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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro enero/jun. 2018

 

ARTIGOS

 

A psicanálise e o Um-dividualismo moderno

 

Psychoanalysis and modern One-dividualism

 

El psicoanálisis y el Un-individualismo moderno

 

 

Márcia Rosa*

Université Paris 8 - França
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
Escola Brasileira de Psicanálise - Brasil
Associação Mundial de Psicanálise (EBP/AMP) - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Para tratar a relação da psicanálise com a modernidade e o individualismo, para indagar a possibilidade de nos servirmos do percurso do ensino de Lacan, que leva à existência e ao corpo, na discussão de questões políticas contemporâneas, começamos por um debate sobre a comunidade proposto pela Filosofia Política, com o qual interrogamos o "ser-em-comum" e o "nada-em-comum". Em seguida, encontramos Lacan e a tese de que "o inconsciente é a política". Com ela, passamos a nos servir do Discurso do Mestre para pensar o Um, o Significante-Mestre em posição de agente do laço social. A partir daí, o mestre contemporâneo nos mostra a dominação de questões econômicas e não apenas políticas. Enfim, uma formulação vinda da Sociologia, caracterizando como singleness a modernidade do século XVIII e como uniqueness a modernidade do século XIX, nos dará passagem para articularmos a tese lacaniana, "o inconsciente é a política", à existência e ao corpo.

Palavras-chave: Psicanálise, modernidade, individualismo, comunidade, singleness.


ABSTRACT

In order to deal with the relation of psychoanalysis to modernity and individualism, in order to explore the possibility of using Lacan's teaching that leads to existence and the body in the discussion of contemporary political questions, we begin with a debate about the community proposed by Political Philosophy, with which we question the "being-in-common" and the "nothing-in-common". Then we find Lacan and the thesis that "the unconscious is politics". With it, we begin to use the Master's Speech to think the One, the Significant Master in the position of agent of the social bond. From there, the contemporary master shows us the domination of economic issues, not just political ones. In short, a formulation coming from Sociology, characterizing as singleness the modernity of the eighteenth century and as uniqueness the modernity of the nineteenth century, will give us passage to articulate the Lacanian thesis, "the unconscious is politics", to the existence and the body.

Keywords: Psychoanalysis, modernity, individualism, community, singleness.


RESUMEN

Para tratar la relación del psicoanálisis a la modernidad y al individualismo, para indagar la posibilidad de servirse del recorrido de la enseñanza de Lacan, que lleva a la existencia y al cuerpo, en la discusión de cuestiones políticas contemporáneas, comenzamos por un debate sobre la comunidad propuesto por la Filosofía Política, con lo cual interrogamos el "ser-en-común" y el "nada-en-común". A continuación, encontramos a Lacan y la tesis de que "el inconsciente es la política". Con ella, pasamos a servirnos del Discurso del Maestro para pensar el Uno, el Significante Maestro en posición de agente del lazo social. A partir de ahí, el maestro contemporáneo nos muestra la dominación de cuestiones económicas y no sólo políticas. En fin, una formulación venida de la Sociología, caracterizando como singleness la modernidad del siglo XVIII y como uniqueness la modernidad del siglo XIX, nos dará paso para articular la tesis lacaniana, "el inconsciente es la política", a la existencia y al cuerpo.

Palabras clave: Psicoanálisis, modernidad, el individualismo, comunidad, singleness.


 

 

Ao constatar que o ensino de Lacan faz um movimento que nos leva do ser à existência, da palavra ao corpo, indagamos se poderíamos nos servir desses deslocamentos para uma leitura do que se passa no campo da política: seria possível pensar uma política do ser que se deslocasse em direção a uma política da existência, uma política da palavra que se deslocasse para uma política do corpo? Com quais implicações? Com quais consequências?

Clotilde Leguil (2013) mostra como o ensino de Lacan faz uma passagem da ontologia à henologia, do Ser ao Um, passagem que leva a teoria e a clínica psicanalíticas de uma interpretação dirigida ao desejo e à falta-a-ser para uma intervenção que concerne à letra e ao real. Nesse sentido, a experiência analítica não apenas permite ao sujeito aceder ao seu núcleo de ser, mas também lhe permite experimentar aquilo que é iteração de um acontecimento de corpo, produzido pela pura percussão do corpo pela palavra.

Se, com o uso da ontologia, Lacan pôde formular aquilo que muda em uma experiência de análise, a renúncia à ontologia, em proveito do real e dos modos de acesso a ele, lhe permitiu aproximar o sintoma da pulsão. Ancorando-se em Miller, Leguil (2013) assinala que, na passagem do sujeito ao falasser, conjugam-se o ser de palavra e a existência de gozo, afirma-se a reiteração de modalidades de encontro com a linguagem a partir do modo como isso afeta o corpo. Com o deslocamento do Ser ao Um, à letra e ao real, Lacan evidencia aquilo que não muda, bem como aquilo que se estabelece a partir de nosso corpo e da maneira pela qual "a música mais ou menos dissonante do Outro pôde inscrever-se em nossa existência" (Leguil, 2013, p. 6).

Na medida em que o seminário apresentado por Lacan em 1971-1972, ... ou pior, inaugura esse movimento, destacamos um comentário feito por Jacques-Alain Miller ao apresentá-lo: se "o Seminário 18 suspirava por um discurso que não fosse do semblante, [...] com o Seminário 19 eis a tentativa de um discurso que partiria do real. Pensamento radical do Um-dividualismo moderno" (Miller, 2012, contracapa).

