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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.2 Rio de Janeiro dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Inconsciente e desejo na escrita do infantil: uma leitura de Alice no país das maravilhas" e de A travessia do espelho, de Lewis Carroll

 

Unconcounscious and wish in the childish's writing: an interpretation of Alice's adventures in wonderworld and Through the looking glass, de Lewis Caroll

 

 

Joel Birman*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil
Universidade Paris VII - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A intenção deste artigo é de enunciar que a escrita literária de Lewis Carroll é construída segundo a lógica do inconsciente e do desejo, de forma que as narrativas do sonho e do pesadelo são os constituintes fundamentais dessa escrita. Baseando-se no legado teórico de Freud, mas também no de Lacan, este artigo se propõe sustentar essa hipótese de interpretação.

Palavras-chave: Inconsciente; sonho; escrita.


ABSTRACT

The aiming of this article is to spell out that the literary writing of Lewis Carroll is built according to the logic of the unconscious and of desire/, so that the narratives of the dream and the nightmare are the fundamental constituents of this writing. Basing mainly on theoretical legacy of Freud, but also of Lacan, this article proposes to support this hypothesis.

Keywords: Unconscious; dream; writing.


 

 

I. Preâmbulo

Este ciclo composto por três (3) conferências - organizado pela Casa do Saber, no Rio de Janeiro, em outubro de 20151 -, no qual realizo hoje a última, sobre "Alice no país das maravilhas", de Lewis Carroll, tem a finalidade de comemorar e homenagear a publicação dessa obra excepcional cento e cinquenta (150) anos depois de sua primeira edição em inglês, ocorrido justamente em 1865. As razões dessa homenagem são não apenas justas e legítimas, mas também múltiplas, dentre as quais é preciso destacar tanto a inovação estilística que essa obra promoveu no campo da literatura em geral e da literatura infantil em particular, pois produziu de forma inédita uma nova modalidade de escrita, como também os subsídios cruciais que a obra em questão proporcionou para a pesquisa específica da linguagem. Além disso, a obra em pauta evidencia ainda o que existe de infantil em qualquer forma de discurso, de maneira que o discurso adulto pressupõe e promove ressonâncias nesse discurso infantil.

Porém é preciso evidenciar ainda, com toda a ênfase possível, que o impacto literário e cultural que a obra "Alice no país das maravilhas" teve no Ocidente se deve à originalidade de sua escrita no tempo de sua emergência histórica. Certamente, foi em torno da especificidade de sua escrita que a obra em pauta revolucionou a literatura em geral e a literatura infantil em particular, de forma a relançar assim outra modalidade de escrita, da qual somos ainda hoje tributários.

Além disso, é preciso destacar devidamente que a homenagem à publicação de "Alice no país das maravilhas" deve se estender às demais obras literárias sobre a infância empreendidas por Lewis Carroll - a saber, "A travessia do espelho" (1872), "A caça ao Snark" (1876), "Sílvia e Bruno" (1839-1893) -, pois em todos estes livros espetaculares Carroll enfatizou as mesmas características estilísticas presentes em "Alice no país das maravilhas", assim como evidenciou uma refundação da escrita, como enunciei acima.

É preciso evocar ainda que, anteriormente à publicação de "Alice no país das maravilhas", Lewis Carroll tinha já realizado uma versão inicial desse texto, em 1864, intitulado "Aventuras de Alice na terra", cujo manuscrito o autor tinha oferecido a Alice Liddell, ornado com suas próprias ilustrações e de uma foto da menina que tinha então sete (7) anos (Bury, 2009)2. Essa versão inicial já tinha as mesmas características estilísticas e a mesma modalidade de escrita presentes em "Alice no país das maravilhas".

Pode-se dizer assim que as diferentes obras produzidas por Lewis Carroll sobre a literatura infantil transformaram radicalmente o campo dessa modalidade de narrativa, promovendo uma efetiva descontinuidade no campo desta. No entanto, se isso certamente ocorreu, isso se deve à subversão da escrita que aquelas promoveram, que foi o corolário da problematização do infantil que realizou (Foucault, 1984; Deleuze & Guattari, 1971) de fato e de direito (Kant, 1971). Portanto, foi pela conjunção dessas diversas e diferentes questões que a obra "Alice no país das maravilhas" teve um impacto decisivo no campo da literatura.

Podemos enunciar, então, que foi por essas múltiplas inovações que as diversas obras publicadas por Lewis Carroll se destacaram no cenário literário, merecendo assim essa homenagem que lhes prestamos hoje. Contudo, após este reconhecimento inicial, é preciso examinar de maneira preliminar essas inflexões cruciais promovidas por Lewis Carroll no discurso literário para delinear de forma esquemática, em seguida, uma leitura psicanalítica de "Alice no país das maravilhas".

Quais foram então as inovações efetivas promovidas por esse texto magistral?

