que defino como "mau encontro". Tal angústia - indizível, primitiva - impede o bom andamento do processo de subjetivação. O indivíduo, portanto, ou adota uma posição ativa (pela qual a existência do outro exige permanente ação defensiva) ou passiva (pela qual o outro é uma ameaça da qual não posso me defender, exigindo, assim, uma evasão). Oposição ou desaparecimento são as formas mais comuns de reação à desfusão pulsional, já que o outro fundamental é tomado como invasor ou ausente.

Nesse sentido, retomo aqui a expressão "clínica de Eros" e seu operador clínico correspondente: o termo que anteriormente cunhei como "porosidade" (Avelar, 2014). Ao pensar a porosidade estou me valendo da ideia da pele e seus atributos e de como estes podem ser utilizados como uma metáfora para pensar o psiquismo. A pele, maior órgão do corpo, é, como sabemos, o órgão responsável pela relação entre mundo externo e interno. Em sua hipótese do escudo protetor, Freud (1920/1974) buscava uma analogia dessa natureza, ao afirmar que a camada mais externa do psiquismo tinha de morrer para proteger o seu interior. Tal matéria, ao morrer, se tornaria calcinada, assumindo assim a função de uma barreira protetora para o restante do psiquismo.

Valho-me de uma imagem muito simples de modo a potencializar esta metáfora. Penso que a pele do calcanhar e da língua são tipos de pele que podem ser colocados em posições opostas. A primeira é uma espécie de casca, bastante grossa, capaz de manter-se intacta durante o processo natural da locomoção; é dura o suficiente para nos proteger de eventuais irregularidades no solo, dentro obviamente de certos limites. Em contrapartida recorro à pele da língua para pensar em uma pele, inversamente, extremamente frágil, porém bastante sofisticada, responsável pela degustação dos sabores do alimento. Seguindo esse raciocínio, entendo que a locomoção (o estar no mundo) necessita de uma pele dura como a do calcanhar, enquanto o degustar necessita de uma pele sensível (embora frágil) como a da língua.

Assim, entendo que essa dialética entre se locomover e degustar é bastante útil para pensar a prática clínica. Há uma série de analisandos que relatam estar "à flor da pele", "em carne viva", ou seja, demasiado sensíveis às experiências da vida. O processo de análise pauta-se então em criar uma pele mais grossa, sem que a pele mais fina, mais sensível e mais complexa, seja destruída. Em contrapartida, há analisandos que chegam sem capacidades de sentir, apenas com a pele do calcanhar. Nesses casos trata-se de construir essa pele mais sensível (a serviço da sensibilização) sem que, com isso, suas peles mais grossas deixem de existir ou funcionar.

Portanto o processo de construção de uma pele - ou a ampliação das capacidades da mesma - é um dos objetivos do processo analítico.

O exercício da porosidade é, mais do que isso, o uso, por parte do analista, de sua própria pele psíquica para compor a pele do analisando. O projeto clínico que aqui defendo é a construção de uma modalidade de relação frequentemente nova, sem referência na história de vida pregressa do analisando. A análise, comumente, não é uma repetição de antigos padrões, mas a construção de padrões absolutamente novos a partir de um repertório que não se encontra presente no psiquismo dos analisando: esses padrões terão de ser construídos na relação analítica.

Nesse sentido a clínica de Eros não corresponde a um modo de pensar a práxis psicanalítica por um viés estrutural (pautado na ênfase em um modelo psicopatológico da vida psíquica), mas sim em um viés pulsional no qual o que se enfatiza é a relação das forças em jogo. Trata-se de pensar sobre a pulsionalidade, ela mesma, sua incidência sobre o objeto na matriz da vida psíquica.

O analista é obrigado a, regularmente, emprestar-se como objeto para essas pulsionalidades que na origem não encontraram possibilidades de endereçamento para que aí possam se ligar a novos objetos, viabilizando, assim, novas modalidades de subjetivação.

Entendo que a problemática do nascimento da psicanálise (na era vitoriana) era uma problemática de Eros (do aprisionamento); e o sintoma histérico era o grito de liberdade frente ao aprisionamento pela ordem vigente da época. Se outrora o sofrimento se pautava em uma representação asfixiante, na atualidade remete-se à ausência da representação, que denomino como problemática do vazio.

