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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.1 Rio de Janeiro June 2017

 

ARTIGOS

 

Os primórdios do tratamento de ensaio no Caso Elisabeth

 

The beginnings of the of essay's treatment in Elisabeth's Case

 

 

Fabiano Chagas Rabêlo*

Universidade Federal do Piauí - UFPI - Brasil
Universidade Federal do Ceará - UFC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Retomam-se as primeiras sessões do Caso Elisabeth à luz do procedimento de tratamento de ensaio a fim de aproximar essa técnica de um conjunto de intervenções que, nesse contexto, recebem o nome de tratamento placebo. Este constitui uma reação a um impasse clínico envolvendo uma questão diagnóstica a partir do qual Freud se interroga sobre a adequação da paciente ao tratamento. Ao mesmo tempo que verifica as condições para o início do tratamento, Freud busca instaurar uma discursividade fundamentada no saber inconsciente. Quatro eixos norteiam sua investigação: o destino dos afetos; a repercussão do sintoma nos vínculos sociais e na capacidade de fruição; as expressões de prazer evocadas pela estimulação das zonas histerógenas e as manifestações do recalcado na condição de formações do inconsciente. Produz-se então a transição de uma abordagem médica para uma outra, psicoterápica e analítica, ainda em construção. Propõe-se que essa etapa do tratamento termina quando se inicia uma sequência de intervenções interpretativas.

Palavras-chave: psicanálise, tratamento de ensaio, técnica, Caso Elisabeth, tratamento placebo.


ABSTRACT

The first sessions of the Elisabeth case are resumed in the light of the trial treatment procedure in order to bring this technique closer to a set of interventions that are now called placebo treatment. This is a reaction to a clinical impasse involving a diagnostic question from which Freud questions the patient's suitability for treatment. At the same time as it verifies the conditions for the beginning of the treatment, Freud seeks to establish a discursivity based on the unconscious knowledge. 4 axes guide their investigation: the destiny of the affections; The repercussion of the symptom on social bonds and on the ability to enjoy; The expressions of pleasure evoked by the stimulation of the hysterogenic zones and the manifestations of the repressed in the condition of formations of the unconscious. Then there is the transition from one medical approach to another, psychotherapeutic and analytical. It is proposed that this stage of treatment ends when a sequence of interpretive interventions is initiated.

Keywords: psychoanalyses, technique, essay's treatment, Elisabeth's Case, placebo's treatment.


 

 

Introdução

Este artigo se apoia numa pesquisa bibliográfica que discute a construção da técnica freudiana no contexto da pré-história da psicanálise. Enfoca-se o Caso Elisabeth von R., publicado nos Estudos sobre histeria (Breuer, & Freud, 1895/2000), centrando a atenção nos trechos que descrevem as suas primeiras sessões. É possível constatar a partir do relato desses encontros iniciais que Freud busca verificar a analisabilidade de sua paciente e produzir as condições para que o tratamento aconteça. Desse modo, estabelece-se uma conexão dessa etapa do caso clínico com o que Freud (1913/1997) denomina anos depois tratamento de ensaio. Destaca-se a expressão tratamento placebo mencionada em determinado momento do caso Elisabeth para comentá-la à luz das contribuições posteriores de Freud. Com isso, defende-se que esse procedimento pode ser tomado como uma etapa precursora do tratamento de ensaio.

Ainda que se pondere não ser possível falar de psicanálise nesse momento, haja vista que, para isso acontecer, falta à clínica freudiana abandonar a teoria da sedução e a hipnose, além de adotar a associação livre como regra fundamental, deve-se admitir que o tratamento que Freud oferece nesse momento já se apoia na referência ao inconsciente, no esboço de uma teoria do recalque e na etiologia sexual da neurose. Acentua-se daí, como tarefa principal do tratamento placebo, propiciar a transição de uma proposta de tratamento organizada em torno dos parâmetros da clínica médica para um procedimento terapêutico ordenado a partir de critérios clínicos analíticos. Toma-se daí como condição prévia para o início do tratamento a introdução de uma causalidade inconsciente na clínica.

Primeiramente, realiza-se uma apresentação sumária da proposta de tratamento de ensaio, ressaltando suas principais funções e a sua articulação com a técnica psicanalítica. Em seguida, para acentuar a especificidade da técnica freudiana nesse momento, contextualiza-se o Caso Elisabeth em relação aos outros casos publicados por Freud nos Estudos. Comenta-se então, passo a passo, o desenrolar do tratamento: a realização do encaminhamento, o estabelecimento das balizas diagnósticas e a instauração de uma modalidade discursiva diferenciada. Nesse ponto, acentua-se uma dificuldade encontrada por Freud a respeito da articulação entre o mecanismo de produção dos sintomas e sua determinação inconsciente. A problematização dessa dificuldade e sua consequente superação introduz o tratamento em uma nova etapa, pavimentando o caminho para uma sequência de interpretações.

A referência principal na qual esta pesquisa se apoia são os textos Estudos sobre histeria (Breuer, & Freud, 1895/2000) e o artigo "Sobre o início do tratamento" (Freud, 1913/1997). Quando necessário, são citados outros textos de Freud, em especial os da década de 1890. Contudo, algumas obras posteriores são utilizadas, especialmente os artigos que tratam da técnica e da etiologia da neurose. A referência a eles torna possível estabelecer retroativamente uma linha cronológica e lógica que ajuda a situar com mais precisão o projeto clínico freudiano: suas experimentações, os diferentes momentos de desenvolvimento da técnica e o tempo necessário para a tradução dessa experiência em teoria.

