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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

A escuta psicanalítica de adolescentes em conflito com a lei: que ética pode sustentar esta intervenção?

 

The psychoanalytic listening of adolescents in conflict with the law: what kind of ethic can sustain this intervention?

 

Écoute psychanalytique des adolescents en conflit avec la loi: quelle éthique peut soutenir cette intervention?

 

 

Rose GurskiI, II*; Stéphanie StrzykalskiII**

IAPPOA - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo partiu de uma pesquisa-extensão com jovens que se encontram em regime de Internação Provisória (IP), suspeitos de terem cometido atos considerados infracionais. Através do dispositivo que temos chamado de Rodas de R.A.P., oferecemos um espaço de fala e de escuta a esse grupo de adolescentes que aguardava, em uma Instituição Socioeducativa, a deliberação de uma sentença - uma medida socioeducativa de meio aberto, de restrição ou de privação de liberdade - ou mesmo de seu desligamento. Escolhemos a denominada IP por esta ser a porta de entrada da Instituição e por considerarmos esse momento inicial como um tempo de muita angústia, quando se faz necessária uma escuta mais atenta aos meninos que se envolvem em situações de conflito com a lei. Nessa experiência, ao debruçarmo-nos sobre o tema da ética passível de sustentar a intervenção do pesquisador-psicanalista na socioeducação, pretendemos problematizar a discussão metodológica acerca da construção de dispositivos de escuta no âmbito das Políticas Públicas infanto-juvenis, especialmente no que se refere às políticas de socioeducação.

Palavras-chave: Psicanálise, ética, adolescência, socioeducação, rap.


ABSTRACT

The present study was based on a research-extension with adolescents who are in a Provisional Internment (IP) regime, suspected of having committed acts considered to be against the law. Trough the device we have named R.A.P. Circles, we offer a space for talking and listening to this group of adolescents who were waiting in a socioeducation institution for a sentence - socioeducational measure of open way, of restriction or deprivation of liberty - or even of its termination. We chose the so-called IP for this to be the institution's kind of input door and because we consider this initial moment as a time of great distress, when it becomes necessary to listen more attentively to the adolescents who are involved in situations of conflict with the law. In this experience, as we look at the ethical issue that can sustain the intervention of the psychoanalyst-researcher in the socioeducation system, we intend to problematize a methodological discussion about the construction of listening devices within the framework of the Public Policies for children and youth, especially with regard to socio-educational policies.

Keywords: Psychoanalysis, ethic, adolescence, socioeducation, rap.


RÉSUMÉ

La présente étude a été basée sur un projet de recherche et extension avec des jeunes qui sont dans un régime d'internat provisoire (IP), soupçonnés d'avoir commis des actes considérés des infractions. À travers l'outil, que nous convenons d'appeler RAP, nous offrons un espace pour faire parler et faire écouter ce groupe d'adolescents qui attendent dans une institution socio-éducative une décision juridique - une mesure socio-éducative de moyens ouverts, de restriction ou de privation de liberté - ou même de son retrait. Nous avons choisi la condition IP parce qu'elle est la porte d'entrée de l'institution et parce que nous considérons ce moment initial une période de grande angoisse, moment où il faut faire écouter très attentivement les enfants impliqués dans des situations de conflit avec la loi. Dans cette expérience, lorsque nous examinons le choix de l'éthique qui peut soutenir l'intervention du psychanalyste-chercheur dans la socio-éducation, nous avons l'intention de problématiser la discussion méthodologique axée sur la construction d'appareils d'écoute dans le cadre des politiques publiques d'enfance et de jeunesse, notamment en ce qui concerne aux politiques socio-éducatives.

Mots clés: Psychanalyse, éthique, l'adolescence, socio-éducation, rap.


 

 

Vivemos um tempo em que o espaço para ser e desejar ser configura-se exíguo. A própria vida, vista em seu caráter contemplativo, cede espaço, progressivamente, ao mundo do consumo em que a incessante produção do Desejo faz escapar o tempo necessário à constituição do sujeito em uma perspectiva criativa e lúdica. Um dos efeitos dessas variáveis pode levar à produção da violência e de suas ressonâncias sintomáticas na cultura, sendo a angústia e a falta de sentido exemplos desse quadro. Dentre as marcas que revelam as nuances do mal-estar contemporâneo forjado em meio a essas variáveis, situamos os inúmeros casos envolvendo o protagonismo juvenil em atos infracionais com ou sem uso de violência.

Nesse âmbito, tem nos inquietado a via da criminalização como, muitas vezes, a única chave-de-leitura desses atos, deixando pouco - ou nenhum - espaço para vislumbrar outras reflexões possíveis acerca dessas manifestações. No Brasil, em tempos de calorosas discussões sobre o tema da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, vemos uma tendência ao aumento do tempo de cumprimento de medida socioeducativa (Rocha, 2013), bem como do discurso estritamente punitivo e conservador. Isso é algo bastante alarmante se considerarmos que tal discurso nos exime de uma reflexão mais complexa e, portanto, compatível com as mais diversas nuances que caracterizam a adolescência e suas relações com a lei.

Em meio a esse cenário, torna-se necessário lançarmos caminhos plurais a fim de que se produzam condições de reflexão sobre as variáveis do panorama contemporâneo que envolvem adolescentes e jovens. Isso também porque o referido discurso, além de reducionista, parece produzir efeitos no que se refere à construção de Políticas Públicas, especialmente aquelas que se situam no âmbito da saúde mental infanto-juvenil. Nesse sentido, importa observar que não encontramos muitos espaços e ações que operem na via de escutar o que pode estar cifrado acerca da posição do sujeito e do laço social nos episódios de transgressão ensejados pelos jovens, particularmente por aqueles em situação de vulnerabilidade social.

Um dos modos através dos quais temos tentado alargar a compreensão do sofrimento juvenil contemporâneo é pela via do oferecimento de espaços de fala e de escuta a adolescentes vinculados ao sistema socioeducativo da cidade1. O presente estudo partiu de uma dessas intervenções, mais especificamente de uma pesquisa-extensão com jovens em regime de Internação Provisória2.

Ao investigarmos, sobretudo, que ética pode sustentar a intervenção do psicanalista-pesquisador na socioeducação, pretendemos oferecer algumas problematizações à discussão metodológica acerca da construção de dispositivos de escuta no âmbito das Políticas Públicas infanto-juvenis.