Como conceber a radicalização da modernidade e do individualismo pela via do Um? De início, é importante lembrarmos que a modernidade trouxe consigo o discurso da ciência e a possibilidade de admitir que, de palavras lançadas aparentemente ao acaso, é possível extrair uma lei interna (Miller, 1989/2010), o que torna possível o surgimento da psicanálise. No entanto, nosso pressuposto é o de que, para pensar um discurso que partiria do real, precisamos levar em conta o campo aberto pelo discurso da ciência em suas intimidades com o real da letra e da (de)cifração, mas também questões políticas. São essas últimas que nos interessam sobremaneira neste momento.

Para tratá-las e construir o percurso que leva à existência e ao corpo, começamos por um debate sobre a comunidade proposto pela Filosofia Política, com o qual interrogamos o "ser-em-comum" e o "nada-em-comum". Em seguida, encontramos Lacan e a tese de que "o inconsciente é a política". Com ela, passamos a nos servir do matema do Discurso do Mestre para pensar o Um, o Significante-Mestre em posição de agente do laço social. A partir daí, o mestre contemporâneo nos mostra a dominação de questões econômicas e não apenas políticas. Enfim, uma formulação vinda da Sociologia, caracterizando como singleness a modernidade do século XVIII e como uniqueness a modernidade do século XIX, nos dará passagem para articularmos a tese lacaniana, "o inconsciente é a política", à existência e ao corpo.

 

Parte 1: A Filosofia Política e o debate sobre a comunidade

Interessa-nos a Filosofia Política através do debate entre as formulações de Jean-Luc Nancy (1986/2004), em La communauté désoeuvrée, e a sua retomada, alguns anos depois, por Roberto Esposito (1998/2012), em Communitas: origen y destino de la comunidad.

 

1.1 J.-L. Nancy: o "ser-em-comum" ou entre a obra e a inoperância

A modernidade herdou do Renascimento a dissolução da vivência medieval da communitas e, ao mesmo tempo que deu direito de existência e cidadania ao indivíduo, deixou-o desamparado, impossibilitado de justificar suas ações por um modelo coletivo de inspiração política ou religiosa. Dissolvida, a comunidade, que já tivera seus paradigmas na família natural, na cidade ateniense, na república romana, na primeira comunidade cristã, nas corporações, comunas ou fraternidades (Nancy, 1986/2004), ressurge no horizonte moderno de modo mítico e nostálgico como uma comunidade perdida, a reencontrar ou a reconstituir. Tributário da ideia cristã de comunhão, o anseio por resgatar a comunidade rompida surge como resposta para a realidade trazida pela experiência moderna da qual a divindade se retirara, anseio de resgatar a imanência entre o homem e Deus (Nancy citado por Pelbart, 2008, p. 15).

Todavia, essa comunidade perdida não passa de um fantasma; aquilo que supostamente se perdeu, a comunhão, a unidade, a copertinência são perdas constitutivas da própria comunidade, ou seja, ela só é pensável a partir da negação da fusão, da homogeneidade e da identidade consigo mesma. O desejo de fusão comunial conduz ao suicídio ou à morte, haja vista tanto a comunidade dos amantes quanto a comunidade nazista. Se a experiência nazista contaminou num certo momento o uso do termo comunidade, posteriormente ele será desvinculado dela e reconectado à palavra e à experiência comunista. (Nancy citado por Pelbart, 2008, p. 32).

George Bataille, imortalizado pelo aforismo "a comunidade dos que não têm comunidade" (Blanchot, 1983, p. 9), teria sido quem primeiro fez, e do modo mais agudo, a experiência moderna da comunidade: nem obra a produzir, nem comunhão perdida, mas o espaço mesmo, o espaçamento da experiência do fora, do fora-de-si, já que a imanência não pode ser recuperada, ela não é para ser recuperada (Nancy, 1986/2004).

Depois de mencioná-lo, interessa a Jean-Luc Nancy (1986/2004) interrogar as condições do "ser-em-comum", anteriores ao campo da política e a serem distinguidas das políticas de identidades ou comunidades nacionais. De saída, ele coloca em questão uma concepção essencialista de comunidade. Ao acompanhá-lo de perto, temos: o que há de mais comum do que o ser? Nós somos. Aquilo que partilhamos é o ser ou a existência. A não existência não estamos aí para partilhá-la. Mas o ser não é algo que possuiríamos em comum, o ser não é em nada diferente da existência a cada vez singular. Dir-se-á então que o ser não é comum no sentido de uma propriedade comum, mas que ele é "em-comum". Em que pese isso, estamos longe do ponto no qual a ontologia se ofereceria como comunitária, no sentido em que o ser se retiraria para dar lugar a um "ser-em-comum" dos existentes. A comunidade do ser, e não o ser da comunidade, eis aquilo de que se trata doravante. Ou, se se prefere: a comunidade da existência, e não a essência da comunidade (Nancy, 1986/2004, p. 201-202).

Ao apresentar o pensamento de Nancy sobre a comunidade, Schuback (2016) realça a importância de não perdermos de vista que a dissolução da comunidade é marcante para o mundo moderno na medida em que ela traz, de um lado, a expansão global do liberalismo individualista e, de outro, a tese ontológica que define o ser como fechado, como "ser-em-si-mesmo", tese que dá passagem a um comunitarismo totalitário e que articula as noções de um e do uno, tanto como individualidade de cada um quanto como a unidade totalizante de todos. (Schuback, 2016).

