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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

 

Editorial

 

Os tempos psicanalíticos

 

Daniela Teixeira Dutra Viola

 

 

O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. (Jorge Luís Borges)

Chegamos ao 50º volume da revista Tempo Psicanalítico, que é publicada regularmente pela Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle desde 1978. A continuidade de um periódico científico dedicado à Psicanálise por quatro décadas é sinal da importância do acontecimento epistemológico que Freud e sua invenção representaram na cultura e, mais particularmente, no panorama acadêmico das humanidades, no qual esta publicação e sua comunidade de leitores, autores, pareceristas e editores se abrigam. A inauguração e a difusão da práxis psicanalítica constituem um evento ímpar na história do pensamento moderno com amplos e radicais desdobramentos para os tempos pós e hipermodernos. São, desde Freud, também tempos psicanalíticos.

 

Uma revolução epistemológica

Tema fundamental na reflexão filosófica desde a Grécia Clássica, objeto privilegiado no pensamento de autores como Bergson, Heidegger, Deleuze, entre outros, a concepção de tempo passa por uma extraordinária revolução epistemológica no século XX, empreendida pela Física e pela Matemática, que acarreta profundas transformações nos modos de vida e nas subjetividades. Ou seja, as impactantes descobertas de Einstein, na Física, e Poincaré, na Matemática, para citar seus maiores expoentes, que levam à constatação de que o tempo não é absoluto, como se pensava até então, mas sim relativo a cada observador, estão plasmadas num cenário cultural mais amplo com importantes implicações subjetivas. Nas palavras de Stephen Hawking (1988/2015):

O fato de ninguém ter sugerido que o universo estivesse se expandindo ou se contraindo é um reflexo interessante do clima geral do pensamento anterior ao século XX. De modo geral, aceitava-se que ou o universo sempre existira em um estado inalterado ou fora criado em um tempo finito no passado, mais ou menos da maneira como o vemos hoje. Em parte, isso talvez se devesse à tendência das pessoas de acreditar em verdades perpétuas, bem como no conforto de pensar que, ainda que venhamos a envelhecer e morrer, o universo é eterno e imutável. (p. 17)

Essa "confortável" crença na imutabilidade do universo que vigora até o século XIX é abalada pela teoria da relatividade, que promove mudanças imperiosas sobre nossas ideias de tempo e espaço, não mais pensados de forma separada nem independente, mas sim combinados num objeto chamado espaço-tempo (Hawking, 1988/2015). De maneira análoga, ao sabor do espírito do tempo, o acontecimento Psicanálise também subverte, à sua maneira, a noção de tempo, significante especialmente apropriado para nomear a transmissão e a interlocução que este trabalho editorial busca sustentar.

A criação do espaço-tempo psicanalítico é, não por acaso, contemporânea dessa revolução vertiginosa no campo da ciência e também vem abalar certas "verdades perpétuas". No calor da ebulição científica e cultural da virada do século, inseparável da conjuntura social, política e econômica que a acompanha e alimenta, vão se amalgamar os componentes indispensáveis ao acontecimento que Freud representa. No entanto, se as revoluções na noção de tempo impulsionadas pela Física e pela Psicanálise podem se encontrar, por um instante, numa analogia, em seguida seus caminhos se bifurcam na encruzilhada que será o espaço subjetivo na passagem da modernidade à pós-modernidade. A revolução proporcionada pela teoria da relatividade geral e, logo depois, pela mecânica quântica é o estopim de todo um sortilégio de acelerações que vão culminar na era da informação e na cultura digital, com ampla hegemonia do discurso da ciência, aliado fiel do discurso do capitalista, e um imperativo de velocidade que vai ditar a prontidão das respostas aos anseios inelutáveis do sofrimento psíquico.

A psicanálise segue outro caminho. O tempo é sua matéria prima e forma de resistência num mundo cada vez mais pautado pelo imediatismo e onipresença das informações, pela inconstância dos afetos e pela obsolescência dos objetos. E essa capacidade de resistência decorre, em grande parte, das especificidades da perspectiva psicanalítica do tempo. Ironicamente, é no ponto em que mais se aproxima da revolução propiciada pela relatividade - a saber, em seu modo insólito e arrojado de repensar as ideias de passado, presente e futuro - que a psicanálise vai se apoiar para seguir uma via própria, aquela da escuta do singular, do tempo de cada sujeito, e, consequentemente, de abertura à alteridade, mesmo em meio à pressa irrefreada, ao imediatismo e ao individualismo reinantes na hipermodernidade.