 

II. Criança, infância e infantil

Antes de tudo, é preciso evocar devidamente que na época da publicação de "Alice no país das maravilhas" já existia o campo específico da literatura infantil. Dos anos 20 aos anos 40 do século XIX, as obras dos Irmãos Grimm e de Andrews já circulavam na Inglaterra, em edições em inglês (Bury, 2009). Em contrapartida, até o século XVIII as crianças liam livros de adultos, nas quais as narrativas eram centradas em aventuras (Bury, 2009). Com efeito, "Robinson Crusoé" de Defoe e "As viagens de Gulliver" de Swift faziam parte da leitura das crianças (Bury, 2009), não obstante serem obras escritas para adultos. No século XIX, as obras de aventura de Stevenson eram lidas pelas crianças inglesas (Bury, 2009), a começar pela célebre "Ilha do tesouro".

Dessa maneira, o que caracterizou o século XIX no campo literário, em oposição ao século XVIII, foi a constituição específica da literatura infantil. As obras então publicadas, dos Irmãos Grimm e de Andersen, são disso signos eloquentes (Bury, 2009). É preciso evocar ainda, em relação a isso, que ambos os autores se referiam às suas obras como sendo contos de fada, de forma que a então recente literatura infantil foi caracterizada como narrativas centradas nos contos de fadas (Bury, 2009).

De forma curiosa e até mesmo paradoxal, não deixa de ser irônico que Lewis Carroll se referia também as suas obras como sendo contos de fada, se bem que estas não se inscrevam absolutamente nessa especificidade narrativa (Cohen, 1998; Gattegno, 1984). Daí a dimensão paradoxal evidenciada pela afirmação de Carroll sobre os seus livros, que podemos considerar certamente como algo da ordem da ironia. Com efeito, não existe nelees nem magia nem tampouco o final feliz, características eloquentes dos contos de fada. Além disso, não são o príncipe encantado e a bela princesa que se conjugam no encantamento apaixonado o que norteia as tramas das narrativas de Carroll. Enfim, no final de "Alice no país das maravilhas, como se sabe, Alice continua sendo uma criança comum, que continua a brincar com o seu gato.

Pelo contrário, as obras de Carroll são permeadas pela violência e até mesmo pela crueldade de seus personagens, de forma que o medo e a angústia estão sempre presentes nas suas narrativas. Além disso, nessas obras as questões filosóficas estão sempre presentes e são evocadas com eloquência, principalmente as que tematizam as intrincadas e complexas relações existentes entre a linguagem, o sujeito, o pensamento e os estados de coisas do mundo, que marcaram a filosofia moderna e que continuam a serem problematizadas pela filosofia contemporânea. Estamos assim não apenas no limite do que seja a literatura, mas também nas bordas do que seja a literatura para crianças, pois tais narrativas se modulam numa escrita singular e tratam de questões que fascinam enormemente os adultos, que, como se sabe, foram e são ainda grandes leitores dos livros de Lewis Carroll.

Com efeito, as diversas narrativas de Carroll se aproximam bastante daquelas que foram compostas por G.T.A. Hoffman e por Henrich Hoffman, nas quais a crueldade como paixão, que evidencia a emergência nos interstícios do texto da problemática do mal, se articula sempre com o mundo dos sonhos e dos pesadelos (Bury, 2009). Existem então bordas evidentes entre tais narrativas de Carroll e as da literatura fantástica, que floresceram na Europa no século XIX, de forma que a experiência da inquietante estranheza, descrita em 1919 por Freud num célebre ensaio (Freud, 1919/1985), é um traço comum entre estas e aquelas. Isso porque nessas modalidades de escrita o que é familiar se transmuta sempre no que é não-familiar, num estalar de dedos e num piscar dos olhos, de forma que num lusco-fusco imprevisível, que emerge dos interstícios da narrativa, a angústia se dissemina como paixão no sujeito (Freud, 1919/1985). São as cenas dos sonhos e de terror, enfim, associadas que são com as duplicações das personagens, o que norteia a composição dessas modalidades de escrita.

Portanto, a inovação estilística maior evidenciada pela escrita de Carroll coloca em evidência a ruptura crucial com a tradição literária do conto de fada e com a ficção do final feliz, tecidas que são estas em torno das personagens do príncipe e da princesa, que convergem de forma encantada para a aliança pelo casamento e pela celebração do amor. Eram essas características, como de sabe, as que se destacavam de maneira significativa com a emergência histórica da literatura para crianças, no século XIX.

Em contrapartida, a escrita de Carroll colocava em evidência o que era a isso oposto, qual seja, a literatura do infantil, tecidas que eram as suas narrativas em torno da violência e da crueldade, nas quais o medo e a angústia se inscreviam nas cenas anímicas do sonho e do pesadelo. Vale dizer, a literatura voltada para o registro do infantil se opõe nos seus menores detalhes ao da literatura voltada para a criança, na medida em que aquela coloca em evidência a dimensão trágica da existência humana e esta a dimensão do drama da condição humana, na qual a harmonia e a felicidade são sempre alcançadas pelos personagens principais no final da narrativa, com a derrota fragorosa dos intrigantes e dos representantes do mal.

