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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.1 Rio de Janeiro jun. 2017

 

EDITORIAL

 

Publicar psicanálise

 

 

Publicar psicanálise é uma prática indissociável do movimento psicanalítico. Desde os momentos embrionários desse movimento, Freud se mostra determinado, com admiráveis vigor e rigor, a apresentá-lo à comunidade acadêmica que o cerca, ímpeto decisivo para a dimensão que sua práxis alcança na cultura. Insuflado por um ideal científico que perpassa grande parte de seu trabalho, o primeiro dos psicanalistas almeja um lugar para a psicanálise no discurso da ciência de sua época, submetendo-a, em certa medida, aos moldes e protocolos de formatação e circulação das produções científicas. Assim, inaugura-se toda uma tradição de disseminação e transmissão do saber construído a partir da experiência clínica e de um olhar acurado sobre a sociedade. No entanto, por constituir um campo absolutamente ímpar no panorama acadêmico desde o início, o saber da psicanálise não se permite moldar e formatar por inteiro de acordo com os padrões vigentes de publicação, de maneira que as tensões existentes entre a psicanálise e a ciência repercutem no ato de publicar psicanálise, em especial no grande conjunto de periódicos voltados para esse campo do saber. Há, portanto, uma especificidade essencial do saber da psicanálise, que traz dificuldades para sua circulação pelas vias tradicionais da ciência e, ao mesmo tempo, garante sua transmissão.

Nessa perspectiva, no começo do Seminário O avesso da psicanálise, lemos as considerações de Lacan (1969-1970) sobre a primeira tese produzida sobre sua obra. Num tom bastante respeitoso diante da "imensa boa-vontade" da autora em questão, ele não hesita em apontar a distorção obrigatória que a tradução do discurso psicanalítico ao discurso universitário promove. Para ele, o mínimo que transparece é que sua obra não se presta bem a uma tese acadêmica - trabalho que, ao sucumbir às leis próprias de um discurso estritamente universitário, impõe refrações e deformações ao discurso da psicanálise que correspondem ao que ele chama de um "desaprumo fundamental".

Apesar da advertência de Lacan de que tal dificuldade atingirá todos aqueles que porventura se arriscarem nessa empreitada, quase 50 anos depois ainda estamos aqui, pesquisando com a orientação da psicanálise, escrevendo dissertações e teses em profusão, publicando artigos em periódicos científicos. Nessa nossa persistência, é preciso não perder de vista o lugar da psicanálise no espaço acadêmico: um lugar às margens do discurso estritamente universitário, mas também um lugar de circulação do saber, de trocas e debates. Diante dos riscos de um desaprumo, alia-se as especificidades metodológicas da pesquisa em psicanálise - que articula a teoria psicanalítica, o saber inconsciente e o real da clínica - com as exigências protocolares da academia - tal como a capacidade de interlocução com outros discursos e o empenho numa formalização passível de transmissão.

Os artigos que compõem o presente número da revista Tempo Psicanalítico são representativos da especificidade fundamental que marca nosso campo e da resistência de seus pesquisadores, que não recuam frente às exigências imperiosas do discurso da ciência contemporâneo e sustentam a transmissão e a circulação do saber que produzem. Trata-se de trabalhos orientados por diferentes vertentes teóricas da psicanálise, mas que têm em comum o mais essencial dos ensinamentos freudianos: a elaboração de um saber que se funda e se sustenta num não saber radical. Essa particularidade mais elementar da pesquisa em psicanálise se apresenta, aqui, em diversificadas modalidades metodológicas: trabalhos que visam revisitar e atualizar a teoria; que se propõem a abordar o real do mundo em que vivemos e seus efeitos subjetivos a partir das ferramentas conceituais da psicanálise; que expõem novas interlocuções com outros campos do saber e visadas singulares sobre a clínica. Convidamos vocês, leitores, a participar da circulação do saber que aqui veiculamos, contribuindo assim para a constante e necessária reinvenção do ato inaugurado pelo desejo freudiano de transmissão.

 

 

Referência

Lacan, J. (1969-1970/1992). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

 

 

Daniela Teixeira Dutra Viola
Pedro Sobrino Laureano
Alexandra de Gouvêa Vianna

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