 

Um tempo psicanalítico

A teoria freudiana do inconsciente - e, consequentemente, da sexualidade - é também uma teoria sobre o tempo. Mais próximo da temporalidade transcendental da terceira margem, de Rosa (1962/2005), ou das figuras do rio, do tigre e do fogo, na metáfora de Borges (1960/1999), que do tempo contado e apressado do relógio, cada vez mais onipresente e acoplado aos corpos na era do smartphone, o tempo psicanalítico não é óbvio, não é linear, não é cronológico. Desde o início de sua obra, Freud apresenta uma abordagem original do tempo a partir da experiência na clínica, espaço-tempo tecido por narrativas da memória, do esquecimento e do imemorial. Para termos uma ideia da abrangência do pensamento sobre o tempo ao longo da obra freudiana, vamos sobrevoar, a seguir, algumas de suas vertentes.

No Projeto para uma psicologia científica (1895 [1950]/1996), encontramos um importante extrato clínico, o "caso Emma", que já permite apreender a complexidade temporal em jogo no trauma. A engenhosa apresentação das duas cenas que compõem essa condensada história clínica põe em relevo um tempo peculiar. Na lógica narrativa, um evento mais recente na linha cronológica é anterior a um mais longínquo, pois este só passa a existir na fala da paciente a partir de um movimento retroativo de ressignificação. "Constatamos invariavelmente que se recalcam lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada." (p. 410) Eis aí o "só depois", ou o "a posteriori", ou ainda, no alemão de Freud, Nachträglich. Já nesse trabalho tão precoce o que está em questão é um movimento de ressignificação, visto que é por meio de conexões linguageiras, quer dizer, associações entre palavras, como "risos" e "roupas", que Emma consegue "rememorar" a cena II, real perdido no tempo, que então passa a existir na linguagem.

Embora nesse contexto Freud ainda tenha como referência a famigerada "teoria da sedução", nota-se que a ênfase é dada ao retardamento, à particularidade do processo de formação do sintoma neurótico que se desdobra em dois tempos separados, e não à materialidade de um suposto evento traumático numa infância à qual ainda não se imputa uma sexualidade própria. Ao comentar o caso, o próprio autor sugere que não há nada que comprove o assédio sexual. O que interessa nessa análise é a verificação de um movimento retroativo via repetição significante, entre a cena mais recente, lembrada pela paciente, e um ponto anterior desprovido de sentido. Com a descoberta da sexualidade infantil, essa concepção de um "só depois" do trauma vai se estender ao esquema da constituição bifásica da sexualidade humana, escandida por um intervalo, o período de latência, elemento fundamental que ganha seu lugar na complexa concepção psicanalítica do tempo. A tese dos dois tempos separados de floração sexual perdura até o fim do pensamento freudiano.

Ainda no começo da obra de Freud, o artigo "Lembranças encobridoras" (1899/1996) expõe uma sofisticada elaboração que tem como tônica a particularidade da concepção do tempo para a psicanálise. Mais uma vez, passado, presente e futuro são tomados como dimensões passíveis de construção simbólica, não atreladas ao eixo cronológico da passagem do tempo, mas sim relacionados a uma narrativa singular. Esse trabalho trata de uma ocorrência frequente na clínica: lembranças infantis sem importância aparente na história subjetiva do paciente que misteriosamente persistem na memória com intensidade.

Freud (1899/1996) se propõe a decifrar o mecanismo de formação dessas vivas "imagens mnêmicas", que são geralmente as mais antigas que alguém consegue evocar. Ele se pergunta por que tais imagens e não outras ficam retidas na memória, mesmo sem terem nenhuma conexão evidente com eventos marcantes que de fato aconteceram na infância. Sua conclusão é ao mesmo tempo simples e brilhante: as cenas "lembradas" são, na verdade, formadas posteriormente a partir de um novo evento, mais recente, porém recalcado devido à sua incompatibilidade com a consciência. Tal evento contém necessariamente um teor sexual, tem parentesco com as fantasias inconscientes. Há também a possibilidade de uma lembrança mais recente ser formada para encobrir uma cena mais antiga. O que importa é o mecanismo em questão: uma cena substitui outra, independentemente da ordenação temporal e da realidade factual, numa operação simbólica, na medida em que a associação entre uma lembrança e outra sempre se dá por conexões significantes.

