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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.2 Rio de Janeiro dic. 2017

 

ARTIGOS

 

Adolescentes no ciberespaço: uma reflexão psicanalítica

 

Adolescents in the cyberspace: a psychoanalytical reflection

 

 

Natália Fernandes KellesI*; Nádia Laguárdia de LimaI**

IUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa investiga as relações dos adolescentes com o saber no contexto das tecnologias digitais a partir da noção de inconsistência do Outro. Para fazer essa discussão, analisa a relação entre saber, transmissão e transferência, a partir de fragmentos de conversação com adolescentes em uma escola pública. A hipótese sustentada nesta pesquisa é a de que, diante do desvelamento da inconsistência do Outro na época atual, a busca de saber passa a ser feita na internet. Entretanto, o que o adolescente obtém na internet não é da ordem de um saber, mas da informação. A internet não só não favorece a elaboração de um saber próprio, como evidencia e reforça a inconsistência do Outro.

Palavras-chave: adolescência, saber, psicanálise, conversação, internet.


ABSTRACT

This research investigates the relationships of adolescents with knowledge in the context of digital technologies from the notion of inconsistency of the Other. To carry out this discussion, the relation between knowledge, transmission, and transference was scrutinized from fragments of conversation with adolescents in a public school. The hypothesis sustained here is that, faced with the unraveling of the inconsistency of the Other in current times, the search for knowledge begins to be made in the internet. Nonetheless, that which the adolescent obtains in the internet is not from the domain of knowledge, but rather from that of information. Not only internet does not favor the elaboration of a singular knowledge, but it also reveals and reinforces the inconsistency of the Other.

Keywords: adolescence, knowledge, psychoanalysis, conversation, internet.


 

 

Introdução

Na década de 1970 quando os primeiros computadores surgiram no formato que conhecemos hoje, Lacan (1972-1973/1985, p. 131), de forma perspicaz, comentou: " Que um computador pense, quanto a mim estou de acordo. Mas que ele saiba, quem é que vai dizer isto? Pois a fundação de um saber é que o gozo do seu exercício é o mesmo do da sua aquisição".

Assim, Lacan (1972-1973/1985) nos informa que na experiência analítica o estatuto do saber não é o mesmo do conhecimento. Para o psicanalista, pensamento e saber são distintos, uma vez que no saber há gozo. Os computadores evoluíram bastante desde a década de 1970 e hoje temos aparelhos cada vez menores e que são capazes de "pensar" sobre temas diversos simultaneamente. Nos programas e aplicativos disponíveis em celulares e tablets, por exemplo, é possível conversar com pessoas a milhares de quilômetros de distância ou encontrar toda a obra freudiana disponível a um clique. Os aplicativos vão desde redes de relacionamentos, controle da saúde até ferramentas de gestão empresarial e vigilância e controle social.

Neste trabalho buscamos compreender as formas de apropriação dessas novas tecnologias pelos jovens, levando em conta as possibilidades que elas podem proporcionar. A bordaremos como se dá a transmissão do saber na adolescência contemporânea, diante do declínio do Outro e da recusa às tradições. Recorreremos a alguns textos de Lacan sobre o saber, além de produções de autores contemporâneos que analisam as relações dos sujeitos adolescentes com o saber e a virtualidade. A partir da escuta dos adolescentes, refletiremos sobre a possibilidade de transmissão de saber no ambiente virtual.

 

Metodologia de pesquisa

Em nosso projeto de pesquisa e extensão realizamos conversações de orientação psicanalítica com adolescentes em escolas da rede pública de ensino. A conversação é um dispositivo clínico criado nos anos 1990 por Jacques Alain-Miller e posteriormente utilizado como metodologia de pesquisa. A conversação tem sido utilizada como prática de pesquisa e intervenção em vários campos, dentre eles a educação, a saúde mental e a socioeducação. Miller (2003) define a conversação como:

uma situação de associação livre, se ela é exitosa. [...] Um significante chama outro significante, não sendo tão importante quem o produz em um momento dado. Se confiamos na cadeia de significantes, vários participam do mesmo. Pelo menos é a ficção da conversação: produzir - não uma enunciação coletiva - senão uma associação livre coletiva, da qual esperamos um certo efeito de saber. Quando as coisas me tocam, os significantes de outros me dão ideias, me ajudam e, finalmente, resulta - às vezes - algo novo, um ângulo novo, perspectivas inéditas ( Miller, 2003, p. 15-16).

Este projeto parte de uma demanda da escola devido ao uso excessivo e/ou inadequado das redes sociais pelos jovens, como a publicação e o compartilhamento de fotos de nudez de colegas, as manifestações de segregação e violência nas redes sociais, dentre outros. A conversação visa à responsabilização do sujeito pelas suas palavras e pelo seu agir na web. Apesar da proposta de se trabalhar com grupo de adolescentes, buscamos alcançar o singular de cada um. A partir das falas dos adolescentes, tentamos localizar um ponto de mal-estar no uso que cada um faz do espaço virtual. O número de encontros, a duração e a quantidade de participantes é variável de acordo com a proposta, as possibilidades e a demanda de cada instituição, mas é previamente acordada com os adolescentes. A conversação é conduzida por um psicólogo em formação psicanalítica, acompanhado por um estudante da graduação ou de pós-graduação em Psicologia. A supervisão do trabalho ocorre semanalmente com a coordenadora do projeto, com a participação ativa de todos os pesquisadores, seguida de um grupo de estudos sobre os temas relacionados à pesquisa.

Assim como Freud (1925/1976) nos ensina, ao chegarmos à escola não pretendemos substituir o trabalho pedagógico, mas intervir nos pontos de mal-estar localizados pela comunidade escolar. O uso do celular, aparelhos eletrônicos e redes sociais pelos alunos é uma das fontes do mal-estar contemporâneo nas escolas e tem deixado os educadores diante de um não-saber como lidar com isso. As condutas usadas pelos professores para lidar com tal situação normalmente passam pelo controle do uso dos objetos, que nos remetem às questões sempre presentes na educação e que já eram apontadas por Freud, a saber, a dificuldade de se definir sobre quando, quanto e como impetrar uma proibição ao aluno e a constatação de que aquilo que funciona para um não é garantia de sucesso com outros (Freud, 1933/2010).

 

O Outro e sua inconsistência

A adolescência é um tempo lógico em que o sujeito deve ancorar-se nos significantes da cultura, desvencilhando-se dos significantes paternos com os quais se identificava. Nesse momento, o sujeito se depara com a inconsistência estrutural do Outro e, concomitantemente, com a inexistência da relação sexual. Assim, o sujeito descobre que seus pais não são os heróis da infância que tudo podiam resolver, mas sujeitos faltosos, assim como ele. Essa descoberta é angustiante para o sujeito, sendo, segundo Freud (1910/1970), um momento propício para o desencadeamento de patologias nos adolescentes.

No entanto do que se trata nessa inconsistência estrutural do Outro e como ela é apreendida pelo adolescente em suas navegações pelo ciberespaço? Pretendemos discutir se na contemporaneidade o Outro é de fato dispensável, podendo ser substituído pela internet, por exemplo, ou se a apreensão do saber passa necessariamente pelo Outro.

