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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.2 Rio de Janeiro dic. 2016

 

ARTIGOS

 

Trauma, cultura e criação: Ferenczi com Christoph Türcke

 

Trauma, culture and creation: Ferenczi with Christoph Türcke

 

 

Jô Gondar*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - Brasil
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute a relação entre as noções de trauma, repetição e criação, utilizando a noção de trauma como chave para pensar a emergência da cultura. Apresenta as afinidades entre as ideias de um pensador contemporâneo - o filósofo alemão Christoph Türcke - e um psicanalista de primeira geração, Sándor Ferenczi. A teoria ferencziana provém de uma clínica que valoriza a dimensão criadora do trauma e dos sintomas, mesmo os autodestrutivos. Essa teoria é cotejada com a deriva psicanalítica encaminhada por Türcke em dois de seus livros, Filosofia da sensação e Filosofia do sonho, nos quais pesquisa as raízes do processo que teria levado o animal humano ao seu estado atual.

Palavras-chave: trauma; cultura; repetição; criação; Ferenczi; Türcke.


ABSTRACT

The paper develops the relation among the notions of trauma, repetition and creation, using the notion of trauma as a key to think about the emergence of culture. It shows some affinities between the ideas of a contemporary thinker - the German philosopher Christoph Türcke - and the first-generation psychoanalyst Sándor Ferenczi. The Ferenczian theory of trauma comes from a clinic that values the creative dimension of trauma and symptoms, even the self-destructive ones. This theory is checked against the psychoanalytic drift forwarded by Türcke in two of his books, Philosophy of sensation and Philosophy of dreams, in which he researchs the roots of the process that would have taken the human animal to its current state.

Keywords: trauma; culture; repetition; creation; Ferenczi; Türcke.


 

 

Em dois de seus livros publicados no Brasil - Filosofia do sonho (2010a) e Sociedade excitada: filosofia da sensação (2010b) - o filósofo alemão Christoph Türcke constrói uma arqueologia do sonho e uma arqueologia da sensação através de um diálogo com a psicanálise. Esse diálogo o conduz a uma tese, presente nas duas obras: a cultura e todas as suas formações - lei, linguagem, instituições, rituais - seriam produto da compulsão à repetição enquanto reação ao trauma. A tese é apresentada como uma deriva transgressiva da teoria freudiana, já que esta não poderia fornecer à ideia de compulsão à repetição um lugar tão central ou tão produtivo. "Do contrário, todo o trabalho psicanalítico, centrado na sexualidade, baseado no conflito edipiano, seria abalado" (Türcke, 2010b, p. 154). Türcke tem razão. Para Freud o que move o mundo é o desejo inconsciente e não o trauma ou a repetição compulsiva. Esse desejo teria por base fantasias sexuais edípicas, reencenando, no plano individual, o parricídio originário que teria dado origem à cultura.

Mas se Türcke leva Freud para onde este não quer, sua tese também o conduz a uma proximidade não prevista. Um discípulo de Freud, o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933), fez do trauma e das tentativas de liquidá-lo o centro de gravidade de sua teoria. A curiosa afinidade entre um filósofo contemporâneo e um psicanalista de primeira geração é o tema de nosso trabalho. Pretendemos cotejar a teoria ferencziana com a deriva psicanalítica encaminhada por Türcke em Filosofia da sensação e Filosofia do sonho. Pensamos que a centralidade do trauma e da repetição enseja, nos dois autores, críticas à psicanálise clássica e montagens teóricas afins, envolvendo a produção ou o uso de noções semelhantes - como terror, mimetismo, identificação com o agressor, progresso regressivo, função traumatolítica dos sonhos. Essas ideias não se apresentam ou não são fundamentais na teoria freudiana, mas são centrais na construção teórica de Ferenczi.