Tomar a prática clínica como um trabalho de Eros nos exige uma ampliação do campo transferencial. Recorro à expressão ferencziana "comunidade de destino" (Ferenczi, 1932/1985) para pensar em uma nova concepção acerca do lugar do analista. Ao invés de pensarmos em funções materna ou paterna, sugiro a noção de fratria como um modo de conceber a práxis psicanalítica.

Nesse sentido, concordo inteiramente com Hars (2015), ao afirmar que o projeto clínico ferencziano aponta, em última instância, para um percurso rumo à linguagem da ternura, principalmente nos casos onde é marcante a desfusão pulsional. Refiro-me, então, a um caminhar para aquém da lógica edípica, na qual a paixão, a afirmação de uma subjetividade sobre a outra, é a tônica. Refiro-me à construção de uma linguagem comum (na relação transferencial) pela qual experiências primitivas de cooperação e mutualidade podem ser construídas.

Entra em cena o operador clínico aqui denominado como estar com, uma das vertentes da clínica de Eros. O que está em pauta é o diálogo da criança do analista com a criança do analisando. Duas crianças assustadas estarão uma diante da outra (o analista e o analisando); e a existência de uma precisa se dar sem que isso implique na anulação da outra. O registro da ternura é o território do infantil, onde o verdadeiro diálogo transferencial tem de ocorrer.

Podemos, assim, dizer que a linguagem da paixão, em seu sentido mais radical, é a recusa ao outro, expressão do caráter destrutivo das pulsões de morte, enquanto a linguagem da ternura faz menção a uma dimensão não afirmativa: a relação com o outro é atravessada por uma dimensão lúdica, na qual a existência do outro não significa a minha anulação.

Seguindo essa trilha do pensamento ferencziano, penso que um autor de grande importância a esse respeito é Balint (2014), principalmente no que se refere à sua noção de amor primário e falha básica. O autor, ao pensar sobre a completude presente no amor primário - que diz que a felicidade do outro e a minha são indistintas - entende essa etapa como naturalmente estruturante. A ausência dessa oferta objetal maciça é compreendida por ele como "falha básica", o que levaria o sujeito a construir saídas primitivas em função desse trauma pré-edípico. Surgem então as hipóteses da ocnofilia (Balint, 2014, p. 40) (uma adesividade extrema ao outro) e do filobatismo (uma busca pelo afastamento do outro).

Estas representam a forma pela qual o sujeito irá lidar com a falha pré-edípica, na qual a oferta amorosa sofreu uma radical descontinuidade. O objetivo da análise define-se portanto como a construção de recursos que permitam minimizar os efeitos da falha básica. Esse objetivo será descrito pelo autor como: "novo começo". A esse respeito Peixoto afirma que:

Estas experiências, ou "novos começos", como foram denominadas, caracterizam-se por uma atmosfera analítica particular, que Balint chamou de arglos, palavra alemã que significa aproximadamente sincera, inocente, franca ou inofensiva, atmosfera importante e necessária para que gratificações em análise possam ser permitidas (Peixoto, 1988, p. 95).

Não é nosso objetivo explorar a complexa conceituação de amor primário em Balint, mas apenas apontar a necessidade da regressão no trabalho analítico, principalmente para analisandos para os quais experiências primitivas de desamparo impedem o exercício tradicional da prática psicanalítica, calcada no referencial edípico. Tais pacientes são denominados por Balint como pré-edípicos. Essa é a via para a construção do que ele irá chamar de "novo começo" (Balint, 2014, p. 166), um remanejamento das formas primitivas de amor objetal, o que nos dá margem para pensar a repetição por um viés diferencial. Nesse sentido podemos entender o campo transferencial como o lugar não só da reprodução, mas também como o lugar da inauguração e da criação. Voltaremos a esse ponto na conclusão de nosso trabalho.

Balint, seguindo as metáforas biológicas de Freud e Ferenczi, define o trabalho do psiquismo da seguinte forma: "Para escapar da morte e continuar sua existência, todos os organismos devem sempre começar de novo" (Balint, citado por Peixoto, 1988, p. 98).