Nancy funda o pensamento da comunidade em uma crítica a essa filosofia política "do em-si-mesmo [grifo do autor], da imanência totalizante, da interioridade e de um comunitarismo fundado num sentido substancial e identitário", "em ideais de ser em si por e para si, como unidade e identidade, essência e fundamento, causa e transcendentalidade". (Schuback, 2016, p. 15). Ele pensa o impensável de uma comunidade sem comunidade a partir da exposição de uns aos outros, de uns com os outros, de uns entre outros. "Seu pensamento da comunidade é o pensamento da comunidade do existir [...]. A resposta ao dilema entre individualismo e comunitarismo, entre particularismo e universalismo é o pensamento do em-comum enquanto pensamento do ser singular plural" (Schuback, 2016, p. 18).

Duas noções merecem um comentário, ainda que breve. De início, aquela que dá título à obra, communauté désoeuvrée, traduzida em português A comunidade inoperada. Sobre a escolha da tradução, observa-se que, ao se optar por "inoperada" ao invés de "inoperante', desejou-se manter fidelidade à ideia de uma recusa de produção de uma perspectiva teleológica, indicando-se uma "comunidade que se dá, que não somente não é operacional nem producente, mas sobretudo que não opera (algo) e nem é obra (de um alguém)" (Hoepfner, 2016, p. 65).

Ao comentar a não relação entre a comunidade e a obra, Jean-Luc Nancy observa que "a comunidade como obra, ou a comunidade pelas obras, pressuporia que o ser comum é como tal, objetivável e produzível (nos locais, pessoas, edifícios, discursos, instituições, símbolos: em suma, nos sujeitos)" (Nancy, 1986/2004, p. 78). No entanto, os produtos de operações como essas não possuem existência comunitária, em vista disso, a comunidade tem lugar no que Blanchot nomeou inoperância (désoeuvrément), ela reside no que se retira da obra, no que não tem mais a ver nem com a produção, nem com o acabamento, mas que encontra a interrupção, a fragmentação, o suspenso. A propósito, Nancy afirma que ele não enquadra aí o político, na medida em que o Estado ou o Partido parecem despontar da obra, embora seja no seio do Estado ou do Partido que a inoperância comunitária resiste (Nancy, 1986/2004, p. 78).

Um segundo comentário, sobre a existência em sua relação à exposição, nos parece importante. Nancy propõe que o "em-comum" não é apenas uma condição da existência, não é apenas um aprofundamento do "ser-com" ou da "copresença", definidos por Heidegger como estruturas da existência humana, mas sentido de ser (Schuback, 2016, p. 16). "No extremo da metafísica do em-si e do si-mesmo, o ser-em-comum aparece com um excesso de sentido, excluído, impensado, mas, não obstante, sempre exposto enquanto um outro sentido do sentido" (Schuback, 2016, p. 17). Nancy investiga esse excesso do "em-comum" de ser através da globalização e da fusão intimista. Na dinâmica da globalização, que se reproduz velozmente, o existente torna-se equivalente à mercadoria, sua diferença e singularidade são absorvidas pelo todo. Já na fusão intimista, que atesta a vocação dos amantes para a morte, encontramos o sentido fusional do "comum", sentido que dá lugar tanto aos regimes liberais como totalitários. A construção do "nós" pelo impulso fusional sustenta a imanência de um "si-mesmo" apreendida como essência e identidade, o que conduz à integração do idêntico mediante a segregação da diferença. Ao se pautar por uma identidade comum, um "nós" homogêneo e abstrato, o comum dá passagem a movimentos de exclusão e segregação. Frente a isso, Nancy propõe pensarmos o impensável da comunidade através da exposição de uns aos outros. (Nancy, 1986/2004, p. 17-18). Se ser é aparecer, "ser-em-comum" seria coaparecer, comparecer, o que dá lugar a um neologismo: o "ser-em-comum" é uma "comparição" (comparution) (Nancy, 1986/2004, p. 16).

Bastante atuais, as formulações de Nancy nos permitem perceber que, ao buscar uma comunidade perdida, "seja ela figurada em termos de etnia, de identidade de cultura [...], o mundo vê-se cada vez mais refém do nacionalismo e do etnocentrismo, do extremismo e do radicalismo, cedendo mais e mais às políticas de exclusão e segregação" (Schuback, 2016, p. 19). Ao contrário disso, o pensamento da comunidade nos convida a:

atentar para a experiência de que somos em comum e de que não somos a identificação com um algo, com uma figura e uma imagem que devemos ter em comum, atentar para o ser-em-comum como o estar acontecendo, como o sendo, sem imagem, sem forma ou figura, ritmo e batimento de relações. Em questão está, portanto, uma comunidade sem figura e sem obra, uma comunidade entregue ao seu estar acontecendo, uma comunidade inoperada (Schuback, 2016, p. 20; grifos do autor).
Uma comunidade, portanto, que não teria nada em comum, nenhuma substância, nenhum modelo, nenhuma obra a realizar ou com que se reconfortar, e que se compreenderia, ao contrário, como reunida por nada de fundador ou de absoluto, mas pelo simples fato da contingência e finitude (Nancy, 2016, p. 11; grifo do autor).

 

1.2 Roberto Esposito: communitas ou "nada-em-comum"

Atribui-se a Roberto Esposito (1998/2012) a organização dos estudos sobre a comunidade segundo uma orientação substancialista ou dessubstancialista. Na primeira, ele localiza a filosofia política tradicional, a qual "parte sempre dos indivíduos pré-constituídos -conservando-os como tais, ou fundindo-os num indivíduo maior" (Esposito, citado por Yamamoto, 2013, p. 62), enquanto na orientação dessubstancialista parte-se da relação do compartilhamento de uma dívida originária, a qual Esposito vai fundamentar a partir do tratamento etimológico da noção de communitas.