Também é feita referência a comentadores, em livros, sem restrição de datas, e artigos indexados publicados nos últimos 10 anos. Nesse caso, as pesquisas foram realizadas a partir das plataformas PEPSIC, SCIELO e BVS-Saúde, tomando como termos de busca as palavras: psicanálise, Caso Elisabeth, técnica e tratamento de ensaio.

 

O tratamento de ensaio

A proposta de tratamento de ensaio surge como resultado de um esforço de concatenação das diretrizes da técnica psicanalítica. Tais diretrizes são construídas ao longo de várias décadas de experimentações clínicas. Por isso, sua origem remonta à prática freudiana em um momento anterior à consolidação do método psicanalítico (Freud, 1913/1997). Por outro lado, deve-se ter em vista que sua formalização só se conclui após a designação da associação livre como regra fundamental (Freud, 1909/1997) e a consolidação de uma definição conceitual da transferência (Freud, 1912/1997; 1914/1997).

A função principal do tratamento de ensaio é situar as balizas que franqueiam a entrada no tratamento psicanalítico propriamente dito. Seu pressuposto é que, para que uma análise ocorra, faz-se necessário produzir uma transformação nos modos de discursividade que orientam a relação médico-paciente e as trocas sociais cotidianas. Daí a importância de distinguir o modo de operar com a fala na psicanálise em contraste com a clínica médica e o discurso espontâneo comum.

No primeiro caso, trata-se de uma relação constituída conforme o modelo da clínica clássica, no qual o médico intervém a partir do saber que ele detém sobre a fisiologia do corpo. Aqui o olhar do médico assume uma função de destaque na organização dos sinais e na criação de uma racionalidade que confere à doença uma dimensão própria e independente (Foucault, 1977). No segundo caso, as interações estão ordenadas em torno de uma dialogicidade intersubjetiva pautada numa antecipação imaginária da significação (Lacan, 1953-1954/1986).

Diante dessa diferença, pode-se afirmar que, apesar de ter surgido da medicina clássica, a psicanálise difere radicalmente dela pela introdução em seu âmago de uma causalidade inconsciente. Ela põe em questão o próprio saber médico na medida em que interroga um ponto cego nele que é evidenciado no sofrimento dos chamados doentes dos nervos. É a partir da problematização desse hiato do saber médico que a psicanálise se constitui (Maurano, 2010). Também é possível dizer que a instauração de uma situação analítica constitui um processo artificial, que não possui equivalentes com outras formas de vínculos sociais pré-existentes (Freud, 1914/1997).

Dessa forma, o primeiro desafio para o médico/analista está em introduzir uma causalidade inconsciente no discurso do paciente. Tal mudança não ocorre de modo automático, exigindo do analista uma participação ativa (Freud, 1919/1997; Sousa, & Coelho, 2012) e uma sólida convicção nas bases do tratamento que conduz (Breuer, & Freud, 1895/2000).

Do exposto, é possível afirmar que, no Caso Elisabeth, a transição de um discurso modulado segundo a clínica médica para um laço social orientado em direção a uma psicoterapia analítica já antecipa algumas funções que serão incorporadas futuramente às entrevistas iniciais. Uma delas é a função diagnóstica. Aqui é possível perceber como Freud paulatinamente elabora o material advindo de sua experiência clínica, agregando a seus achados a contribuição da psiquiatria clássica. Nesse ponto, deve-se ressaltar também a função desempenhada pela metapsicologia, ainda nos seus primórdios, que ocupa para Freud o lugar de bússola na investigação diagnóstica (Baratto, 2010; Gallegos, 2012; Honda, 2013; Vidal, 2010).

Uma outra função das entrevistas iniciais ainda no nascedouro é promover uma historização pelo paciente de sua vida e de seu sintoma (Lacan, 1953-1954/1986). Assim, por meio desse expediente, processa-se uma mudança de paradigma, de uma clínica escópica para uma clínica calcada na fala e nos seus efeitos. Com isso, o sintoma não é mais reduzido a uma expressão fenomênica de um sofrimento que deve ser regulado e minorado, assumindo a condição de produto do psiquismo, dos seus conflitos e divisão. Sua origem, por sua vez, remete à relação constitutiva do sujeito com uma alteridade e com um saber inconsciente que o habita (Quinet, 1992). Daí a historicização se apresentar como uma estratégia para interrogar os determinantes inconscientes do sintoma.

Afora as funções já elencadas, há algumas questões mais práticas e cotidianas que compõem o território das entrevistas iniciais e que estão presentes desde os primórdios da clínica freudiana: a determinação da frequência e duração do tratamento, a forma de realização do pagamento e o modo como proceder frente a contratempos, como faltas e atrasos. Esses pontos, que no âmbito da psicologia recebem a denominação de setting ou contrato, são herança da clínica médica no contexto burguês do exercício das profissões liberais (Gay, 1989) que, de certa forma, com algumas poucas modificações, ainda perduram. Por outro lado, isso não impede que essas mesmas questões sejam problematizadas e adaptadas aos atendimentos públicos e gratuitos, como Freud (1910/1997; 1919/1997) já propunha.