A fim de abordamos a inconsistência do Outro, nos ocuparemos inicialmente do conceito de Outro que Lacan desenvolve em sua obra, especialmente no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Nesse seminário, Lacan (1964/1998) apresenta as operações de alienação e separação para explicar a relação do sujeito com o Outro. A constituição do sujeito não se dá sem o Outro que "é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer" (Lacan, 1964/1998, p. 194). Para se constituir, o sujeito depende do significante, que é capturado primeiramente no Outro. O Outro antecede o sujeito que, ao nascer, já tem uma história, já é contado.

Aprendemos com Freud e com Lacan que o sujeito se constitui na relação com o Outro e com a linguagem. Ao nascer, a criança encontra-se desamparada e depende de outro ser para que ela sobreviva. Nos primeiros meses de vida, o bebê não se reconhece como uma unidade diferenciada desse outro que a acolhe, no entanto, por volta dos seis meses, ele começa a se reconhecer em um processo importante para seu desenvolvimento e para sua constituição enquanto sujeito, o que Lacan (1949/1998) denomina estádio do espelho.

Lacan (1949/1998, p. 100) propõe que o estádio do espelho seja compreendido como uma identificação, que tem como função "estabelecer uma relação do organismo com a realidade". No estádio do espelho o outro é imaginário, o pequeno outro, que comporta a ambiguidade de ser semelhante e rival do sujeito, é um "outro-ideal" (Quinet, 2012, p. 9). É a partir da imagem desse semelhante que o sujeito constituirá sua própria imagem.

O grande Outro é aquele da ordem simbólica. O sujeito se aliena aos seus significantes e se confunde com esses significantes buscando decifrar o enigma "quem sou eu" e "o que o Outro quer de mim". Esse lugar é ocupado em um primeiro momento pela mãe, mas, como nos lembra Quinet (2012, p. 28), "é preciso haver a inclusão da Lei - o Nome-do-Pai - no Outro" para que o sujeito possa ser incluído na cadeia significante. Assim, o Nome-do-Pai tem uma função organizadora do discurso do Outro.

No entanto, entre esses significantes há intervalos nos quais a divisão do sujeito aparece. A falta que o sujeito encontra no Outro faz a criança questionar "ele me diz isso, mas o que é que ele quer?" (Lacan, 1964/1998, p. 203). Assim, o sujeito tem a escolha de ficar preso, alienado ao significante do Outro, ou enveredar-se nesses intervalos e na cadeia significante. No caso da segunda opção, temos a separação. Mas é importante pontuar que Lacan (1964/1998, p. 199) nos alerta que sempre estaremos "um pouquinho mais alienados" em um ou outro aspecto de nossa vida.

Lacan (1964/1998) aponta que a alienação está na linguagem e revela o sujeito divido. Ele exemplifica: "A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada" (Lacan, 1964/1998, p. 201). Desse modo, o sujeito estará sempre entre a alienação e a separação em relação ao Outro. Assim, o sujeito vai se constituindo a partir das operações lógicas de alienação e separação.

É possível perceber na teoria lacaniana que o autor nunca apresentou o Outro de forma completa, consistente. Ao contrário, Lacan sempre pontuou a falta como constitutiva da subjetividade.

Quando Lacan em sua obra evidencia a inconsistência do Outro, refere-se ao Outro não apenas como o Outro do romance familiar, o Outro que cada sujeito precisa inventar, mas também a esse Outro social que não mais abriga o adolescente. Nesse sentido, Peixoto Lima (2009, p. 114) aponta que a adolescência está sem pais e sem mestres, devido a um "esvaziamento do lugar do Outro" que impulsiona a identificação horizontal, e não mais a um mestre. As referências deixam então de se orientar pelo simbólico e passam a ser dominadas pelo imaginário. Logo, no lugar de uma referência que balize o sujeito, temos referências múltiplas. Muitas vezes, os adolescentes buscam um saber sem a mediação do Outro, devido à perda de autoridade dos mestres, sejam eles pais ou professores. Nessa busca, a internet tem sido uma das "enciclopédias" privilegiadas pelos jovens.

 

A inconsistência do Outro e o mais-de-gozar no discurso capitalista

Vivemos o declínio da autoridade e das grandes instituições sociais, com a multiplicação das referências de identificação. Lypovetsky (2004) destaca que na contemporaneidade o sujeito é deixado à deriva e as instituições não mais o sustentam. No entanto, quanto menos as normas sociais nos regem, mais o sujeito sintomatiza e manifesta sinais de "esgotamentos e ‘panes’ subjetivas" (Lypovetsky, 2004, p. 84).

Em seu texto "Radiofonia", Lacan (1970/2003) afirma que vivemos em uma época de ascensão do mais-de-gozar regulado pelo consumismo, que resulta em tédio. O autor comenta que na atualidade há o declínio do Ideal e os objetos de consumo passaram a orientar e comandar o sujeito.

Ao apresentar os quatro discursos - da histérica, do universitário, do mestre e do analista - que demonstram as possibilidades de laço social, Lacan (1969-1970/1992) já possuía os elementos do que posteriormente formalizou como o quinto discurso: o discurso capitalista. No entanto, diferente dos outros, o discurso capitalista não estabelece laço social. Nesse discurso, o mais-de-gozar é imperativo, o laço é realizado com o objeto e não mais com o Outro.

Na mesma perspectiva, Miller e Laurent (2005) ressaltam que podemos pensar em uma grande neurose contemporânea, na qual a inexistência do Outro condena o sujeito a buscar o mais-de-gozar. O autor destaca que "o supereu freudiano produziu o proibido, o dever, a culpa, que são termos que fazem o Outro consistir, são semblantes do Outro, supõem o Outro. O supereu lacaniano [...] produz um imperativo diferente: ‘goza!’ Este é o superego da nossa civilização" ( Miller e Laurent (2005, p. 19; tradução nossa). Nessa sociedade não há objeto que escape à linha de produção. Nessa perspectiva, podemos concluir que enquanto o supereu freudiano está articulado a um Outro consistente, o supereu lacaniano pressupõe a inconsistência do Outro e a ascensão do gozo.

Assim, consideramos que uma sociedade regida pelo discurso capitalista dificulta a travessia do adolescente do espaço familiar para o laço social mais amplo, uma vez que, como demonstrou Freud (1905/1989), é preciso o apoio de um Outro, substituto do pai no lugar do Ideal do Eu, para que o sujeito possa desvencilhar-se dos muros de sua casa para ancorar-se no mundo.

 

A inconsistência do Outro e o tempo lógico da adolescência

A adolescência possui uma posição ambivalente em nossa cultura, uma vez que é considerada, ao mesmo tempo, o futuro da sociedade e uma ameaça ao suposto equilíbrio social, tornando-se alvo de práticas educacionais e científicas. Viola (2016, p. 93) indica que essa é uma "posição duplamente subversiva encarnada pela figura do adolescente: aquele que desvela, mesmo sem autorização da sociedade, o despertar da sexualidade, mas também como aquele a quem pertence o futuro, o imponderável, a quem tudo pode acontecer". Para a psicanalista, essa posição tem lugar de destaque no discurso social marcado pelo sintoma e sofrimento. Assim, o adolescente é um alvo fácil do discurso capitalista, que promete preencher o vazio e o mal-estar com objetos de consumo.