É fato que colocar o trauma e a repetição na origem da subjetividade e da cultura implica em questionar a construção psicanalítica. Isso teria valido a Ferenczi sua ruptura com Freud e um lugar de ostracismo no meio psicanalítico por mais de cinquenta anos. Suas teses foram esquecidas e alguns psicanalistas passaram a utilizar suas ideias sem citá-lo. Foi provavelmente o que aconteceu com o conceito de identificação com o agressor, proposto por Ferenczi em 1932 - em "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (Ferenczi, 1933/1992), o mesmo texto que selou a divergência com Freud - e reapresentado por Anna Freud em 1936, sem menção ao seu autor. Talvez por isso, tanto Adorno quanto Türcke creditem à filha de Freud a criação do conceito. A reabilitação de Ferenczi é um fenômeno recente na psicanálise. Ela se deve à inesperada atualidade de suas ideias com relação a algumas formas contemporâneas de subjetivação - como pânico, depressão, compulsões e fenômenos psicossomáticos - mais marcadas pelo trauma, pela dissociação psíquica, pela anestesia e pela identificação com o agressor do que pelos conflitos edípicos e o recalcamento da sexualidade.

Ferenczi foi um especialista em "pacientes difíceis", como eram chamados, na época, os sujeitos com sofrimentos mais primários e mais graves do que os da neurose clássica. O funcionamento psíquico de seus pacientes era próximo ao da neurose traumática. Eles não sofriam de reminiscências ou de fantasias, mas de traumas reais, provenientes do ambiente, traumas que não podiam ser representados nem se tornar objeto de recalque. A única coisa que o sujeito podia fazer é repeti-los, buscando, de algum modo, elaborá-los. Ora, Ferenczi se deu conta de que o modo de funcionamento de seus pacientes difíceis revelava a dimensão fundante de qualquer constituição subjetiva, mesmo as mais "clássicas": "Em todos os casos onde penetrei em profundidade suficiente, encontrei as bases traumáticas da doença" (citado em Judith Dupont, 1990, p. 12), escreve a Freud. Mais adiante, advertiu-o de que a psicanálise estaria incorrendo em erro devido à "superestimação da fantasia e na subestimação da realidade traumática na patogênese...". Da mesma forma que na patogênese, a realidade traumática estaria, para Ferenczi, na base do sonho, da constituição do pensamento, da linguagem, da cultura.

 

Sonhos

Vejamos primeiramente como isso se dá no sonho. "Quem quiser compreender o que é pensar deve entender o que é sonhar", escreve Türcke (2010a, p. 26). O que seria sonhar para Freud? Realização alucinada de um desejo recalcado, é o que ele nos ensina em "A interpretação de sonhos". E o que seria sonhar para Ferenczi? Em sua "Revisão de ‘A interpretação de sonhos’" (1934/1992) ele nos apresenta praticamente uma inversão da proposta freudiana. Freud pensa que a realização de desejo é a principal função onírica, sendo o sonho traumático uma exceção à regra; Ferenczi fará dessa exceção o seu modelo. Afirma que o sonho possui uma função mais primária do que se supunha, função que envolve os restos diurnos - por ele chamados de restos de vida. Para Freud, esses restos são personagens coadjuvantes, apenas disparadores de um desejo mais fundamental cuja realização o sonho deve promover. Com Ferenczi, eles se tornam protagonistas. "Penso que o retorno dos restos diurnos já representa por si mesmo uma das funções do sonho", ele escreve (1934/1992, p. 112). Esses restos seriam "impressões sensíveis traumáticas não resolvidas, que aspiram à resolução" (Ferenczi, 1934/1992, p. 113). Como o estado de sono não permite que essa resolução aconteça, o que passa a ocorrer é a sua repetição compulsiva, visando o desgaste e enfraquecimento dos choques. Mas essa repetição, produzida pelo próprio sujeito, implica também uma passagem da passividade para a atividade. É como se o trauma agora fosse fabricado pelo sujeito, para que este possa dominá-lo e liquidá-lo. "Aquilo que chamamos restos diurnos (e podemos acrescentar: os restos da vida) são, de fato, sintomas de repetição de traumas; mas é muito conhecido que a tendência à repetição na neurose traumática também tem uma função intrinsecamente útil: ela vai conduzir o trauma a uma resolução" (Ferenczi, 1934/1992, p. 112). Para Ferenczi, a função primordial do sonho é traumatolítica, e a realização de desejo apenas um caso particular dessa tendência: "Uma definição mais completa da função do sonho seria (em vez de: ‘o sonho é uma realização de desejo’): todo e qualquer sonho, ainda o mais desagradável, é uma tentativa de levar acontecimentos traumáticos a uma resolução" (Ferenczi, 1934/1992, p. 112).