De um modo geral, vale a pena ressaltar a forma como Freud (1913/1997) trata essas questões. Ele não confere a elas uma autonomia, nem as eleva à condição de fundamento do tratamento. Trata-as como detalhes que devem ser abordados com franqueza e, ao mesmo tempo, objetividade, tendo em vista viabilizar a realização do tratamento e dar ao analista condições para que se dedique a ele com isenção e disponibilidade. Freud utiliza uma expressão metafórica para abordar seu estilo de negociação. Diz que procede na tratativa desses pontos com um martelo na mão. Na verdade, esse tom aparentemente dogmático e autoritário mostra-se um expediente para que se ocupe com aquilo que se apresenta como o verdadeiro entrave para o tratamento, as resistências. Além disso, é também uma forma de evitar a mecanização da técnica, distinguindo o que é contingente e variável no tratamento psicanalítico daquilo que é mais fundamental, do qual o analista não pode abdicar sob o risco de derivar para um outro modo de organização discursiva. Assim, o trato com o dinheiro e o tempo são abordados em função do manejo da transferência na clínica, o que exige uma resposta singular no caso-a-caso.

Dentre esses pontos, a duração do tratamento assume uma função estratégica. Freud alerta que o tratamento psicanalítico possui, via de regra, uma longa duração, fato que não deve ser omitido ao paciente nas primeiras sessões. A esse respeito, é pertinente destacar um episódio relatado na carta endereçada a Fliess de 11 de março de 1900. Nela, Freud (1962) descreve o caso de uma paciente que iniciara o tratamento há pouco tempo, substituindo o lugar em sua agenda de um outro, mais antigo, que teve que se ausentar por um longo período. Freud afirma então que essa nova paciente se encontra em "período de avaliação" (Probezeit) (Freud, 1962, p. 267, tradução nossa).

Freud (1913/1997) reservava para cada paciente uma hora do seu dia, de segunda a sábado, excetuando os feriados. Além disso, era dada a cada um deles a oportunidade de interromper a sequência de encontros a qualquer momento, sob a condição de estar advertido das consequências que um tratamento inconcluso acarreta e que uma eventual readmissão só acontecerá uma vez constatada disponibilidade na sua agenda. Por outro lado, Freud se reserva o direito de não prosseguir nas primeiras entrevistas caso não verificasse as condições adequadas para o tratamento.

Salienta-se aqui a proximidade conceitual e etimológica dos termos escolhidos para designar esse período das entrevistas iniciais: primeiramente tratamento placebo (Scheinbehandlung); depois, período de avaliação (Probezeit) e, por fim, tratamento de ensaio (Probebehandlung).

Em resumo, uma justificativa forte para a proposta de tratamento de ensaio é que a analisabilidade não é uma função do sintoma ou do setting, mas do sujeito (Quinet, 1992). Na psicanálise, o sujeito é efeito do Inconsciente, cuja causa encontra-se na linguagem e no gozo (Elia, 2000). Sua manifestação é sempre intermitente, cerceada pelos efeitos do recalque e pelos limites da linguagem. Daí a importância de uma zona de transição entre um discurso cotidiano para uma situação propícia à análise.

Uma vez concluídas essas considerações mais específicas sobre o tratamento de ensaio, será comentado o Caso Elisabeth para explicitar o momento de construção da técnica freudiana que ele encarna.

 

O lugar do Caso Elisabeth von R. nos Estudos sobre histeria

O encontro entre Elisabeth e Freud acontece no primeiro semestre de 1892, um pouco mais de um ano após o término do tratamento de Emmy e aproximadamente seis meses antes do início do tratamento de Lucy (Breuer, & Freud, 1895/2000). Apesar de contemporâneos, é importante demarcar uma diferença entre os dois: se, com Lucy, Freud não consegue fazer uso da hipnose, com Elisabeth a utilização desse recurso ocorre com frequência. Isso faz com que, no Caso Lucy, malgrado a curta duração, seja possível testemunhar o empenho mais acentuado de Freud em desenvolver estratégias alternativas à hipnose.

Por outro lado, como consequência dessa experimentação acontecida nas sessões com Lucy, Freud, no tratamento de Elisabeth, mesmo fazendo uso recorrente da hipnose, encontra-se menos dependente desse procedimento se comparado com Emmy, valendo-se de outros recursos quando julga necessário. Daí, a partir da leitura dos Casos Lucy e Elisabeth, pode-se afirmar que Freud já possui uma técnica própria, construída pela decantação das experimentações promovidas a partir do método catártico.

Tais mudanças na técnica, por sua vez, pressupõem uma modificação da explicação da divisão psíquica. Lembramos que o método catártico tem como premissa a ausência de comunicação entre as instâncias divididas do psiquismo, o que tornava imprescindível o uso da hipnose no tratamento. Freud, após reconhecer a existência da comunicação entre as instâncias psíquicas, será levado a conceber os processos de formação dos fenômenos histéricos de um modo até então inédito. Tal fato, por sua vez, desencadeia um novo modo de pensar o tratamento.

Em decorrência dessas modificações, há no Caso Elisabeth uma limitação do uso da hipnose. Sua aplicação não representa mais uma condição prévia e necessária, mas um recurso do qual o médico pode eventualmente se valer quando o relato do paciente em vigília se depara com um ponto de resistência mais acentuado que impede o avanço da fala e a elucidação do sintoma. Freud denomina esse momento de desenvolvimento da técnica análise hipnótica e investigação profunda (Breuer, & Freud, 1895/2000; Rabêlo, Dias, Pereira, Oliveira, & Oliveira, 2015).