Do mesmo modo, interrogamos as implicações desse desvelamento do Outro para a adolescência: "Como é que eles [os adolescentes] iniciam um movimento de separação, quando é o próprio Outro social que lhes ordena a gozar sem limite, isto é, a não se separar?" (Consenza, 2015, p. 2). Recorrendo ao prefácio de Lacan (1974/2003) para a peça O despertar da primavera, Consenza (2015) destaca os dois tempos da adolescência: o primeiro é o tempo da fantasia, em que os meninos sonham "fazer amor com as mocinhas" (Lacan, 1974/2003, p. 557). Nesse tempo do "véu", o sujeito faz existir a relação sexual. O segundo tempo é o do trauma, no qual o sujeito se depara com a inexistência da relação sexual e a subjetiva. Os dois tempos estão articulados, pois o primeiro, de constituição do véu, é necessário para que o sujeito, no segundo tempo, possa subjetivar o trauma. Consenza (2015) aponta que na contemporaneidade esse véu que sustenta o enigma da sexualidade está perdido. A multiplicidade de sentidos leva a uma equivalência entre eles, que perdem a sua força. O Ideal declina diante da ascensão do gozo sem sentido.

A partir das considerações acima, podemos interrogar como se encontram os adolescentes na época atual. Lima (2016) questiona se o adolescente estaria evitando o encontro com o outro sexo no bombardeio de imagens das telas dos dispositivos tecnológicos, se essas telas funcionariam como um interdito ao encontro dos corpos, evitando o confronto com a inexistência da relação sexual. Consenza (2015) aponta a dificuldade do adolescente contemporâneo em fazer existir a relação sexual, esse primeiro tempo da adolescência, no qual o véu fornece um valor enigmático ao sexo. Assim, a dificuldade em tecer o véu da fantasia compromete o segundo tempo, da subjetivação do trauma.

Um fator que dificulta a travessia adolescente é a falta de referências sobre o que é ser adulto hoje. Para Lipovetsky (2004, p. 80), a modernidade era definida por Kant como um "tornar-se adulto", e na hipermodernidade vivemos um movimento de retorno permanente à juventude, "uma fênix emocional". Nesse movimento, vivemos uma adolescência generalizada que "parece retirar a dose de alteridade geracional" (Pereira, & Gurski, 2016, p. 163) imprescindível para que o adolescente possa realizar suas primeiras marcas no mundo fora do seu lar e lançar-se no social.

Acerca do uso que os adolescentes fazem dos dispositivos tecnológicos, Lima (2006) aponta que a tecnologia virtual pode entrar no circuito do mais-de-gozar para alguns sujeitos. Para a psicanalista, o fascínio pela tecnologia virtual e a pluralidade de imagens incidem sobre os modos de subjetivação na contemporaneidade, o que se reflete, por exemplo, na busca pelo prazer instantâneo e na desmotivação em relação às atividades que exigem algum esforço ou adiamento do prazer. A profusão de imagens na contemporaneidade mascara o furo da imagem, justamente o que instiga o sujeito a buscar o saber no campo do Outro. Logo, frente aos objetos de satisfação instantânea, ofertados pela cultura, o desinteresse dos sujeitos pela aprendizagem escolar, ou por qualquer outra atividade que freie ou postergue o gozo, torna-se frequente. Para o sujeito adolescente, quando os recursos simbólicos mostram sua fragilidade para tratar o real, abdicar do gozo é uma tarefa mais difícil.

Sabemos que o real da puberdade era contornado por ritos de passagem que tinham uma eficácia simbólica, permitindo aos sujeitos adentrarem no mundo adulto. Esses ritos marcavam o sujeito com um carimbo social, que autentificava sua entrada nesse novo universo. Na contemporaneidade, repleta de referências múltiplas e fluídas, esses ritos dificilmente são encontrados e parece haver um rito singular para cada adolescente, sugerindo, então, uma pluralidade de modelos de adolescências. Para Lacadée (2011, p. 55), a ausência de referências impele os adolescentes a se tornarem "artesãos do sentido de suas existências". Assim, os adolescentes na nossa sociedade precisam criar os seus próprios ritos de passagem, sem contar com a chancela do Outro.

 

O saber e o gozo na adolescência

Lacan, em O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963/2005), faz uma aproximação entre a maturação do objeto a e a apreensão do conceito na adolescência. Pautada nessa postulação lacaniana, Viola (2016, p. 236) estabelece que no momento em que o sujeito se depara com a inconsistência do Outro há a " presentificação de um vazio que corresponde à maturação do objeto a". Assim, compreende-se a ocorrência de algo inédito na adolescência em relação ao saber. Viola (2016) defende a seguinte tese:

A relação do sujeito com o saber se transforma, necessariamente, quando essa falha se coloca, cristaliza-se, no momento-limite da puberdade. A aquisição da função conceitual, indissociável da função da causa e correlata a uma apreensão topológica do ponto de conjunção entre exterior e interior do sujeito, propicia toda uma atualização da relação com o saber. O conceito [...] pode ser compreendido, assim, como um saber-fazer inédito que só se disponibiliza ao sujeito a partir da adolescência. [...] Ou seja, o que vai desabrochar na adolescência deriva desse ponto oscilante, um ponto de enigma em torno do qual gira a pulsão de saber e que tem valor determinante na causação do sujeito, em sua posição subjetiva (Viola, 2016, p. 237).

O sujeito precisará, então, construir um saber para lidar com o "furo no real" (Lacan, 1974/2003, p. 558) desencadeado pela puberdade. Para Freud ( 1905/1989), o saber tem sua origem na pulsão e sua apreensão está ligada às pulsões escopofílica e de domínio.

O saber é sempre apreendido, capturado no campo do Outro. Logo, o saber faz laço social. Lacan (1972-1973/1985, p. 130) explica que "o estatuto do saber implica, como tal, que já há saber e no Outro, e que ele é a prender, a ser tornado. E por isso que ele é feito de aprender ". Para o psicanalista, o gozo está presente tanto nessa apreensão do saber quanto no seu exercício. Na adolescência a articulação entre saber e gozo apresenta-se de forma inédita para o sujeito, e é essa articulação que possibilita que o adolescente se situe na partilha dos sexos, apropriando-se dos semblantes no jogo sexual.

 

Transmissão virtual: de que ordem é?

O livro Cibercultura, do filósofo e sociólogo Pierre Lévy, é um dos mais citados na área acadêmica para tratar dos temas ciberespaço, cultura digital, cibercultura, virtualidade, dentre outras terminologias adotadas de acordo com cada área do conhecimento. Lévy (1999) nos revela que o termo ciberespaço foi inventado em um romance de William Gibson de 1984, no qual as redes digitais eram o campo de batalha de grandes empresas que brigavam por informações e dados secretos. Posteriormente, o termo foi adotado por usuários das redes digitais (Lévy, 1999). O filósofo define o ciberespaço da seguinte forma:

espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores.... Insisto na codificação digital, pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que é, parece-me, a marca distintiva do ciberespaço ( Lévy, 1999, p. 92-93).

Lévy (1999) comenta que alguns autores definem o ciberespaço como a "terra do saber". Esse termo nos parece bastante propício para a nossa cultura, na qual o "Deus Google", a um só clique, fornece respostas para qualquer pergunta. Recentemente, no XI Colóquio Internacional do Laboratório de Pesquisas e Estudos Psicanalíticos e Educacionais sobre a Infância (LEPSI) 1, o psicanalista Mario Elkin Ramirez, ao comentar a peça O despertar da primavera, apontou o Google como o oráculo moderno. Referenciando Miller 2, ele destacou que hoje o saber está no bolso, seja no tablet ou no celular, de forma que o saber não passa mais pelo Outro. O psicanalista destacou que esse saber do Google é diferente do saber-fazer com a sexualidade e com as pulsões, e indicou que o saber-fazer depende de alguém responsável por sua transmissão, seja ele o homem mascarado como na peça de Wedekind (1891/1973) ou um analista ou um treinador de futebol. O psicanalista considera, portanto, que o mestre transmite não só o que é da ordem do Ideal, mas também de um saber-fazer com o gozo.