Desdobrando a palavra latina que designa comunidade, communitas, Esposito extrai dois radicais: cum e munus. Se cum assinala a presença incontornável de um outro (um além de mim), com o radical múnus, ele chega a três significados possíveis: onus, officium e donum. Posto isso, ele destaca o fato de que donum (dom) faz parte de um conjunto semântico que inclui dever, dívida, obrigação. Como um dom poderia ser obrigatório? (Esposito citado por Yamamoto, 2013, p. 62). Esposito encontra aí o ponto crucial de sua formulação da noção de comunidade:

se donum (munus) institui uma doação obrigatória, e cum refere-se à presença insistente de um outro (que está oculto), cum+múnus (ou communitas) significa um tipo de relação em que o sujeito se doa incondicionalmente ao outro (qualquer, indefinido), logo, à comunidade enquanto outro na condição virtual (Esposito citado por Yamamoto, 2013, p. 62).

A tese de Esposito é que, em última instância, o que há em comum é um vazio, portanto há "nada-em-comum". Em todas as línguas neolatinas, "comum" é aquilo que começa ali onde o "próprio" termina. Então, ao invés da distinção clássica entre "individual" e "coletivo", a questão se recoloca entre o "próprio" e o "comum": o "comum" começa onde o "próprio" termina. Tal como já assinalado, ao significado de cum se acrescenta a complexidade semântica do termo munus, cum+munus, comunidade, portanto chegamos a um dom, mas um dom particular, um dom que se dá porque se deve dar, e não se pode não dar. O que não implica, de modo algum, a estabilidade de uma posse, senão uma perda, uma subtração, uma concessão.

Ao se servir da etimologia, Esposito mostra como a comunidade não se funda em uma propriedade, em um ser atribuído ao sujeito; pelo contrário, a possibilidade de pertencer ou de "estar-em-comum" implica perder algo de próprio e assumir a obrigação de dar algo. Interessa, pois, não a posse de um traço identificatório, tal como querem muitas das políticas de minorias, mas uma perda, uma subtração, uma concessão. Em última instância, communitas é o conjunto de pessoas às quais une não uma propriedade, mas um dever ou uma dívida, ela traz a impropriedade como traço comum e originário. Temos uma dívida em comum com o fato de que, para estarmos juntos, precisamos abrir mão de algo que nos é próprio e dar algo ao outro. Portanto

um dever une os sujeitos da comunidade - no sentido de "te devo algo", e não no sentido de que "me deves algo" - que faz com que não sejam inteiramente donos de si mesmos. Em termos mais precisos, [a comunidade] os expropria, em parte ou inteiramente, sua propriedade inicial, sua propriedade mais própria, ou seja, sua subjetividade (Esposito, 1998/2012, p. 30-31).

O oposto dessa posição é o que a Filosofia Política de Esposito vai trabalhar com a noção de imunização. Uma vez formulado o comum, constata-se que o indivíduo pode estar imunizado a essa forma de laço. Assim, a imunização constitui o elemento contraposto à comunidade. O filósofo sustenta a tese de que a categoria da imunização, à qual atribui muita relevância, nos dá a chave explicativa de todo o paradigma moderno. Quer dizer, a modernidade se funda em uma imunização em relação à falta, em relação ao ceder algo de próprio para construir algo em comum.

Em uma de suas obras, Immunitas: the protection and negation of life, Esposito (2002/2011) faz uma leitura etimológica do termo latino immunitas, a partir da qual observa que o substantivo immunitas, com o seu adjetivo correspondente immunis, é um termo negativo ou privativo cujo significado deriva daquilo que é negado ou está em falta, nomeadamente, o munus. Ali onde munus se refere a um serviço - uma tarefa, uma obrigação, um dever (também no sentido de uma dádiva a ser retribuída) -, por contraste immunis se refere a alguém que não tem qualquer obrigação. Quem quer que esteja imune, está desincumbido, exonerado, excetuado da pensum de pagar tributos ou de realizar serviços para os outros. Aqueles que estão imunes não devem nada a ninguém, nos termos de vacatio e excusatio: se se refere a uma autonomia originária ou a uma liberação posterior de uma dívida contraída previamente. O que conta na definição da noção de imunidade é a liberação da obrigação do munus, seja ela pessoal, fiscal ou civil (Esposito, 2002/2011, p. 5-6).

Pelo exposto, vê-se que a imunidade é antissocial, ou, mais precisamente, anticomunal. Ela "interrompe o circuito social de reciprocidade dom-dar, o qual é o significado mais antigo e mais vinculado ao termo communitas" (Esposito, 2002/2011, p. 6). Portanto a imunidade é uma condição particular, uma exceção a uma regra que todos devem seguir, um privilégio, uma diferença em relação à condição dos outros.

Podemos concluir que o capitalismo, o discurso da ciência e o discurso do mestre contemporâneo, para os quais o paradigma moderno criou o solo, mostram, com clareza, a imunização dos indivíduos em relação ao comum. Teríamos aí uma das manifestações do Um-dividualismo moderno?