Vejamos, então, como a temática de Eros é abordada pelos autores em questão: em Freud, encontra-se presente a ideia de que o organismo, para prolongar seu inevitável caminho rumo à morte, deve construir unidades cada vez mais elaboradas. A própria ideia de um détour (Freud, 1920/1974) faz alusão ao objetivo das pulsões de vida: tornar a vida cada vez mais complexa de modo a prolongá-la. Da mesma forma podemos recorrer à hipótese ferencziana da "autotomia" (Ferenczi, 1932/1985). Essa noção, retirada da biologia, refere-se à capacidade da presa de abrir mão de um pedaço de seu corpo (cita como exemplo o rabo da lagartixa) para que este sirva como isca para seu predador, evitando assim sua morte. Tais imagens, embora produzam diferentes reflexões, têm em comum a premissa de que o organismo necessita se reinventar - aumentar suas modalidades de existência - para que possa prolongar sua vida, adiando assim seu inexorável percurso para a morte.

Retomando, pois, a questão do novo começo, trata-se de uma hipótese na qual novas possibilidades eróticas podem ser empreendidas a partir da repetição e da vivência de determinadas experiências no setting. Sobre a mesma, Peixoto comenta que "Ela está relacionada com a possibilidade de redução no nível de angústia do paciente em conjunto com a ampliação de sua capacidade de amar" (Peixoto, 1988, p. 99).

O novo começo aponta, pois, para uma experiência na qual novas modalidades eróticas possam ser construídas a partir da experiência analítica.

Sobre esse ponto, complementa Peixoto (1988, p. 99): "a tarefa fundamental de um processo analítico seria a de livrar o sujeito de suas diversas condições compulsórias de amar e odiar, que são resultado de equívocos ocorridos no seu processo de criação".

Podemos deduzir a premissa de uma perspectiva imanente na teorização balintiana do sofrimento psíquico. O autor parte da hipótese da existência de um ambiente que veio a influenciar na deflagração de formas desequilibradas do exercício de sua forma de amar. Em outras palavras: o sujeito produziria modalidades eróticas destrutivas cuja nitidez pode ser percebida em suas relações. O novo começo nesse sentido apontaria para a produção de novas modalidades de subjetivação a partir de experiências transferenciais cuja marca é o caráter regressivo da repetição.

Partiremos agora para a conclusão deste trabalho, buscando fazer um resumo das ideias expostas e um esboço das hipóteses teórico-clínicas que as mesmas suscitaram.

 

Considerações finais

Minha teorização a respeito da temática do vazio me levou, paradoxalmente, a constatar a incrível capacidade de Eros. Ao mesmo tempo, constatei como Tânatos pode estar presente na vida psíquica, sem que com isso necessitemos recorrer a determinadas categorizações, bastante presentes na clínica psicanalítica contemporânea, tais como (entre outras) a melancolia e a depressão. Sem, de forma nenhuma, questionar a validade das mesmas, penso que a proposição freudiana acerca da desfusão pulsional - cuja expressão clínica fundamental é a reação terapêutica negativa - pode ter sua perspectiva ampliada.

Quero dizer com isso que a capacidade de sobrevivência psíquica é impressionante. Como é comum a chegada em meu consultório de analisandos com uma vida aparentemente estruturada, mas marcados por enormes dificuldades de se localizarem em relação às próprias angustias, ao outro e à vida em geral. E é bastante frequente a presença de relatos nos quais o discurso do analisando a respeito do casal parental é "a incapacidade de lidar" com seus sofrimentos, suas angústias. Cabe observar: a incapacidade de lidar é algo bem diferente do que lidar de determinada forma, seja esta positiva ou negativa. A consideração ferencziana a respeito do traumático - enquanto desmentido - é bastante útil para o que estou querendo frisar: não querer lidar é não conseguir estar com outro.

Por outro lado, sobreviver não é viver do modo que se deseja, mas do modo que se pode. Isso quer dizer que a força de Tânatos - ou por que não dizer do desamparo - é visível no sofrimento de inúmeros analisandos. Entendo que toda expressão radical de solidão (individual ou coletiva) é expressão da desfusão pulsional. E o vazio, mais do que uma experiência de solidão aponta para a enorme dificuldade em construir relações de alteridade.