Em seu ensino, Lacan (1964/1998) nos apresenta a noção de sujeito suposto saber para designar a transferência. É essa noção o princípio da transferência. Ele nos adverte que o psicanalista não deve se identificar com o sujeito suposto saber (Lacan, 1969-1970/1992). Tal como Miller (1988, p. 73) aponta é ao entregar-se à associação livre que o sujeito propicia a transferência, buscando "no limite de sua palavra" encontrar a verdade sobre si, sobre seu desejo. Miller (1988, p. 73) ressalta que esse limite da palavra encontra-se no analista "enquanto grande Outro, ouvinte fundamental que decide a significação - e é por isso que seu silêncio é tão essencial, seu silêncio que dá lugar ao desdobrar das palavras, e que não se deve precipitar a satisfazer a demanda do paciente". Demanda esta de saber a verdade de quem é e de seu desejo.

Lacan (1967/2003) demonstra que o saber só se revela no engano do sujeito. O autor aponta para a existência de um engano próprio à estrutura do inconsciente. O buraco no saber é o real. Ele passa a ressaltar o sujeito como impossível de ser representado, como resposta do real, um vazio simbólico. Se o Outro não detém um saber absoluto, isso vai afetar a própria estrutura do sujeito suposto saber. Ele demonstra que é ao se colocar como objeto a que o analista sustenta esse Outro saber. No coração do sujeito suposto saber existe um furo, uma incompletude. É esse furo que leva ao papel dialético na transferência. Lacan (1967/2003) formaliza a estrutura furada no sujeito suposto saber. Assim, é a partir desse lugar esvaziado de saber ocupado pelo analista que o paciente pode supor um saber no Outro.

A transmissão de saber é sustentada pela transferência. Mas de que ordem é essa transmissão? Para iniciar essa reflexão, buscamos analisar a especificidade da transmissão familiar. Ao retornar ao texto freudiano, Lacan (1969/2003), em "Nota sobre a criança", destaca que a transmissão é necessária à constituição psíquica, transmissão essa realizada pela família, "implicando a relação com um desejo que não seja anônimo" (Lacan, 1969/2003, p. 369).

O pai transmite ao filho a sua versão particular de gozo, a sua "per-versão". Ao comentar sobre O despertar da primavera, Lacan (1974/2003) sublinha que o homem mascarado se apresenta para Melchior como apenas uma das (per)versões do Nome-do-Pai, entre tantas possíveis. O convite que o homem mascarado faz a Melchior é de conhecer o ser humano, "um mundo de possibilidades. Outros horizontes" (Wedekind, 1891/1973, p. 60).

A transmissão geracional permite ao sujeito usufruir de seu lugar na sociedade. No entanto, essa transmissão está cada vez mais precária. Como aponta Le Breton (2009, p. 37), a família propicia a socialização do sujeito e baliza sua autonomia, mas, nos tempos atuais, "essas famílias com dificuldades deixam de cumprir sua função sociológica de abrir para a criança o mundo que os envolve e sua função antropológica de suscitar o gosto de viver".

Além disso, o educador, que, segundo Freud, seria o substituto do pai, assumindo o lugar de Ideal do Eu para o adolescente, perdeu o lugar de autoridade do saber, já que ele não detém o conhecimento na era da internet.

A partir dessas considerações, questionamos se existe transmissão de saber na internet. Para fazer essa análise, devemos considerar as especificidades de nossa época. Lipovetsky (2004) aponta a noção de hipermodernidade para designar esse novo tempo social marcado pelo hiperconsumismo, pela hiperindividualização e pela hipervigilância, no qual imperam os ideais hedonistas e a ideologia do "aqui-agora" (Lipovetsky,2004, p. 51).

Lacan (1970/2003, p. 432) comenta que vivemos em uma época na qual há uma oferta excessiva de saber, "a ponto de não se saber o que fazer com ele, enchendo os armários. Daí, alguns (desses saberes) nos agarram ao passarmos. [...] Sermos transformados em sujeito de um discurso pode deixar-nos sujeitados ao saber". Lacan (1968-1969/2008) desenvolve essa ideia no texto "A inconsistência do Outro", em que explana sobre a "homogeneização dos saberes no mercado", na qual se revela a ordenação do gozo pelo saber, gozo que "pode se estabelecer como rebuscado e perverso" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 40).

Entretanto, não podemos desconsiderar que o ciberespaço oferece possibilidades aos jovens. Ao pesquisar blogs escritos por adolescentes, Lima (2009) percebe que, para alguns jovens, essa escrita no ciberespaço pode auxiliar o sujeito a construir uma significação sobre a adolescência. Para a psicanalista, o adolescente se torna protagonista no blog e pode construir sua ficção, o seu romance familiar. Consideramos que o mesmo pode ocorrer em outros espaços da internet, como, por exemplo, nos vlogs, que estão cada vez mais populares entre os jovens, e também nos jogos virtuais. É interessante observar que alguns youtubers começam a se mostrar pelo vídeo e pela imagem e, posteriormente, escrevem livros contando suas histórias, sendo muitos deles adolescentes.

Como Freud (1905/1989) nos ensina, a tarefa mais dolorosa do adolescente é desvencilhar-se da autoridade dos pais. Lacadée (2012, p. 262) destaca a importância da fantasia nessa tarefa: "A atividade fantasmática toma como tarefa livrar-se dos pais, que de agora em diante são desdenhados, seja sob o modo de sonhos diurnos, de leituras, de escrituras de diários íntimos ou de jogos diversos". Desse modo, para alguns sujeitos a tela do celular ou do computador pode funcionar como uma moldura para as fantasias adolescentes. Como relatam os adolescentes nas conversações, nos jogos eles podem ser o que quiserem, é um espaço para a livre experimentação.

A fantasia, na adolescência, pode contornar e dar limite ao indizível, à falha no saber com o qual o jovem se confronta em relação ao sexo. Como destaca Consenza (2015), a fantasia auxilia os adolescentes nesse "trabalho de nomeação", em que podem se aproximar da inexistência da relação sexual, "como um trauma subjetivável, evitando assim cair de volta na deriva ilimitada própria da adolescência contemporânea" (Consenza, 2015, p. 5). A fantasia tem função de mediação e articulação entre significante e gozo. Lima (2009, p. 69) aponta que "onde há furo coloca-se o objeto a fantasioso". Assim, o "real é o enquadramento da fantasia como janela ou como véu sobre o impossível, sobre o que é inacessível ao sujeito" (Lima, 2009, p. 210). Na adolescência o sujeito precisa reconstruir sua fantasia, uma vez que as fantasias infantis falham. Nas conversações percebemos que o ciberespaço pode auxiliar o sujeito na construção desse contorno sobre a sexualidade.

Lima (2009, p. 218) afirma que "o ciberespaço se configura como um novo espaço público, onde o jovem se sente ‘incluído’. Um espaço onde é possível encontrar os seus pares e exercitar a passagem do privado ao público, da família para o laço social mais amplo" (p.218). Assim, o sujeito sente-se pertencente à rede, podendo modificá-la a partir de suas interações tanto individuais quanto em grupo.