 

As Rodas de R.a.p. (Ritmos, Adolescência e Poesia)

Ao identificarmos uma demanda singular no grande interesse dos jovens pelo rap, passamos a oferecer a eles um dispositivo chamado de Rodas de R.A.P. (Ritmos, Adolescência e Poesia)3. Temos apostado que, através da palavra compartilhada entre os meninos e os bolsistas-pesquisadores que participavam das Rodas - graduandos que integram o grupo de pesquisa e que, sob supervisão, realizaram o trabalho de campo junto aos adolescentes -, é possível experimentar a criação de novos meios de enunciação de si que não apenas àquele restrito à dimensão do ato infracional. Assim, acolhendo e problematizando as discussões que iam surgindo do encontro entre os jovens e as músicas, percebemos que tal materialidade funcionava tanto como um potente catalisador de questões, como também ofertando aos adolescentes uma outra temporalidade, baseada no ritmo distendido da arte e da poesia, que faz um contraponto à experiência que eles vivenciam na "rua" (fora da instituição socioeducativa), isto é, de que "não dá tempo de parar e pensar, é matar ou morrer"4.

Importa dizer que as Rodas de R.A.P. foram construídas desde o enlace entre a metodologia psicanalítica - inspirando-nos, especialmente, nas noções de transferência (Freud, 1912a/2010), atenção flutuante (Freud, 1912b/2010) e no tempo do a posteriori (Freud, 1895/1990) - e os efeitos ético-metodológicos recolhidos do estudo sobre o tema da Experiência em Walter Benjamin (1933/1994).

Benjamin é um filósofo, ensaísta e pensador alemão que nos acompanha há bastante tempo na pesquisa (Gurski, 2008, 2012, 2014; Gurski, & Strzykalski, no prelo) e que, além de fornecer-nos elementos de reflexão para problematizar a fisiologia do laço social atual através dos textos sobre o esvaziamento da dimensão da experiência, também tem se mostrado muito potente para pensarmos em modos de intervenção possíveis no campo das políticas de saúde mental infanto-juvenil.

Essa é uma maneira que temos encontrado de ampliar o espectro da escuta dos sujeitos em situação de vulnerabilidade, tendo em vista que é preciso reinventar a teoria a fim de promover outros diálogos e tensionamentos com as novas exigências da experiência analítica contemporânea em cenários que nos demandam um alargamento de suas bordas, como parece ser o caso das unidades de execução de medidas socioeducativas. Nesse diapasão, relembramos o que já nos alertava Lacan (1953/1998, p. 321) - "deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época".

Ainda acerca dos aspectos metodológicos, o material de registro foi baseado, principalmente, por aquilo que temos nomeado de diários de experiência (Gurski, 2017; Gurski, & Strzykalski, no prelo). Esse é um dispositivo inspirado no movimento da associação livre, em que as vivências, experiências e reflexões dos bolsistas-pesquisadores que participaram das Rodas encontram um segundo tempo de elaboração em relação às atividades com os adolescentes. Tomamos três fontes para a formulação desse instrumento teórico-metodológico: as anotações e comentários breves de Walter Benjamin, guiados por "seu olhar fragmentário, não por renunciar à totalidade, mas por procurá-la nos detalhes quase invisíveis" (Sarlo, 2013, p. 35); nos diários de campo, dispositivo advindo dos estudos antropológicos e da etnografia; e, por fim, nas notas breves, que Freud (2004) dedicou-se a escrever em seus últimos anos de vida, sendo possível encontrar o esboço de grandes conceitos da teoria psicanalítica ao lado de notícias cotidianas aleatórias.

Importa dizer que o operador conceitual utilizado para análise dos diários de experiência, bem como no que concerne ao trato com a teoria, foi a leitura-escuta, ou seja, uma leitura dirigida pela escuta e atenção flutuante dos textos reunidos com a finalidade de construir um ensaio acerca da temática abordada (Caon, 1994; Iribarry, 2003).

Amiúde, a partir dessa experiência com adolescentes em contextos socioeducativos, encontramo-nos frente a sujeitos com narrativas de vida bastante áridas e com significações de si marcadamente cristalizadas. Certa vez, ao final de uma das Rodas, Tiago5 ia em direção à grossa porta de ferro da pequena sala em que estávamos para voltar ao seu dormitório, quando, de súbito, virou para um dos pesquisadores em tom chistoso e disparou: "é, Dona... Deus cria e 'nóis' mata". Outros recortes discursivos inquietantes, revelando, talvez, um certo descompasso entre o real excessivo de suas vidas e os recursos simbólicos que possuem, aparecem sob a forma de dualismos. Seguidamente, os adolescentes diziam que seguir na dita "vida do crime"6 havia apenas dois desfechos possíveis, "a prisão ou a morte". Além disso, outro par muito presente era aquele que expressava "não dá pra parar e pensar... é matar ou morrer", referindo-se especialmente à lógica pautada pelo tráfico de drogas.

Em outra ocasião, Breno contou-nos que seu irmão, ao tentar desvincular-se de sua facção, conhecida pelo alto índice de brutalidade, acabou sendo assassinado pelos próprios integrantes desta em forma de retaliação. Esse mesmo menino diz que é comum matarem não só aquele que está diretamente relacionado à facção - frequentemente, acabam assassinando também os irmãos e parentes, especialmente os mais novos que, futuramente, poderão querer vingar a morte do familiar. Ainda que isso não tivesse acontecido, foi a partir do falecimento do irmão mais velho que Breno decidiu que era a hora de "arranjar seu próprio embolamento", ou seja, entrar efetivamente para o tráfico a partir da identificação com uma facção/grupo.

A Internação Provisória, âmbito em que as Rodas foram realizadas, é a porta de entrada da Instituição Socioeducativa, sendo necessário apontar algumas de suas particularidades. Nesse momento, os jovens ficam em um certo "limbo" de intensa angústia, sem saber se vão, ou não, receber alguma medida. Suas atividades restringem-se a ir à escola (que é dentro da própria Instituição, tendo uma carga horária bastante reduzida), frequentar o pátio e ficar em seus dormitórios, sendo o comparecimento às audiências o único momento em que eles costumam sair. A partir dessas observações, parece tornar-se evidente o fato de haver poucos espaços de convivência oferecidos para que os adolescentes possam construir laços entre seus pares. Aparentemente, essa postura institucional sustenta-se como uma medida de segurança que visa à prevenção de rebeliões e motins.

Diante de tal realidade, acrescentamos o fato de que, na IP, não há espaços de escuta individuais suficientes, pois os profissionais e técnicos que podem exercer essa função estão sobrecarregados de atribuições. A própria superlotação das alas tem sido uma realidade cada vez mais presente e preocupante na Instituição - entre outros motivos, devido à demanda social de apreensão dos "bandidos" e à proposta de diminuição da maioridade penal (Rocha, 2013).