 

Parte 2: Lacan e a política

Retomamos agora um comentário feito por Lacan em O Seminário, livro 14, A lógica da fantasia, mais especificamente na lição de 10 de maio de 1967. A data é significativa, pois estamos a um passo de todas as mudanças trazidas pelas manifestações de maio de 68, bem como pela instauração de governos ditatoriais, tais como o nosso, nessa época. Nesse momento, Lacan faz o seguinte comentário: "não digo que a política é o inconsciente, mas simplesmente que o inconsciente é a política".

 

2.1 "O inconsciente é a política"

Por que não dizemos que a política é o inconsciente? (Miller, 2011a). Se operássemos a partir desse pressuposto, começaríamos a interpretar o discurso político subjetivamente. Um exemplo extraído de nossa realidade atual: Donald Trump. Os psiquiatras americanos ameaçaram interditá-lo, sob o argumento de haver ali um narcisismo patológico. Se nos dispomos a diagnosticá-lo, desconhecemos que há ali um discurso político a ser tomado e tratado politicamente, e não reduzido a uma dimensão subjetiva e pessoal. Seria pretencioso, do lado do analista, sair interpretando, definindo e estabelecendo normas subjetivas em relação a posições políticas. Instalados aí, estaríamos sustentando que "a política é o inconsciente", e, sendo assim, poderíamos interpretá-la. Há algo recalcado, vamos interpretar, desvelar, etc.

Ao dizer que o inconsciente é a política, Lacan coloca em jogo uma definição do inconsciente que implica o Outro. Miller (2011b) vai nos lembrar de que o primeiro campo de ressonância da tese de Lacan é a afirmação de que "o inconsciente é o discurso do Outro". Com isso, de saída, desconstruímos essa oposição simples e, muitas vezes, usada de modo maniqueísta, individual versus coletivo. Se pensarmos a política a partir do inconsciente tomado como um discurso, o próprio inconsciente já é transindividual.

Nas suas conferências, disponíveis sob o título "Intuições milanesas", Miller (2011b) destaca o momento em que, no Seminário, livro 14, A lógica da fantasia, Lacan propõe a tese "o inconsciente é a política". Ele está comentando uma obra de Edmund Bergler (1949), The basic neuroses: oral regression and psychic masochism, e, nesse contexto, surge uma discussão sobre o masoquismo, sobre saber se o sujeito masoquista cria para ele próprio uma situação na qual fomenta o ser rejeitado, ser recusado. Entram no debate questões relacionadas à mãe, à demanda oral, etc. Podemos trazer isso para o campo político? É a discussão que Lacan introduz nesse capítulo. Conforme Miller:

No próprio movimento de produzir a fórmula "o inconsciente é a política", Lacan faz a Bergler uma objeção fundamental, que situa muito bem a posição política que ele [Lacan] sustentou e animou em seu ensino, a saber: mas por que então ele [o sujeito] precisaria ser mais aceito do que rejeitado? Por que precisaria fazer o que era necessário para ser aceito? Por acaso a mesa em que se desejaria ser aceito seria sempre benéfica? O que está por trás é a metáfora do Banquete e daqueles que não são aceitos em seu festim. Isso situa bem a posição de subversão de Lacan que, é preciso reconhecer, permanece atual (Miller, 2011b, p. 6).

No final dos anos 60, estava em discussão a guerra do Vietnã e a aceitação progressiva, ou recusa, de algumas zonas do planeta em participar da regulação capitalista vigente no outro lado do planeta. Então:

trata-se de convencê-los de que estão errados em não quererem ser admitidos nos benefícios do capitalismo [?]. Estamos diante do fato de que, na época, eles preferiram ser rejeitados. Por isso Lacan propõe que se interroguem certas significações - especialmente a significação "ser rejeitado" -, e, seguindo esse caminho, ele chega, sem desenvolvê-lo, ao "o inconsciente é a política". O que ele acrescenta, em sua brevidade, no entanto capaz de repercutir um pouco para nós, é que só somos rejeitados se nos oferecemos para isso. Isso o levou a considerar como chave da posição neurótica a estreita relação do sujeito com a demanda do Outro (Miller, 2011b, p. 6-7).

A observação de Miller é a de que "é preciso pensar duas vezes antes de ter por ambição forçar um sujeito a não ser rejeitado, antes de considerar que o melhor que poderia lhe acontecer é ser aceito no banquete dos outros" (Miller, 2011b, p. 7). Posto isso, parece bastante interessante a consequência que ele extrai daí, "isso é também indicativo para o momento atual da civilização, no qual o que está tão presente não é o desejo do Outro, mas a insistência de sua demanda política nas vertentes da democracia e do mercado, considerados como valores aos quais o seu bem está atrelado" (Miller, 2011b, p. 7).

Em tese, parece que o comentário de Lacan segue no sentido de dizer que não temos que interpretar a escolha do sujeito de não participar do banquete X ou Y como uma posição que se determina tão somente subjetiva e fantasmaticamente em termos de ser rejeitado. Existem interesses políticos e econômicos a considerar. Essa posição de Lacan (1974/1993) está muito claramente formulada em Televisão, quando lhe é perguntado de onde lhe vinha a segurança de profetizar a escalada do racismo. Em face disso, ele vai dizer:

No descaminho de nosso gozo só há o Outro para situá-lo, mas é na medida em que dele estamos separados [desse Outro enquanto regulador e localizador da nossa posição de gozo]. Daí as fantasias inéditas quando não nos metíamos nisso. [Trata-se de] Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não [lhe] impondo o nosso, não o considerando como um subdesenvolvido (Lacan, 1974/1993, p. 58).