Pois bem, existem possibilidades de identificação e de interação social através da rede, mesmo que sejam predominantemente imaginárias. Mas é possível a construção de saber nesse espaço virtual? Viola (2016) salienta que o acesso ao conhecimento é buscado nos meios virtuais de maneira desregulada, em um espaço no qual não há limites. Essa overdose de informações altera a relação do adolescente com o saber, uma vez que os carimbos simbólicos que poderiam auxiliar o sujeito a lidar com o não-saber sobre o sexo - encontro traumático para todos, como nos diz Lacan (1974/2003) - estão cada vez mais fluidos, esparsos. Desse modo, "os adolescentes hipermodernos estão à deriva num oceano virtual de informação e conhecimento, o que não garante a transmissão do saber" (Viola, 2016, p. 108). Na mesma perspectiva, Peixoto Lima (2009, p. 118) pondera que o adolescente navega, é um " flaneur virtual", mas não marca seu lugar.

Diante desse cenário perturbador, Lacadée (2006) nos dá um alento. Recorrendo a Lacan, ele acredita que o sujeito pode encontrar saídas devido à sua "subversão criadora" (s.p.). O psicanalista indica a responsabilidade ética da psicanálise ao auxiliar o sujeito a inventar, encontrar um lugar e uma solução para o vazio deixado pela autoridade. Assim, para que o sujeito encontre a sua subversão criadora, é preciso que ele encontre um "Homem mascarado", tal como o de Wedekind (1891/1973): esse Outro que autentica a invenção do sujeito. O encontro do adolescente com um Outro encarnado é, portanto, fundamental para a transmissão de um saber-fazer com o gozo.

Nas conversações, percebemos que cada adolescente busca o apoio de um Outro que valide ou autentique a sua invenção. Apesar de alguns adolescentes identificarem-se com o outro do Youtube ou dos jogos, é ao Outro de carne e osso que eles recorrem para se apoiarem em sua travessia na adolescência.

 

O saber dos adolescentes no ciberespaço

Apresentaremos, a seguir, fragmentos de conversações de um grupo de adolescentes coordenado por duas mestrandas em Psicologia no primeiro semestre de 2016. Realizamos dezoito encontros com periodicidade semanal e duração de cem minutos cada. O grupo foi formado por quatro alunos e uma aluna, com idades entre 11 e 12 anos.

Nos encontros, os adolescentes contam e mostram os jogos e canais do YouTube de que gostam. Eles exprimem o fascínio que sentem em relação aos youtubers famosos, que recebem muitas curtidas, têm muitos inscritos e ganham muito dinheiro. Felipe 3 sonha em ser jogador de futebol, mas diz que, se não conseguir, pretende exercer a profissão de youtuber. A coordenadora se surpreende com essa nova profissão e o grupo afirma que, por "dar dinheiro", é uma profissão como outra qualquer. Felipe e André criaram um canal no YouTube em que postam tutoriais dos jogos que utilizam, especialmente de Minecraft, que é um jogo no qual você cria seu mundo a partir de blocos e ferramentas disponíveis no jogo. O jogador pode construir uma paisagem e ir remodelando-a de acordo com a sua criatividade. Assim, a organização do espaço fica a critério de cada jogador. Gabriel tem um canal com outro colega da escola, Davi, sobre jogos e tags, que são desafios, como, por exemplo, fazer misturas alimentares não usuais e ingerir. Mariana também joga, mas parece fazer um uso mais moderado dos jogos em comparação aos meninos.

Na primeira conversação, os jovens contam que jogam Grand Theft Auto ( GTA) e que gostam muito do jogo, no qual há cidades fictícias dominadas pelo crime e o jogador deve realizar algumas missões - atividades criminosas - para avançar na história. Eles revelam que a classificação indicativa do GTA é dezoito anos. Ao serem questionados sobre como conseguem comprar o jogo, dizem que os pais sabem, pois são eles que compram. No entanto, os pais estabelecem os locais virtuais onde os filhos não podem ir, e eles nos contam que é "no strip club [...] que as mulheres ficam naqueles canos de biquíni... ou sem biquíni". Mariana diz que não tem interesse em ir lá: "Eca! Só tem mulher, o que eu vou fazer lá? Se tivesse homem...". Já Felipe e Gabriel não demonstram interesse em saber o que tem nesse lugar proibido. Gabriel diz que o que mais gosta no jogo é "a zueira", e Felipe, as manobras com a moto. André relata que foi escondido no strip club uma vez só para ver o que era. Já Mateus gosta de "matar". Contam que no jogo podem fazer coisas que não são permitidas na vida real, como assaltar o banco e confrontar a polícia.

Logo nesse primeiro encontro, a sexualidade surge como o tema principal, mesmo quando os jovens falam sobre jogos. Além dos jogos, buscam na internet vídeos de "zuera", engraçados. Apesar dos canais eleitos por esses adolescentes serem geralmente os mesmos, e os jogos preferidos também, é possível perceber o uso próprio que cada adolescente faz deles.

Os alunos destacam o Minecraft e o GTA como os seus jogos favoritos, assim como valorizam os youtubers que comentam e fazem tutoriais desses jogos nos canais Authentic Games e Amenic. O entusiasmo com que se referem a esses youtubers famosos, que recebem muitas curtidas, têm muitos inscritos e, como consequência, ganham muito dinheiro, nos leva a questionar se os garotos estariam colocando esses youtubers no lugar de Ideal, especialmente Felipe, que busca diversas estratégias para que seu canal no Youtube tenha mais curtidas. Mas parece-nos, nesses casos, que o que está em questão não é uma identificação vertical, e sim horizontal. Eles percebem esses jovens famosos como adolescentes e, portanto, semelhantes, com a diferença que eles têm acesso a todos os objetos de consumo valorizados socialmente.

Lacadée (2011) aponta o fascínio dos adolescentes pelos reality shows. Percebemos em Felipe esse mesmo fascínio em relação às celebridades do Youtube que ele acompanha. Jovens com idade entre dezoito e vinte e cinco anos que, além de apresentarem os tutoriais sobre jogos, mostram as suas casas, contam sobre as suas rotinas cotidianas, escrevem livros e viajam pelo Brasil, aglomerando diversos fãs que desejam conhecê-los, tirar uma selfie ou ter os seus livros autografados. Para Lacadée (2011, p. 33) "o adolescente se prende ao jogo das celebridades efêmeras que vêm completar sua falta a ser, dando-lhe a ilusão de ocupar o lugar daquele que se vê gozar". Nesse sentido, Lima (2014) indica que o sucesso das redes sociais entre os jovens deve-se ao fato de fisgarem seus gozos. Segundo a autora, para muitos adolescentes, as redes sociais funcionam como "veículos de identificação" (Lima, 2014, p. 109), porém, ela considera que se trata de uma "pseudo-identificação horizontal, sem referência a um Ideal" (Lima, 2014, p. 115), na qual o gozo é o ordenador.

Felipe sempre enfatiza que a vida desses Youtubers é maravilhosa e que gostaria de ter uma casa como a deles, com muitos quartos, piscina e poder comer "besteira" todos os dias. Felipe nos mostra um dos episódios em que um grupo de amigos youtubers adquire uma casa e a mostra a seus seguidores. Ao final do vídeo, todos se deliciam com sanduíches de fast-food. Questionamos o que ele acha interessante nesse vídeo que ele nos mostra e Felipe é categórico: "só te falo uma coisa, fessora, essa casa". O fascínio de Felipe pela casa dos youtubers é evidente e, em outros momentos da conversação, ele retoma essa questão.