Colocar o sonho traumático como chave do funcionamento onírico também é a proposta de Türcke. Também para ele a realização de desejo é a sofisticação, ou mesmo o mascaramento, de uma tendência mais original - a necessidade de se desfazer do choque. Mas evidentemente seu caminho não é clínico; ele parte do sonho para entender os processos de formação do pensamento. Suspeita que a condensação e o deslocamento, mecanismos descritos por Freud como primordiais para a produção dos pensamentos latentes, já são resultado de um longo desenvolvimento. Centra-se então na ideia freudiana de inversão - transformação em seu contrário - e faz dela o seu próprio turning point. Freud utilizou a inversão para frisar a transformação, no sonho, de pensamentos em imagens visuais. Türcke desloca o eixo da investigação para o sonho traumático e traz a inversão para o campo da compulsão à repetição: "à medida que a repetição aos poucos torna o susto habitual, suportável, familiar, ela faz o próprio contrário dele. Ela o inverte" (Türcke, 2010a, p. 80).

 

Filogênese

É esse mecanismo de inversão que permite, na construção do argumento de Türcke, a passagem do sonho traumático à filogênese. "A compulsão à repetição traumática é o buraco de agulha filogenético para a cultura", ele escreve (Türcke, 2010a, p. 302). O diálogo com a psicanálise lhe permite avançar numa tese: na origem da cultura está o trauma, o terror indizível diante do desconhecido e as formas pelas quais os homens buscam extingui-lo. Os rituais de sacrifício serviriam a esse propósito: "O sacrifício de modo algum se consegue compreender, senão a partir da compulsão à repetição traumática [...]. Para se libertar do susto natural pelo qual foi golpeada, a horda de hominídios golpeia-se mais uma vez a si mesma" (Türcke, 2010a, p. 83). Aqui o mecanismo de inversão preside a cena: nos rituais de sacrifício o grupo repete consigo mesmo, ativamente, aquilo que sobreveio de fora e, nessa medida, minimiza o trauma. Esse comportamento paradoxal e insistentemente repetido - aplicar em si próprio o veneno que se pretende evitar - é descrito como uma "fuga para frente": "Ela se assemelha a um processo de autovacinação, no qual o organismo administra a si mesmo uma dose do pavoroso, a fim de se tornar imune a ele, ou seja, volta-se contra si a fim de se preservar" (Türcke, 2010b, p. 133).

A ideia de uma fuga para a frente é uma boa contribuição de Türcke à psicanálise. Ainda que - ou talvez por isso - seja proposta a partir de uma construção filogenética, essa paradoxal combinação de autopreservação e autodestruição possui um valor operatório na clínica contemporânea atual que, de fato, a confirma. A noção indica de maneira simples e precisa o que está em jogo nas doenças psicossomáticas, no pânico ou nas compulsões, não dando margem à repulsa moralista que costuma imperar diante dos funcionamentos autodestrutivos. Qualquer psicanalista com alguma sagacidade seria capaz de reconhecer, no complexo de ideias que essa noção envolve, a forma pela qual os sujeitos de nossa época respondem aos traumas. Türcke talvez chamasse isso de retorno ao fundamento. Porém o que ele pretende com a noção de fuga para a frente está para além da operacionalidade clínica. Ele suspeita que essa repetição compulsiva pela qual um sujeito inocula o traumático em si mesmo seja o berço do que mais tarde seria chamado de pensamento e de conceito. "Talvez ela tenha sido algo mais: um criador de cultura de primeira ordem" (Türcke, 2010b, p. 134).

