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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.1 Rio de Janeiro jun. 2017

 

ARTIGOS

 

O traumatismo, de Freud a Ferenczi

 

Le traumatisme, de Freud à Ferenczi

 

 

Cristina Lindenmeyer*

Universidade Paris VII - Diderot - Sorbonne Paris Cité - França
CRPMS - Brasil
Associação Universitária de Pesquisas em Psicopatologia Fundamental - Brasil

 

 


RESUMO

Nos dias de hoje, a noção de traumatismo está longe de ser uma noção desconhecida. Muito pelo contrário, pois o uso popular apossa-se dela ao empregá-la constantemente de mil e uma maneiras e, por vezes, dando-lhe um sentido confuso. Além do mais, o uso dessa noção não se limita à problemática do sujeito individual, podendo igualmente referir-se a adversidades vividas por grupos inteiros de pessoas. No entanto, apesar de quaisquer extrapolações teóricas ou puramente linguísticas às quais essa noção possa haver sido submetida, sua pertinência persiste tal qual, na medida em que nos ajuda a construir um sentido para os diversos relatos que encontramos nos consultórios clínicos. Neste texto, o autor retraça a concepção dessa noção por Freud e sua evolução nos trabalhos desenvolvidos por Ferenczi.

Palavras-chave: traumatismo, pavor, masoquismo, autodestruição, clivagem narcísica.


RÉSUMÉ

Aujourd'hui, la notion de traumatisme est loin d'être un concept inconnu. Bien au contraire, parce que l'usage populaire l'emporte en l'employant constamment de mille et une façons et lui donnant parfois un sens confus. En outre, l'utilisation de cette notion ne se limite pas à la problématique du sujet individuel, mais peut également se référer aux adversités rencontrées par des groupes entiers de personnes. Cependant, en dépit de toute extrapolation théorique ou purement linguistique à laquelle cette notion a pu être soumise, sa pertinence persiste en tant que telle, dans la mesure où elle nous aide à construire un sens pour les différents rapports que nous trouvons dans la clinique. Dans ce texte, l'auteur retrace la conception de cette notion par Freud et son évolution dans les travaux développés par Ferenczi.

Mots clés: traumatisme, effroi, masochisme, auto-destructivité, clivage narcissique.


 

 

Nos dias de hoje, a noção de traumatismo está longe de ser uma noção desconhecida. Muito pelo contrário, pois o uso popular apossa-se dela ao empregá-la constantemente de mil e uma maneiras e, por vezes, dando-lhe um sentido confuso. Além do mais, o uso dessa noção não se limita à problemática do sujeito individual, podendo igualmente referir-se a adversidades vividas por grupos inteiros de pessoas. No entanto, apesar de quaisquer extrapolações teóricas ou puramente linguísticas às quais essa noção possa haver sido submetida, sua pertinência persiste tal qual, na medida em que nos ajuda a construir um sentido para os diversos relatos que encontramos nos consultórios clínicos. Neste texto, retraço a concepção dessa noção por Freud e sua evolução nos trabalhos desenvolvidos por Ferenczi.

O ponto de vista econômico tal qual propunha Freud em "Para além do princípio de prazer" (Freud, 1919-1920/1996) reintroduz agora o debate sobre a problemática que envolve a noção de traumatismo psíquico tal qual proponho aqui.

 

A economia traumática

Na virada dos anos 20, Freud completa sua metapsicologia e apresenta a segunda tópica do aparelho psíquico. Essa reformulação concretiza-se pela necessidade de avaliar, do ponto de vista clínico, as sequelas traumáticas causadas pela Primeira Guerra Mundial.

Em "Para além do princípio de prazer" (Freud, 1919-1920/1996), o primeiro ponto ressaltado por Freud é a falta de preparação para um perigo mortal e a consequência deste: ser obrigado a reencenar continuamente um acontecimento doloroso. Freud acabará por identificar essa obrigação de reiterar como sendo de ordem pulsional, o que o levará a reconsiderar certos conceitos que havia defendido até então.

 

O pavor

Nos anos seguintes à Grande Guerra, era impossível não se confrontar com os visíveis estragos causados por ela. As teses precedentes mostram-se inviáveis perante a pulsão de morte e seus efeitos devastadores. O estudo acerca das neuroses de guerra entra no centro das atenções da psicanálise. No texto "Relatório de especialização acerca do tratamento elétrico das neuroses de guerra", Freud (1920/1996) ressalta o aspecto traumático da falta de preparação para uma situação de perigo. Para se defender de uma situação de perigo extremo, deve-se estar preparado para o risco de ser surpreendido por um ataque. Em certa medida, esses são os elementos de reflexão abordados por Freud em "Para além do princípio de prazer" (Freud, 1919-1920/1996). No entanto, nesse artigo, ele evoca não somente os vestígios endopsíquicos, mas igualmente aqueles que resultam de vivências reais.

Essas situações de extremo perigo, produzidas pelo trauma, não se distanciam da atividade pulsional; pelo contrário, aquelas estão entremeadas a esta, que de fato encontra-se no âmago desta estrutura complexa, mas em um novo estado, mórbido.

Essa hipótese da falta de preparação provoca o questionamento de dois pressupostos teóricos considerados até então irrevogáveis: o da dominação do princípio do prazer e o do sonho enquanto realização do desejo.

 

A compulsão à repetição

Esse questionamento sobre o traumatismo abre o livro "Para além do princípio de prazer" (Freud, 1919-1920/1996) e traduzir-se-á pela reavaliação das teses psicanalíticas, além do reconhecimento de seus limites (Freud, 1919-1920/1996, p. 277). Tal afirmação preliminar faz-se complementar por outra observação, segundo a qual se admite a existência de uma outra força precedendo à predominância do princípio do prazer.

Mas, então, devemos dizer que é bastante inexato falar de uma dominação do princípio de prazer sobre a sequência dos processos anímicos. Se tal dominação existisse, a imensa maioria de nossos processos anímicos deveria ser acompanhada pelo prazer ou conduzida ao prazer, apesar das experiências mais generalizantes contradizerem abertamente essa conclusão (Freud, 1919-1920/1996, p. 279).

Freud almeja compreender, então, o que fez falhar sua hipótese anterior. A partir da observação das neuroses de guerra e das brincadeiras de criança, Freud consegue a inspiração que lhe servirá de base para a aplicação do princípio de prazer.

O pavor ou o fator surpresa podem desencadear neuroses traumáticas. Nessa situação, tanto a angústia - que revela a antecipação do perigo - quanto o medo - que se relaciona a um objeto bem definido - são diferentes do pavor definido como "estado pelo qual passamos quando corremos um risco sem estarmos preparados, acentuando assim o fator de surpresa" (Freud, 1919-1920/1996, p. 282).

Os sonhos da neurose traumática envolvem esse constante retorno ao acontecimento traumatizante vivido pelo sujeito quando foi pego de surpresa. Ao mesmo tempo que a fixação ao trauma, desencadeia-se essa particularidade da obrigação de repetição dos acontecimentos dolorosos. Essa elaboração baseia-se em observações clínicas segundo as quais os doentes parecem retornar à situação traumatizante como se esta fosse ainda atual. É o que Freud chama de "fixação" ao momento do acontecimento traumatizante.

Mas é somente pela análise de uma brincadeira de crianças que Freud prova claramente a pertinência de sua observação acerca da repetição do acontecimento traumático. Através da reencenação do acontecimento doloroso encontramos, a posteriori, a satisfação psíquica.