É digno de nota que o substantivo análise denota um câmbio nos objetivos terapêuticos. Doravante a finalidade do tratamento desloca-se da catarse para a superação das resistências. Através da hipnose analítica, Freud busca alcançar uma transformação mais global e estável na conjuntura psíquica, não apenas um alívio momentâneo promovido pela descarga dos afetos (Darriba, & Bosse, 2013).

No artigo "Sobre psicoterapia", Freud (1905a/1997) explicita sua preferência pelo adjetivo analítico, situando-o em oposição à sugestão: enquanto a análise opera por retirada (conforme a metáfora de Leonardo da Vinci citada nesse texto) e por decomposição das produções psíquicas complexas (Freud, 1919/1997), os efeitos da sugestão (auxiliada ou não pela hipnose) resultam do acréscimo de novos elementos à organização psíquica (Freud, 1905a/1997). Já a hipnose, no contexto do método catártico, tem por função a "ampliação da consciência" (Erweiterung des Bewusstsein) (Freud, 1904/1997, p. 101) através do mascaramento das resistências psíquicas. Logo, o abandono da hipnose surge da percepção de que mais importante do que ampliar o escopo da consciência é promover a troca entre as instâncias psíquicas divididas.

Sobre esse ponto, é pertinente destacar que muito provavelmente o elemento central para o entendimento do rompimento entre Breuer e Freud seja a referência ao inconsciente, que, durante os Estudos, nas contribuições de Freud, vai gradualmente ganhando mais espaço e importância. Vale acentuar ainda que nada garante, uma vez reconhecido o fenômeno da divisão psíquica, a aceitação da hipótese do inconsciente. Breuer, por exemplo, referia-se a duas consciências, ao passo que Freud sustenta a existência de duas instâncias psíquicas radicalmente distintas em seu funcionamento. Janet, por sua vez, quando falava de Inconsciente, o fazia de modo informal e descritivo (Freud, 1925/1999). Ele não se valia da referência ao inconsciente para determinar a direção do tratamento.

Em Freud, por sua vez, há um longo percurso que se desdobra da investigação dos fenômenos clínicos nos quais constata os efeitos da divisão psíquica até o reconhecimento radical da importância da referência ao inconsciente para o tratamento. Para que isso ocorra, são fundamentais as suas primeiras elaborações sobre o mecanismo do recalque (Verdrängung) (Rabêlo, 2012).

Assim, a adoção da hipótese do inconsciente pressupõe uma atitude ética específica frente ao fato clínico, agenciando uma série de transformações na técnica e no modo de operar com o diagnóstico, o sintoma e a fala do paciente. Daí a advertência de Freud: faz-se necessária a presença de uma forte confiança na técnica para operar com ela. Acrescenta ainda que, no seu caso, tal confiança só foi adquirida a muito custo (Breuer, & Freud, 1895/2000).

A partir dessas afirmações, não deixa de ser curioso constatar no Caso Elisabeth a presença lado a lado de elementos que, com o desenvolvimento da técnica, são tensionados em relação a sua utilização no contexto do dispositivo analítico. Assim, nesse momento, a perspectiva de uma ação analítica convive lado a lado com a hipnose e a sugestão. Nesse contexto, o uso do divã é justificado como um recurso de apoio à sugestão, mas também como uma forma de deslocar a atenção da paciente para os seus processos internos, isto é, aquilo que se apresenta na franja da fronteira entre as instâncias psíquicas.

Uma outra diferença significativa na comparação entre Elisabeth e os outros casos de Freud nos Estudos diz respeito à abordagem do sintoma. Vale destacar que o tratamento de Lucy durou apenas 9 semanas, ao passo que o de Elisabeth se estendeu por 2 anos. Esse tratamento de duração mais prolongada possibilitou um deslindamento mais abrangente dos processos psíquicos e simbólicos na formação dos sintomas histéricos. Tal fato consolida o distanciamento de Freud em relação à hipótese de Breuer sobre a etiologia da histeria, que destaca a preponderância de fatores fisiológicos e o seu caráter congênito (Freud, 1914/1999), radicalizando a perspectiva de que há uma matriz sexual na etiologia da histeria.

Em resumo, defende-se que não se justifica nos outros casos de Freud nos Estudos a preocupação com essa etapa prévia e preparatória do tratamento, pois:

1) em Emmy, predominam as diretrizes do método catártico, no qual o uso da hipnose desempenha uma função análoga à das entrevistas iniciais, no sentido de estabelecer as condições para o início do tratamento. Além disso, durante o tratamento, ainda não está assentada para Freud a diferença entre a proposta de divisão psíquica de Breuer e a sua, fundada no Inconsciente;

2) Em Lucy, há um intenso exercício de experimentação diante da impossibilidade de hipnotizá-la. Freud persiste no tratamento mesmo sem o uso da hipnose, mas isso ocorre acidentalmente, por improviso. É perceptível ainda uma insegurança e uma falta de confiança na técnica. Nele, Freud esboça pela primeira vez uma formulação do mecanismo do recalque, rompendo definitivamente com a hipótese de Breuer sobre a etiologia da histeria. Apenas nos casos que se seguem ele abdica, de fato, do uso prévio da hipnose, optando pela fala em vigília e se deparando com as manifestações da resistência a nu;

3) O Caso Katharina constitui, ao nosso ver, uma situação de exceção. A ausência do uso da hipnose, a despreocupação com uma preparação e o seu caráter relâmpago - apenas um encontro casual - o caracterizam mais como uma experimentação pontual do que como uma investigação clínica sistematizada.