Contudo, seja pela então recente da tradição literária da literatura para crianças, seja pelas inflexões decisivas propostas por Carroll na problematização do infantil nas suas narrativas, é preciso reconhecer efetivamente que em ambas as tradições literárias o que está em pauta é a emergência histórica da categoria e da experiência da criança ao longo do século XIX. Se esta foi positivamente delineada na literatura para crianças (drama), na primeira metade do século XIX, ela foi, em contrapartida, negativamente esboçada na literatura do infantil (trágico), na segunda metade do século XIX. De qualquer maneira, enfim, nessas duas tradições literárias a figura da criança, como categoria e como experiência, foi colocada em evidência na sua emergência histórica no século XIX.

 

III. Modernidade da infância

Numa obra já célebre, intitulada "A criança e a vida familiar no Antigo Regime", dos anos 70, o historiador francês Philipe Ariès (1973) colocou em pauta como a categoria da infância e a figura da criança foram produções sociais efetivamente modernas, não existindo então na pré-modernidade. Nesta, com efeito, a criança era representada como um adulto em miniatura que cresceria posteriormente, enquanto que foi apenas na modernidade que a constituição da criança na sua especificidade teria sido construída na nossa tradição (Ariès, 1973), numa perspectiva teórica de leitura de história das mentalidades.

Assim, foi somente na modernidade que a figura da criança foi efetivamente construída de forma específica, nos registros antropológico, biológico, social e psíquico. Para que isso fosse possível, no entanto, necessário foi, como condição preliminar, que a existência humana passasse a ser concebida na escala do tempo, de forma que ela se iniciasse de maneira inequívoca na infância e terminasse inevitavelmente na velhice, entre as quais a adolescência e a idade adulta se inscreveriam. Portanto, a vida foi delineada pela oposição entre o nascimento e a morte, momentos cruciais que seriam de sua constituição e do seu fim (Birman, 2001).

Nesse novo esquema teórico sobre a vida, a existência humana passou a ser concebida como um percurso não apenas inscrito na ordem do tempo, mas também regulado pela evolução, no qual a infância condensaria a plenitude dos registros do afeto e do instinto, sem contar ainda com o controle do registro do entendimento, que se iniciaria apenas na adolescência e que se instituiria plenamente na idade adulta, mas que declinaria irrevogavelmente na velhice. Daí por que se concebia então a existência da identidade imaginária entre a infância e a velhice, nas quais os registros dos afetos e dos instintos se disseminariam no sujeito, e sem contar com o contraponto mediador do entendimento (Birman, 2001).

Foi em decorrência disso que se constituiu a educação obrigatória no século XIX como política do Estado na modernidade, para promover a regulação (afetiva e instintiva) da infância e viabilizar assim a transformação da criança num adulto. Vale dizer, pela plenitude afetiva e instintiva que condensaria no seu corpo, a criança seria o signo eloquente da natureza, que deveria ser transformada progressivamente na figura do adulto, como signo patente da cultura e da sociedade, pelo projeto pedagógico (Birman, 2001).

Além disso, a infância passou a ser socialmente valorada, pois seria pelo seu investimento que seria possível a constituição daquilo que Foucault (1976) denominou de população qualificada. Seria assim pela promoção ativa da saúde e da educação que seria possível a produção de uma população qualificada, na qual estariam condensados o capital simbólico e econômico da Nação (Foucault, 1976; Birman, 2001).

Foucault, em "A vontade do saber" (1976), evidenciou como no século XIX foi construída outra concepção de riqueza, centrada que seria esta agora na constituição da população qualificada, de forma que desde então a extensão territorial e os bens materiais extraídos primariamente da natureza não seriam mais garantia para a promoção da riqueza das Nações, como ocorria na pré-modernidade.

Daí, portanto, a importância estratégica assumida pelo investimento na infância, para promover no futuro a expansão da riqueza da Nação. Em decorrência disso, a infância foi transformada na metáfora do futuro e da esperança no Ocidente, desde o século XIX, na medida em que a dita riqueza da Nação dependeria agora efetivamente da qualidade de vida da população, iniciada na infância (Birman, 2001).

Por isso mesmo, as figuras parentais deveriam se sacrificar pelos filhos, oferecendo para estas sempre o melhor, em termos de saúde e de educação, para participarem assim da produção futura da riqueza da Nação (Birman, 2001). Portanto, a figura da criança foi socialmente valorizada a partir do século XIX, de maneira que foi transformada nas figuras emblemáticas da majestade e da soberania, tal como Freud enunciou no seu ensaio de 1914 (1969), intitulado "Para introduzir o narcisismo", numa frase lapidar: "sua majestade, o bebê.

Essa formulação de Freud condensa assim a posição estratégica ocupada pela criança no imaginário social do século XIX, na qual a figura da criança seria a condição de possibilidade concreta para a constituição do capital econômico e simbólico da Nação. Desde então, as crianças realizariam o que os pais não puderam realizar nas suas vidas, sendo então idealizadas por conta disso.

Porém, se a figura de criança foi intensamente investida, ela passou a ser também, em contrapartida, ativamente disciplinada no registro de seu corpo, de forma que o controle da sexualidade infantil se tornou fundamental nas práticas pedagógica, familiar e médica. Com efeito, a masturbação da criança passou a ser controlada nos seus menores detalhes, na casa e na escola, como evidenciou Foucault no seu curso sobre "Os anormais" (2003).