Portanto, com relação à ideia de que é preciso se assentar à mesa do capitalista, Lacan é bastante irônico, menciona um "humanitarismo sentimentaloide" (Lacan, 1974/1993, p. 59) com o qual o Ocidente esconde suas atrocidades. Pelo que parece, tal como já dito antes, o que fica em evidência é que seria reducionista interpretar o fantasma do Outro e reduzi-lo a ele quando estão em jogo interesses políticos e econômicos.

 

2.2 O Discurso do Mestre: a globalização e os mercados comuns

Gostaríamos de recolocar a questão inicial, a do Um-dividualismo, interrogando a possibilidade de um discurso que se oriente pelo real. Em outros termos, como pensar o Um orientando o campo da política? Interessa-nos agora considerá-lo encarnado na Globalização e nos Mercados Comuns. Para desenvolvê-lo, nos serviremos da escrita do Discurso do Mestre:

Se queremos pensar o Um nos servindo dos quatro discursos formulados por Lacan, temos que o Discurso do Mestre é aquele no qual o agente é o S1, aliás é desse discurso mesmo que estamos falando, ao afirmar que "o inconsciente é a política", uma vez que Lacan formalizou o inconsciente com o Discurso do Mestre.

Com Marie-Hélène Brousse (2003), encontramos a possibilidade de pensar o Um através da introdução de um elemento fundamental que, na medida em que a determina, ultrapassa, de alguma forma, a variável política: o elemento econômico. Ao levá-lo em conta, o que surgiria no lugar do S1? Brousse localiza a economia e os mercados globalizados, o mercado comum, na posição de agentes do Discurso do Mestre. Temos aí a união dos Mercados da América Latina, a união dos Mercados Europeus, e uma regulação política feita sob uma perspectiva econômica liberal e neoliberal, ou seja, dominam os interesses da economia. Em vista disso, o elemento econômico dos Mercados Comuns encarnaria o Um. Se, na primeira das conferências, publicadas sob o título "Intuições milanesas", Miller (2011a) localizava o Um na globalização, tendo em vista um mundo que se globaliza em termos de comunicação, Brousse dá relevo ao elemento econômico, aos Mercados Comuns.

No lugar do S2, ao qual o S1 do Discurso do Mestre se endereça, está o saber. Que saber estaria em jogo aí? Brousse menciona o saber protocolar, os manuais, os procedimentos, as escalas de avaliação. Recentemente, a psicanálise foi avaliada, a partir de alguns protocolos, para ter seus procedimentos mesurados com relação à sua eficácia. Então, ali onde predominam os Mercados Comuns e uma economia neoliberal, temos, no campo do Outro, ao qual esses Mercados se endereçam, os manuais de procedimento, de avaliação. Com isso, o que se produz?

Se, no Discurso do Mestre, o que vem no lugar da produção é o mais-gozar, o objeto a, nesse caso, são produzidos campos de concentrações de gozo, comunidades de gozo que geram, elas próprias, segregação. Esses campos de concentração de gozo estão disjuntos do sujeito, que se localiza no lugar da verdade. A verdade desse funcionamento do Mestre Contemporâneo é que não há mais um Outro que discipline, que normatize, que regule; então, no lugar do sujeito, encontraremos redes sociais flexíveis, instáveis e pluralizadas, redes que vão produzir um sujeito disperso, em errância.

Com esses (re)agrupamentos sociais, temos uma nova organização no real, à qual Lacan se refere ao dizer que "nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação" (Lacan, 1967/2003, p. 263), ampliação que lhe fez prever uma escalada do racismo (Lacan, 1974/1993, p. 58).

 

2.3 A singleness do Discurso do Mestre e a uniqueness do Sinthoma

Frente à hipótese de que há um discurso cuja tentativa é partir do real e que, pela via do Um, radicaliza a modernidade e o individualismo, gostaríamos de evocar agora dois momentos distintos da modernidade nomeados como singleness, a modernidade do século XVIII, e uniqueness, a modernidade do século XIX.

Para tal, vamos nos referir ao sociólogo Georg Simmel (1957/2014), em um artigo intitulado "O indivíduo e a liberdade". Para ele, cujas teses principais apresentamos a seguir, dado que o século XVIII é orientado pelo mecanicismo natural cientificista, "existem apenas leis gerais, e todo fenômeno, seja um homem ou uma nebulosa da Via-láctea, é apenas a manifestação isolada, mesmo quando sua forma se dá com absoluta singularidade, um mero ponto de interseção de um conceito de lei geral" (Simmel, 1957/2014, p. 109). Em vista disso, o centro de interesse dessa época é o homem genérico, abstrato, este cuja situação histórica, singular e diferenciada desaparece na lei universal da matéria. Ao entender que o "lugar mais profundo da individualidade é o da igualdade universal", o valor de cada indivíduo reside naquilo que ele tem em comum com todos (Simmel, 1957/2014, p. 110).

No entanto, já no século XVIII, alguns escritores (Lessing, Herder, Lavater) e filósofos sinalizam a emergência de um mundo que se organiza pela desigualdade, pela singularidade particular a cada indivíduo. Entre os românticos alemães, Schlegel enuncia o novo individualismo nos termos: "precisamente a individualidade é o original e eterno no homem, na pessoalidade (personalität) não temos grande coisa". De acordo com Simmel, Schleiermacher torna-se o expoente filosófico da nova posição que orientará o século XIX; ele propõe que a tarefa ética seja exatamente que cada qual expresse a humanidade de uma forma peculiar, portanto a diferenciação torna-se uma obrigação ética.