Freud indaga-se por que a criança repete, brincando com um carretel, a mesma cena de quando sua mãe desapareceu. Tratar-se-ia aqui de uma pulsão de apropriação pela qual a criança toma uma posição ativa contra a passividade que a experiência de ser deixado pela mãe implica. Naquele momento, a criança "foi passiva, atingida por uma vivência, e agora escolhe um papel ativo, repetindo-a em uma espécie de jogo, ainda que ela seja carregada de remorso" (Freud, 1919-1920/1996, p. 286).

Mas essas observações são apenas temporárias, já que Freud volta rapidamente à obrigação de reiterar nas neuroses. Ao invés de elaborá-las, os neuróticos repetem os acontecimentos passados.

Assim, em situação analítica, os neuróticos repetem na transferência as situações afetivas dolorosas. "Todas estas circunstâncias não-desejadas e todas estas situações afetivas dolorosas são agora reencenadas e transferidas pelo neurótico. Elas são postas em prática com notável destreza. Desta forma, os neuróticos aspiram à interrupção do tratamento ainda inacabado e sabem como reaver, mais uma vez, a sensação de desdém" (Freud, 1919-1920/1996, p. 291).

Podemos igualmente observar, na vida quotidiana, pessoas que se submetem repetitivamente aos caprichos do destino e a diversos outros incômodos, como se "uma sina os persegu[isse], tal uma aparição que convivesse com ela[s], e a psicanálise considerou, desde o início, tal sina como algo criado, em grande parte, por elas mesmas e determinado por influências precoces da infância" (Freud, 1919-1920/1996, p. 292). Efetivamente, é "esse eterno retorno da mesma coisa" (Freud, 1919-1920/1996, p. 293) que une todos esses casos. Aponta-se, assim, o reconhecimento da repetição enquanto princípio mais primitivo. Logo, Freud prossegue diretamente à sua conclusão e sugere a ideia pela qual a obrigação de reiteração mostra-se "mais original, mais elementar, mais pulsional que o princípio do prazer que ela mesma descarta" (Freud, 1919-1920/1996, p. 294). Discernida a obrigação de reiteração, propor um conceito do traumatismo é a próxima tarefa que Freud deverá dedicar-se.

 

As neuroses traumáticas

Voltemos às elaborações acerca da neurose traumática. Como nos recorda Barrois, essa neurose "oferece-nos a demonstração direta" de uma "verdadeira dificuldade diante dessa realidade e dessa tardança demasiadamente imponentes à vida do sujeito" (Barrois, ano, p. 248-249). Uma dificuldade claramente assumida por Freud, que dirá que os traços clínicos das neuroses traumáticas parecem com psiconeuroses, ainda que ele mantenha uma distinção entre elas:

O quadro clínico do período em estado de neurose traumática aproxima-se da histeria por suas riquezas em sintomas motores análogos, mas, em regra geral, aquele a supera pelos sinais de sofrimento subjetivo fortemente marcados, quase como uma hipocondria ou uma melancolia, e pelas provas de um enfraquecimento e de uma deterioração gerais bem mais largas das operações anímicas (Freud, 1919-1920/1996, p. 282).

Isto é, o que permite distinguir as neuroses traumáticas das psiconeuroses é o elemento de surpresa como fator determinante:

na neurose traumática comum ressaem dois traços aos quais nos atentamos: em primeiro lugar, o peso principal da causalidade pareceria incumbir ao fator de surpresa, ao pavor; e, em segundo lugar, uma lesão ou ferida adquirida simultaneamente agiria mais frequentemente de encontro à aparição da neurose (Freud, 1919-1920/1996, p. 282).

Para poder dar conta da noção do traumatismo, Freud propõe uma nova modelização do aparelho psíquico, imaginado como uma "vesícula indiferenciada da substância estimulável" (Freud, 1919-1920/1996, p. 297).

Vesícula indiferenciada, certamente, uma de suas características haveria de mostrar-se fundamental na compreensão do tópico acerca do trauma. À imagem desse organismo vivo que Freud assimila a uma bolha protoplásmica, o aparelho psíquico seria composto por um antiestimulante que o manteria protegido das excitações externas. "Para o organismo vivo, proteger-se de estímulos é uma missão quase mais importante do que receber estímulos" (Freud, 1919-1920/1996, p. 298). Conquanto, se essa superfície for submetida a estímulos intensos demais, os antiestimulantes desarmam-se. Estes estímulos capazes de atravessar essa barreira protetora "são tidos por traumáticos" (Freud, 1919-1920/1996, p. 300).

Logo, o conceito de traumatismo faz referência a essa ruptura da barreira protetora. Essa barreira é efetivamente típica do princípio de prazer, mas nessas condições de ruptura "o princípio de prazer é deferido de imediato" (Freud, 1919-1920/1996, p. 301), de forma que "a submersão do aparelho anímico por grandes quantidades de estímulos não pode ser impedida; trata-se de uma outra tarefa que se lhe apresenta: dominar o estímulo, conter psiquicamente as quantidades de estímulos que fizeram irrupção para serem finalmente liquidados" (Freud, 1919-1920/1996, p. 301).

O traumatismo institui uma situação de afluxo de excitação através da qual as excitações externa e interna igualam-se. O sujeito encontra-se submergido por excitações, ao ponto de seu para-excitação encontrar-se destroçado por esse excesso de excitações.

Apreender a noção de traumatismo a partir de um conceito econômico do aparelho psíquico releva a ideia de uma sobrecarga de excitações que o aparelho psíquico é incapaz de reduzir. Para que o trauma ocorra, um acontecimento deve provocar, na vivência psíquica do sujeito, um aumento de excitações que não pode ser eliminado nem reelaborado segundo o modo habitual. Mas, paralelamente a esse acontecimento exterior que adquire uma certa importância, as experiências anteriores vêm acumular-se a esse processo. Efetivamente, em psicanálise não se pode pensar o acontecimento exterior atual sem levar em conta, ao mesmo tempo, a própria tendência do sujeito.

Na ótica freudiana, a ideia de traumatismo permite assim conceber que os acontecimentos exteriores são patogênicos apenas na medida em que reativem certas fantasias, como se fosse um processo de retorno ao acontecimento que se encontre no início de todo o processo. Isto é, o traumatismo é imediatamente arrebatado pela libido do sujeito e integra-se a sua história pessoal. Assim compreendemos as palavras de M. Dayan quando ressalta a importância do traumatismo nas futuras transformações psíquicas e singulares de cada sujeito: "a que se atem o trauma no que lhe precede e no que se lhe resulta, todo tipo de irreversibilidade singular podendo-lhe ser imputado" (Dayan, 1995, p. 20). O efeito traumático é sempre libidinal na medida em que provoca excitação.

Para que o princípio de prazer possa ser novamente reativado - reconhece M. Dayan -, é necessário de antemão uma possibilidade de ligamento. Diante de tais perturbações, todos os meios de defesa serão usados para permitir as condições de funcionamento do aparelho psíquico. "De todos os lados, a energia de investimento é convocada para criar, ao redor do lugar de irrupção, investimentos de energia a uma altura correspondente" (Dayan, 1995, p. 301). Deste "contrainvestimento" (Freud, 1919-1920/1996, p. 301 ) - maneira pela qual a vida psíquica reage a essa intrusão -, resulta um "empobrecimento", "paralisia" ou uma "diminuição" das atividades psíquicas que se mobilizam para contrainvestir o afluxo de energia. A partir do quê surge a possibilidade de criar ligações. "Deste estado de coisas, tiramos a conclusão que um sistema altamente investido tem condições de conceber um afluxo suplementar de energia, de transmutá-la em investida quiescente - logo de 'ligá-la' psiquicamente" (Freud, 1919-1920/1996, p. 301) . Assim Freud volta a sua hipótese sobre o pavor e a falta de preparação com a angústia que caracterizava a nevrose traumática. Freud prossegue: "Creio que assim se possa tomar o risco de conceber a neurose traumática comum como a consequência de uma longa intrusão do para-excitação" (Freud, 1919-1920/1996, p. 302 ) .