Quanto a isso, a lembrança utilizada por Freud no texto é exemplar: o amarelo das flores na cena da infância não tem a mesma nuance do amarelo do vestido da menina por quem o então adolescente se apaixona, na cena posterior. Não se trata da cor, uma imagem, mas da palavra "amarelo", elemento significante que se repete e funciona como elo associativo. Conforme Freud, o sujeito seleciona uma cena entre inúmeras outras não em função de seu conteúdo (isto é, da imagem), mas sim porque ela se presta bem para representar a fantasia suprimida. O valor da cena "reside no fato de representar na memória impressões e pensamentos de uma data posterior cujo conteúdo está ligado a ela por elos simbólicos", esclarece Freud (p. 298). É assim que a palavra "flores", na cena em questão, está associada a uma fantasia de "defloração", e assim por diante. Aqui, novamente, percebemos o tempo psicanalítico como tessitura linguística, construção subjetiva indissociável de uma trama narrativa.

Num outro viés, o belo texto sobre "Transitoriedade" (1916/2015) traz novos contornos para o horizonte psicanalítico do tempo. Os afetos insuflados pelo tempo da guerra se imprimem numa escrita de singular introspecção, em que lemos algumas considerações de grande profundidade sobre a efemeridade do mundo e dos objetos de amor e testemunhamos a altivez de Freud num momento de sombrias adversidades.

Talvez chegue o dia no qual os quadros e as estátuas que admiramos se desfizessem ou que uma geração posterior à nossa não mais entendesse as obras de nossos poetas e pensadores ou mesmo uma época geológica emudecesse todo ser vivo da terra, o valor de toda essa beleza e perfeição seria caracterizado apenas por meio do seu significado para nossa vida sensível, uma vez que esta não precisa sobreviver e, por isso, é independente da duração absoluta do tempo. (p. 222).

Essas divagações freudianas aproximam a vida sensível da relatividade do tempo, que é particular para cada um de nós, e são pontuadas por uma reflexão sobre o trabalho de luto e a capacidade humana de reconstrução e resistência às adversidades. Cada sujeito vai elaborar o trabalho de luto dos objetos amados à sua maneira, num ritmo próprio. Embora datado no âmbito da 1ª Guerra Mundial, esse texto é de aguda atualidade.

Para concluir este breve sobrevoo pela obra freudiana, lembramos a ácida crítica a uma parte da comunidade psicanalítica estadunidense no "Posfácio" de 1927 ao escrito A questão da análise leiga (Freud, 1926/2016). Com veementes palavras, numa de suas mais importantes formulações sobre a formação do analista, Freud aponta, com perspicácia e ironia, a sintomática relação do sujeito moderno com o tempo no capitalismo. Atribuída por ele à sociedade dos Estados Unidos daquela época, essa relação se dissemina por todos os cantos do mundo no decurso do século XX até se tornar um traço essencial dos nossos dias hiperacelerados.

Por certo time is money, mas não se pode entender por que ele precisa ser convertido em dinheiro com tanta pressa. [...] Em nossas terras alpinas há um cumprimento para quando duas pessoas se encontram: tome seu tempo. Nós já muito escarnecemos essa formulação, mas diante da pressa norte-americana aprendemos a reconhecer a grande sabedoria de vida que nela se encerra. De todo modo, o norte-americano não tem tempo. Ele se compraz com os grandes números, pelo aumento de todas as dimensões, e, em contrapartida, pelo encurtamento do tempo dispendido pela obtenção de algo. Creio que chama isso de recorde. Ele deseja aprender a análise em três ou quatro meses e, naturalmente, que um tratamento analítico também não deveria durar mais do que isso. [...] Mas os decursos entre consciente e inconsciente têm suas próprias condições temporais, que não condizem bem com as exigências norte-americanas. (p. 302-303)

A formação do analista, portanto, não pode se submeter a uma temporalidade contada e monetarizada, cujos princípios ultrapassam todas as fronteiras e regulam a maior parte das sociedades atuais. De maneira diversa, em seu encontro com a psicanálise, o analista deve "tomar o seu tempo". E ao compreender o tempo como essencialmente subjetivo, a psicanálise resiste à absolutização predominante na psicopatologia contemporânea, que, com sua lógica normativa e rapidez das respostas, insiste em homogeneizar, enquadrar e rotular de modo absoluto o tempo e a forma do sofrimento psíquico. Como nos tempos de Freud, ainda hoje a psicanálise deve fazer vacilar as "verdades perpétuas" de uma época.

 

O volume 50, número 1

Os 16 trabalhos que compõem este número ilustram muito bem a riqueza do tempo psicanalítico. Começamos por dois artigos surpreendentes sobre a sociedade, a coletividade, a política e a relação com o Outro: "A verdade de uma sociedade se processa como subversão imanente", de Oswaldo França Neto, e "A Psicanálise e o Um-dividualismo moderno", de Márcia Rosa. De notável originalidade, ambos são exemplares da potência da psicanálise para pensar o "espírito do tempo" e o campo social.