A compulsão à repetição como criadora de cultura. Essa tese não é estranha a Ferenczi, que também empreende uma reconstrução filogenética centrada na catástrofe - outro nome dado ao trauma - para explicar o desenvolvimento sensorial e psíquico dos seres humanos. "Se alguém me pedisse para resumir em uma única palavra o conjunto da temática ferencziana", escreve Maria Torok, "seria essa - catástrofe - e seus sinônimos: traumas, acidentes, afecções, pathos" (Torok, 1982, p. 149). Ferenczi expõe seu argumento filogenético em Katastrófak - livro publicado em outros idiomas sob o título de "Thalassa" (1924/1993) - e o apresenta como uma construção bioanalítica, uma conjunção entre psicanálise e biologia. Propõe nesse livro uma analogia entre os processos filogenéticos, perigenéticos e ontogenéticos: todos eles seriam fruto de mudanças súbitas do meio que obrigam os indivíduos e as espécies a inventarem defesas que são, ao mesmo tempo, formas de expansão. Trata-se de defesas porque são reações ao trauma; trata-se de conquistas porque implicam invenções de formas ou habilidades inéditas. Todo desenvolvimento decorre da repetição de catástrofes já vividas, tanto no plano filogenético quanto no plano individual. É como se cada indivíduo trouxesse consigo todos os traumas que sobrevieram à sua espécie e à própria vida, sendo sua função liquidá-los, descarregá-los1. Como esse acúmulo não pode ser descarregado de uma única vez, ele se vê obrigado a repeti-los incansavelmente, descobrindo maneiras novas de fazê-lo. É desse modo que a compulsão à repetição recebe, em Ferenczi, uma positividade. Trauma e criação jogam no mesmo time: nem as transformações subjetivas nem as formações da cultura resultam de um aprimoramento progressivo da humanidade, mas são impelidas por traumas ou catástrofes ambientais. Nesse processo "a destruição é causa do devir" (Ferenczi, 1926/1993), como ele escreve, apropriando-se do mote de Sabina Spilrein. Mas em "Thalassa" o mote sofre uma volta a mais: a causa do devir onto e filogenético estaria, em última instância, na destruição que os seres são capazes de infligir a si mesmos. É assim que Ferenczi explica o desenvolvimento de novos órgãos e de novas possibilidades subjetivas e culturais. A criação se faria através de um processo de autodestruição ativa.

 

Autotomia, autoplastia, identificação com o agressor

Três conceitos ferenczianos nos permitem entender mais claramente esse processo, por meio do qual o sujeito e a cultura se constituem. O primeiro é o de autotomia: descrita por zoologistas, a autotomia é uma defesa utilizada por certos animais que, diante de uma situação de perigo, se desfazem de parte de seu próprio corpo (os lagartos, por exemplo). Ferenczi relaciona este livrar-se daquilo que incomoda ao preço de livrar-se de uma parte de si ao modo pelo qual os homens reagem ao trauma, utilizando uma defesa mais primária do que o recalcamento: a autoclivagem psíquica. No recalcamento, o eu envia as representações inconciliáveis para o inconsciente a fim de manter sua integridade; na autoclivagem o eu se dissocia, fragmenta-se em partes que não mantêm contato entre si, pulveriza-se.

O outro conceito, igualmente articulado ao mecanismo de clivagem psíquica, é o de autoplastia. Na impossibilidade de transformar o mundo para adequá-lo a si - comportamento denominado aloplástico - os seres vivos terminam por responder às catástrofes transformando seu corpo e seu modo de viver - comportamento denominado autoplástico. Contudo, a autoplastia é impossível sem destruição, parcial ou total, do corpo e do eu. "O que é o trauma? Comoção, reação a uma excitação num modo mais autoplástico (que modifica o eu) do que aloplástico (que modifica a excitação). Essa neoformação do eu é impossível sem uma prévia destruição parcial ou total, ou sem dissolução do eu precedente" (Ferenczi, 30-07-1932/1990, p. 227). Destruir-se para preservar-se é o processo utilizado na construção filogenética da espécie humana; curiosamente, ele é também claramente encontrado em formas subjetivas contemporâneas. É ele que, como já foi dito, explica os comportamentos compulsivos, os fenômenos de pânico, as doenças psicossomáticas. Em todos esses casos "a autodestruição, enquanto fator que liberta do terror, será preferida ao sofrimento mudo" (Ferenczi, 1934/1992, p. 111).