A ruptura da barreira protetora indica que o para-excitação não estava preparado para essa intrusão. O pavor conserva toda sua importância. "Constatamos, assim, que a preparação para a angústia, com a sobreinvestida do sistema de receptores, constitui a última barricada do para-excitação" (Freud, 1919-1920/1996, p. 303 ) . Ausente das causas de neurose traumática, a angústia é o que os sonhos de angústia querem restabelecer. "Estes sonhos buscam proceder à recuperação do domínio do estímulo, enquanto a angústia desenvolve-se: a falta deste domínio tornou-se a causa da neurose traumática" (Freud, 1919-1920/1996, p. 303 ) . A necessidade de investir o local de intrusão explica os sonhos que reproduzem o momento do acidente; eles "abrem, assim, uma perspectiva da função do aparelho anímico que, sem contradizer o princípio do prazer, continua independente deste e parece mais fundamental que a busca pelo prazer e a fuga do desprazer" (Freud, 1919-1920/1996, p. 303 ) .

O problema da dor encontra aqui sua máxima importância. Nas neuroses de guerra, paralelamente ao pavor, pode-se fazer uma nova observação sobre a dor. A neurose traumática é comparada à dor corporal:

Que uma grave lesão simultânea causada pelo trauma diminua as chances de aparição de uma neurose é compreensível se pensarmos a duas ocorrências acentuadas pela pesquisa psicanalítica. Em primeiro lugar, o abalo mecânico deve ser reconhecido como uma das fontes da excitação sexual [cf. as observações sobre o efeito do balanço e do deslocamento de trem nos Três ensaios sobre a teoria sexual ] e, em segundo lugar, um estado de doença doloroso e febril exerce, enquanto persiste, uma forte influência sobre a repartição da libido (Freud, 1919-1920/1996, p. 304-305 ).

Este ponto confirma, então, o que Freud já havia apresentado como sendo os efeitos de uma investida intensa de uma doença orgânica:

Assim, a violência mecânica do trauma liberaria o quantum de excitação sexual que provoca um efeito traumático por conta da falta de preparação à angústia; a lesão corporal simultânea, quanto a ela, ligaria o excedente de excitação recorrendo a uma sobreinvestida narcísica do órgão convalescente" (Freud, 1919-1920/1996, p. 305 ) .

Enquanto que, no caso da dor corporal, o desprazer resulta da intrusão no para-excitação, nas neuroses traumáticas a dor pode ser consequência da intrusão no para-excitação. A diferença é importante.

O trauma manifesta-se por uma elevação massiva da excitação libidinal, mas - se o sujeito estiver ferido - ele pode transferir uma parte dessa excitação suplementar para o órgão lesado.

As observações que articulavam a dor orgânica com a vida psíquica já eram conhecidas. A violência mecânica provoca uma produção libidinal - o que explica por que a dor orgânica pode equivaler a uma excitação interna, como Freud lembra em "Introdução ao narcisismo" (Freud, 1914/1977). Mas a novidade é a função de ligamento que garante a dor através de uma mobilização reparadora - esse movimento sendo uma sobreinvestida na zona lesada permitindo fazer ligações1. "A reação dolorosa substitui a barreira material, estável que é o para-excitação através desse tipo de barreira funcional que é justamente a ligação" Laplanche, 1981, p. 194). Mas vemos também se desenrolar, diante dos nossos olhos, tudo o que a hipocondria nos demonstra. É justamente por essa hiperatividade de um corpo que está permanentemente em atividade autoerótica que o hipocondríaco testemunha. Como se a postura hipocondríaca se tornasse uma solução face a uma ameaça no registro narcísico do sujeito (Fédida, 1995) .

Isso nos leva a dizer que, no momento em que a dor está na iminência de concretizar-se, o sujeito pode "conectar-se" às feridas e, logo, uma reconstituição narcísica também pode concretizar-se. Essa reconstituição narcísica possível é a contrainvestida segundo a fórmula freudiana da vesícula viva. Mas, a partir de então, surge um outro problema, pois todo órgão convalescente pode representar um benefício secundário por permitir ligar a excitação excessiva liberada por um trauma.

 

A angústia

Essas reflexões serão desenvolvidas no texto "Inibição, sintoma e angústia" (Freud, 1925/1992). Apoiando-se na formulação do ponto de vista econômico da segunda tópica, Freud reconhece nisso o âmago de toda situação traumática. Essas formulações acerca do traumatismo estão ligadas a concepções teóricas da angústia2 e atestam o retorno da questão do trauma na etiologia das neuroses, mas agora governada pela relação à pulsão de morte.

No início, temos uma angústia que surge em reação ao perigo da perda e que ressurgirá novamente a cada vez que uma situação do mesmo tipo se reproduzir. A situação traumática esclarece-se, a partir de então, por fazer referência à perda do objeto amado e à função do outro enquanto aquele que pode facilitar a construção, para a criança, de um verdadeiro para-excitação contra as excitações. Para-excitação este que, se vier a falhar, provoca a reedição da situação traumática.

A parte do texto que nos interpela neste momento é aquela que diz: quando o bebê, "ao invés da mãe, sente a presença de uma pessoa estranha" (Freud, 1925/1992, p. 284), ele manifesta uma angústia, reação ao perigo da perda do objeto amado. Pela expressão de seu rosto, vemos - diz Freud - que ele sente dor. Nesse momento, a criança vivencia a desaparição do outro materno, ele percebe que a mãe amada pode distanciar-se ou desaparecer. Mas o problema é que ele não sabe se se trata de uma "desaparição provisória" ou de uma "perda definitiva" e, de uma forma ou de outra, comporta-se "como não a fosse mais rever". Essa situação é vivida de forma traumática, pois a criança precisa ainda, nesse momento, de sua mãe para lidar com a situação para a qual ainda não está preparada: "ela é traumática se ela (a criança) sentir uma necessidade que deve ser satisfeita pela mãe; ela transforma-se em situação de perigo se esta necessidade não existe mais" (Freud, 1925/1992, p. 284). Se, com a ajuda da mãe, a criança entende que sua mãe pode partir para depois voltar, a criança não pode distinguir a desaparição definitiva da provisória. Com a ajuda do outro materno, essa reação ao perigo pode converter-se em reação de ligação e o pavor transforma-se em medo da perda do objeto; e o medo, em angústia face aos sinais de sua ausência. Assim, essa situação de pura angústia comporta um momento de desligamento e um momento de ligação. É a ação do outro materno e de seus substitutos que reconhecem nessa situação uma situação de demanda e faz do sofrimento do sujeito uma situação de demanda. Somos então levados a dizer que, "se a mãe ausenta-se ou se retira seu amor pelo filho, este não está certo de ter suas necessidades providas e pode expor-se possivelmente aos mais penosos sentimentos de tensão" (Freud, 1933/1984, p. 119).

Essencialmente, o que devemos reter do que vem de ser descrito é o momento quando um ser sente-se totalmente desprovido e dependente de outrem. Convém então ter por traumática a situação na qual nos vemos desprovidos de um alguém de quem dependemos. Então,

na relação à situação traumática - diante da qual estamos sem amparo - perigo externo e interno, perigo do real e reivindicação de pulsão juntam-se. Que o ego vivencie, em um dos casos, uma dor incessante ou, no outro, um estado de necessidade sem que esta seja provida, a situação econômica é a mesma em ambos os casos; e o desamparo motor encontra toda sua expressão no desamparo psíquico (Freud, 1933/1984, p. 282-283).