Distribuídos no decorrer da edição, os artigos "Aspectos preliminares para um estudo sobre a inibição em Freud", de Leonardo Câmara e Regina Herzog, "O trabalho do negativo e suas vinculações com as pulsões de vida e de morte", de Arthur Kottler e Silvia Zornig, "Elementos para repensar a sublimação: pulsão de morte e plasticidade psíquica", de Alexandra Arnold Rodrigues e Jô Gondar, e "La infancia desde la perspectiva del psicoanálisis: un breve recorrido por la obra clasica de Freud y Lacan; Klein y los vinculos objetales", de Edgar Acuña Bermúdez, revisitam teorizações clássicas, revigoram alguns conceitos fundamentais e contribuem para a constante atualização da metapsicologia.

Os trabalhos "A escuta psicanalítica de adolescentes em conflito com a lei: que ética pode sustentar esta intervenção?", de Rose Gurski e Stéphanie Strzykalski, "As nominações na clínica nodal de adolescentes", de Carla Capanema, Fabian Fajnwaks e Ângela Vorcaro, e "Intervenção precoce X Estimulação precoce na clínica com bebês", de Fernanda Rosi e Ariana Lucero, relatam experiências de escuta e intervenção e desenvolvem elaborações teóricas importantes que arejam a clínica. Trata-se de contribuições que abordam de forma rigorosa alguns desafios da clínica contemporânea e as estratégias de enfrentamento pela psicanálise.

Evidenciando a força dialógica do campo psicanalítico, que se mostra potente nas mais diversas aberturas de interlocução, destacam-se os artigos "A técnica Zen como resposta lacaniana à crise da técnica analítica", de Cleyton Andrade, "Psicanálise e religião: o deslocamento da problemática filosófica, de Freud a Lacan", de Carlos Roberto Drawin e Fuad Kyrillos Neto, e "Louis Althusser entre a pedra sepulcral do silêncio e o testemunho", de Keilah Gerber. Nessas contribuições, os autores retomam com fineza e habilidade questões cruciais da clínica e da teoria ao transitar por outros espaços discursivos, como a religião e a filosofia. Também num movimento de diálogo entre a psicanálise e a cultura, os artigos "A impossibilidade do amor no filme ‘Uma Relação Pornográfica’", de Carla Derzi e Cristina Marcos, "A emergência da inquietante estranheza: Um ensaio de análise fílmica de ‘O estudante de Praga’", de Ana Paula Thones e Amadeu Weinmann, e "Musicalidade e psicanálise", de Bruno dos Santos e Gustavo Henrique Dionísio, expressam muito bem as possibilidades de interlocução com a arte e o que se extrai desse encontro para a práxis.

Para fechar este número, apresentamos a resenha "Ferenczi na contemporaneidade", de Joel Birman, a partir do livro Com Ferenczi. Clínica, Subjetivação, Política, de Jô Gondar e Eliana Reis. Pontuamos, assim, esta edição com a convocação de um autor tão importante na história da psicanálise quanto na transmissão teórico-clínica atual.

Convidamos vocês, leitores, a compartilhar o espaço-tempo psicanalítico que esta publicação se empenha em sustentar. Boa leitura!

 

 

Referências

Borges, J. L. (1960/1999). Nova refutação do tempo. Obras completas II. Rio de Janeiro: Editora Globo.         [ Links ]

Freud, S. (1895 [1950]/1996). Projeto para uma psicologia científica. S. Freud. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. (J. Salomão, trad., vol. 1). Rio de Janeiro: Imago. pp. 335-454.         [ Links ]

Freud, S. (1899/1996). Lembranças encobridoras. S. Freud. Primeiras publicações psicanalíticas. (J. Salomão, trad., vol. 1). Rio de Janeiro: Imago. pp. 285-304.         [ Links ]

Freud, S. (1916/2015). Transitoriedade. S. Freud. Arte, literatura e os artistas. (E. Chaves, trad.). Belo Horizonte: Autêntica. pp. 221-225.         [ Links ]

Freud, S. (1926/2016). A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial. S. Freud. Fundamentos da clínica psicanalítica. (C. Dornbusch, trad.). Belo Horizonte: Autêntica. pp. 205-314.         [ Links ]

Hawking, S. (1988/2015). Uma breve história do tempo. (C. A. Leite, trad.). Rio de Janeiro: Intrínseca.         [ Links ]

Rosa, J. G. (1962/2005). A terceira margem do rio. J. G. Rosa. Primeiras estórias. São Paulo: Nova fronteira.         [ Links ]

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