 

Tratamento placebo ou de ensaio?

Elisabeth é encaminhada por um médico conhecido de Freud que desconfiara da participação de fatores psicogênicos na produção de seus sintomas. Suas queixas principais são dores nas pernas, nas articulações e disfunções no andar. Mesmo sem identificar nela os traços distintivos clássicos de um quadro de histeria, o médico, que conhecia a história familiar da paciente, recorre a Freud, que, nessa época, já era reconhecido não apenas por suas pesquisas no campo da neurologia, mas, principalmente, pelo seu interesse pelas doenças nervosas e pelo tratamento pela fala.

O primeiro desafio do tratamento está, portanto, em determinar a natureza da afecção da qual Elisabeth padecia: se a sintomatologia apresentada tinha uma origem orgânica ou psicogênica. De forma criteriosa, Freud e seu colega recolhem e organizam os sinais apresentados pela paciente por meio de massagens e choques elétricos (eletroterapia).

Freud reconhece que apenas uma pequena melhora é obtida a partir daí. Por isso, emprega o termo tratamento placebo ou de aparência (Scheinbehandlung) (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 157, tradução nossa) para designar as 4 semanas durante as quais permanece fazendo uso desses procedimentos fisicalistas, só que sozinho, sem o auxílio de seu colega médico.

Defende-se que a expressão placebo só se justifica sob a ótica de uma concepção da clínica médica clássica, uma vez que Freud não podia prometer uma cura no sentido que um médico pode sustentar. Da perspectiva freudiana, essa etapa ganha uma outra justificativa prática. Em consonância com o que denomina tratamento de ensaio (Freud, 1913/1997), esses procedimentos iniciais visam investigar os sintomas, verificar neles a presença de seus determinantes psíquicos e preparar as condições para que a análise aconteça. Dessa forma, eles já constituem em si uma modalidade de tratamento integrada à proposta de uma psicoterapia analítica pela inclusão da hipótese do inconsciente, ainda que não se possa falar de um tratamento psicanalítico propriamente dito.

Cabe então perguntar: o que leva Freud, diante do quadro intrincado de Elisabeth, a se decidir pela preponderância dos componentes psíquicos na produção da sintomatologia em questão e, a partir daí, concluir pela aplicabilidade de sua proposta de tratamento pela fala? A questão não é simples, haja vista que desde o início Freud localiza em Elisabeth sinais de lesão no tecido muscular da coxa, o que, conforme uma explicação fisicalista, desautorizaria uma promessa de cura psicoterápica. Apesar dessa constatação, considera tais lesões insuficientes para explicar o sofrimento da paciente. Com isso, trabalha com a hipótese diagnóstica de uma histeria atípica conjugada com uma afecção orgânica.

Vale lembrar que, para Freud, a principal manifestação da histeria é o sintoma conversivo, que coloca o problema de uma causalidade orgânica em questão. Sua origem não se explica por uma lesão no tecido do órgão afetado em decorrência de uma má-formação congênita, lesão por trauma, infecção ou intoxicação. Daí a proposta do mecanismo de conversão, que descreve o processo de formação dos sintomas corporais na histeria. A conversão é a transposição do afeto acumulado no psiquismo em sofrimento no corpo por meio do comprometimento da função de um órgão (Maurano, 2010).

Após exame clínico corporal, Freud (Breuer, & Freud, 1895/2000) descarta a presença de indícios que poderiam apontar para algumas doenças de causa orgânica e assinala uma particularidade: ao se locomover, Elisabeth adota uma postura curvada, mas não se utiliza de apoio. Tal postura, sublinha ele, diferencia-se nitidamente das características da marcha dos doentes que sofrem de afecções musculares, neurológicas e reumáticas.

Há nessa passagem do texto um fato que merece comentário. Embora a clínica psicanalítica promova um corte no campo de satisfação escópico com a introdução do divã, deve-se considerar que nela, ainda assim, o olhar possui uma relevância que deve ser situada e problematizada. Aqui o olhar, diferentemente da clínica médica, não é um instrumento de um conhecimento que toma o paciente como um objeto a ser investigado. O olhar do analista captura algo que o analisando dá a ver e que precisa ser depurado pela sua submissão às formações de seu saber inconsciente. Essa captura de uma cena que se atualiza como sem querer, espontaneamente, assume uma função estratégica nas entrevistas iniciais. Não é à toa que encontramos duas vinhetas clínicas no texto "Sobre o início do tratamento" (Freud, 1913/1997) que remetem à função do olhar nas entrevistas iniciais. Em ambas - os casos do jovem filósofo e da mulher pudica -, um ato do analisando evidencia uma posição de gozo que só com o avançar do atendimento é esclarecida. Talvez seja possível afirmar que algo semelhante acontece no atendimento de Elisabeth.