É o caso, por exemplo, do bebê cuja mãe falta em seu papel por ausentar-se, e que não pode ser socorrido. Igualmente podemos dizer que a cada vez que o sujeito encontra-se diante de um outro totalmente desprovido reencontra-se na mesma situação primitiva do bebê e isso pode desencadear neste um movimento de desligamento: bastantes situações podem reabrir essas antigas cicatrizes ou confirmar certas teorias infantis já esquecidas.

Se a experiência de aflição constitui o âmago em torno do qual se constroem as bases de uma doença (Lindenmeyer, 2007b, 2010), a posição masoquista revela-se rapidamente como uma alternativa possível. Diante de uma situação de aflição que não deixa nenhuma porta de saída aberta, a figura do masoquismo impõe-se como uma possível solução.

 

O masoquismo como solução

Em "Para além do princípio do prazer", Freud (1919-1920/1996) desenvolve ainda um outro ponto, introduzindo assim uma nova formulação do dualismo pulsional. Com a compreensão do movimento posto em prática pela obrigação de reencenação, Freud caracteriza a pulsão como sendo um retorno a um estado anterior:

Assim, uma pulsão seria um impulso inerente ao organismo dotado de vida a fins de reinstalação de um estado anterior que este ser dotado de vida teve de abandonar sob a influência de forças perturbantes externas; ela seria uma espécie de elasticidade orgânica ou, se assim se quiser, a manifestação da inércia na vida orgânica (Freud, 1919-1920/1996, p. 308).

Este estado anterior é a morte, já que o fim para todo organismo vivo é o retorno ao inorgânico: "o objetivo de toda vida é a morte e, voltando para trás no tempo, o sem-vida estava aqui antes do ser vivo" (Freud, 1919-1920/1996, p. 310). Essa afirmação de uma característica regressiva anima uma nova teoria das pulsões. A etapa seguinte será o desenvolvimento da concepção da pulsão de morte, paradigma para pensar essa força de retorno ao inanimado.

Com esse conceito da pulsão de morte, Freud é levado a traçar a articulação que faltava para compreender o problema econômico do masoquismo. "O masoquismo, a reviravolta da pulsão contra o próprio ego, seria em realidade um retorno a uma fase anterior a esta pulsão, uma regressão". A partir disto, uma nova formulação do masoquismo será possível. "Em um ponto, a apresentação dada do masoquismo deveria ser, então, corrigida na sua excessiva exclusividade. O masoquismo poderia ser, igualmente, um masoquismo primário - coisa que eu contava contestar" (Freud, 1919-1920/1996, p. 328).

Quando a dor e o desgosto não são mais o sinal de algo que não funcione, mas, ao invés disso, se tornassem o objetivo, o princípio do prazer encontra-se paralisado e o masoquismo torna-se o perigo. Assim começa o texto "O problema econômico do masoquismo": "Se dor e desgosto deixam apenas de ser advertências, mas objetivos em si, o princípio de prazer paralisa-se, o protetor da nossa vida anímica assim narcotizado" (Freud, 1924/1992, p. 11). Até esse texto, Freud apresentava sempre o masoquismo como algo derivado do sadismo. Com a introdução da pulsão de morte, os dados mudam e a ideia de masoquismo primário pôde ser proposta.

Assim, antes de prosseguir acerca do masoquismo propriamente dito, Freud convida-nos a revisar o princípio do nirvana. Este princípio que "exprime a tendência da pulsão de morte" (Freud, 1924/1992, p. 12) passa por uma modificação realizada pela pulsão de vida para tornar-se princípio de prazer. Desse modo, as coisas passam-se segundo três princípios que coordenam seu objetivo entre eles: "o princípio de Nirvana exprime a tendência da pulsão de morte, o princípio de prazer representa a reivindicação da libido e a modificação deste, o princípio de realidade, a influência do mundo exterior" (Freud, 1924/1992, p. 12).

Depois dessa revisão, Freud volta ao problema do masoquismo stricto sensu. Três figuras do masoquismo são assim reconhecidas: o masoquismo erógeno, o masoquismo feminino e o masoquismo moral.

No texto "O problema econômico do masoquismo" (Freud, 1924/1992) apenas serão abordados o masoquismo erógeno e o masoquismo moral. Dessas três figuras, é o masoquismo erógeno que cria as bases e a compreensão das outras duas. "[O masoquismo erógeno] funda-se biológica e constucionalmente e não se compreende se não nos lançamos em alguma hipótese acerca dos fatos totalmente obscuros" (Freud, 1924/1992, p. 13).

Efetivamente, essa forma de masoquismo fundamenta-se na "coexcitação libidinal durante a tensão da dor e do desgosto" que empreende o "mecanismo infantil fisiológico". A essa explicação ligam-se as considerações rascunhadas por Freud no início do papel da libido e da pulsão de morte ou de destruição. "Assim, este masoquismo seria a testemunha e um vestígio desta fase de formação na qual se produz esta união, tão importante para a vida, entre a pulsão de morte e de Eros" (Freud, 1924/1992, p. 16).

Isto é, a partir do encontro entre libido e pulsão de morte, essa pulsão destrutiva que quer trazer esse organismo a um estado anterior é impedida pelas pulsões libidinais e dirigidas para o exterior. Uma parte que se prende à função sexual é o sadismo e a outra parte que não consegue dirigir-se para o exterior permanece no organismo "e ali ela está ligada libidinalmente, com a ajuda da coexcitação sexual já mencionada; nela devemos reconhecer o masoquismo erógeno original" (Freud, 1924/1992, p. 16).

O sentimento de culpabilidade, a necessidade de punição e angústia moral são manifestações do masoquismo moral que caracterizam o "verdadeiro" masoquista, que "dá sempre a cara na direção onde crê que levará um golpe" (Freud, 1924/1992, p. 17). Essas são manifestações bem conhecidas durante o tratamento sobre os traços da "reação terapêutica negativa", e que se ligam a um sentimento inconsciente de culpabilidade que é

a função mais considerável do benefício da doença - em regra geral, benefício composto -, da soma das forças que se rebelam contra o tratamento e não querem abandonar o estado de doença; o sofrimento que implica a neurose é justamente o fator pelo qual esta torna-se preciosa para a tendência masoquista (Freud, 1924/1992, p. 18).

Assim, no masoquismo moral, o que importa é o sofrimento ligado a uma forma de existência. "Igualmente, é instrutivo fazer a experiência de que, contra toda teoria e toda expectativa, uma neurose que desafiou todos os esforços terapêuticos pode desaparecer quando a pessoa afunda na miséria de um casamento infeliz, perde sua fortuna ou contrai uma afecção orgânica ameaçadora" (Freud, 1924/1992, p. 18).

Essas manifestações são a expressão de uma tensão entre o sadismo do superego e do masoquismo do ego que explica a necessidade do ato de repreensão do sujeito masoquista. Mas por que as coisas só poderiam acontecer assim? O sentimento de culpabilidade é a reprovação a fantasias infantis proibidas:

Já sabemos que o desejo - tão frequente nas fantasias - de apanhar do pai encontra-se afiliado a um outro: o de entrar em uma relação sexual passiva (feminina) com ele - sendo, assim, o primeiro uma deformação regressiva do segundo. Se inserirmos este esclarecimento no conteúdo do masoquismo moral, seu sentido secreto evidencia-se-nos (Freud, 1924/1992, p. 20).