Durante os encontros, os alunos nos mostram os usos que fazem das redes sociais. Pela via da escuta, buscamos extrair um saber possível dessas formas de utilização da internet. Gabriel é o garoto eleito pelos colegas desse grupo como o que tem mais know-how nesse universo virtual: sabe editar vídeos, conhece muitos aplicativos e criou um canal com um dos colegas de sala. Gabriel relata que aprendeu essas habilidades em tutorais e com os amigos. Ao longo dos encontros, percebemos que, mesmo buscando na internet informações sobre edições de vídeos, aplicativos e jogos, os garotos sempre elegem um colega ou um familiar que possa auxiliá-los no assunto, alguém que detenha mais conhecimento sobre o assunto do que eles. Felipe elege o primo, também adolescente, e Gabriel elege Davi, que estuda na mesma sala que ele e é seu parceiro no canal do Youtube.

Com relação ao saber tecnológico, são os jovens que ocupam o lugar de mestria na contemporaneidade, e não os mais velhos, invertendo as posições tradicionais. Entretanto, existe uma transmissão que é de outra ordem, não técnica, que supõe um sujeito responsável pelo seu gozo.

Ao mostrar a introdução de um dos vídeos, Felipe conta que o primo lhe ensinou como fazer a inserção de um emoticon: "Até que não foi tão difícil não, eu tenho preguiça de ver vídeo tutorial para aprender... tipo, não entendi, pode explicar de novo? Aí vai ter que voltar o vídeo e o cara vai falar a mesma coisa, não vai falar de um jeito mais fácil de você entender, você vai continuar do mesmo jeito que ele falou antes". Assim, Felipe nos revela que a transmissão que ocorre no ciberespaço não é da mesma ordem daquela que ele obtém no contato com seu primo ou com Gabriel, a quem também recorre quando tem alguma dúvida ao editar seus vídeos.

Essa questão da transmissão também aparece em relação ao saber escolar. Apesar de o grupo ter muitas queixas sobre a escola e sobre a relação com os professores, destaca que os professores são essenciais em sua formação. Ao serem questionados sobre a busca que fazem na internet para as atividades escolares, relatam que não recorrem com frequência ao espaço virtual. Contam que quando não sabem uma questão do "para casa", por exemplo, pedem ajuda a um familiar - citam pai, mãe e avó - e, se não sabem, deixam uma interrogação para discutir em sala de aula com o professor.

Felipe aponta que, quando não entende como resolver alguma questão escolar, a mãe nem sempre ajuda: "eu não gosto tipo, quando você pergunta e tipo e ela lê pra você. E você fala assim ‘não entendi não’. Aí ela lê de novo a pergunta. Não vai adiantar se ela lê de novo". Questionamos o que o Felipe faria se ele estivesse ensinando: "ah, eu ia tentar explicar de um jeito mais fácil, se fosse mais complicado, eu ia falar de outro jeito".

Esse "jeito mais fácil" parece ser do domínio dos professores. Eles apontam para o modo como os professores transmitem os conceitos escolares e dizem que deixam as dúvidas para aprenderem em sala com o docente. Percebemos que os conteúdos ministrados têm pouca influência na relação entre docentes e alunos, como Freud (1925/1976) já tinha nos mostrado. Em seus relatos, demonstram que os professores considerados bons, "legais", são aqueles que transmitem afeto no ato educativo. Felipe relata que "professor chato é aquele que só da aula". E Mateus emenda: "só escreve no quadro, senta na cadeira e começa a ler um livro".

Esse grupo nos surpreendeu pelo grande interesse em nos apresentar o seu mundo e os seus jogos. Felipe explica pacientemente como faz os vídeos do seu canal ou como usa aplicativos para conseguir curtidas. Lacadée (2011) ressalta que os adolescentes têm uma língua própria na qual são exilados e se sentem como estrangeiros. É exatamente o que sentimos com esse grupo. Não conhecíamos esse mundo dos jogos e dos youtubers aclamados por eles, mas demonstramos interesse em conhecê-los, e eles, pacientemente, nos apresentaram o seu mundo, a sua língua.

As transgressões, características da adolescência, também aparecem no uso da internet, como no fato de utilizarem um jogo mesmo sabendo que a classificação indicativa é para maiores de dezoito anos. Assim, cada adolescente faz um uso singular da internet. Consideramos que o uso dos jogos tanto pode servir como um modo de evitar o laço social quanto pode favorecê-lo, por exemplo ao permitir que os amigos da escola criem um grupo dentro do jogo para lutar e conquistar territórios no mundo virtual.

Existe uma forma de aprendizagem no jogo que não pode ser desconsiderada. Os jovens aprendem estratégias para conquistar novas etapas no jogo, desenvolvendo diferentes habilidades perceptivas, motoras e cognitivas. Muitas vezes os jogos digitais envolvem o laço com outros jogadores. Consideramos, a partir das conversações, que os adolescentes buscam diferentes formas de conhecimento na internet. Eles desenvolvem diferentes habilidades, fazem amigos na rede, se comunicam, constituem grupos de identificação e podem fazer experimentos e invenções.

O adolescente busca informações de todo tipo na rede, inclusive sobre as questões sexuais, que, como vimos, não são da mesma ordem de um saber. O saber é transmitido a partir de um Outro encarnado, na função de mestre, que transmite o Ideal e sua "perversão particular", além de acolher o saber-fazer do jovem.

Entretanto, a internet interferiria no tempo lógico de constituição de um véu sobre o real do sexo, ou seja, no tempo de elaboração de uma fantasia na adolescência? A internet poderia favorecer o saber-fazer com o gozo? Faremos essa discussão a seguir.

 

De um saber impossível sobre o sexo a um "saber-fazer" com o gozo

Para a psicanálise, saber e gozo estão articulados. Os primeiros questionamentos infantis são despertados pelo enigma da origem dos bebês e cada criança escreverá sua ficção familiar para essa questão, que na verdade é um desejo de saber sobre sua origem e sobre o seu lugar no desejo do Outro. Com a irrupção da puberdade essa questão se reatualiza e o adolescente se confrontará com a inconsistência estrutural do Outro e com a inexistência da relação sexual. Esse momento, apesar de angustiante para o sujeito, pode ser também propício para a invenção.

Ao apresentar o discurso do mestre, Lacan (1969-1970/1992, p. 19) destaca que o escravo detém um "savoir-faire, um saber fazer" que o senhor subtrai do escravo. Aponta que o saber tem duas faces: "a face articulada e esse saber-fazer" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 19). O primeiro é um saber transmissível, função da episteme, enquanto segundo é o saber-fazer das técnicas artesanais do escravo. Viola (2016) destaca que o saber-fazer:

avizinha-se do campo do gozo, condizendo com certo manejo legitimado do gozo, a outra face do saber se refere ao campo do conhecimento, à ciência, ao saber teórico e ao mundo da informação transmissível, configurando o que faz limite ao gozo, sua renúncia. Compreende-se, assim, que o saber como meio de gozo diz respeito a essa dupla acepção do saber (Viola, 2016, p. 244).

A psicanalista sublinha que essas duas faces do saber estão presentes na adolescência e em cada sujeito uma delas poderá estar mais acentuada do que a outra (Viola, 2016).