Além dessa forma diferenciada de andar, Freud (Breuer, & Freud, 1895/2000) identifica em Elisabeth uma atitude de bela indiferençaque acompanha suas queixas. Trata-se aqui de uma referência a Charcot que destaca um distanciamento altivo das histéricas no relato e expressão de seus sofrimentos. Freud explica esse fenômeno como um ganho resultante da formação do sintoma em função da obtenção de uma homeostase na economia psíquica. Desse modo, a mudança do destino dos afetos mediados pela conversão minora as manifestações de angústia, tão comum nas doenças nervosas. Ressalta ainda que, em Elisabeth, tal atitude de indiferença é permeada por uma inusitada expressão de "alegria e serenidade" (heitere Miene) (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 155, tradução nossa).

Diante dessa cena, é lícito ponderar que o pensamento mais óbvio e imediato que deve passar na cabeça de um médico é a suspeita de que se trata de uma tentativa de fingimento ou simulação. No entanto, Freud, antecipando-se às críticas de seus colegas médicos, argumenta que a falta de provas de uma etiologia física não desqualifica a veracidade do sofrimento. Chama atenção para a restrição imposta à vida da paciente pelos seus sintomas, em especial no que diz respeito a suas possibilidades de "locomoção" (Verkehr) e de "gozo" ou "fruição" (Genuss) (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 154, tradução nossa).

Propõe-se que essas duas palavras, que se repetem abundantemente ao longo do capítulo, constituem o eixo em torno do qual Freud constrói o caso clínico. É pertinente destacar a polissemia desses termos escolhidos para indicar os efeitos do sintoma na vida da paciente.

Verkehr pode significar locomoção, mas também pode ser traduzido por trânsito, circulação, troca e comércio. Além disso, no texto " Sobre a etiologia da histeria", há um outro uso da palavra Verkehr: quando aparece ao lado do adjetivo sexual - "geschlechtlichen " e "sexuell " (Freud, 1896/1997, p. 64, 67) - assume a significação de coito ou relação sexual.

É interessante acrescentar que nesse texto, ainda que defenda e explicite a teoria da sedução como elemento etiológico central das neuroses, Freud amplia os elementos desencadeantes do trauma para além do coito genital propriamente dito. Decorre daí que outras modalidades de trocas erógenas são reconhecidas como capazes de contribuir para a produção de efeitos traumáticos. Argumenta que o evento desencadeador do adoecimento pode ser intensificado por experiências anteriores e, por isso, adquirir importância patológica. Ao final, Freud advoga a favor da existência de uma cadeia etiológica mais complexa na produção das doenças dos nervos, sem, contudo, abrir mão da localização do evento traumático.

O problema é que, no Caso Elisabeth, esse suposto evento traumático é difícil de ser situado, mesmo com o apoio de eventos auxiliares. Daí que, com a recusa da primazia do fator congênito e na ausência de um evento traumático localizável, Freud supõe como causa do adoecimento a influência de um ímpeto sexual insatisfeito (Genuss) que perpassa os vínculos sociais e afetivos da paciente.

Daí a resposta à questão enunciada logo acima: é a convicção na influência desse componente sexual mobilizado nos vínculos familiares e sociais que leva Freud a descartar o caminho de uma explicação fisicalista e dedicar-se à elucidação dos fatores psicogênicos.

 

A inclusão do Inconsciente na explicação do sintoma

Nesse ponto, a investigação muda de ênfase: da oposição entre orgânico e psíquico o problema se desloca para o diagnóstico diferencial no campo das doenças nervosas. Com isso, várias propostas diagnósticas alternativas para explicar a sintomatologia de Elisabeth são elencadas, discutidas e confrontadas. Freud preocupa-se em refutar as descrições clínicas que colocam em primeiro plano o esgotamento de energia (neurastenia) e a insuficiência na capacidade de síntese psíquica (pitiatismo, segundo Janet).

Sobre esse último quadro nosográfico, discorda de modo radical da descrição encampada pelo médico francês discípulo de Charcot, que opta por explicar a histeria a partir de um rebaixamento congênito e global da atividade psíquica. Já a respeito da neurastenia, Freud aceita sua descrição clínica, mas a situa no âmbito de uma categoria específica de doenças nervosas qualitativamente diferente da histeria.

Em um texto publicado um ano antes dos Estudos, Freud (1894/1999) apresenta a distinção entre dois tipos de doença dos nervos: as neuroses atuais e as neuropsicoses de defesa. No grupo das neuroses atuais estão as neuroses de angústia e as neurastenias; já na categoria das neuropsicoses de defesa encontramos a histeria, a neurose obsessiva, a fobia e a paranoia. O elemento comum aos dois grupos é a presença de um componente sexual causador da perturbação afetiva. A diferença entre eles reside na mediação psíquica envolvida na produção do sofrimento.

Por isso afirma que nas neuroses atuais há uma transformação mais direta da energia sexual para o âmbito somático. Nelas, a cadeia etiológica é mais linear e fácil de ser localizada. Geralmente, trata-se de um evento recente que é responsável pelo excesso de tensão psíquica: uma experiência traumática ou um período longo de abstinência ou frustração. Essa tensão é convertida em um estado afetivo patológico, frequentemente a angústia.

Já no grupo das neuropsicoses, encontramos a incidência de uma vivência traumática na infância que é atualizada e refletida em experiências posteriores. Por se furtar à memória ou estar desvinculada de seus afetos originais, a lembrança dessas vivências não é acessível diretamente à consciência, o que leva Freud a defender como elemento principal para distinguir as duas categorias de doenças dos nervos a incidência do mecanismo do recalque: esse mecanismo de mediação psíquica estaria ausente nas neuroses atuais e atuante nas neuropsicoses de defesa.