Entretanto, autoplastia implica mais do que destruição, e esse é o ponto de virada que aproxima Türcke de Ferenczi: em ambos um mecanismo defensivo é simultaneamente um processo de expansão. Em Ferenczi, todo processo criativo é necessariamente autoplástico. E assim, nos dois autores, trauma e criação aparecem conjugados: no intuito de proteger-se do que provoca o terror, o sujeito provoca - ativamente - a sua própria destruição; é justamente esse processo autodestrutivo que vai levá-lo a inventar formas novas ou mais sofisticadas de vida, aí incluindo-se a memória, a inteligência, o pensamento, a linguagem. É desse modo que Ferenczi explica, por exemplo, o surgimento do intelecto: "O intelecto só nasce a partir do sofrimento [...]. Apresentação paradoxal: o intelecto não nasce simplesmente de sofrimentos comuns, mas só do sofrimento traumático" (Ferenczi, 1931/1992, p. 254). A ideia fica mais clara com o terceiro conceito proposto por Ferenczi para pensar a constituição do sujeito e da cultura: o de identificação com o agressor.

De início, ele apresenta o fenômeno como uma consequência da vulnerabilidade e do temor das crianças diante dos adultos. "Mas esse medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesmas, e a identificar-se totalmente com o agressor" (Ferenczi, 1933/1992, p. 102).

Esse conceito também é utilizado por Türcke, ainda que de modo crítico: ele reconhece seu parentesco com a noção de fuga para frente - "a identificação com o agressor é, portanto, a face interior daquele ato de legítima defesa, daquela fuga para frente, que vista por fora aparece como compulsão traumática à repetição" (Türcke, 2010b, p. 143 nota); ao mesmo tempo, ele denuncia o quanto a psicanálise teria limitado o alcance do fenômeno, reduzindo-o a figuras da família burguesa: "É fato que já em Freud aparece a situação à qual se dá o nome de ‘identificação com o agressor’, mas a fórmula ainda não. Somente a sua filha Anna viria a cunhá-la e a limitar ainda mais seu campo de significados. O ‘agressor’ é agora apenas o pai poderoso, o pavor traumático só continua a ser um tema quando este o desencadeia ou o representa" (Tücke, 2010b, p. 143 nota). Atribuindo a nomeação do conceito a Anna Freud, Türcke o vê duplamente domesticado: restrito ao contexto familiar burguês e ligado a um mecanismo psíquico mais desenvolvido do que a repetição traumática - o mecanismo de identificação.

Contudo, uma tal domesticação não aparece em Ferenczi. Se de início ele restringe a identificação com o agressor a uma situação de abuso infantil - portanto, a uma cena familiar - em seguida ele amplia o escopo do conceito2, referindo-o a um processo mais básico do psiquismo, o mimetismo, que constitui a relação eu/mundo nas situações de choque. Embora Ferenczi utilize o termo identificação, seria mais exato chamar esse mecanismo de incorporação do agressor, pois a identificação supõe um eu constituído que, no mimetismo, está ausente. "Por que aquele que é tomado de terror imita, em sua angústia, os traços do rosto aterrador? [...] Na origem, um efeito de choque. Magia de imitação?" (Ferenczi, 29-05-1932/1990, p. 150). Para ele, o mimetismo possui uma dupla face. Por um lado, implica a submissão do sujeito a uma vontade estranha: "Quando um limite é transposto, o indivíduo transforma-se, submete-se à força superior, identifica-se forçosamente com a vontade do mundo circundante" (Ferenczi, 1932/1992, p. 265). Por outro lado, a imitação apresenta uma face criadora, podendo o psiquismo tirar proveito da situação. Türcke chamaria isso de "um mimetismo que ultrapassa a si mesmo" (Türcke, 2010b, p. 133). É quando alguém passa a fazer uso do terror experimentado para, de algum modo, tomar-lhe as rédeas, inaugurando com isso formas de funcionamento mais elaboradas.