Para Benjamin (1933/1994), a vivência (Erlebnis) seria uma forma de experiência isolada que não faz laço e não carrega nenhum valor coletivo, impressão-choque que nos toma e que somos, por vezes, impelidos a assimilar às pressas. Nesse sentido, para que um acontecimento-vivência possa decantar em experiência (Erfahrung), ele precisa ser compartilhado, narrado e transmitido a um outro. A partir dessa perspectiva, entendemos que se torna ainda mais urgente e relevante possibilitar condições para que, do compartilhamento das vivências isoladas dos adolescentes, possa vir se processar algo novo e enlaçado com a coletividade, constituindo aquilo que denominamos de saber da experiência (Gurski, 2012; Gurski, & Strzykalski, no prelo).

Benjamin (1936/2012) questionava, quando teorizou sobre o empobrecimento da dimensão da experiência decorrente das vivências na Primeira Guerra, quem poderia suportar escutar os horrores vivenciados pelos combatentes. E, mesmo tendo alguém que se propusesse escutar, como traduzir em palavras o indizível, o que é da ordem do traumático? Ainda que o texto seja datado de 1936, acreditamos ser possível pensar em um certo paralelo com a adolescência que habita a socioeducação no laço social contemporâneo. Isso porque fomos notando que a maior parte dos jovens viveu situações de violência extrema nas duas posições, tanto como agentes, como enquanto vítimas.

Uma temática bastante recorrente, inclusive nas letras das músicas solicitadas, foi a referente às abordagens policiais que, cronologicamente, costumam situar-se muito próximas do momento da Internação Provisória. Em uma ocasião, Breno contou-nos que, no dia em que "caiu" - gíria muito comum empregada pelos meninos para referirem-se ao dia em que foram apreendidos pela polícia -, sofreu ameaças de morte e foi torturado pelos policiais antes de ser conduzido até a delegacia. Ele ainda pôde partilhar da angústia que sentiu ao ter que reencontrá-los durante uma audiência, momento em que não poderia falar nada, apenas ouvir uma versão que simplesmente operava um apagamento dos atos violentos sofridos por ele.

Parece que Breno, a partir de seu relato, pôde transferir para o registro da palavra algo que foi muito doloroso para ele. Nesse diapasão, importa lembrar que a noção de experiência está intimamente relacionada com a possibilidade de exercer a arte de narrar (Benjamin, 1936/2012), mesmo que nas condições mais adversas. Para decantar em experiência, uma vivência precisa adquirir um novo estatuto, ser transmitida, contada, transformada, fazer laço com uma outra temporalidade mais distendida. Como pensar na possibilidade de constituir narrativas, amarrar os finos fios da experiência em uma trama discursiva se, justamente, parece que não se abrem espaços para tal em quase nenhum âmbito da vida desses meninos?

Diante desse panorama de discursos permeados pela violência e da própria maneira como se organiza atualmente a instituição socioeducativa, sobretudo na Internação Provisória, passamos a nos questionar: é possível à Psicanálise escutar o que se passa na socioeducação, mesmo durante esse breve período da IP? Se sim, que ética pode sustentar nossa prática de pesquisador-psicanalista? Qual é a aposta possível ao proporcionarmos um espaço de escuta a esses meninos que nos relatam não ter interesse e/ou possibilidade de sair da "vida do crime"?

 

Da ética do bem-viver à ética do bem-dizer

A fim de seguirmos neste fio reflexivo sobre os aspectos éticos incitados por tais problematizações, convidamos o leitor a acompanhar-nos por um breve retorno a certas proposições sobre o tema da ética desde Aristóteles, Freud e Lacan.

A dimensão ética circunscreve um campo tão caro à Psicanálise que Lacan (1959-1960/1992) dedicou um de seus seminários inteiramente ao debate dessa questão. Logo de início, é nítida a admiração que o psicanalista francês nutre por Freud ao apontar que as contribuições deste ao campo são, talvez, aquilo que há de mais inovador e original na teoria psicanalítica. Para justificar esse posicionamento, Lacan provoca tensionamentos, ao longo de todo o Seminário 7, entre a ética freudiana e a ética proposta por figuras icônicas da Filosofia - tais como Aristóteles, Kant, Sade, Heidegger e Kierkegaard. No presente estudo, interessa-nos, particularmente, retomar o recorte que diz respeito aos ideais aristotélicos, resgatando, em especial, as noções de felicidade, Bem Supremo e Bem-viver por ele propostas em Ética a Nicômaco (Aristóteles, 1987), sua obra mais expressiva e vasta sobre o tema da ética.

O ethos, expressão de origem grega que aludia à dimensão dos costumes e comportamentos da época, dá origem a ethikos, palavra equivalente àquilo que chamamos atualmente de ética desde o campo da Filosofia (Valls, 1994). Nesse sentido, podemos entender a ética como uma reflexão - científica, filosófica, e, eventualmente, teológica - sobre os costumes e ações humanas. Enquanto a moral presta-se para sustentar as práticas concretas de ação numa tentativa de fazer borda ao impossível do real7 através de mandamentos e proibições, a ética visa constituir um corpo teórico crítico acerca desses modos de ser e estar no mundo a cada época.

Dito isso, é interessante lembrar que, logo na introdução de seu "Seminário 7", Lacan (1959-1960/1992) aponta para o fato de que a escolha pelo uso da palavra ética, ao invés de moral, não se sustenta meramente por uma questão estética de empreender um "termo mais raro". A escolha se dá pois o objetivo de Lacan é tratar daquilo que está para além da norma, ou seja, a dimensão ética que lança "o homem numa certa relação com sua própria ação que não é simplesmente a de uma lei articulada, mas sim de uma direção, de uma tendência e, em suma, de um bem que ele clama, engendrando um ideal de conduta" (Lacan, 1959-1960/1992, p. 11) ao qual o sujeito é, de certa forma, impelido a corresponder.

Lacan (1959-1960/1992) vai situar o sistema de pensamento aristotélico em relação à ética como um ethos do caráter por intentar ser uma ética aplicada para a vida em sociedade, mais precisamente para a formação político-virtuosa do homem grego. No âmago desse sistema, encontra-se aquilo que Aristóteles nomeou de Bem Supremo, conceito que busca dar conta de designar aquilo que é almejado por si próprio e não em vista de outros bens, uma finalidade última para a qual convergiria toda a ação humana. Esse postulado, universal e incondicional, está intimamente ligado à busca pela felicidade, dimensão alcançável por ações concretas e práticas. A partir da excelência e aperfeiçoamento do exercício de persuasão da racionalidade - dimensão capaz de domar os excessos ligados aos impulsos, paixões e desejos irracionais -, o sujeito ascenderia ao encontro com sua verdade, o seu Bem (Martins & Darriba, 2011).