Tais constatações me levaram então a pensar em Eros por uma determinada perspectiva: em sua tendência a unir e ligar. Entendo que a prática clínica na atualidade nos exige, frequentemente, optar pela ideia de construção (ou, mais ainda, de criação) em detrimento da desconstrução.

A perspectiva na qual Eros é a força responsável pela cristalização das unidades e Tânatos pela disjunção das mesmas é comumente difundida na literatura psicanalítica. Essa perspectiva concede a Eros um caráter aprisionante e, em contrapartida, vê nas pulsões de morte uma função criativa. Sem descartar essa hipótese, entendo que a clínica atual nos exige compor uma nova leitura a respeito das forças que atuam no psiquismo e, consequentemente, a respeito da própria natureza do trabalho psicanalítico.

Nessa nova proposição, Eros pode ser visto a partir de seu viés positivo enquanto Tânatos, de seu viés negativo (puramente destrutivo).

A razão dessa leitura é eminentemente clínica. Sem descartar a importância de uma prática clínica pautada na desconstrução, enfatizo aqui a importância de uma clínica da construção na qual a perspectiva de Eros acima citada é de suma importância: sua tendência fundamental de unir, ligar e, sobretudo, produzir complexidade.

O analista precisa refinar seu olhar para todas as distintas facetas do vazio, ou seja, da ausência da alteridade. O desamparo é presente sempre que há duas pessoas que não são capazes de estabelecer uma mínima relação de mutualidade.

Assim, a questão principal deste trabalho pode ser definida a partir da seguinte pergunta: como o analisando em questão - marcado pelo vazio - pode efetivamente assimilar a interpretação de seu analista? Para que isso ocorra é preciso que antes haja um encontro verdadeiro entre ambos.

A verdade desse encontro remonta à radicalização da ideia de mutualidade; sem que com isso o par analítico deixe de existir. Em tais casos a análise pode ser o único espaço para a vivência de relações básicas de alteridade. Estamos novamente diante da ideia ferencziana de "comunidade de destino".

Nesse sentido retomamos o fio central de nosso trabalho: o sentir com viabiliza o sentir por para por último levar ao radical estar com, base de todo trabalho de interpretação.

A vida amorosa, seja em sua pouca oferta, seja em seu caráter excessivo, comumente pode produzir riscos de uma desaparição subjetiva. Nesse sentido, a linguagem ferencziana da paixão pode ser compreendida como todo amor que, em função de sua intensidade, impede a percepção do outro em sua radical diferença.

Nesse sentido o amor, seja por sua ausência, seja pelo seu excesso, impediria a emergência do estabelecimento de uma relação objetal efetiva, deixando o sujeito à mercê das pulsões de destruição. Suas pulsões, uma vez desacompanhadas de um objeto conveniente para sua vinculação, levariam o sujeito a um quadro de desfusão. O trabalho de Eros, nesse sentido, seria vital para a suavização das pulsões de destruição na vida psíquica. O trabalho de Eros constitui, sobretudo, na oferta de objetos básicos para a vinculação da pulsão, por sua vez dispersa na lógica do vazio.

Nesse sentido é possível pensar a reação terapêutica negativa não apenas como expressão de uma dada categoria psíquica, mas da desfusão pulsional na vida psíquica em geral. A recusa à melhora, será, sobretudo, uma recusa ao outro, posto que este é ou alvo de desconfiança (uma vez que faltou pode novamente vir a faltar) ou de medo (sua existência é percebida como um risco à integridade do sujeito).

Freud deixou para seus sucessores a tarefa de compreendê-la e esboçar uma prática clínica sintonizada com os desafios que a mesma apresenta. O estar com - operador privilegiado da ética clínica aqui denominada como trabalho de Eros - é, acima de tudo, um esforço nesse sentido.

 

 

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Artigo recebido em: 10/11/2014
Aprovado para publicação em: 10/04/2015

 

 

*Psicanalista; Membro da SPID (Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle); Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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