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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

RESENHAS

 

Psicanálise e religião: uma história de muitos (des)encontros

 

Psychoanalysis and religion: a history of many (dis)encounters

 

 

Bruno Pinto de Albuquerque*

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

 

 

Resenha de

Araújo, Ricardo Torri de. Deus analisado: os católicos e Freud – A recepção da crítica freudiana da crença religiosa pela Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2014, 268p.

 

 

É impressionante o número dos que se aventuraram a escrever sobre psicanálise e religião. As peculiaridades do modo como cada autor destrincha essa temática não raramente abrem tantas vias de interpretação e expressam posturas contraditórias entre si que se torna difícil para o pesquisador situar-se no meio da complexidade desse campo. Além disso, grande parte das publicações não foi traduzida para o português, de modo que permanecem desconhecidas pela maioria dos leitores brasileiros. Tenho pesquisado essa área há alguns anos e desconheço uma obra publicada no Brasil que esmiúce o estado da arte dessa temática de maneira tão precisa como a que agora apresento.

O (des)encontro entre psicanálise e religião é uma questão tão multifacetada quanto instigante. Enquanto a psicanálise se fundamenta na imanência do mundo empírico para empreender uma abordagem teórico-clínica do psiquismo humano e sua constituição a partir da cultura, a religião se dirige à transcendência e mantém acesa no homem a esperança de entrar em contato com o divino através da mediação de um sistema de crenças e rituais. O encontro promovido através desse desencontro é inigualável, posto que as respostas de um campo tornam-se as perguntas do outro, mobilizando ambos na direção do incansável esforço do pensamento humano por elaborar sempre de novo o que insiste na repetição das lembranças que se encarnam na cultura.

Considero como o primeiro grande mérito desse livro o modo como apresenta sucintamente as principais ideias de diversos autores que desde o tempo de Sigmund Freud se dedicaram a elaborar inúmeras particularidades da interação entre esses campos. A bibliografia causa espanto tanto pela quantidade quanto pela qualidade , tornando o estudo dessa publicação um excelente ponto de partida ou recurso de aprofundamento para aqueles que querem se aventurar pelos meandros das discussões que perpassam o furo entre psicanálise e religião.

O segundo grande mérito da obra está na análise pormenorizada que realiza da crítica freudiana à crença religiosa. Recorrendo às mais importantes biografias de Freud, assim como ao conjunto de suas correspondências, o autor investiga detalhadamente o modo como ele se relacionou com a religião em sua vida pessoal, destrinchando suas aproximações e/ou distanciamentos em relação ao judaísmo, ao protestantismo, ao catolicismo e ao ateísmo. Em seguida, apresenta a evolução do pensamento de Freud ao longo de toda a sua obra no que tange à religião, destrinchando seus elementos estruturais e propondo uma síntese sistemática de sua crítica.

O terceiro grande mérito é apresentar as críticas realizadas às abordagens freudianas do fenômeno religioso, que são pouco conhecidas pelos psicanalistas e que interessam profundamente àqueles que se exercitam continuamente no sentido de não deixar a psicanálise se tornar uma visão de mundo com traços dogmáticos. É assim que o autor abala o Imaginário do meio analítico apresentando debates sobre questões interessantíssimas, tais como o alcance epistemológico da psicanálise quanto ao problema de Deus, a tese freudiana da origem inconsciente e edípica do ateísmo e o papel das dimensões feminina e materna na construção das imagens de Deus e na experiência mística.

O quarto grande mérito consiste na originalidade da tarefa específica à qual se dedica: investigar a história do modo como a Igreja Católica recebeu a crítica freudiana da crença religiosa. Tal história foi marcada por momentos por vezes completamente opostos: de uma recusa veemente embora não oficial da psicanálise por parte da Igreja, seguiu-se uma generosa abertura à teoria e clínica psicanalíticas, que posteriormente gerou certo equilíbrio na relação, mas que depois desembocou num esfriamento mais marcado pela indiferença do que pela apaixonada oposição inicial. O autor enxerga na história da relação entre psicanálise e catolicismo um reflexo das possibilidades distintas de interação entre psicanálise e religião, decidindo posicionar-se a favor de um diálogo que não tem perspectiva de síntese. Um estudo como esse ainda estava por ser feito e o presente livro mostra sua grande importância para circunscrever de maneira mais detalhada as diferentes nuances de um diálogo complexo e difícil, mas cheio de possibilidades frutuosas para ambos os campos.

Se tal estudo interessa aos analistas das mais variadas orientações, interessa ainda mais aos que leem Freud com Jacques Lacan, que reuniu em torno de si muitos católicos, em especial os jesuítas, que começaram a se aproximar da psicanálise através de seu ensino e contribuíram muito para ela com suas publicações. O autor identifica com muita precisão o conjunto de circunstâncias que teriam levado os católicos a se aproximarem da psicanálise de orientação lacaniana e apresenta algumas das discussões mais importantes realizadas pelos jesuítas psicanalistas amigos de Lacan.

Assim, o autor nos oferece um panorama maravilhosamente amplo e claro do pensamento freudiano sobre a religião e de uma quantidade inacreditável de comentadores muitas vezes desconhecidos, situando o leitor em meio ao campo múltiplo e disperso de publicações para esmiuçar as sutilezas de cada autor. Trata-se de uma leitura apaixonante para aqueles que se interessam pela articulação entre os campos da psicanálise e da religião, tão complexos quanto distintos entre si.

 

 

Artigo recebido em: 18/03/2015
Aprovado para publicação em: 21/08/2015

 

 

*Mestrando em Psicanálise (PGPSA/UERJ), Psicólogo (UERJ) e Psicanalista em Formação no Corpo Freudiano Escola de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, onde coordena o Grupo de Estudos "Psicanálise e religião".

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