Segundo Lacan (1959-1960/1992, p. 23), essa problemática é radicalmente diferente em Freud, uma vez que, para este, a felicidade plena e universal é da ordem do impossível, dimensão para a qual "não há absolutamente nada preparado, nem no macrossomo nem no microssomo", sendo, portanto, uma construção a ser feita singularmente. É nesse ponto que o "universo mórbido da falta" se apresenta. Esse espaço seria como um vazio polarizado, aquilo que Freud designou de das Ding, dimensão fundante do Desejo (Wunsch) que reivindica para si, a todo momento, a satisfação experimentada pelo objeto primordial para sempre perdido. É por essa razão também que Freud (1933/1976) defende que a Psicanálise não é uma Weltanschauung (visão de mundo). A psicanálise não dispõe de uma solução harmônica que dê conta de todos os impasses e conflitos. Pelo contrário, ao sublinhar a inscrição do sujeito no campo da linguagem, ela toma o mal-estar advindo do desamparo em relação à falta-a-ser do sujeito como sua própria dimensão fundante.

Ora, se o filósofo grego entende que o que há de mais próprio ao homem é sua dimensão racional, dimensão esta que deve dominar, custe o que custar, seus ímpetos irracionais a fim de ascender ao Sumo Bem, Freud toma às avessas essa lógica ao propor um sujeito dividido em uma realidade inconsciente que o transcende, um-mais-além que "governa, no sentido mais amplo, o conjunto de nossa relação com o mundo" (Lacan, 1959-1960/1992, p. 31). Como muito bem apontado por Martins e Darriba (2011), é justamente diante desse mais-além conflituoso que não cessa de atormentar o sujeito em seu Bem que a reflexão de Aristóteles parece pouco se questionar.

Trata-se de uma conformação do sujeito a algo que não é sequer contestado. Se essa é uma ética universal, um hábito a que tendem a maior parte dos seres vivos, como é que a maioria, conforme o próprio Aristóteles a situa, se dirige na direção inversa, que é a do desejo? (Martins & Darriba, 2011, p. 215).

Vale frisar que as condições de subjetivação oferecidas à época de Aristóteles diferiam radicalmente daquelas das sociedades modernas, especialmente pela derrocada da verdade transcendental da modernidade em diante. Como aponta Maria Rita Kehl (2002, p. 39), a prática psicanalítica "só fez sentido às modernas sociedades industriais, urbanas, laicas, democráticas", pois o sujeito produzido a partir dessas relações é, simultaneamente, centrado no eu e carente de ser, na medida em que o campo da filiação já não dá mais conta de recobrir de modo referencial o campo simbólico do sujeito no laço social. Então, para o homem moderno, aquele que tenta conduzir sua vida de acordo com a ética do caráter, Freud revela: "o Eu não é senhor em sua própria casa"! (Freud, 1917/2010, p. 186; grifo do original).

Na esteira dessas discussões sobre o Bem, Lacan (1973/2003) formula algo inovador e próprio à Psicanálise quando diz que, se há um Bem que rege a ética - e indissociavelmente a prática - da Psicanálise, este é o Bem-dizer, um claro contraponto ao Bem-viver de Aristóteles. Ao brincar com as palavras, Lacan sustenta que, no fazer psicanalítico, aquele que escuta deve preocupar-se apenas em oferecer condições para que o sujeito do inconsciente possa advir nas brechas do discurso, lançando um convite àquele que fala no sentido de poder surpreender-se, estranhar-se e construir novos sentidos. Nessa direção, o Bem-dizer reforça a ideia de que, quando se põe em jogo a fala e sua função simbólica, as palavras são capazes de dar borda ao impossível estrutural de das Ding, funcionando como um certo delimitador, organizador do gozo.

Maria Rita Kehl (2002), ao retomar a máxima freudiana "Wo es war, soll ich werden" (Freud, 1933/1976), traduzida como "Lá onde estava o eu, o isso deve advir", sublinha as consequências de uma leitura apressada que tome como função ética do eu a dominação progressiva do campo das pulsões inconscientes. Segundo ela (Kehl, 2002 p. 124), Lacan avança em suas contribuições ao extrair dessa assertiva freudiana a noção de que não se trata da dominação do inconsciente pela consciência, mas, sim, de que é possível ao Isso advir por meio da palavra, "manifestando para o eu algo da verdade do sujeito que, a depender das defesas narcísicas do eu, deveria permanecer calada". Ao psicanalista, caberia, guiando-se pela ética do Bem-dizer e na transferência, auxiliar o sujeito a vencer esses pântanos chamados de resistência.

Acreditamos que, para dar mais densidade a essa discussão, a noção de desejo do analista seja bastante pertinente. Segundo Lacan (1958/1998, p. 621), "cabe formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o Desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista". No Seminário 11, Lacan (1964/1985) situa o desejo do analista como função essencial, posição ética que possibilita colocar em marcha o tratamento. Cabe ao analista suportar a transferência, quer dizer, permitir que o analisando o coloque em uma posição de suposto saber. Operando desde esse lugar, o analista deve ofertar condições para que o sujeito, acreditando falar para quem supostamente sabe sobre o seu sofrimento, possa narrar sobre si e escutar-se, apropriando-se de seu discurso.

Sublinhamos que se trata de uma posição de saber suposta e não de fato, pois ao analista cabe responder não com seu ser ou com aquilo que ele é, mas, justamente, com sua falta-a-ser (Lacan, 1958/1998). É por ser atravessado pela experiência da falta que o pesquisador-psicanalista tem apenas um desejo em relação àquele(s) que lhe fala(m): desejo de que o outro deseje - aí está o desejo do analista.

Ao falar, na medida em que vai articulando os significantes da cadeia inconsciente, o sujeito pode acabar deparando-se com a sua própria falta-a-ser, aquilo que lhe aparece enquanto alteridade inconsciente. Frente a essa hiância, o analista será convocado a responder, desde o lugar de Outro, oferecendo um complemento que poderia tamponar essa falta. Ao apresentar-se castrado, dá espaço para que emerja o sujeito do desejo, entendido enquanto "metonímia da falta-a-ser" (Lacan, 1958/1998, p. 629), isto é, a capacidade do sujeito de produzir diversos e múltiplos sentidos singulares acerca de si e do mundo.

De outro modo, caso aquele que escuta responda não como suposto, mas como detentor do saber, ocupando uma posição de Outro que se apresenta como total, não será possível ao analisando formular algo seu. Pensamos que essa discussão seja um ponto central de onde irradiam questões acerca da escuta de adolescentes em contextos socioeducativos, pois são muito prementes as preocupações e as urgências morais que surgem a quem os escuta, dadas as circunstâncias tão áridas de suas vidas.