Gabriel queixa-se da colega Bianca, pois ela disse para todos que é sua namorada. Em um dos encontros, ele aparece com um coração desenhado de vermelho na mão e conta, rindo meio sem jeito, que foi Bianca quem o marcou. Os colegas complementam as queixas sobre a colega, dizem que ela faz isso com todos os garotos e é "chata". Em outro encontro, contou que ficou preocupado, pois Bianca deixou uma marca de batom em seu pescoço: "o que minha mãe vai pensar?". Bianca parece ser um enigma para os adolescentes do grupo, despertando diferentes afetos nos jovens. Apesar de reclamarem de suas atitudes, demonstraram interesse em decifrar de quem ela de fato gosta, uma vez que "cada hora é um". Os adolescentes parecem querer descobrir se eles estão incluídos no desejo dela.

Gabriel, que nos primeiros encontros mostrava-se bastante tímido, foi aos poucos nos contando sobre os seus dramas relativos à sexualidade. Se antes relatava não ter nenhum interesse em conhecer o strip club, agora ele se encontrava às voltas com os encontros amorosos e com as questões sobre a sexualidade. Contou que as primas o encurralaram em algumas brincadeiras, correram atrás dele e, por duas vezes, tatearam seu órgão genital: "pegaram lá mesmo, uma vez ela [prima] apertou, eu saí correndo". Essas brincadeiras também estão presentes na escola. Mateus e Felipe recordaram um episódio em que um colega "entrou para separar a briga das meninas só pra pegar no peitinho".

O saber que Gabriel detém sobre as tecnologias digitais, tão destacado e admirado pelos colegas, não lhe serve no contato com as meninas. Em um dos últimos encontros, ele nos conta, com as bochechas rosadas e com certa hesitação, que gosta de uma garota, mas que não consegue dizer isso a ela. Ele relata que não sabe o que acontece, mas quando chega perto dela "sei lá... não sai".

Nas conversações fica evidente o pulsar do corpo adolescente que precisa estar em movimento, alguns com mais intensidade do que outros. Em muitos momentos, eles se entretêm em brincadeiras com o corpo, dançam, lutam, correm. Stevens (2016) recorda que o corpo é primeiro uma imagem, tal como Lacan nos ensina no estádio do espelho, mas também é simbólico. E acrescenta que o corpo tem uma "inclinação a querer gozar" (Stevens, 2016, s.p.). Por isso, precisa ser ocupado para pensar, fazer outra coisa, e o uso dos dispositivos eletrônicos pode ser uma forma de ocupar o corpo para realizar alguma atividade, como estudar, por exemplo. Em vários momentos, os adolescentes participam da conversação e se engajam movimentando o corpo, andam pela sala e sobem na mesa. É no movimento dos corpos que a palavra circula.

 

Do gozo ao laço

Conforme comentamos anteriormente, Felipe é engajado nos jogos virtuais. Em todos os encontros, Felipe quer monopolizar a fala para contar sobre um novo vídeo e as moderadoras precisam negociar com todos para que a palavra circule.

O discurso capitalista absorve o sujeito sem que ele se questione sobre os motivos que o levam a desejar tanta fama e dinheiro. Nossa impressão é a de que, para Felipe, esse é um imperativo; logo, não há espaço para questionamentos. Em vários momentos, ele destaca as vantagens de ter fama no Youtube, especialmente pela possibilidade de aquisição de bens materiais, como a casa que nos mostra de um grupo de youtubers famosos que segue. Conta muito animado sobre a placa de diamante 4 que um youtuber pode ganhar ao atingir dez milhões de inscritos. Ao ser indagado sobre o que deseja ser profissionalmente, Felipe logo responde youtuber, seguido de jogador de futebol - profissões que, no imaginário do adolescente, remetem a fama e dinheiro.

Felipe está sempre buscando ter mais inscritos em seu canal. Ele nos conta sobre um site em que é possível gerar números de cartões de créditos e realizar compras. Diante do espanto das moderadoras e da crítica dos colegas, Felipe desconversa e diz que conhece o site, mas nunca o utilizou. Felipe estaria utilizando esse artifício para conquistar as tão desejadas curtidas e os jogos que não pode comprar?

Pois bem, no encontro seguinte, levamos a história de um hacker que cometeu crimes financeiros, foi preso e atualmente é um profissional de sucesso no ramo de segurança virtual, prestando consultoria a diversas empresas renomadas. Felipe desqualifica a história e pondera que não houve tantos prejuízos assim ao sujeito, uma vez que "o cara só ficou preso 24 horas". Nossa tentativa de problematizar o tema do hacker foi fracassada. Concluímos que abordamos esse assunto de maneira pedagógica e, então, retornamos à escuta analítica.

Em uma das últimas conversações, Felipe nos conta que descobriu um site no qual os jogos podem ser compartilhados, demonstrando grande interesse em nos mostrar. Explica que ele realiza a compra de um jogo e, nesse site, pode adicionar um amigo a sua rede social e compartilhar o jogo com esse amigo sem custos adicionais. Ele nos avisa: "não é hacker, é de compartilhar". Conta que já está usando e nos mostra as possibilidades do site. Assim, percebemos que a conversação teve um efeito para esse adolescente, que encontrou uma alternativa para sua impossibilidade de comprar todos os jogos de seu interesse. Acreditamos que o fato de seus pares terem desqualificado sua atitude em relação à possibilidade de uso de cartões de crédito de terceiros foi também importante para que Felipe refletisse sobre essa questão. A busca incessante por curtidas foi aos poucos diminuindo no discurso de Felipe, dando espaço para outras questões, inclusive o interesse dele por outros jogos, diferentes dos que ele utiliza, tal como o jogo apresentado por Mateus.

Sabemos que nossa postura nas conversações não deve ser moralista. O importante é promover a reflexão, abrir novas janelas para que os adolescentes possam ver outras paisagens e outras possibilidades nas telas virtuais. Com a oferta da palavra, Felipe parece ter renunciado um pouco a seu gozo e encontrado uma solução simbólica através do laço com o Outro, compartilhando os seus jogos.

 

Da repetição à invenção

Mateus é um garoto falante, alegre e participativo. Mas, nos primeiros encontros, ele era isolado no grupo. Ele sempre queria tomar a palavra e era possível perceber que os colegas duvidavam de suas histórias e, às vezes, ficavam impacientes com ele. No primeiro encontro, disseram que tem onze anos, enquanto Mateus tem doze, porque é "repetente".

Percebemos que Mateus usava o espaço da conversação para elaborar suas fantasias, mas o grupo não acolhia as suas construções. Ele narrava com a habilidade de um contador de histórias sobre seu heroísmo ao correr atrás de um assaltante, destacando como via a violência na porta de sua casa com frequência. Em outros momentos, mostrava vídeos engraçados ou de atos de coragem para chamar a atenção de seus colegas e das moderadoras. Sua tática funcionava às vezes. Durante alguns encontros, André e Felipe dominaram a cena ao contarem sobre o seu canal no Youtube e mostrarem a habilidade que possuíam nos jogos.

Mateus demonstrou ter muito interesse por história e mitologia, sendo que os jogos que utiliza são diferentes dos convencionais apresentados pelos colegas. Os jogos de Mateus estão relacionados com os seus interesses e, por serem diferentes, chamam a atenção dos colegas, que ficam interessados em saber como funciona o jogo em que clãs disputam território. O jogo foi a estratégia utilizada por Mateus para estabelecer um laço com os colegas desse grupo e com os outros alunos da escola, apesar de gostar de jogos que não são famosos entre os jovens dessa idade.