É preciso enunciar ainda como a constituição da psicanálise, com Freud, desde o final do século XIX, se empreendeu pela importância crucial que atribuiu aos registros da infância e do infantil na constatação psíquica do sujeito. Contudo, se a categoria da infância remeteria a um tempo histórico da existência deste, da forma que o registro do passado incidiria sobre o presente da condição adulta como o passado-presente o infantil remeteria à dimensão originária do psiquismo, evidenciando que é um registro genealógico na constituição do sujeito. Portanto, ao enunciar o conceito da sexualidade infantil como sendo perverso-polimorfa, o discurso freudiano nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1962), remete ao registro do infantil e não ao da infância, assim como ao seu impacto na economia de sexualidade adulta.

Além disso, é preciso considerar ainda que essa ênfase colocada no tempo inicial da vida e da existência, no registro biológico do vivente e no registro oral do indivíduo, foi transportada, desde o século XIX, para conceber tanto a sociedade quanto a cultura, que passaram a ter uma leitura marcada pelo paradigma da evolução. Assim, da mesma forma que existiria a infância dos indivíduos, existiria também, em contrapartida, a infância das sociedades e das culturas. De forma correlata, da mesma forma como os viventes e os indivíduos nascem e morrem, as sociedades e as civilizações também nascem e morrem igualmente, pois seriam marcadas por um processo de ascensão e de decadência (Foucaul, 1963; Birman, 2001).

Daí por que as ditas sociedades primeiras foram transformadas, no então recente discurso antropológico marcado pelo paradigma evolucionista, no berço e na infância das Nações e sociedades europeias desenvolvidas. De forma complementar, as Nações recentes e consideradas menos desenvolvidas que as antigas Nações europeias deveriam ser colonizadas pelas Nações desenvolvidas para se tornarem assim civilizadas (adultas) como aquelas (Birman, 2001).

Pode-se constatar assim, em diferentes discursos teóricos, como a categoria de infância no paradigma evolucionista se disseminou na leitura de diferentes registros da existência, assim como de diversas instituições sociais e culturais. Dessa maneira, a referência ao campo da infância seria forjadora do sujeito.

Por isso mesmo, Freud construiu diversos textos teóricos voltados especificamente para a leitura da literatura infantil e dos contos de fadas (1919/1985), assim como da literatura para adultos (Freud, 1919/1985), assim como muitos de seus discípulos, para apreender a lógica inconsciente que lhes norteavam. Vale dizer, a preocupação maior do discurso freudiano, no que tange a isso, era a de evidenciar os registros do fantasma e do desejo que estariam imantando inconscientemente tais modalidades de escrita. Enfim, o discurso freudiano não apenas é tributário do lugar estratégico atribuído à infância desde o século XIX, como também da literatura sobre a infância, que então se constituiu na sua especificidade.

Porém é preciso enfatizar ainda que se a literatura para crianças interessou vivamente a tradição psicanalítica desde Freud, que pôde apreender nessa modalidade de escrita a conjunção entre os registros do desejo, do fantasma e do inconsciente, a literatura produzida por Lewis Carroll, em contrapartida, é ainda mais próxima da construção teórica da psicanálise pelo destaque que atribuiu para a crueldade, para a violência e para a angústia no imaginário infantil, assim como pela inserção desses afetos nos registros do sonho e do pesadelo. Com efeito, o que está em pauta aqui é o registro do infantil e não propriamente o da infância, que como originário marcaria a ferro e fogo a sexualidade das crianças e a dos adultos de forma indelével, se impondo então ao sujeito como uma experiência de inquietante estranheza, na polarização infinita que estabelece entre os registros do que é familiar e do que é não-familiar (Freud, 1919/1985). Vale dizer, seria por uma tangência trágica em relação à infância que o infantil modularia o sujeito numa promessa erótica e de horror dos "Jardins das delícias" (Bosch), pela qual o gozo se temperaria pela dor e pelo flagelo. Enfim, é justamente isso o que pode se evidenciar pela leitura acurada das linhas e das entrelinhas das obras, "Alice no país das maravilhas" (Carroll, 2009) e "A travessia do espelho" (Carroll, 2009), de Lewis Carroll.

 

IV. Desamparo, desejo e inconsciente

Assim, é preciso considerar inicialmente como a narrativa de "Alice no país das maravilhas", assim como da obra "A travessia do espelho", remete para as coordenadas teóricas destacadas pelo discurso freudiano para pensar o aparelho psíquico em geral e em particular sobre a inflexão específica nesse do registro do infantil. Com efeito, pode-se enunciar certamente que o que esse discurso teórico empreendeu foi a desconstrução (Derrida, 1967) do mito da infância feliz e da pureza da criança, para colocar em pauta não apenas a existência da sexualidade infantil, como também o que existiria de dor e de sofrimento na experiência psíquica das crianças, destacando assim os impasses psíquicos destas de maneira eloquente. Além disso, quando Freud e seus discípulos empreenderam a leitura dos contos de fadas foi para indicar de forma estridente o que existia de negro e de angustiante no imaginário das crianças, não obstante a trama narrativa dos contos de fadas se desdobrarem num final feliz. Foi, enfim, pela leitura meticulosa das linhas e das entrelinhas dessas formações discursivas que o discurso psicanalítico pôde evidenciar assim o que existia nestas de trágico, na contramão decisiva da tradição então estabelecida sobre a literatura infantil.