Para afastar definitivamente o diagnóstico de neurastenia e de pitiatismo, Freud destaca a complexidade das produções psíquicas de Elisabeth e o seu vigor no exercício das atividades laborais e intelectuais. No entanto, como já salientamos, a principal constatação que o leva a inclinar-se para o diagnóstico de histeria é a influência do fator sexual nos sintomas corporais. Freud destaca uma sensibilidade especial quando Elisabeth é tocada nas zonas atingidas pela doença:

Seu rosto tomava uma expressão peculiar, mais próxima de prazer do que da dor, ela gritava - eu tive de pensar, algo como se tratasse de uma cócega impregnada de volúpia - seu rosto enrubesceu, sacudiu a cabeça, fechou os olhos, curvou o tronco para trás (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 155, tradução nossa).

Conclui então que os estímulos empregados no exame (choques e massagens) atingiram uma zona histérica/histerógena. É interessante destacar a variação na grafia do adjetivo que qualifica a parte do corpo atingida pelo sintoma conversivo. Na mesma página, há duas formas de escrita: "hysterische" e "hysterogenen" (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 156). Essa variação remete à tensão em torno da etiologia sexual das neuroses, uma vez que o neologismo hysterogen resulta de uma condensação das palavras hysterische e Erogen. Vale lembrar que nos "Três ensaios sobre a sexualidade" as partes do corpo mobilizadas pelas experiências de satisfação no curso do desenvolvimento psicossexual são denominas erógenas (erogene Zonen) (Freud, 1905b /1997, p. 76).

A partir da localização das zonas histerógenas através do exame, Freud formula o seguinte comentário. Acerca da expressão de Elisabeth quando estimulada, afirma que: "não corresponde a dor [...], talvez se aproxime mais de conteúdos de pensamentos que se escondem por trás da dor e que são evocados pela estimulação de partes do corpo aos quais estão associados" (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 156, tradução nossa).

O caráter pouco peculiar da parte do corpo escolhida para abrigar o sintoma - a musculatura e a pele de uma das coxas - leva Freud a supor a existência prévia de uma afecção somática. Então, propõe a seguinte explicação: a neurose não criou essa dor, antes "apoiou-se" nela (anlehnte) e exagerou a sua "significação" (Bedeutung) (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 156).

Vale lembrar que a palavra "apoio" (Anlehnung) (Freud, 1905b/1997, p. 86) também é empregada nos " Três ensaios" para designar a relação da pulsão com as funções de autopreservação. Trata-se de um conceito que articula as aptidões inatas da espécie com o exercício plástico das experiências de prazer e desprazer que caracterizam as práticas sexuais humanas. É a partir das vicissitudes da pulsão, caracterizada como um desvio dos instintos em relação a seus objetivos iniciais, que Freud vai explicar os processos que levam à formação do sintoma.

 

Um impasse no diagnóstico

Após o consentimento de Elisabeth para que fosse aplicado o tratamento pela fala, Freud se depara com uma dificuldade. De acordo com sua teoria, a divisão psíquica que está na origem da histeria tem como correlato a presença de um hiato de memória. Para ele, o conteúdo atingido por essa amnésia localizada não é perdido, mas isolado, posto fora do alcance da consciência.

A dificuldade nesse ponto do tratamento está na escassez de indícios desses hiatos de memória. Consequentemente, não haveria justificativa para o prosseguimento do tratamento, tampouco garantias de que ele pudesse surtir efeito.

Freud salienta que os conflitos apresentados até então se aproximam mais de segredos do que de corpos estranhos na consciência, como costuma se referir às representações recalcadas. Isto é, tratar-se-ia mais de conflitos no interior do campo da própria consciência.

Freud então prossegue o tratamento sem fazer uso da hipnose, reconstruindo a história de vida da paciente e de sua sintomatologia. Ou seja, há nessa escolha uma aposta de que existe um saber inconsciente atrelado ao sintoma e que ele se manifestará através da fala.

Nessa investigação, vivências de sofrimento são tocadas pelo relato da paciente, mas nada que esclarecesse sobre os processos psíquicos subjacentes à formação dos sintomas. Nesse ponto, recorre ao uso da hipnose, obtendo um resultado duvidoso: "Veja, eu não estou dormindo, eu não sou hipnotizável" (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 164, tradução nossa), afirma Elisabeth em tom de ironia e desafio.

Freud então passa a se valer de alguns procedimentos sugestivos. Com Elisabeth deitada no divã de olhos fechados, dirige-se a ela dizendo: "No momento em que eu tocar a sua testa, você me contará sem omissão o que surgir no seu olho interno ou o que for evocado por sua memória" (Breuer, & Freud, 1895/2000, p. 164, tradução nossa). É interessante notar aqui que Freud utiliza-se da sugestão e da hipnose como uma forma de deslocar a atenção do paciente para os processos internos e daí mobilizar as lembranças recalcadas.

Depois de alguns instantes de silêncio, Elisabeth começa a narrar um episódio que até então não havia mencionado por considerá-lo banal e sem importância. Esse episódio, tal qual outros rememorados até então, poderia ser enquadrado como mais um segredo, isto é, nada justificava supor nele o instante desencadeador do trauma psíquico que fora recalcado e que encontrou expressão pela via da conversão somática. Apesar disso, por associação, retroativamente, essa lembrança vincula-se a uma segunda experiência afetiva perpassada pela culpa. Isto é: o efeito traumático se produz na medida em que uma vivência cria vínculos com uma lembrança pré-existente permeada de afeto, estabelecendo com ela uma via de comunicação.