Posto isso, ao construir a sua teoria, Simmel formula a ideia de que duas revoluções individualistas surgem com a modernidade e que elas dão lugar a dois tipos de individualismo, um que ele menciona ser um individualismo quantitativo, para o qual usa o termo singleness, e outro, individualismo qualitativo, ao qual denomina uniqueness1.

Single, em inglês, quer dizer "um só", "um único", "solteiro", "individual". Teríamos aí o individualismo como uma posição que corresponde ao indivíduo como cidadão livre e autônomo, algo no estilo "todos iguais perante a lei". Então, temos um individualismo singleness e uma outra concepção, que dá lugar a uma segunda revolução individualista, para a qual Simmel usa o termo uniqueness. Não basta ser um cidadão livre, autônomo, com direitos iguais: mais do que isso, interessa ser único, ter um traço, um elemento que marque a diferença com o "todos iguais", "todos livres", com o "todos" de uma suposta homogeneidade e universalidade. O individualismo do uniqueness diz respeito à excepcionalidade e à singularidade do indivíduo moderno, posto que o termo unique diz de algo único, ímpar, sem paralelo, exclusivo, raro, singular. Com isso, o sujeito moderno se transforma em um indivíduo livre, mas também e, ao mesmo tempo, singular e insubstituível.

Impossível não vermos que a análise desses dois individualismos é interessante para que possamos pensar a própria psicanálise. A nossa hipótese é a de que podemos nos servir dessas duas categorias de individualismo - singleness e uniqueness - para pensar a psicanálise e a política. Uma política do singleness seria uma política do S1, e uma política do uniqueness seria uma política do un tout seul, do um absolutamente só, uma política do sinthome, na qual opera aquilo que o sujeito tem de mais singular. Teríamos na política do uniqueness um Significante-Mestre (S1) agenciando o discurso e remetendo a um outro significante (S2), o que nos mostra o Discurso do Mestre em ação, discurso com o qual Lacan escreveu o funcionamento do inconsciente em suas produções associativas. Se nos referimos ao Discurso do Analista vemos que, ao ocupar o lugar da produção, o Significante-Mestre não se associa a um outro significante, não faz cadeia, operando portanto absolutamente só, ou seja, operando desconectado da seriação ou associação significante. Vamos tentar desenvolver um pouco essa proposta.

No já mencionado capítulo, no qual afirma que o inconsciente é a política, Lacan (1966-1967) diz, com muita clareza, e pela primeira vez, que o Outro é o corpo. Com isso, chegamos à nossa questão inicial, do ser à existência, da palavra ao corpo. Para Laurent (2015), a formulação do falasser permite retomar o comentário de Lacan, "o inconsciente é a política", a partir da inscrição sobre o corpo, a partir de um acontecimento de corpo. Isso se justificaria, inclusive, pelo fato de que, no mesmo momento em que afirma que o inconsciente é a política, Lacan redefine o Outro, e, por conseguinte, o inconsciente, ao propor que o Outro é o corpo. A questão agora é: se o Outro é o corpo, o Um-dividualismo sinalizaria um acontecimento de corpo? Como extrair consequências disso política e clinicamente? Para pensá-lo, Laurent (2015) se serve de uma intervenção feita por Miller (2015) no momento em que ocorreram na França os atentados ao periódico Charlie Hebdo.

Para os muçulmanos, é um sacrilégio, uma ofensa, qualquer caricatura ou representação de Maomé. Na medida em que os humoristas do Charlie Hebdo desrespeitavam esse preceito, colheram como resposta um atentado terrorista, atentado que atualizou o debate sobre a questão dos mulçumanos na França, sobre o respeito, a blasfêmia, etc. Nesse contexto, Laurent (2015) destaca a consulta feita por Miller a um muçulmano na qual ele lhe pediu que lhe dissesse a frase que exprimia, o mais próximo possível, do modo mais simples e trivial, sem ideologia, o dado imediato da consciência correlativo ao desprazer carnal, ao acontecimento de corpo, que afeta o muçulmano frente a uma caricatura de Maomé (Miller, 2015).

A pergunta de Miller pode ser traduzida nos termos: em que medida um fato ou acontecimento político toca o falasser na sua existência, no seu corpo? Feita a pergunta, ele conclui que não há muçulmano que não seja afetado em seu corpo por isso. Aqui, ultrapassamos a afirmação de que o inconsciente é a política do discurso do Outro e encontramos a possibilidade de pensar o inconsciente associado a um acontecimento de corpo, a uma política do sinthome. Deslocamo-nos da dimensão single e encontramos a dimensão unique, ou seja, uma caricatura de Maomé afeta a existência e o corpo de cada muçulmano de modo absolutamente singular, único. Opera-se aí um deslocamento que leva do campo do Outro, dos ideais, da ideologia, do inconsciente como verdade recalcada, ao sinthome como noção que implica a psicanálise naquilo que ela pode ter como ponto de chegada: a produção do mais singular que tem ressonância, que afeta cada corpo em sua existência.

 

Conclusão

Levantamos no decorrer deste trabalho a hipótese de que as políticas regidas pela lógica das comunidades agrupadas em termos dos ideais ou dos modos de gozo, i.é., através dos traços identificatórios (por exemplo, movimentos feministas, LGBT, etc.) ou dos modos de gozo (comunidade das anorexias-bulimias, etc.), são políticas do singleness, regidas pelo S1, mesmo quando o Significante-Mestre (S1) opera aí como signo de gozo. Por outro lado, em uma política tomada na vertente do uniqueness, os traços identificatórios são franqueados e isso dá passagem para um registro e um atravessamento da experiência de modo absolutamente só, singular, único. Nesse caso, um mesmo acontecimento é registrado e assimilado de modo absolutamente singular por cada um. Dizemos, então, de uma política do sinthome na qual opera aquilo que o sujeito tem de mais singular.