Por que isso? Nada mais nada menos porque o que caracterizaria a experiência psíquica seria o conflito, que marcaria a existência das crianças e dos adultos desde os primórdios de vida. O conflito psíquico se evidenciaria pela presença da divisão no psiquismo, polarizado que este seria pelo registro do inconsciente, por um lado, e pelos registros do pré-consciente-consciência, pelo outro, como enunciou Freud em "A interpretação dos sonhos" (1900/1976). Contudo, se a conflitualidade perpassa o aparelho psíquico de forma permanente, tendo a divisão (Spaltung) psíquica como o seu correlato, isso se deve ao desamparo originário do infante, que marcaria a sua existência psíquica desde o início da vida e se perpetuaria ao longo da existência do sujeito, como nos disse Freud no "Projeto de uma psicologia científica" (1895/1956). Com efeito, em decorrência da prematuração biológica do infante, este dependeria do outro para poder sobreviver de forma absoluta, do ponto de vista estritamente biológico (Freud, 1895/1956), pelo qual esse outro exerceria a função materna voltada para os cuidados do infante. No entanto, o desamparo originário se manteria posteriormente, não obstante o desenvolvimento biológico e a maturação ulterior do sistema nervoso central (Freud, 1895/1956).

Seria em decorrência disso que Freud enunciou de forma eloquente, no "Projeto de uma psicologia científica", que o choro do bebê seria a fonte de todos os motivos morais (Freud, 1895/1956). Isso porque a figura da mãe transformaria o choro do bebê, na evidência de forma pujante do desamparo deste, num signo de algo que falta ao infante e lhe oferece então algo para apaziguar a sua dor, promovendo assim a experiência de satisfação do bebê (Freud, 1895/1956). Dessa maneira, se o infante se volta para o outro, que lhe ofereceu algo que o preenche momentaneamente, ele se divide, em contrapartida se constituindo então pela relação alteritária em face desse outro.

A dita experiência de satisfação seria assim a condição de possibilidade concreta para a constituição correlata do campo do desejo, pois diante de qualquer experiência posterior de falta o bebê vai investir nas marcas psíquicas e corporais da experiência de satisfação originária, promovendo assim a satisfação e a realização alucinatória do desejo (Freud, 1900/1976). Em decorrência disso, o inconsciente seria constituído pela circulação do desejo propriamente dito, que regularia o sujeito (Freud, 1900/1976), assim como pelas marcas psíquicas e corporais que concretamente lhe possibilitaram tal fluxo de desejo.

Além disso, o discurso freudiano esboçou a produção de diferentes construções psíquicas que seriam oriundas do conflito estabelecido entre o desejo e o recalque, quais sejam o sintoma (Freud, 1900/1976; introduction), o sonho (Freud, 1900/1976), o lapso (Freud, 1901/1973), o ato falho (Freud, 1900/1976) e a piada (Freud, 1905/1988). Nos rastros do retorno do recalcado tais produções psíquicas seriam assim delineadas. Essas produções psíquicas foram devidamente dominadas por Lacan de formações do inconsciente, no Seminário V, que foi assim intitulado (Lacan, 1998).

 

V. Escrita onírica

Assim, tanto a narrativa de "Alice no país das maravilhas" quanto a escrita de "A travessia do espelho" são inteiramente centradas no registro do sonho, remetendo também em seus momentos decisivos para a experiência do pesadelo. Com efeito, ambos as narrativas são estritamente oníricas, de forma que o que está nelas em questão são os impasses da jovem Alice em se confrontar com os conflitos de sua existência, que se materializam nos encontros e desencontros com os diferentes personagens, que se apresentam nas suas aventuras oníricas.

Portanto, é o campo do sonho, enquanto forma axial da existência humana, que é o cenário fundamental da experiência de Alice, em ambas as obras. Daí a dimensão de surrealidade que caracteriza indubitavelmente a escrita sessa obras, pois as narrativas em pauta não são lineares, nem tampouco unívocas, como ocorre sempre, aliás, nas narrativas oníricas. Além disso, as personagens dessas obras são sempre fugidias e têm a consistência frágil das imagens, perpassadas que são por tonalidades sugeridas e marcadas pelo lusco-fusco que as fazem aparecer subitamente e desaparecerem com a mesma velocidade que apareceram, tal como ocorre também regularmente com as experiências dos sonhos.

É o campo do sonho, que imanta a existência humana pela realização imperativa do desejo, portanto, que é o cenário crucial para a experiência encantada da personagem Alice nas duas obras acima referidas. Essas narrativas se tecem sempre assim pela escrita onírica, norteada que esta é pelo desejo.