É assim que Ferenczi explica o surgimento da memória e da linguagem. "As impressões do mimetismo traumático são utilizadas como traços mnésicos úteis ao eu." (Ferenczi, 29-05-1932/1990, p. 151). Para ele, o trauma não seria apenas uma ferida na memória mas, paradoxalmente, aquilo que deve constituí-la: "A memória é uma coleção de cicatrizes de choques no eu" (29-05-1932/1990, p. 150). É também da imitação utilizada em situações atemorizantes que provém a linguagem: "Falar é imitar. O gesto e a fala (voz) imitam objetos do mundo circundante [...]. Quando tenho medo do cão, torno-me cão [...]. A fala é um relato da história do trauma" (Ferenczi, 01-06-1932/1990, p. 151).

 

Considerações finais

Ainda que os pontos de convergência entre Ferenczi e Türcke sejam surpreendentes, não devemos nos enganar com essa afinidade. Embora ambos construam seus argumentos em torno do trauma e da repetição, mesmo que tenham interesse pelos primórdios psíquicos e filogenéticos, e ainda que resgatem a relação da psicanálise com a materialidade corporal - não por acaso, Ferenczi é considerado precursor da psicossomática - há entre os dois uma diferença marcante de princípios. A arquitetura é semelhante, mas não o solo a partir do qual ela se ergue.

Primeiro ponto. Ferenczi concebe a criação de uma maneira mais complexa do que Türcke. A retidão e inexorabilidade de uma fuga para frente são insuficientes para dar conta dos processos criativos que, no psicanalista húngaro, envolvem uma combinação de movimentos e temporalidades contraditórios. É que a autoplastia ferencziana combina um movimento para a frente com um movimento para trás: se cada conquista é a repetição de catástrofes já vividas, ela é também a tentativa de retorno à situação que teria precedido o trauma. Aqui não se trata de um retorno ao inorgânico, mas de um retorno à vida sem terror e sem angústia. A criação é movida pela catastrófica necessidade e sua repetição compulsiva, mas envolve, ao mesmo tempo, um retorno ao paraíso da quietude e do descanso - Thalassa. Ora, uma concepção unidirecional e monolítica de desenvolvimento não é compatível com esse tempo paradoxal. Há, em Ferenczi, um projetar-se para o futuro que é ao mesmo tempo um regressar, de modo que os próprios termos "progressão" e "regressão" estão sendo a todo tempo desconstruídos em seus textos. Seria possível perceber, nessa reação à catástrofe que é, simultaneamente, uma promessa de redenção, a combinação de restauração e utopia que caracteriza o messianismo romântico.

O messianismo judaico contém duas tendências ao mesmo tempo intimamente ligadas e contraditórias: uma corrente restauradora, voltada para o restabelecimento de um estado ideal do passado [...] uma harmonia edênica quebrada, e uma corrente utópica, aspirando a um futuro radicalmente novo [...]. A ideia messiânica não se cristaliza senão a partir de sua combinação (Löwy, 1989, p. 20).

Não apenas pelo privilégio conferido à catástrofe, ideia profundamente arraigada à cultura judaica, mas por suas posições políticas na psicanálise e fora dela, Ferenczi poderia facilmente integrar o grupo apontado por Michael Löwy como de protagonistas do judaísmo libertário na Europa Central no início do século XX. Sob este aspecto, seu solo é mais próximo do de Walter Benjamin e diverso do de Türcke, para quem pode haver utopia, mas jamais restauração ou quietude - só haveria saída para a frente. A compulsão à repetição, por ele considerada como a única pulsão especificamente humana, implica um trabalho sem parada e sem descanso, implacável, aprisionante. Talvez aqui estejamos mais próximos de uma ética protestante do que do messianismo judaico.