Exemplos não faltam para que o masoquista expie seus pecados buscados mesmo nas explicações do destino: "Para provocar a punição por esta última representante parental, o masoquista deve necessariamente fazer o que é inapropriado: trabalhar contra seu próprio interesse, destruir as perspectivas que se abrem a ele no mundo real e eventualmente aniquilar sua própria existência real" (Freud, 1924/1992, p. 22). E Freud prossegue: "Mas, por um outro lado, como ele tem a significação de uma componente erótica, mesmo a autodestruição da pessoa não pode se produzir sem satisfação libidinal" (Freud, 1924/1992, p. 23). Mas nessa autointoxicação, que carrega a marca da pulsão de morte, deve-se ainda entender qual é o benefício dessa espécie de autodestruição posta em prática.

Em seu texto "Análise com fim e análise sem fim" (Freud, 1937/1984), Freud apresenta-nos, dentre outras coisas, as dificuldades que entravam o desenvolvimento do tratamento analítico. Ele apresenta o caso de uma paciente histérica convalescendo de tão fortes dores nas pernas que ela não consegue mais caminhar. Essas dores serão acalmadas pelo tratamento analítico. Os anos seguintes serão marcados por catástrofes familiares, mas as perturbações somáticas estarão sempre ausentes. Até o dia em que uma hemorragia ginecológica evidencie um mioma que necessitará de uma histerectomia integral. Nesse momento, a paciente apaixona-se por seu cirurgião e deixa-se dominar por fantasias masoquistas. A partir daí, afirma Freud, ela se torna inacessível a todo tipo de tentativa de análise.

Isto é, essa paciente deixa-se dominar por fantasias masoquistas a partir do momento em que a doença surge em sua vida e em que os cenários fantasmáticos podem ser encenados. Quer dizer, a partir do momento em que a paciente deixa-se dominar pelas fantasias masoquistas, Freud afirma que ela se torna inacessível à análise. E nada mais podemos fazer a respeito disso. Não seria tentador dizer que o médico atinge algo de sua fantasmatização corporal? É a hipótese desenvolvida por P. L. Assoun3, que propõe ser toda doença orgânica uma forma específica do gozo. O encontro com a situação de doença permite ao sujeito realizar seu gozo - um gozo mórbido, decerto, mas ainda assim gozo. Dito de outro maneira, a doença somática não está ligada a uma falta ou a um déficit da capacidade de fantasiar (Lindenmeyer, 2012). Pelo contrário, com a doença somática, um texto fantasmático encarna-se, concretiza-se na situação de doença. O corpo torna-se, então, o local onde as coisas podem ainda se reencenar neste momento crucial. Como pude demonstrar em um texto anterior (Lindenmeyer, 2007a), um funcionamento masoquista pode vir à tona em certos encontros entre médico e doente. Efetivamente, nesse funcionamento masoquista a ideia da identificação ao agressor mostra-se muito importante nesse contexto, já que o doente parece proteger-se, nesse momento de reviravolta em si mesmo, de toda pulsão destruidora para com o médico e em benefício de uma relação com este. Essa postura de servidão pode traduzir-se, por vezes, em um desapego de si mesmo, como se nesse momento o sujeito fosse ejetado de seu próprio corpo. Essa relação de submissão permite ao sujeito não sentir a dimensão traumática. Dito de outra forma, a doença não se reduz a uma simples intrusão, ela ataca também as próprias bases da alteridade, como testemunham os casos clínicos relatados e analisados por Ferenczi. O que esses casos atestam bastante bem é o fato de que, se nenhuma alternativa é possível no momento em que o trauma ocorre, há inevitavelmente então submissão ao desejo do agressor e ejeção de si mesmo enquanto forma espontânea de "autotratamento".

 

Do trauma à clivagem

Segundo Ferenczi, uma das reações a um traumatismo poderia caracterizar-se como uma espécie de ruptura podendo ir até uma aniquilação total de si mesmo, aniquilação que seria a única forma possível de sobrevivência. O que Ferenczi quer dizer é que a instauração de uma clivagem narcísica de salvação pode revelar-se a única solução para o traumatismo.

Essa dimensão do traumatismo - além de suas consequências - está no âmago da experiência analítica, segundo Ferenczi. Freud havia reintroduzido essa mesma questão, mas baseando-se nas neuroses de guerra e na compulsão de repetição, como acabamos de ver. Mas se, para Freud, a angústia é o motor da neurose, Ferenczi desenvolve de seu lado a questão do traumatismo como sendo o que ressurge na própria experiência clínica. O que Granoff (1961, p. 274) sintetiza admiravelmente com a seguinte frase: "Se Freud encara a angústia como elemento sine qua non para a compreensão da formação do sintoma, Ferenczi encara o trauma como condição sine qua non da neurose". Em seu diário clínico, Ferenczi (1985) deixa-nos perceber o movimento que vai do trauma à clivagem. É, em particular, o caso quando ele expõe-nos a história clínica de uma paciente, R. N., que ele denomina também "Orpha". Ferenczi fala dela nos seguintes termos: um tipo "de psique artificial em um corpo obrigado a viver".

A história traumática dessa paciente começa na idade de um ano e meio, quando ela sofre agressões sexuais, que se repetirão aos 5 e 11 anos de idade. Traumatismos arquivados em sua psique e que a conduzirão a uma "aniquilação de sua vida psíquica". A partir dos elementos clínicos trazidos durante o tratamento pela paciente, Ferenczi procede a uma verdadeira reconstituição dessas clivagens: como elas se instalaram durante os traumatismos sofridos pela paciente?

Nessa observação, Ferenczi ressalta que no interior da paciente adulta existe uma criança que sofre. Essa parte "comporta-se como uma criança estonteada que nada sabe de si mesma, que só faz gemer e só reage se sacudida psíquica ou até fisicamente". Em suas tentativas de sobreviver, esse fragmento "atua no papel de um anjo da guarda e suscita alucinações de realizações de desejo, de fantasias de consolação; anestesia a consciência e a sensibilidade contra sensações intoleráveis". No segundo choque, continua Ferenczi, toda a vida psíquica d'"Orpha" é ejetada de seu próprio corpo, o que acaba por criar uma personalidade "sem alma", "um corpo sem alma". Esses fragmentos permitem-lhe adaptar-se a uma situação insuportável, mas à condição de uma "aniquilação de sua vida psíquica" a "uma espécie de psique artificial pelo corpo obrigado a viver". Ferenczi oferece-nos, em seguida, uma visão de conjunto do quadro clínico destas clivagens:

À primeira vista, o "indivíduo" é formado pelas seguintes partes: a) na superfície, um ser vivo capaz, ativo, com um mecanismo bem ou até bastante ajustado; b) atrás deste, um ser que não quer nada saber da vida; c) atrás deste ego assassinado, as cinzas de uma doença mental anterior, revivificada a cada noite por este sofrimento lancinante; d) a própria doença, como uma massa afetiva separada, inconsciente e sem conteúdo, as sobras do ser humano propriamente dito (Ferenczi, 1985, p. 54).

A partir dessas notas, podemos compreender que a clivagem de que fala Ferenczi instaura-se e liga-se diretamente ao efeito do trauma. Isso dito, e como ele ressalta, essa parte escanteada vive escondida; clivada de toda representação, ela só pode manifestar-se através das manifestações corporais. Ainda no mesmo texto, essa paciente inspira a reflexão de Ferenczi, que busca entender qual seria o conteúdo desta clivagem:

Qual é o conteúdo do ego clivado? [...]. O conteúdo do elemento clivado é ainda o mesmo: desenvolvimento natural e espontaneidade; protesto contra a violência e a injustiça desdenhosa, ou ainda sarcástica e irônica, afetada em relação à dominação, sabendo interiormente, de fato, que a violência obteve nada - apenas modificou as coisas objetivas, as formas de decisão e não o ego enquanto tal; autossatisfação em relação a esta performance, sentimento de ser maior, mais inteligente que a força brutal (Ferenczi, 1985, p. 63-64).