Como já vimos acima, foi o discurso freudiano que reconheceu modernamente a dignidade do sonho como expressão privilegiada para a existência do sujeito pela positivação que conferiu ao inconsciente como existência psíquica, por um lado, assim como pela proposição de que o desejo seria constitutivo do inconsciente, pelo outro.

Com efeito, o discurso freudiano, desde os primórdios da sua constituição histórica e epistemológica criticou de maneira frontal as leituras realizadas tanto pela medicina científica quanto pela neurologia no século XIX, segundo as quais o sonho seria inequivocamente o signo empírico da ausência da experiência psíquica no estado do sonho (Freud, 1900/1976). Dessa forma, o psiquismo estava identificado teoricamente com o conceito da consciência, de forma que somente existiria experiência psíquica durante a vigília e quando esta estava suspensa o psiquismo deixaria simplesmente de existir. Nessa perspectiva, os sonhos seriam então a resultante da descarga das excitações nervosas do sintoma nervoso central que ocorriam durante o estado do sono. Daí, portanto, na leitura proposta por esstes discursos, a surrealidade, que caracterizaria as produções oníricas pela perda das conexões existentes entre as imagens na experiência de sonhar, consequência que seria da suspensão da consciência durante o sono, como Freud evidenciou na "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1976).

No entanto, ao enunciar que o psiquismo seria fundamentalmente inconsciente e que este seria norteado pelo desejo, Freud sustentava assim não apenas que existiria psiquismo durante o sono, mas que, além disso, o sonho era a forma pela qual a existência psíquica se manifestaria durante o sono (Freud, 1900/1976).

Além disso, para radicalizar mais ainda o seu enunciado teórico, o discurso freudiano ainda afirmou que o sonho era a proteção inequívoca para o estado do sono, isto é, para que o sujeito continuasse a dormir o necessário seria que pudesse sonhar, para não acordar subitamente. e assim despertar de maneira assustada. Enunciou ainda que sempre sonhamos inúmeras vezes durante o sono, mesmo que não lembremos de que sonhamos, a consequência seria que isso da resistência psíquica do eu à experiência do inconsciente. Por isso mesmo, com a experiência analítica os indivíduos que comumente não se lembram de seus sonhos passam a se recordar destes em decorrência da diminuição do recalque e da resistência do indivíduo face à emergência do inconsciente e do desejo (Freud, 1900/1976).

Vale dizer, o discurso freudiano rompeu decididamente com a então recente tradição científica sobre o sonho, que enunciava que o sonho era o efeito da descarga excitatória do sistema nervoso central durante o estado do sono e que evidenciaria assim a inexistência do psiquismo durante o sono (Freud, 1900/1976), para retomar, em contrapartida, a tradição popular sobre o sonho, segundo a qual o sonho teria sentido e que este poderia ser então devidamente interpretado. Essa dita tradição popular era ainda vivamente mantida, no final do século XVIII e no início do século XIX, pelo Romantismo, que se contrapôs assim de forma eloquente à nova tradição científica (Beguin, 1939; Boie, 1976) de maneira que Freud, nesse sentido, foi o herdeiro legítimo da tradição literária do Romantismo alemão.

Em relação a isso, é preciso evocar ainda que se o surrealismo se interessou tanto pela psicanálise e pelas obras literárias de Carroll, ao mesmo tempo, principalmente Aragon e Breton (Breton, 1985), foi pela importância crucial que Freud e Lewis Carroll atribuíram ao sonho na experiência do sujeito. Além disso, se o poeta, ator e dramaturgo Artaud se interessou tanto em fazer a tradução de uma parte de "A travessia do espelho", em 1947, foi em decorrência do que existia de similar entre os escritos de Carroll, centrados no sonho e no pesadelo como já dissemos acima, e a sua experiência delirante (Artaud, 1947). Portanto, existiria assim a similaridade entre a experiência do sonho, por um lado, e a experiência da loucura (Foucault, 1960/1971), pelo outro, de forma que seria por este viés que se poderia conjugar decisivamente o discurso freudiano, a estética do surrealismo, a escrita onírica de Lewis Carroll e a obra literária de Artaud, sem forçar as tintas entre essas articulações discursivas.

Portanto, as duas narrativas de Carroll em questão são compostas pela escrita onírica da personagem Alice e de seu gato, companheiro inseparável daquela no seu percurso encantado pelo "País das maravilhas". Além disso, é preciso dizer ainda, no que concerne a isso, que no Diário de Charles Dodgson - matemático que inventou o pseudônimo de Lewis Carroll para escrever as suas obras sobre a literatura infantil (Cohen, 1998; Gattegno, 1984) -, existe um fragmento significativo no qual aquele enunciara que o sonho seria uma forma legítima de existência psíquica (Cohen, 1998; Gattegno, 1984), tal como Freud veio a formular posteriormente em "A interpretação dos sonhos". Portanto, na leitura do sonho como uma modalidade de escrita Dodgson retomou a tradição literária do Romantismo e pôde se encontrar então com as formulações do discurso psicanalítico.