Tiago era um menino que seguidamente dizia que não tinha como sair do tráfico, pois toda sua família estava envolvida. Um dia, enquanto ele falava, o bolsista-pesquisador fez intervenções que iam muito mais na via do Bem-viver, como que esperando constantemente dele a resposta que queria ouvir: "vou sair do tráfico e voltar a estudar". Apenas no tempo do a posteriori, durante a escrita do diário de experiência, nos momentos de supervisão e discussão em grupo foi possível perceber como a escuta do bolsista estava obliterada em função do que ele considerava como "o melhor" para o adolescente.

Sublinhamos aqui a importância do compromisso com um outro tempo de elaboração das intervenções após a vivência das Rodas que, no caso, se materializava pela escrita livre dos diários, bem como pela via das trocas com o grupo de pesquisa e os momentos de supervisão - um dos eixos do tripé formativo, junto da análise pessoal e dos estudos teóricos. Dado que esse lugar nunca estará completamente garantido, configurando-se muito mais como uma constante construção a ser feita pelo pesquisador-psicanalista, essas ferramentas metodológicas tornam-se capitais para um trabalho em que a prática é a própria ética do pesquisador-psicanalista ou daquele que tem seu fazer atravessado pelos operadores da psicanálise (Betts, 2012). Tais concepções e ferramentas podem, sobretudo nos contextos socioeducativos, facilitar a criação de meios simbólicos de lidar com a aridez do trabalho.

Ora, não é função do pesquisador chamar à razão aquele que está sendo escutado a partir de suas crenças pessoais, ainda que estas sejam feitas, por vezes, em nome das "melhores intenções" - ou do que Lacan chamou de "falcatrua benéfica do quer-o-bem-do-sujeito" (Lacan, 1959-1960/1992, p. 267). É preciso afastarmo-nos do furor sanandi alertado por Freud (1912b/2010), demanda de cura rápida e quase milagrosa, como se tivéssemos as ferramentas capazes de "consertar" esses sujeitos "extraviados" da sociedade. Dito de um outro modo, é imperativo que recusemos essa "noção de refazer o eu do sujeito" (Lacan, 1959-1960/1992, p. 253) a partir de certos ideais que ditam como habitar o mundo da melhor e mais conveniente maneira.

Se nos colocamos em sintonia com a noção de que a posição ética que sustenta a prática do pesquisador em psicanálise refere-se ao Bem-dizer e não ao Bem-viver, então é preciso sublinhar que não se pode esperar que os adolescentes dos contextos socioeducativos sejam "restaurados" ou "salvos". Primeiro porque estaríamos nos colocando na posição de mestres que negam a realidade do país, das políticas públicas e das diversas circunstâncias sociais, familiares e educacionais às quais os adolescentes estiveram submetidos. E, depois, porque acabaríamos com qualquer possibilidade de efetivamente escutá-los, sem podermos conhecer o modo como situam os significantes que permeiam e atravessam suas vidas.

Ao oferecermos um espaço de escuta a esses jovens, não podemos, seguindo a analogia freudiana, conjurar o espírito inconsciente das profundezas para, logo em seguida, enchermo-nos de espanto e o mandarmos embora sem fazer qualquer pergunta (Freud, 1915/2010). Em outras palavras, se estamos lá para escutá-los, vamos escutá-los efetivamente e não construir dispositivos que acabem por fazê-los calar. Quando Tiago nos disse que seguiria no tráfico ao sair da Instituição, ao invés de insistirmos nos motivos pelos quais ele deveria estudar, seria muito mais interessante fazê-lo falar mais sobre isso, desdobrando na fala os sentidos que para ele, e não para o pesquisador, podem ter esse significante "seguir no tráfico". Aí reside a questão da potência polissêmica, um mesmo significante pode remeter a diferentes e múltiplos sentidos, o que nos coloca como imperativo ético interrogar sem ter como pano de fundo um fim ao qual o sujeito deva chegar.

Ora, no âmbito da socioeducação, campo que parece nos colocar radicalmente frente a discursos áridos e severamente cristalizados, nossa aposta é de que seja possível - e necessário - operar um importante deslocamento na posição de escuta do pesquisador-psicanalista: é preciso que se faça decantar da impotência, tantas vezes gerada pelo trabalho, um traço de impossibilidade.

 

Deslizamentos da escuta: da impotência à impossibilidade

Repetidamente, notávamos, desde as discussões no grupo de pesquisa, um intenso sentimento de angústia e frustração do lado dos pesquisadores frente às narrativas que eram trazidas pelos meninos. A partir das supervisões e da escrita dos diários de experiência, pensamos que um certo deslizamento de posição, indo da impotência à impossibilidade, pôde ser operado.

Compreendemos a referida impotência, intimamente relacionada ao Bem-viver, enquanto uma posição estéril da escuta que se guia por um modelo moralmente idealizado, baseado na existência a priori de uma resposta universal (um Bem Supremo) de como se orientar na vida e que, exatamente por isso, acaba por tamponar as brechas necessárias para que o sujeito do desejo advenha, produzindo, assim, novos movimentos para posições cristalizadas. Na contramão, propomos a posição da impossibilidade, situada no âmbito do Bem-dizer, e sua proposta de respaldar-se justamente nessa dimensão singular do desejo, permitindo-nos a possibilidade de escutar alguma potência em meio ao impossível do que é a dimensão daquilo que se apresenta como um "sem saída" do sofrimento do outro.

Dito de outro modo, ocupamo-nos em escutar o sujeito sem perder de vista o seu atravessamento - e o nosso enquanto pesquisadores em psicanálise! - com a dimensão da castração e da falta. Na impotência, a falta assume função paralisante, sendo uma de suas facetas o angustiante sentimento, do lado do pesquisador, de que "nada pode ser feito" diante da dimensão do horror e dos paradoxos que se apresentam a ele no discurso dos adolescentes em conflito com a lei. Na posição da impossibilidade, o pesquisador toma a falta enquanto espaço necessário, hiato fundamental para que seja possível ao adolescente operar movimentações e deslizamentos significantes, criando em seu discurso outros e novos sentidos a partir de suas escolhas e possibilidades.

Inspirando-nos na perspicácia de Lacan que cunhou o Bem-dizer justamente ao se permitir brincar com o Bem-viver de Aristóteles, propomos uma certa metáfora em que o pesquisador em psicanálise também é convidado a brincar com a dimensão da falta, especialmente nos contextos da socioeducação. Nessa brincadeira, a peça que falta, ao invés de ser tomada como aquilo que emperra o jogo e o torna inválido, sem uso, é justamente o que propicia as condições para que se jogue, para operar movimentos e deslocamentos das peças, tal como no jogo Resta Um8.