O que Ferenczi reassalta é que tal clivagem narcísica pode produzir uma forma de autotratamento que permite a um sujeito narcisicamente lesado confrontar uma situação insuportável. Forma de funcionamento que permite ao sujeito de manter-se em uma ilusão de proteção diante da força devastadora da situação.

É a partir das dificuldades encontradas na situação clínica que Ferenczi reavaliará a técnica e o papel do analista. Com essa nova rearticulação, o trauma volta a ser o ponto central da teorização de Ferenczi e a questão do traumatismo encontrar-se-á, assim, no centro de sua atenção. Ele retrabalha a questão ligando o trauma à questão da sedução. Ou seja, ele reconhece nos efeitos traumáticos o resultado da sedução da criança pelo adulto. Mas o que é um traumatismo para Ferenczi?

Ele concebe o traumatismo como a associação de dois momentos com os quais a criança confronta-se: o primeiro desses dois momentos é quando a criança encontra-se confrontada à linguagem da paixão, esta pertencendo ao adulto; o segundo é o não-reconhecimento, pelo adulto, da criança enquanto sujeito: a criança é reduzida a um objeto de satisfação das necessidades do adulto.

 

A sedução

Essa questão da sedução, que havia já sido trabalhada por Freud, toma uma outra direção sob a impulso de Ferenczi4. Em seu texto "Confusão de línguas entre adultos e crianças", Ferenczi (1982) apresenta-nos uma definição do traumático a partir da sedução.

Enquanto a criança brinca com o adulto, ela emprega uma linguagem terna com o outro. Mas acaba confrontando-se com a linguagem do adulto - a linguagem da paixão - e percebe nela uma carga de violência. Dessa maneira, Ferenczi opõe o caráter terno da demanda da criança ao aspecto genital da linguagem do adulto. "[Os adultos] confundem as brincadeiras da criança com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidade sexual e deixam-se levar por atos sexuais sem pensar nas consequências" (Ferenczi, 1982, p. 130). O trauma aparece na atividade erótica durante a qual a criança, sem defesa, submete-se ao desejo do agressor. "As crianças sentem-se física e moralmente sem defesa, já que a personalidade delas ainda é muito fraca para protestar - nem que seja em pensamento. A força e a autoridade esmagadora dos adultos emudecem-nos e podem até fazê-los perder a consciência" (Ferenczi, 1982, p. 130).

Ferenczi descreve nessa passagem uma criança sobrecarregada pelo excesso e desprovida de meios necessários para definir a experiência com a qual se confronta. Essa situação fá-la precipitar-se em uma posição de pura aflição: "ela se encontra só e abandonada na mais profunda aflição" (Ferenczi, 1982, p. 129). Ou seja, o adulto apodera-se e utiliza o corpo da criança para suas necessidades, em tal sentido que ele faz da criança seu objeto de gozo e submete-a a um verdadeiro "estupro psíquico" (Bokanowski, 1997). Essa situação torna-se então a matriz de um sistema no qual a criança encontra-se escanteada dela mesma: ela pode apenas observar a situação na clivagem psíquica que testemunha sua intensa dor interna.

 

A denegação

Mas para Ferenczi as coisas não param por aí. O adulto, se não for um pervertido, sente-se culpado "e atormentado pelo remorso" - culpa esta que a criança não pode ainda entender e, por isso, busca ajuda. Ajuda que ela busca graças a uma pessoa de confiança, que para ela detém a verdade - a mãe, por exemplo. Mas essa pessoa não se importa com o que ela relata e dá crédito à incredibilidade do outro agressor: "Ah, mas ele(a) é só uma criança! Não sabe nada da vida e logo se esquece de tudo isso" (Ferenczi, 1982, p. 131). Esse fracasso na tentativa de subjetivação do que passou, essa impossibilidade de inscrever o momento do traumático revela-se fundamental. "A criança que foi abusada vira um ser que obedece mecanicamente ou que se obstina, mas não pode dar-se conta das razões desta atitude" (Ferenczi, 1982, p. 131).

Isso quer dizer que não só houve, num primeiro momento, sedução da parte de um adulto, mas, num segundo momento, a negação do adulto e/ou das outras pessoas de que algo aconteceu com ela. A partir desse segundo momento - no qual o outro adulto não aceita a demanda que lhe é feita - o evento representa um trauma. Essa experiência tal qual nos relata e analisa Ferenczi será para a criança não somente de uma intensidade insuportável, mas, ainda por cima, lhe será desorganizadora. Ela provoca no sujeito uma clivagem ao mesmo tempo que ele se destrói na tentativa de dominar a experiência. A essa experiência Ferenczi chama "confusão". Logo, a identificação ao agressor é a consequência imediata do trauma e a criança fixa-se nesse movimento masoquista de submissão em relação ao outro. Isso se revela de extrema importância já que o outro está sempre subordinado a essa dinâmica pulsional. "O que importa, de um ponto de vista científico, nessa observação é a hipótese segundo a qual a personalidade ainda não suficientemente desenvolvida reage ao desgostos não defendendo-se, mas através da identificação ansiosa e a internalização daquele que a ameaça ou a agride" (Ferenczi, 1982, p. 131). Ainda por cima, Ferenczi reconhece nisso a origem das transferências passionais, que reatualizam, quando encenado, este traumático potencial que levou o sujeito a permanecer clivado e a submeter-se ao outro. É assim que Ferenczi fala da "hipocrisia professional" do analista ao reproduzir, nesse mesmo sentido, essa dimensão da mentira e da dominação da criança (o paciente) pelo adulto. "[Os pacientes] cedem a uma submissão extrema, manifestamente provocada pela incapacidade ou pelo medo de nos desagradarem ao criticarem-nos. Uma boa parte da crítica recalcada concerne ao que podemos chamar 'hipocrisia professional'" (Ferenczi, 1982, p. 127). O analista vê-se, assim, interrogado nesse risco de mentira, no sentido da "confusão" - ou seja, da proibição de pensar.

 

A identificação com o agressor

A identificação com o agressor constrói-se no momento do trauma e permite ao sujeito ocupar a parte que lhe foi retirada. Ao identificar-se com o agressor, a criança comporta-se ativa e não mais passivamente - postura de quem se submete à agressão. Ressentir a culpa do agressor não é somente poupar o adulto agressor, mas também distanciar-se do sofrimento psíquico causado pela agressão. Assim, o trauma passa a aparentar-se a um assassinato em que a criança é, ao mesmo tempo, vítima e agente. "Mas a mudança significativa provocada no espírito da criança pela identificação ansiosa com seu parceiro adulto é a internalização do sentimento de culpa do adulto: o jogo até então anódino passa a ser agora um ato passível de punição" (Ferenczi, 1982, p. 130).

No lugar daquele que não entende o que lhe passa, a criança torna-se aquele que domina a situação. Ela não está mais à mercê de um adulto "louco" e pode mesmo se comportar como um "sábio bebê" que cuida do adulto reconhecidamente doente.

O medo diante dos adultos desenfreados - e, de certa forma, "loucos" - transforma a criança num psiquiatra. Para se proteger do perigo que representam os adultos sem controle, ela deve saber primeiramente como identificar-se completamente a eles. É incrível o que podemos realmente aprender com nossas "sábias crianças" sobre as neuroses (Ferenczi, 1982, p. 130).