 

VI. Ruptura com a imagem especular e com o eu

Contudo, o interesse da psicanálise nas obras de Lewis Carroll se deve ainda à condição crucial que se evidencia nestas de que para que se inscreva nas trilhas fantásticas do inconsciente e nos atalhos do seu desejo a personagem de Alice deve se afastar decididamente da existência psíquica centrada na consciência e no registro psíquico do eu. Para se apreender esse tópico em particular é necessário empreender a conjunção íntima da leitura da "Alice no país das maravilhas" e de "A travessia do espelho".

Portanto, seria pela ruptura decisiva com a existência cotidiana, centrada no eu e na consciência, que Alice se inscreve decididamente na experiência do sonho e na existência do inconsciente, norteados pelo desejo. Enfim, seria então essa ruptura que seria a condição concreta de possibilidade para as experiências do sonho, do inconsciente e do desejo.

Assim, a narrativa densa de Alice em "A travessia do espelho" tem como pressuposto real que aquela tinha a curiosidade de saber o que se passa e o que existe além do espelho, isto é, o que existiria e o que estaria em pauta do outro lado do espelho. Foi esse o disparador efetivo dessa narrativa, sem qualquer dúvida. Vale dizer, Alice quis saber também o que existia na outra cena, em oposição à cena da existência cotidiana (consciência e eu), quando empreendeu então as aventuras encantadas pelo "País das maravilhas", norteada pelo imprevisível do desejo e pelo que há de errático na experiência do inconsciente.

O que isso implica em dizer? Antes de tudo, que a experiência onírica tem como condição (concreta) de possibilidade a suspensão temporária da consciência e do eu, que funciona como um espelho. Como nos disse Lacan, em "O estádio do espelho como formador da função do Sujeito" (1948/1966) e no ensaio intitulado "A agressividade em psicanálise" (1949/1966), a consciência e o eu são especulares, construídos que estes seriam pelo olhar, no olhar do outro, que delinearia o registro do eu na sua identificação primordial, que seria da ordem do narcisismo.

Portanto, para que o sujeito possa aceder de maneira incontestável ao mundo do inconsciente e do desejo, deve poder ir além do espelho/eu/consciência, para ultrapassá-lo decisivamente, para buscar o que estaria efetivamente fora das miragens delineadas pelo olhar do outro. Seria isso o que pretende a experiência analítica, para promover o encontro do indivíduo com o Je, isto é, com as experiências do inconsciente e do desejo.

Da mesma forma, o discurso freudiano enunciou, em "Para introduzir o narcisismo", como o eu se constituiria de forma narcísica pelo olhar do outro (figuras parentais), que deslocaria decisivamente o sujeito de sua existência antropológica preliminar, caracterizada pela fragmentação, lhe conferindo assim a ilusão de uma unidade (eu) especular, fundada que é no olhar do outro (Freud, 1914/1069).

Nessa perspectiva, a descoberta pelo indivíduo do que ele é (sujeito) na sua singularidade, implicaria sempre na travessia do espelho/eu/consciência, para que o desejo possa se expressar e se manifestar em estado nascente e que o sujeito possa se descolar assim das ilusões especulares do eu, assim como de sua alienação no desejo/olhar do outro. Foi o que realizou Alice nas duas obras em questão, nas quais pela travessia do espelho e pela experiência do sonho pôde se indagar sobre si de maneira instigante, movida que foi pela curiosidade, pela descoberta da escrita do sonho tecida pelo desejo.

O que a personagem de Alice realizou nas suas diversas peripécias oníricas foi explorar ao máximo a sua curiosidade, pelo exercício pleno do desejo de saber sobre si e sobre a outra cena (inconsciente), tal como ela enunciou de forma peremptória e eloquente em "A travessia do espelho". Porém o exercício dessa curiosidade e desse desejo de saber é certamente imprevisível, marcado que é por obstáculos, impasses e angústias. Vale dizer, não se atravessa o espelho/eu/consciência de forma impune, pois a descoberta do "País das maravilhas" é norteada pelo desejo, ela é também assustadora, pois esse mundo outro é permeado por fantasmas e angústias.

Alice pôde assim descobrir de forma assustada que o seu corpo não tem limites fixos e invariáveis, pois o corpo pode se expandir e se retrair em tempos diferentes, podendo assim o corpo se agigantar e se contrair de um instante para o outro, evidenciando não apenas a vulnerabilidade do corpo como também o seu multimorfismo e o seu dismorfismo funcionando ao mesmo tempo. Ou, então, o corpo pode se dividir e se fragmentar em múltiplos pedaços, numa fratura disseminada de sua unidade, não mantendo assim a sua suposta totalidade (eu, imagem no espelho).

É preciso destacar ainda que essas transformações corporais acontecem em contextos e cenas bastante específicas, não sendo assim aleatórias e erráticas. Com efeito, as dimensões corporais se dilatam, se retraem e se fragmentem quando Alice encontra obstáculos e impasses nos seus caminhos erráticos, de forma que a crueldade de seus interlocutores se evidencia com rudeza, conduzindo à produção da angústia em Alice. Portanto, os desdobramentos múltiplos da corporeidade desta, como um caleidoscópio encantado, são as resultantes significativas das angústias que tomam Alice de corpo inteiro e a deixam sem chão e quase que sem saída nesse labirinto de horrores.