Nas primeiras conversações, Mateus tentava envolver seus colegas em suas fantasias de heroísmo, mas não conseguiu a atenção deles. Com seu celular, ultrapassado em relação ao dos jovens de sua idade, apresenta aos colegas novos jogos, diferentes do modismo dos Youtubers de sucesso. Aos poucos, ele consegue se inscrever no grupo, estabelecendo um lugar próprio, que tem espaço para os seus gostos e a sua inventividade. Nas conversações, Mateus era inicialmente nomeado pelo grupo como "o repetente". Ao trazer, a cada encontro, algo inédito, que foi bem acolhido na conversação, Mateus pôde ocupar um lugar novo no grupo.

Nas últimas conversações, Mateus contou que está criando um jogo de Rolle Playing Game (RPG) e que pensou em fazê-lo utilizando os espaços de grupos de trabalho oferecidos pela escola com a ajuda de uma professora. Quando interrogado sobre de quem tinha sido a autoria dessa proposta, ele afirmou que a ideia foi sua. Os outros adolescentes do grupo pareceram se interessar pelo jogo. Mateus contou que usará as moedas antigas que ganhou da mãe para representar o dinheiro. Relatou com entusiasmo as regras do jogo e disse já ter colegas na escola interessados em fazer parte desse grupo.

Desse modo, percebemos que o jogo foi uma forma encontrada por Mateus de fazer laço com os colegas e de inserir-se em grupos. Mas, fundamentalmente, o jogo envolve um saber-fazer, que se refere ao que há de mais singular em Mateus. O jogo inclui as moedas de valor afetivo que ganhou de sua mãe, e tem valor de gozo que ele aborda pela via da contabilidade do gozo, além de abranger aspectos da história e da mitologia, numa construção simbólica geracional. Mateus inventou um jogo sobre "a origem", questão que retorna na adolescência, num jogo simbólico em que ele se faz protagonista de sua própria história. Essa construção foi propiciada por ter sido acolhida e autenticada pela coordenadora da conversação.

A transmissão virtual não é da mesma ordem do que a presencial. A rigor, do ponto de vista da psicanálise, não poderíamos nomear de transmissão o que ocorre no ciberespaço. Desde Freud (1925/1976) aprendemos que a transmissão é realizada na transferência. Lacan (1969-1970/1992) nos esclarece que, para a psicanálise, o saber é sempre inconsciente.

Consenza (2015) destaca, na elaboração de um saber na adolescência, a elevação do papel sexual no nível do inconsciente,   que o faz existir para o sujeito numa representação singular, imaginária, como um enigma, num quadro fantasmático que se presta ao fantasma. Esse primeiro tempo é, para o adolescente, onde existe relação sexual, que é representável em uma cena que o inclui. No segundo tempo, o autor descreve o nó real que tal experiência iniciante revela ao adolescente, definindo-o como verdadeiro princípio de iniciação: o véu levantado não mostra nada. Outro modo de dizer que a sexualidade faz furo no real. Consenza (2015) situa aqui o   segundo tempo lógico  do processo de iniciação sexual na adolescência: aquele no qual o adolescente encontra, nas primeiras vicissitudes da vida sexual com seus parceiros, como experiência que faz trauma para ele, a inexistência estrutural do papel sexual. O autor conclui que é exatamente nessa tensão dialética entre o que pode fazer existir a relação sexual - primeiro tempo da adolescência - e o encontro traumático com sua inexistência - segundo tempo -, entre   o tempo do véu e o tempo do trauma,  que se estrutura a iniciação sexual do adolescente. Desse modo, podemos questionar se esse mercado de imagens na web serviria de apoio ou dificultaria a construção dos sonhos dos adolescentes.

A tela do dispositivo tecnológico se interpõe entre os corpos, interditando esse encontro. Estaria o jovem que se mantém preso às imagens na internet buscando se esquivar do encontro corpo a corpo, para evitar o confronto com a inexistência da relação sexual? N essa profusão de imagens prêt-à-porter, o adolescente buscaria manter-se no gozo masturbatório, para evitar o desencontro com o outro sexo?

Miller (2014) comenta que os masturbadores encontram-se aliviados por não terem de produzir eles mesmos os sonhos quando despertos, uma vez que os encontram feitos, já sonhados para eles. Essa oferta de sonhos prontos, como diz Miller (2014), os afasta da possibilidade de construir seus próprios sonhos.

Nas conversações, percebemos que os adolescentes recorrem à internet em busca de informações e distração. No entanto, não podemos afirmar que há uma transmissão de saber no espaço virtual. Quando ela ocorre, é mediada por um Outro, de carne e osso, seja o professor ou o amigo. Esses adolescentes nos mostram que, se o Outro é inconsistente, é preciso reivindicar sua presença.

 

Considerações finais

A escuta dos adolescentes nos mostrou que o tema das redes sociais pode funcionar como uma porta de acesso aos impasses vividos no tempo lógico da adolescência, às dificuldades no laço social e aos sintomas de cada um. Muitas vezes, é a partir do tema da internet que os adolescentes começam a falar do mal-estar que vivenciam na escola, com os professores e com os colegas. Outras vezes, o tema das redes sociais é soberano. Falam sobre os seus interesses na internet e as formas de utilização das redes sociais. Nossa função é a de escutar o que eles têm a dizer, especialmente por eles apontarem que esse espaço de escuta é raro ou inexistente no espaço escolar.

As conversações apontaram os jovens envolvidos no primeiro tempo lógico da adolescência, tentando construir um saber sobre a sexualidade para encobrir o furo no saber. A escuta dos adolescentes permitiu compreender a importância do Outro encarnado na transmissão do saber, diferenciando a transmissão presencial daquela que ocorre no ambiente virtual. As conversações mostraram também muitas possibilidades que a internet tem aberto aos jovens no campo das identificações, dos agrupamentos sociais, e até mesmo na produção das fantasias do sujeito adolescente.

Diante da inconsistência do Outro na hipermodernidade, os adolescentes buscam na internet respostas para as questões que os afligem e encontram informações e imagens marcadas pelo excesso próprio de nossa cultura. A internet não só não favorece a elaboração de um saber próprio, como evidencia e reforça a inconsistência do Outro. O excesso de informações e imagens na web pode dificultar a elaboração de um véu, ou seja, de uma fantasia para recobrir o furo do sexo. No entanto, o adolescente também pode encontrar no ciberespaço um apoio para a construção de sua fantasia - primeiro tempo da adolescência -, assim como a possibilidade de um "saber fazer" com o que escapa ao sentido pela via das invenções nesse espaço virtual - segundo tempo da adolescência. Essa invenção requer a mediação de um Outro não virtual que a acolha no laço social.

As transformações decorrentes das tecnologias digitais são constantes. Assim, não pretendemos alcançar um domínio nesse campo do saber, mas acreditamos que a psicanálise deve estar atenta à forma como a cultura digital impacta as subjetividades e às respostas construídas pelos sujeitos para lidarem com os desafios contemporâneos. Nessa navegação pelo ciberespaço, o adolescente é um exímio marinheiro para nos conduzir.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 20/03/2017
Aprovado para publicação em: 19/06/2017

Endereço para correspondência
Natália Fernandes Kelles
E-mail: nataliakelles@gmail.com
Nádia Laguárdia de Lima
E-mail: nadia.laguardia@gmail.com

 

 

*Universidade Federal de Minas Gerais ( UFMG ) - Belo Horizonte, MG, Brasil.
**Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Belo Horizonte, MG, Brasil.

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