Essa inversão dos papéis é realmente uma forma de recuperar um certo estado de estabilidade narcísica que foi destruído no momento do trauma. E é essa estrutura que conduz finalmente à violação psíquica do sujeito (criança). É a partir deste último ponto que pudemos desenvolver, em um outro texto, o entendimento do estado clínico de certos pacientes que tinham um diagnóstico precoce de câncer (Lindenmeyer, 2007b). Pensamos no trauma a partir da ótica de Ferenczi, como complemento às elaborações freudianas, pois a situação de doença para esses pacientes observados mostra-se-nos não somente enquanto intrusão, mas também enquanto violação do sentimento de si. Como se a impossibilidade de fazer uso de uma percepção de si mesmo, de ter a escolha da palavra gerasse uma ferida narcísica insuportável que viria a reativar outros traumatismos.

 

O sábio bebê

Nas "Reflexões sobre o traumatismo", Ferenczi (1982) propõe a ideia do "sábio bebê", ideia esta muito ligada à da identificação com o agressor.

Toda elaboração de Ferenczi parece centrar-se na ideia de que exista, para toda palavra, um destinatário e que essa palavra apoia-se na aceitação ou não do destinatário ao qual esta é endereçada. Certas passagens desse texto evocam o recurso à clivagem e apresentam-no como uma situação de socorro, particularmente na seguinte passagem: "Um fato surpreendente - mas aparentemente de valor genérico durante o processo de autorruptura (Selbstzerreissung) - é a transformação brusca da relação impossibilitada de objeto em uma relação narcísica" (Ferenczi, 1982, p. 147). Essa postura de socorro a si mesmo reflete não apenas a ideia da identificação com o agressor, mas também a relação narcísica como meio de salvação, postura importante para compreender a relação de objeto impossível. Trata-se aqui de uma posição, solução necessária, quase intermediária. Ele retoma: "O homem abandonado pelos deuses escapa totalmente à realidade e cria para si um outro mundo no qual, livre da gravidade terrestre, ele pode atingir tudo o que desejar" (Ferenczi, 1982, p. 147).

O que transparece nessa passagem é a ideia de quebra, de ruptura, de clivagem e a ideia segundo a qual, após o trauma, o único lugar de socorro que se pode ocupar é o da suspensão (Schneider, 1988). O que é muito importante se nos arriscamos a refletir a partir do plano corporal. Nesse momento que nos encontramos "livres da gravidade terrestre", temos a possibilidade de habitar o corpo que se nos apresenta, mas de habitá-lo em suspensão (Lindenmeyer, 2007a) . Como se o corpo estivesse lá, mas o sujeito corpo estivesse alheio, suspenso no ar. Essa referência a esse lugar de suspensão pode facilmente ser traduzida durante a consulta clínica por momentos nos quais o sujeito fala de seu corpo como se se tratasse do relato vivido por um desprendido de si, quase em uma espécie de desdobramento de si. É exatamente esse sentimento de estar fora de si que Ferenczi descreve em seu diário clínico:

O que se passa quando o sofrimento aumenta e sobrepõe a força de compreensão do ser ínfimo? O senso comum caracteriza o que se segue pela expressão: "a criança está fora de si ". Vistos do exterior, os sintomas do estar-fora-de-si são: a ausência de reação do ponto de vista da sensibilidade, câimbras musculares generalizadas, normalmente seguidas de paralisia generalizada ("viajar"). Levando em conta as declarações de nossos pacientes que nos relatam tais estados, este "viajar" não é necessariamente um "não ser", mas apenas um "não estar mais aqui". Mas então onde se estaria? Percebemos algo: eles viajaram para longe, universo afora, e voam com uma velocidade enorme entre os astros; sentem-se tão leves que circulam sem obstáculos através das mais densas substâncias; onde eles estão o tempo não existe; passado, presente, futuro estão todos presentes ao mesmo tempo. Em uma palavra, eles têm a impressão de ter superado o tempo e o espaço. Vista desta vasta e gigantesca perspectiva, a importância do próprio sofrimento desaparece (Ferenczi, 1985, p. 80).

O que mais uma vez deve-se assinalar aqui é a necessidade de estar-se à distância, mas em uma distância que evoque o alto, como se representasse um conforto por excelência imaginar-se flutuar pelo céu. Sair de seu próprio corpo ou de seu próprio psíquico é o destino desejado. Mas essa passagem parece-nos de maior interesse por descrever os sintomas corporais como uma oportunidade que o sujeito pode aproveitar para socorrer-se - uma espécie de redenção. Nessa busca de escapar do insuportável, o sujeito faz de seu corpo o lugar da batalha. Lugar escolhido para permitir ao psíquico pôr-se à distância, ao mesmo tempo que o corpo torna-se esse episódio durante a qual a batalha poderá ser mostrada ao entorno e representa desse modo um pedido de socorro. Podem-se encontrar certos pontos em comum entre o que nos descreve Ferenczi e o que alguns de nossos pacientes descrevem: a impressão de não mais habitar o próprio corpo. Como se, a partir de então, tudo estivesse paralisado, bloqueado, congelado e não podendo mais ser reinvestido. A inscrição dessa experiência de pavor e de intrusão reveste-se de uma massa rígida de evitação e de precaução no período que se segue imediatamente ao choque: estratégia de evitação que se traduz geralmente pelo esgotamento do trabalho psíquico mobilizado em vistas de proteger-se. Por vezes, essa sensação apresenta-se durante a sessão como se, de uma hora para a outra, o corpo se tornasse habitável, mas com o peso de uma história que ainda não foi inscrita.

Ao estarem na situação analítica, certos pacientes experimentam o sentimento, a sensação de não serem mais invisíveis e outros ainda sentem a sessão como um buraco dentro do qual estão suscetíveis de cair. A marca no psíquico e na carne leva a uma espécie de anestesia que permite manter a angústia adormecida o tempo inteiro. Encontramos essa tentativa de anular o peso ou essa sensação de viver em uma espécie de suspensão em relação à "gravidade terrestre" (Ferenczi, 1982, p. 147). Nem dentro, nem fora, mas nas alturas. Ou seja, no contato com o solo o sujeito perde o sentimento de existir, o que o leva a perder-se nas alturas, pois no momento em que o sujeito tenta não mais sentir o peso de seu corpo vem junta a ideia de um outro que não pode mais carregá-lo - e disso vem o desabar-se. As sessões podem ser vividas, às vezes, como uma oportunidade de apoiar-se sobre o outro, como uma espécie de relaxamento desse peso do corpo sobre o outro que o sustenta. Como se houvesse a busca de um lugar ou de um tempo em que o sujeito pudesse sentir-se sobre o solo. É o caso, por exemplo, daqueles que se comportam como se o analista fosse um receptáculo para suas palavras. O sujeito emenda uma sessão com a outra como se não precisasse retomar o que fora dito na sessão passada. É o que já nos aconteceu no caso de pacientes que voltam à sessão, depois das férias, na mesma sequência do que fora dito na última sessão, como se não houvesse ruptura alguma, como se o sentimento de continuidade não pudesse ser perturbado.

Ao mesmo tempo, o que lhe importava era continuar na ilusão de ser completamente contido pelo outro, carregado pelo outro. Como se, ao ser carregado(a) pelo outro5.

Ferenczi insiste no desenvolvimento de seu texto no fato de que estar suspenso assim é uma forma de tornar-se pai ou mãe de si mesmo. Logo, é através da clivagem - resultante dessa suspensão - que uma parte do sujeito pode ocupar-se, como um pai, da outra parte:

Se até aqui ele foi privado de amor ou até martirizado, desprende-se assim dele um fragmento de si mesmo que - sob a forma de um socorro prestativo ou afetuoso; materno no mais das vezes - apieda-se da parte restante e atormentada da pessoa, tomando conta desta; tudo isso com uma sabedoria notável e uma inteligência penetrante. Ela é a própria inteligência e bondade, um anjo da guarda. Esse anjo vê de longe a criança que sofre ou que foi morta - e assim, de alguma forma deslizado para fora da pessoa durante o processo de "rompimento", ele percorre o universo inteiro para buscar ajuda, imagina coisas para a criança que não se pode salvar (Ferenczi, 1982, p. 147).