Porém tudo isso acontece sem que exista qualquer comentário moralizante de Lewis Carroll sobre os acontecimentos de Alice no "Pais das maravilhas", o que é a maneira de ele dizer que o mundo do inconsciente e do desejo não seria regulado pela moral vigente, mas sim pela potência da afirmação alegre da existência pelo sujeito, ao buscar seja seus embates seja ao encontrar a violência e a crueldade dos demais personagens como obstáculo nessa aventura encantada pelo desejo e pelo horror. Isso porque, é preciso dizer ainda de forma enfática, a personagem de Alice é movida pela transgressão, pois esta transgride os discursos das figuras parentais, na medida em que o inconsciente e o desejo transgridem os enunciados moralistas e protetores das figuras parentais.

Contudo, se a angústia aumenta muito na sua intensidade o temor da morte se impõe para o sujeito de forma imperativa, existe sempre a possibilidade para este de despertar do sonho de terror e do pesadelo, como nos disse Freud (1900/1967), pelo ato de acordar e de dizer de forma aliviada que tudo não passaria de um sonho e que não seria algo da ordem do real. Foi justamente isso o que fez Alice no final da sua "travessia do espelho", ao despertar de seu sonho (pesadelo) mal temperado pelo terror, quando afirma de forma peremptória que as diversas personagens em questão (Rei, Rainha e valete) não são reais e não passariam de cartas de baralho (Carroll, 2009), inscritos que seriam assim na lógica do jogo e não do real.

Além disso, em todas as peripécias de Alice é notável como nos fantasmas desta a boca ocupava sempre um lugar estratégico e crucial, seja pela multiplicidade de cenas nas quais a comida estava em pauta, seja pela importância conferida por Carroll em ambas as obras em questão à ordem do discurso e da palavra. Com efeito, não apenas a boca é o cenário decisivo para as cenas cruciais dessas narrativas, na medida em que é pela boca que o gozo alimentar se realiza, por um lado, ela é ao mesmo tempo, como contraponto, o espaço decisivo para a tessitura da interpelação discursiva, num movimento originário de simbolização.

Se o discurso freudiano nos ensinou que a comida delineia no espaço real da boca o campo do erotismo oral (Freud, 1905/1962), fonte infinita por isso mesmo que é da crueldade e das perseguições no registro dos fantasmas inconscientes (Deleuze & Guattari, 1975), é preciso considerar ainda que é preciso desterritorializar a boca como espaço para o gozo alimentar para que a fala e a escrita passem a se constituir, pela inflexão que delineia a reterritorialização, como nos disseram Deleuze e Guattari no ensaio sobre "Kafta" (Deleuze & Guattari, 1975). Vale dizer, os registros da fala e da escrita são assim derivações cruciais do erotismo oral.

 

VII. Derivações

Não foi por acaso que um autor como Lacan tenha devidamente prestado sua homenagem a Lewis Carroll, numa alocução radiofônica realizada em 1966 na France Culture, para destacar não apenas o encontro errático do sujeito com a lógica do inconsciente promovido pela ruptura do espelho, mas como o inconsciente seria regulado pela lógica do significante, que possibilitaria os jogos de palavra, os lapsos e os trocadilhos que permeiam os textos de Carroll. Além disso, supõe que a inserção de Dodgson no campo do ensino e da pesquisa em matemática seria a condição de possibilidade para que este pudesse apreender a linguagem e o discurso com a riqueza que o faz (Lacan, 2002).

Além disso, é preciso evocar ainda como Deleuze, em a "Lógica do sentido", se volta para a escrita literária de Lewis Carroll com o rigor teórico que exige a leitura filosófica (Deuleuze, 1969), destacando assim como o conceito de sentido como acontecimento permeia as narrativas realizadas por Lewis Carroll. Contudo, trabalhar o registro de sentido como acontecimento é a forma pela qual Deleuze sustenta nessa obra o conceito de inconsciente, marcado que este seria pela lógica da diferença e da repetição.

Seria então nessa medida que a lógica do significante e a produção do sentido como acontecimento evidenciam as marcas eloquentes dos registros do inconsciente e do desejo na escrita literária de Lewis Carroll, apreendidas de maneira fulgurante pelo discurso psicanalítico e pelo discurso filosófico.

 

 

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Artigo recebido em: 04/06/2016
Aprovado para publicação em: 10/08/2016

Endereço para correspondência
Joel Birman
E-mail: joelbirman@uol.com.br

 

 

*Professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ, Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ, Pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa, Diretor de Estudos em Letras e Ciências Humanas, Universidade Paris VII.
1Este texto foi escrito a partir das notas que me orientaram na conferência promovida na Casa do Saber, no Rio de Janeiro, em 21 de outubro de 2015, no "Ciclo sobre os 150 anos de "Alice no país das maravilhas", de Lewis Carroll.
2Como se sabe Alice Liddell foi a figura real que foi transformada na personagem de Alice, em "Alice no país das maravilhas".

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