Certo dia nas Rodas, o trecho de uma música que falava sobre ser "157 consciente" teve como efeito a discussão sobre a função desses códigos na vida dos meninos. Em um primeiro momento, justificaram assim: "é mais fácil falar o que tu fez, a tua história, principalmente no pátio quando os novos entram... Tu diz, 'eu sou 1579, e tu? É que dá preguiça de ter que repetir tudo de novo'". Em um segundo momento, no tempo só-depois à fala, sucedeu outra associação: "acho que também é uma forma de não ter que relembrar tudo que o cara passou lá fora...".

Ao intervirmos a partir da ética do Bem-dizer, desde a impossibilidade, convidamos os adolescentes a desdobrarem na fala aquilo que, inicialmente, aparece como um discurso unívoco e cristalizado, um Resta Um em que não há resto possível, já que tudo parece encontrar-se preenchido. Nesse diapasão, temos apostado na potência de estarmos atravessados em nosso fazer pela metáfora do Resta Um - sejamos pesquisadores em psicanálise, psicanalistas ou aqueles que trabalham com seus operadores - naquilo que ela evoca de vazio, de uma falta que insiste justamente como pré-condição para que se desvelem múltiplas jogadas-movimentos. Tocado pela metáfora, aquele que escuta pode tranquilizar-se quanto a sua posição sem vinculá-la ao compromisso do mestre: suturar o espaço do Resta Um, suportando de outra forma aquilo que, do lado dos sujeitos da socioeducação, sempre resta como falta, como aquilo que, parafraseando Chico Buarque, "não tem medida, nem nunca terá; o que não tem remédio, nem nunca terá; o que não tem receita".

No fragmento de experiência, a partir da discussão no grupo, aquilo que veio primeiro como "preguiça" pôde tomar um outro sentido, "um modo de se defender de algo que causa sofrimento". Acreditamos que é justamente na sutileza dessas movimentações significantes que estão os efeitos mais potentes de nosso trabalho, quando, a partir das intervenções, conseguimos auxiliar os adolescentes a encontrarem brechas em suas narrativas. É como se aquele que nos fala experimentasse, a partir da produção de pequenos e sutis efeitos de sujeito, a força do sentimento de modificar a si mesmo tal como o ato artístico-político relatado por Borges (1984/2010) de apanhar um singelo pedaço de imensidão para, logo em seguida, largar os grãos de areia em outro lugar ao lado e declarar: eu estou modificando o Saara!

Ao longo de nossa experiência com a pesquisa-extensão na socioeducação, fomos tomando como problemática uma expressão corriqueira dos discursos acadêmicos, inclusive do nosso próprio Grupo de Pesquisa, a saber, "dar a palavra aos adolescentes". A partir das discussões, percebemos que, independente de nós, as palavras são proferidas, a socioeducação fala por seus escritos nas paredes dos dormitórios, pelas tatuagens que marcam a pele dos adolescentes, pelos processos institucionais, pelas relações que se estabelecem entre funcionários e jovens. Portanto, a socioeducação existe sem a nossa presença (Guerra, 2016) e o desafio que cabe ao pesquisador é, ao invés de dar a palavra como o mestre que a detém, oferecer uma escuta dessas manifestações, por vezes tão desacreditadas e invisibilizadas, garantindo-lhes um estatuto de verdade de sujeito. Isso na mesma direção de Freud, quando este tomou o sofrimento das histéricas de seu tempo como um enigma do sujeito que deveria ser escutado ao invés de estigmatizado e silenciado.

A partir do oferecimento de espaços de fala para esses jovens, acreditamos que seja possível operar um importante deslocamento do lugar de dejeto a sujeito - lugar em que o discurso social os coloca repetidamente e que muitos deles tomam para si como modo de enunciação de si. Nas Rodas, podemos pensar a evocação dessa passagem no momento em que os adolescentes falam não somente de seus delitos, ser 157, mas também sobre suas angústias em relação à família, amizades e relações amorosas. Esse dispositivo das Rodas de R.A.P. foi pautado pela ética do desejo, e, justamente por isso, pareceu abrir possibilidades para que fosse feito algum tipo de furo no discurso que submete o adolescente unicamente à posição de resto, sujeito-dejeto, sujeito-delito. É como se ele pudesse forjar outras formas, quiçá menos mortíferas e alienadas, de responder à demanda do Outro. Um dos meninos tomou o espaço das Rodas, por exemplo, para falar sobre suas preocupações e os possíveis desafios de tornar-se pai em função de ter descoberto, naquela semana, a gravidez de sua namorada.

Importa que essa passagem se dê, do dejeto ao sujeito, pois, ainda que o sujeito desejante seja engendrado pelo laço social, ele o é em sua condição de dividido, podendo, assim, "transcender ao lugar em que é colocado e apontar na direção de seu desejo" (Rosa, 2004, p. 4). Dividido no sentido de que há uma verdade que pertence a ele, que lhe é singular, mesmo que, paradoxalmente, ela esteja ali onde ele não sabe, onde desconhece acerca de si mesmo.

É quando supomos que há um saber inconsciente, próprio a cada sujeito, que pode, a qualquer momento, surgir e causar aquilo que é do âmbito do Unheimlich (Freud, 1919/2010), momento em que algo se movimenta para o sujeito. É como se disséssemos a eles de diferentes formas: e o que mais? E ali, naquela parada, naquele pequeno silêncio, aparece uma palavra até então não compartilhada que agora é perpassada pela enunciação. Nas palavras de Lacan (1959-1960/1992, p. 35; grifo nosso): "Essa verdade que procuramos numa experiência concreta não é a de uma lei superior. Se a verdade que procuramos é uma verdade libertadora, trata-se de uma verdade que vamos procurar num ponto de sonegação de nosso sujeito. É uma verdade particular".

A propósito da abertura ao desconhecido, trazemos mais uma cena cujo fio comum é a produção de um estranhamento a partir do emprego corriqueiro de termos judiciais pelos adolescentes, tal como o episódio do 157, algo muito presente também nas letras das músicas solicitadas. Certo dia, Yago nos contava sobre a experiência de ter assaltado uma vítima. Perguntado se sabia algo mais sobre ela, diz que não, mas relembra-se, em seguida, do nome, características físicas e da idade. Quando os bolsistas-pesquisadores pontuaram que os dois eram adolescentes, que só tinham um ano de diferença, Yago ficou visivelmente surpreso: "nossa, é muito estranho pensar nisso...".