Assim, os acontecimentos políticos afetam os sujeitos em seus traços de identificação a uma comunidade, seja a pequena comunidade de editores de um jornal, como o Charlie Hebdo, seja a comunidade muçulmana, no entanto esses acontecimentos também os afetam em seus corpos de modo absolutamente singular. Tomados a partir do traço (S1) que os identifica e os coletiviza (S1→S2), os sujeitos seriam considerados apenas no contexto político da singleness, no entanto eles surgem mais-além dos seus traços identificatórios e mostram-se em suas respostas singulares aos acontecimentos políticos que os afetam. Nessas suas respostas sinthomáticas os seus corpos não deixam de estarem implicados.

Dois outros exemplos, mencionados brevemente, nos permitem tornar ainda mais evidente a distinção entre uma política do S1 e uma política do sinthome. Um deles é o do famoso mímico francês, Marcel Marceau, judeu inserido no movimento político da Resistência Francesa: ao considerá-lo apenas como um militante ativo na Resistência Francesa nós o inserimos em uma política do singleness, mas ao levarmos em conta o seu talentoso e original trabalho artístico com o seu corpo, seu trabalho como mímico, levamos em conta o seu modo single de resistir aos deuses, não tão obscuros, de seu tempo (Marceau, 2018). Um outro exemplo, nós o colhemos do testemunho recente de Florencia Lance, uma jovem argentina que veio a público confessar como concluiu, só muito recentemente, ser filha de um dos aviadores do Exército argentino responsável pelos voos da morte no campo de Maio por ocasião da ditadura argentina. Em uma escrita testemunhal, comovente, ela nos mostra como a descoberta lenta e progressiva dessa verdade histórica lhe permitiu, finalmente, ler as suas náuseas como um sinal, no seu próprio corpo, de algo que circulava no contexto familiar sem ser enunciado. Do mesmo modo, com a descoberta tardia das atividades clandestinas do pai ela conseguiu, finalmente, entender a explicação que lhe dera a mãe, muitos anos antes, por ter se separado dele: ela, mãe, lhe dizia sentir asco pelo cheiro do corpo do pai, não podia tocá-lo, não podia estar com ele (Lance, 2018). Os acontecimentos da ditadura argentina são pensáveis em termos de uma política regida por S1s, mas o modo absolutamente singular como esse acontecimento político se inscreveu no corpo da mãe e da filha diz de suas singularidades, do modo sinthomático como o real lhes afetou os corpos.

Ao serem tomados como acontecimentos políticos, fortemente ideológicos sem dúvida, um atentado terrorista, o holocausto ou a ditadura argentina ultrapassam o seu registro enquanto fatos políticos coletivos e se singularizam em suas inscrições singulares, repercutem no corpo de cada sujeito de modo unique. Ao perguntar de que modo o corpo, afetado singularmente pelo acontecimento político, retorna ao campo político as consequências de sua afetação, indagamos sobre as implicações políticas que o sujeito escolhe dar ou não àquilo que lhe afetou o corpo. Nos casos mencionados, perguntaríamos de que modo o protesto de um muçulmano frente a uma caricatura de Maomé coloca em discussão a liberdade de imprensa no mundo europeu, de que modo a arte mímica de Marcel Marceau contribuiu para a Resistência Francesa, de que modo o testemunho de Florencia Lance contribui para manter vivo na memória o "holocausto" argentino. Em cada um desses casos, creio ser possível postular que a posição sinthomática repercute no campo político na medida em que o sujeito faz laço social a partir daí, e que, sendo assim, ela não é sem consequência!

Quando o Outro é o corpo, cada um é afetado na sua existência, quando o Outro é o corpo, e não mais algo simplesmente do campo das ideologias ou das políticas identitárias que reafirmam algo de uma essência, torna-se possível, e necessário, levar em conta respostas as mais singulares possíveis. Em vista disso, cabe à psicanálise ir mais além das políticas pautadas pela singleness, cabe à psicanálise colocar e manter em pauta políticas orientadas pelo sinthoma, pela uniqueness.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 12/02/2018
Aprovado para publicação em: 16/04/2018

Endereço para correspondência
Márcia Rosa
E-mail: marcia.rosa@globo.com

 

 

*Psicóloga, Psicanalista, Pós-Doutoranda em Psicanálise pela Université Paris 8; Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFMG); Professora na Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/Associação Mundial de Psicanálise (EBP/AMP).
1No texto original em alemão, o termo para o individualismo qualitativo é Einzigkeit e para o individualismo numérico é Einzelheit. O tradutor para o português se referiu a um individualismo da singularidade (Einzigkeit) em oposição a um individualismo da parte, do simplesmente livre (Einzelheit). Optamos por manter os termos da tradução para o inglês, uniqueness para o individualismo qualitativo, que designa o indivíduo no que ele tem de singular e único, e singleness para o individualismo numérico, que designa o sujeito como livre e igual aos outros indivíduos, designando-o, portanto, no que ele tem de comum com os outros. Em português: O indivíduo e a liberdade (2014). In Souza, J., & Berthold, Ö. (Orgs.), Simmel e a modernidade (p. 107-115). Brasília: Editora Universidade de Brasília.

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