É assim que se cria uma associação conflituosa a partir do contraste entre o prazer que sentira na companhia do rapaz que a cortejava e o agravamento do quadro de saúde de seu pai durante o período em que esteve ausente. A autorrecriminação de ter sido responsável pela piora do pai em função de sua negligência por estar ocupada com atividades consideradas frívolas e egoístas transforma uma experiência originalmente prazerosa (a lembrança do encontro romântico) em desprazer.

Por essa via, um conteúdo recalcado anterior é atualizado numa experiência recente. O desprazer produzido por esse conflito liga-se então a sensações corporais, que doravante adquirem a função de representante do conflito psíquico, encarnando simbolicamente e de modo sobredeterminado vários conteúdos ideativos diferentes.

 

Conclusão: o início do ciclo das interpretações

No conjunto dos relatos clínicos publicados por Freud em 1895, o Caso Elisabeth representa um momento de síntese, revisão e aprofundamento das construções e hipóteses amealhadas até então. Tal síntese apoia-se na afirmação radical da hipótese do inconsciente e da etiologia sexual das neuroses e no uso experimental e diversificado dos procedimentos técnicos disponíveis. A conjunção desses fatores possibilitou uma investigação mais aprofundada das produções psíquicas de Elisabeth.

A partir da aproximação entre o procedimento de tratamento de ensaio e a expressão tratamento placebo, buscou-se situar os primórdios do desenvolvimento dessa proposta da técnica psicanalítica nas entrevistas iniciais do Caso Elisabeth. Definiu-se esse momento do tratamento como o período que vai do primeiro atendimento até o início de uma sequência de interpretações, que estavam de certo modo ausentes até então.

Durante todo o Caso Elisabeth, Freud conduz um tratamento de características mistas, isto é, fazendo uso de intervenções fisicalistas e psíquicas. A ideia de placebo que, numa tradução literal, significa tratamento de aparências, refere-se a procedimentos de resultados duvidosos, cuja eficácia remonta à interferência de um componente sugestivo. No contexto do texto freudiano, o uso da palavra placebo apoia-se no fato de que o tratamento fisicalista pode ser utilizado como suporte ao tratamento pela fala.

Tal fato distingue o tratamento placebo do tratamento de ensaio, no qual desde o início o psicanalista se abstém de outras técnicas, hipnóticas, sugestivas ou fisicalistas. No entanto, esses procedimentos possuem em comum a meta de preparar as condições para o início do tratamento analítico. Aqui se mantém o uso do termo análise pois, ainda que a rigor não esteja consolidada a técnica da associação livre e da transferência, já se percebe uma distância dos objetivos terapêuticos do método catártico.

Como resultado dessas transformações, é indicado que o tratamento de Elisabeth é atravessado por dois vetores: a consolidação da hipótese do inconsciente através da verificação dos seus efeitos na clínica e o reconhecimento da radicalidade da etiologia sexual das neuroses. Tal fato se expressa na problematização das manifestações clínicas de Elisabeth. Isso se faz notar: 1) no interesse pelo destino dos afetos a partir da expressão de bela indiferença; 2) pela investigação das repercussões dos sintomas nos vínculos sociais e na capacidade de fruição e gozo; 3) no destaque dado às expressões de prazer evocadas pela estimulação das zonas histerógenas e 4) na mobilização desse saber insabido do inconsciente pela acolhida das manifestações do retorno do recalcado.

Também é digna de nota a nomenclatura empregada para explicar e localizar as produções sintomáticas (relação de apoio e zonas histerógenas), que remete à tese da etiologia sexual. É frisado que tais expressões serão resgatadas posteriormente em sua obra, nos "Três ensaios sobre a sexualidade". Com isso, localiza-se no Caso Elisabeth um momento de tensão que precede o abandono da teoria de sedução e que se evidencia como um esforço de reordenamento dos fatores etiológicos na explicação da produção do adoecimento neurótico.

Por fim, é situado um momento estratégico que franqueia o início do trabalho analítico. Trata-se do instante em que se torna possível reconhecer no sintoma a expressão de um saber inconsciente, um saber que não se sabe (da perspectiva da consciência). A inclusão desse saber na explicação da gênese do sintoma implica um reordenamento dos operadores clínicos (semiologia, etiologia e diagnóstico), o que acentua a distinção entre a clínica médica e a psicanalítica. Da perspectiva de Freud, essa operação representa uma condição de possibilidade para que o sintoma seja interpretado.

Doravante, a interpretação em Freud assumirá, com o desenvolvimento da técnica, diferentes matizes e reformulações, principalmente com o abandono da teoria da sedução (Castilho, 2010) e da hipnose e a designação dos procedimentos da associação livre e da transferência (Costa e Silva, 2014).

 

 

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Artigo recebido em: 20/09/2016
Aprovado para publicação em: 23/05/2017

Endereço para correspondência
Fabiano Chagas Rabêlo
E-mail: fabrabelo@hotmail.com

 

 

*Psicanalista, professor da Universidade Federal do Piauí - UFPI, Doutorando em psicologia pela Universidade Federal do Ceará - UFC.

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