Essa passagem deixa entender claramente a necessidade de desprender um fragmento de si mesmo - fragmento este que representa o traço traumático e favorece a clivagem. Trata-se de uma espécie de devastação na realidade do sujeito e da necessidade de criar um alter-ego. Mas o que surpreende mais é o fato de a clivagem funcionar como uma possibilidade de estar-se totalmente alheio, quase em um outro mundo, suspenso nas alturas. O sábio bebê é assim apresentado como a parte sábia de si que emerge do trauma. Dá-se a si mesmo a ideia de um suporte, mesmo se este suporte é destruidor. A criança torna-se o adulto clivado por causa do trauma. É um meio de restaurar uma imagem necessária para aguentar a experiência de um perigo extremo. Essa dimensão sacrificial é relevada, como se pode ler na sequência da passagem:

Mas, no instante de um novo traumatismo, ainda mais forte, o santo padroeiro deve confessar sua própria impotência e seus enganos bem intencionados à criança martirizada. Resta-lhe apenas o suicídio, a menos que, no último momento, produza-se algo favorável na realidade. Essa coisa favorável à qual recorremos diante do impulso de suicídio é o fato de, neste novo combate traumático, o paciente não estar mais totalmente sozinho (Ferenczi, 1982, p. 147).

Nessa passagem, podemos ver como, se há uma segunda ruptura, o mito do sábio bebê cai por terra e passa-se da ideia de onipotência à da mentira, do engano. O sábio bebê pode levar ao suicídio, por um trabalho de autodestruição que se realiza (Schneider, 1988). Em outros termos, essa posição conduz a um procedimento de sobrevivência psíquica que pode tornar-se também um tipo de autodestruição. Aqui se realiza todo um sistema resultante do trauma. Isto dito, se voltarmos ao texto "Confusão de línguas entre adultos e crianças", reencontraremos esta reação de autodestruição: "É difícil adivinhar quais são os sentimentos e comportamentos das crianças após estes fatos consumados. O primeiro movimento seria a rejeição, o ódio, o desgosto, uma resistência violenta: "'Não, não quero, é forte demais, dói, me deixa!'. Isto - ou algo do gênero - seria a reação imediata se não for inibida por um medo intenso" (Ferenczi, 1982, p. 130).

Nessa passagem Ferenczi reconhece que, no ponto de partida, há reação, mas que essa reação foi inibida: certamente, ela existe, mas só a atitude de rejeição pode ser realmente considerada. Ele prossegue: "Mas este medo, quando perde seu ponto culminante, obriga-nos a submeter-nos automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer em detrimento de si mesmo e a identificar-se totalmente com o agressor" (Ferenczi, 1982, p. 130).

O que quer dizer que, após o desespero psíquico, é a autodestruição que se segue e que pode revelar-se bem mais intensa e devastadora que a própria situação em si. Todos esses elementos organizam-se como um contrainvestimento no momento do trauma. É assim que esse movimento caracterizado por Ferenczi equivale ao transtorno, a essa impressão de desaparecimento de si mesmo. A existência reduz-se a uma ausência de pensamento, mas na qual a inscrição no corpo da experiência traumática permanece sendo o último refúgio. Para certos pacientes encontrados nos tratamentos analíticos, a experiência traumática reaparece quando as coisas são novamente mobilizadas pela a transferência.

O tratamento analítico reabre a possibilidade de sentir essa dimensão traumática e angustiante que rodeia a vivência do paciente.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 05/06/2016
Aprovado para publicação em: 02/03/2017

 

 

*Professora da Universidade Paris VII - Diderot - Sorbonne Paris Cité, Membro do CRPMS, Responsável do Diploma Universitário "Approche psychanalytique du corps" na Universidade Paris VII - Diderot, Membro da Associação Universitária de Pesquisas em Psicopatologia Fundamental.
1Nessa mesma perspectiva, P. L. Assoun propõe dar à dor seu estatuto de verdadeiro lugar do saber do sujeito: " Au-delà de sa connotation pathologique, la douleur prend ainsi sa valeur proprement tragique d'accès à un certain 'savoir'. Ce qui est là désigné comme 'cœur' ne fait que figurer un certain 'organe' par quoi existe le sujet de la douleur. En ce point précisément, où la douleur prend sa dimension de passion, 'physique' et 'moral' sont littéralement indiscernables. Que la douleur cesse d'être événement pour atteindre 'l'être moral', et l'on sera enclin à lui donner le nom de 'douleur morale', véritable 'existence névralgique'". P. L. Assoun, "Métapsychologie de la douleur: du physique au moral", in La douleur morale, Paris, Ed. du temps, 1996, p. 223. Grifo do autor.
2O perigo é, nesse momento, ligado à angústia e não ao pavor. À exceção de uma nota de rodapé que ressalta, na situação traumática, o perigo real ligado às reivindicações pulsionais. Eis a nota: "Il peut arriver bien souvent que, dans une situation de dangers qui est correctement estimée comme telle, une part d'angoisse de pulsion vienne s'ajouter à l'angoisse de réel. La revendication pulsionnelle, devant la satisfaction de laquelle le moi recule d'effroi, serait alors la revendication masochiste, la pulsion de destruction tournée contre la personne propre ". S. Freud (1925), "Inhibition symptôme et angoisse " , chap. XI, annexe c, in Œuvres complètes, t. XVII, PUF., 1992. p. 282.
3Fazemos referência aos avanços feitos por P. L. Assoun em seu seminário de pesquisa " Corps et trauma, écriture et symptôme " , Universidade Paris VII, Laboratório de Psicopatologia Fondamental e Psicanálise, 1996-1997.
4Laplanche, quanto a ele, apoia-se em uma certa leitura de Ferenczi para desenvolver a hipótese segundo a qual a sedução seria o elemento constitutivo da sexualidade do sujeito. Ferenczi é certamente o fundador de certa concepção que considera a relação para com o outro o resultado da organização libidinal do sujeito - ou seja, da criança enquanto objeto da mãe. Conquanto o desenvolvimento dessa questão feito por Ferenczi pareça distinguir-se do que fora apregoado por Laplanche, em seu livro Novos fundamentos para a psicanálise , Laplanche propõe a ideia segundo a qual um traumatismo sexual é necessário para a constituição sexual da criança. Segundo sua teoria - a da sedução generalizada -, é o fato de haver se confrontado com essa experiência que permite ao sujeito constituir-se enquanto sujeito sexualizado. Em outros termos, é a partir de um investimento do corpo da criança pela mãe que o corpo daquela pode tornar-se um corpo sexualizado. Mas Ferenczi vai ainda mais longe ao propor a hipótese segundo a qual esse investimento poderia mesmo provocar o rompimento da criança enquanto sujeito, ideia que se opõe à de Laplanche, que vê no traumatismo o momento constitutivo de uma normalidade sexual. Dito de outra forma, Ferenczi acentua a situação de "catástrofe", o adulto detendo uma função desestruturadora para o sujeito. Isso abre, desde então, uma dimensão totalmente diferente à questão da sedução. Cf. J. Laplanche, Nouveaux fondements pour la psychanalyse, Paris, PUF, 1987.
5É o que jamais acontecera antes.

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