Segundo ponto. O ponto nevrálgico da discordância está no modo pelo qual Ferenczi e Türcke concebem as pulsões e os começos. Türcke acredita que na origem da subjetividade e da cultura o que existe é o terror traumático, e por isso faz da compulsão à repetição a pulsão humana por excelência. Critica Freud porque este postula, na origem, um "estado de repouso inorgânico" (Türcke, 2010, p. 153), fazendo da pulsão de morte a pulsão primeira: Thanatos seria um retorno ao inanimado. Para Turcke, em contrapartida, o impulso para debelar o terror só pode conduzir a uma fuga para a frente, e não a um retorno ao inorgânico. Considera que a aposta na dimensão regressiva da pulsão de morte é uma tentativa de apaziguá-la, encobrindo o poder criador de cultura da compulsão à repetição. Todavia, o filósofo alemão parece não levar em conta o fato de que a pulsão de morte tem, em Freud, um segundo capítulo. Ele se encontra no ensaio "A denegação", de 1925. Nesse texto, Freud se afasta do modelo homeostático ao qual teria submetido a pulsão de morte e a apresenta em sua dimensão positiva, criadora. Associada à capacidade de separar-se e de dizer não, ela traria aos homens a possibilidade do julgamento e do pensamento - bem longe do princípio de Nirvana ao qual a pulsão fora submetida em "Além do princípio do prazer" (1920).

Essa face criadora da pulsão de morte será radicalizada por Ferenczi. O que ele privilegia em Thanatos é a sua vertente ativa de destruição. Ferenczi acredita que essas forças destrutivas são imanentes à vida e imprescindíveis à criação - daí justamente a ideia de "destruição como causa do devir". Existem, para ele, tendências imanentes de composição, que ele chama de pulsões de vida; e tendências imanentes de decomposição, que ele chama de pulsões de morte (Ferenczi, 1924/1993, p. 324-325). As tendências para a composição e para a decomposição não se opõem, mas participam de um movimento vital mais amplo: há uma oscilação para frente e para trás - e não apenas uma fuga para frente - de modo que os elementos que resultam de uma decomposição se tornam o material para a composição subsequente. Para Ferenczi, os organismos são capazes de se reconstruir a partir de seus próprios restos, utilizando até mesmo a força inversa produzida pela destruição para dar prosseguimento ao seu desenvolvimento. Essas ideias lhe permitem efetivar uma clínica que valoriza a dimensão criadora dos traumas e dos sintomas - mesmo os autodestrutivos, próprios dos sujeitos contemporâneos.

Aqui reside, certamente, a divergência maior entre Ferenczi e Türcke. Ferenczi é, antes de tudo, um clínico - bem mais do que Freud, que se definia como um pesquisador. Na clínica, é preciso que os conceitos tenham valor operatório, que eles possam de fato trabalhar para a extinção ou transformação do sofrimento dos sujeitos. Não é esse o propósito de Türcke: a importância de seus conceitos reside na sua potência crítica sobre a sociedade contemporânea. Potência que, efetivamente, eles têm. Ainda que crítica e clínica não se excluam, uma e outra configuram lugares de partida distintos, definindo os trajetos nos quais o filósofo e o psicanalista, em alguns momentos, se entrecruzam.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 20/04/2016
Aprovado para publicação em: 20/04/2016

Endereço para correspondência
Jô Gondar
E-mail: jogondar@uol.com.br

 

 

*Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, doutora em psicologia clínica, professora titular da UNIRIO.
1"Aquilo a que chamamos hereditariedade talvez seja apenas a transferência para a descendência da maior parte da tarefa dolorosa de liquidar os traumas; em contrapartida, o plasma germinal, enquanto herança, representa a soma das impressões traumáticas legadas pelos nossos ancestrais e retransmitidas aos indivíduos" (Ferenczi, 1924/1993, p. 303). O problema é que o processo de liquidar os traumas gera novas vidas e novos traumas, de modo que a compulsão à repetição nunca se esgota.
2Ainda que a ideia estivesse presente desde muito antes. Em Thalassa, por exemplo, Ferenczi apresenta alguns pontos de vista bioanalíticos a propósito da evolução orgânica: "A adaptação implica [...] transformar uma perturbação (sempre dolorosa no começo) em satisfação. Isso ocorre por identificação com o estímulo perturbador e, depois, introjeção deste; assim, o episódio perturbador torna-se uma parte do ego (uma pulsão) e o mundo interno (microcosmo) passa a ser assim o reflexo do meio ambiente e de suas catástrofes" (Ferenczi, 1924/1993, p. 324, nota).

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