Tendo em vista um espaço de escuta das Rodas de R.A.P., não se trata de buscar na fala dos adolescentes os fatos, a concretude da vivência, o relato bruto, ou, dito de outro modo, aquilo que nos chega pronto, achatado, que busca tamponar os furos, uma vez que tudo já está hermeticamente explicado. Tal caracterização poderia ser pensada como o que Benjamin chamou de informação; do ponto de vista da psicanálise, poderíamos pensar como fala vazia, em contraponto à fala plena. Enlaçando essas questões benjaminianas com a Psicanálise, talvez possamos traçar algumas intersecções entre os pares vivência/experiência (Benjamin, 1993/1994; 1936/2012) e fala vazia/fala plena (Lacan, 1953/1998).

A fala vazia aproximar-se-ia de um monólogo, tagarelice que barra a assunção de efeitos de sujeito por se basear não no princípio fundamental da associação livre, mas, sim, por um discurso que corresponderia (imaginariamente) aos ideais esperados pelo analista. Esse tipo de fala encerra-se em si mesma, e, por esse motivo, poderia avizinhar-se da dimensão da vivência que, lembremos, não faz laço com o coletivo. A fala plena, por sua vez, admite uma relação dialética de troca, propiciando a possibilidade do surgimento das manifestações inconscientes. Nesse sentido, o efeito de uma fala plena - "reordenar as contingências passadas dando-lhes sentido das necessidades por vir" (Lacan, 1953/1998, p. 257) - seria similar ao efeito de alguém que narra suas vivências e que nesse movimento de compartilhamento cria condições para decantá-las em experiência. De certo modo, essa dimensão de uma transmissão/enlace com uma coletividade se deu durante as Rodas, quando os jovens e os pesquisadores resgatavam a fala daqueles que já não estavam mais participando em função de já terem (ou não) recebido suas medidas.

De maneira geral, notamos que o discurso dos adolescentes foi sendo, pouco a pouco, mais permeado por um outro ritmo que talvez possamos pensar como o ritmo em que a fala plena, e não a vazia, é protagonista. Um dos fatores que permitiram esse fundamental deslocamento foi, a nosso ver, o contrato de sigilo firmado com os jovens, sustentando que nada do que fosse discutido ali iria parar em relatórios judiciais ou documentos que repercutissem em suas audiências. Dessa forma, foi possível a eles constituírem narrativas mais livres, o que também reverberou na escolha das músicas. Enquanto algumas delas falavam sobre o arrependimento de entrar na vida do crime e a vontade de seguir por outros caminhos, outras sustentavam o não abandono da "vida loka", pois era com ela que se identificavam. Nessa via, resgatamos uma das falas de Leonardo: "eu planejo sair daqui e mudar de vida, mas, né... nunca se sabe o que vai acontecer mesmo, isso eu tô falando agora, quando o cara voltar lá fora já pode ser outra coisa". Para a Psicanálise, sempre se tratará de desejar outra coisa, mas ter condição de nomear a existência dessas possibilidades é o que dá sentido ao trabalho.

Nesse âmbito, cabe àquele que escuta, guiado por seu desejo de que o outro deseje, auxiliar o adolescente a apropriar-se de seu saber singular. Dito outro modo, auxiliar o sujeito-dejeto-delito a tornar-se sujeito pela via da apropriação de sua história. Mas de que forma isso pode ser feito? Segundo Lacan (1953/1998, p. 253), "a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito até que se consumam suas últimas miragens. E é no discurso que deve escandir-se a resolução delas". Ao trabalhar com a fala e produzir enigmas ao sujeito, o psicanalista opera desde uma certa "prática da dúvida em contraposição às certezas totalitárias que regem a vida imaginária" (Kehl, 2002, p. 125). Quando, por exemplo, os jovens puderam exercitar o plano da palavra plena e questionar a tirania dos dualismos antes colocados sem qualquer reflexão aparente, eles pareceram implicar-se com seus ditos mais como autores do que como vítimas. Isso não significa, especialmente no contexto da socioeducação, que o adolescente escolha a via do estudo em detrimento dos delitos, mas que, pelas condições postas na experiência das Rodas, eles tenham a chance de apropriarem-se de suas falas, escolhas e atos de um outro modo, colocando-se como protagonistas dos caminhos que elegem seguir.

 

À guisa de considerações finais ou ainda "resta um" dizer

Importa dizer ainda que, para além de uma modalidade de atendimento, a Psicanálise é um método de investigação que convoca e propicia condições para a emergência das manifestações do sujeito (Freud, 1912a/2010). Nesse âmbito, é possível pensarmos a escuta dentro das Instituições sem deixar de levar em conta as particularidades de nosso trabalho. Evidentemente, não pretendemos, com as Rodas de R.A.P., empreender uma análise de cada adolescente, mas, sim, propiciar um espaço permeado pelas nuances da polissemia discursiva passível de constituir novos e outros sentidos acerca dos acontecimentos da vida dos meninos da socioeducação. Podemos dizer que nosso intuito é o de oferecer condições para que surjam efeitos de sujeito na fala dos adolescentes e que eles possam, a partir do que emerge como um estranho em si, produzir reflexões, ao invés de simplesmente tomarem tais momentos como construções aleatórias que não causam inquietação, simples equívocos discursivos sem valor ou meras confusões que nada têm a dizer. Em suma, miramos esses momentos, sem dúvida pontuais e efêmeros, em que se pode constituir outro modo de relação com os tropeços do discurso e daquilo que insiste em se repetir enquanto cristalizações da fala.

Se a ética que sustenta o trabalho do pesquisador em Psicanálise não é outra senão aquela pautada pelo Bem-dizer, não podemos cair na armadilha de esperar que os jovens dos contextos socioeducativos sejam "salvos" ou "restaurados" a partir de nossas intervenções. Se assim agirmos, estaremos, mais uma vez, repetindo o discurso social que nunca os alcança e para os quais tudo é falcatrua, como nomeou Lacan. Nesse sentido, o psicanalista ou pesquisador em psicanálise deve estar alerta quanto ao fato de que "a mais aberrante educação nunca teve outro motivo senão o bem do sujeito" (Lacan, 1958/1998, p. 625).

Nesse diapasão, também não nos cabe tentarmos "compreender" as vivências dos adolescentes que, sem dúvidas, condensam, em poucos anos de vida, uma quantidade exorbitante de histórias que nos são, por vezes, extremamente difíceis de conseguir escutar. Desde a Psicanálise, é muito mais interessante operarmos com a posição da falta-a-ser do que com uma certa empatia imaginária que tenta produzir identificações com os jovens e suas histórias, correndo o risco, inclusive, de apagar a distância necessária para que seja possível fazer uma escuta daquilo que surge nas Rodas. Lembremos que, "muitas vezes, mais vale não compreender para pensar, e é possível percorrer léguas compreendendo sem que disso resulte o menor pensamento" (Lacan, 1958/1998, p. 621).

Nessa direção, pensamos que, a partir da oferta de um espaço onde a palavra e a escuta são protagonistas, a lógica dos dualismos - tal qual "prisão ou morte" ou ainda "matar ou morrer" - pode, mesmo que de maneira muito sutil, deslizar quanto ao seu sentido entre os jovens. E aqui reside uma potência singular dessas Rodas, que são a força da palavra compartilhada entre os iguais e a possibilidade de que ali se construa algo de um saber da experiência (Larrosa, 2002; Gurski, 2012; Gurski, & Strzykalski, no prelo).

Frisamos ainda que o discurso "bem-dito" não é aquele eloquente ou de aspiração moral-pedagógica. Tampouco se trata do discurso "bendito", que a Instituição e a sociedade parecem demandar dos meninos, com arrependimentos e pedidos de desculpas vazios de sentido. Enquanto um ato ético de nossa prática, profanamos (Agamben, 2007) essa lógica que censura ao restituirmos ao uso comum, ou seja, fazendo a palavra circular, aquilo que é marcado com as insígnias do sagrado e, portanto, proibido. Profanar o discurso é permitir que seja evocada a própria dimensão do sujeito (do inconsciente) ao dar um outro estatuto àquilo que pouco parecer importar - os tropeços, controvérsias e questionamentos da linguagem.

Por fim, ressaltamos que a ética do desejo é o que orienta nossa escuta - em contextos de vulnerabilidade ou não, no setting analítico tradicional ou nos dispositivos de escuta das Políticas Públicas. Importa que esses adolescentes tenham espaços que acolham seus ditos, pois "acaso não sabemos que nos confins onde a fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali, mesmo sem que a provoquemos?" (Lacan, 1954/1998, p. 376). Com isso, sublinhamos que as significações rígidas, ao serem enunciadas no discurso e não no ato - que "não permite o tempo para pensar" -, podem acabar retomando sua potência ao ceder lugar à polissemia como um modo transformador do psiquismo (Freud, 1914/2010). Apostamos que isso também possa redundar na produção de deslocamentos na posição do adolescente em relação aos seus atos, produzindo, como efeito, uma outra implicação com as escolhas que faz.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 02/10/2017
Aprovado para publicação em: 08/03/2018

Endereço para correspondência
Rose Gurski
E-mail: rosegurski@ufrgs.br
Stéphanie Strzykalski
E-mail: stephanie.strzykalski@hotmail.com

 

 

*Psicanalista, membro da APPOA. Profª. do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia (UFRGS) e orientadora no Programa de Pós-graduação de Psicanálise: clínica e cultura (UFRGS). Membro da Rede Internacional de Infância e Adolescência (INFEIES). Co-coord. do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC). Pesquisadora colaboradora do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (USP). Autora do livro Três Ensaios sobre Juventude e Violência (Escuta, 2012).
**Psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestranda do Programa de Pós-graduação de Psicanálise: clínica e cultura (UFRGS). Pesquisadora vinculada ao eixo Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS).
1O NUPPEC/UFRGS - Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura é uma ação conjunta entre docentes da Faculdade de Educação e do Instituto de Psicologia da UFRGS que ocorre no âmbito de dois Programas de Pós-Graduação: Educação e Psicanálise: Clínica e Cultura. Participam do Núcleo professores, pesquisadores e bolsistas das duas unidades - Psicologia e Educação. Temos desenvolvido nossos trabalhos desde o eixo 3 do Núcleo, denominado Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação. Ao final de 2014, iniciamos um trabalho de pesquisa em uma instituição socioeducativa na tentativa de criar um espaço de escuta com os adolescentes que estavam em restrição de liberdade. Inicialmente, com o projeto Os jovens em conflito com a Lei, a Violência e o Laço Social e, depois, em 2015 e 2017, com o Ritmos, Adolescência e Poesia (R.A.P): dos "muros" à musicalidade na Socioeducação. Assinalamos que o primeiro projeto citado foi contemplado com o Edital Universal do CNPq 447672/2014-2.
2A IP caracteriza-se enquanto uma espécie de porta de entrada da Instituição Socioeducativa, acolhendo os adolescentes suspeitos de terem cometido algum ato infracional e que, por alguma razão judicial, não puderam aguardar às audiências do seu processo em liberdade. Nessa modalidade de acautelamento pré-decisão, os adolescentes podem ficar até 45 dias, sendo que, se esse prazo for ultrapassado, caberá à "Unidade adotar as providências de comunicação ao juízo de conhecimento e a Defensoria para interposição do devido remédio processual" (Brasil, 2014, p. 19).
3Aproveitamos o efeito equívoco que se forja com as iniciais R.A.P. como advindo de rap - rhythm'n'poetry para Ritmos, Adolescência e Poesia.
4Essa é uma das falas dos adolescentes que se repetia com frequência durante os encontros das Rodas de R.A.P.
5Todos os nomes empregados neste artigo foram modificados a fim de garantir o anonimato dos adolescentes.
6Salientamos que a nomenclatura "crime" e seus derivados do código penal brasileiro são incorretos para referir-se à transgressão cometida por uma criança ou adolescente. O que é proposto pelo SINASE é "ato infracional" ou "delito", mesmo que os próprios adolescentes pouco se utilizem dessas palavras. Sabemos, também, que as incongruências se encontram ainda na construção das diretrizes, pois, embora estejam embasadas nos direitos humanos e no ECA, na maioria das cidades brasileiras as medidas socioeducativas estão vinculadas a Secretarias de Justiça (Brasil, 2006).
7O real é o que não pode ser simbolizado totalmente na palavra ou na escrita, aquilo que não cessa de não se escrever. O real é um dos três registros que, junto ao simbólico e ao imaginário, fundam o que Lacan denominou RSI - as instâncias indissociáveis ligadas pelo nó borromeu, que dão conta da relação do sujeito com a falta. O real designa o impossível de ser simbolizado; o simbólico seria o lugar do significante e da função paterna; o imaginário seria o lugar supremo das identificações, lugar das ilusões do eu, da alienação do sujeito. Para outros detalhes, ver Roudinesco e Plon, 1998.
8Resta um é um quebra-cabeça no qual o objetivo é, por meio de movimentos válidos, deixar apenas uma peça no tabuleiro. No início do jogo, há 32 peças no tabuleiro, deixando vazia a posição central. Um movimento consiste em pegar uma peça e fazê-la "saltar" sobre outra peça, sempre na horizontal ou na vertical, terminando em um espaço vazio. A peça que foi "saltada" é retirada do tabuleiro. O jogo termina quando não mais é possível fazer nenhum outro movimento. Nesta ocasião, o jogador ganha caso restar apenas uma peça no tabuleiro.
9Referência ao artigo 157 do código penal brasileiro. "Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência" (Para mais informações, ver https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10619340/artigo-157-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940).

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