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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Louis Althusser entre a pedra sepulcral do silêncio e o testemunho

 

Louis Althusser between the tombstone of silence and the testimony

 

Louis Althusser entre la pierre tombale du silence et le témoignage

 

 

Keilah Freitas Gerber

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A narrativa de Louis Althusser em O futuro dura muito tempo (1992) interessa por fornecer o testemunho da sua constante tentativa de responder pelo homicídio que protagoniza. Ele considera a impronúncia, tida por ele como a pedra sepulcral do silêncio, um castigo mais violento do que qualquer sentença poderia ser. Para se desvencilhar dela Althusser escreve a sua história fraturada pelo encontro com o real. Assumir a pena da escrita do testemunho possibilita mover a pedra do silêncio liberando o acesso a outros caminhos, ainda que não seja possível de todo removê-la. Desse modo, a partir da narrativa deixada por Althusser, propomos no presente artigo extrair alguns elementos para pensar a relação entre Psicanálise e testemunho.

Palavras-chave: Psicanálise, trauma, testemunho, Althusser.


ABSTRACT

Louis Althusser's narrative in The future lasts a long time (1992) interests for providing the testimony of his constant attempt to answer for the murder he had committed. He regards to be declared unfit to plead, he speaks as tomb stone of silence, a more violent punishment than any sentence could be. In order to get rid of it Althusser writes his fractured history by the encounter with the real. To assume the penalty of writing the testimony makes possible to move the stone of silence, liberating access to other paths, even it is not possible at all to remove it. Thereby, based on the narrative left by Althusser we propose in present the article to extract some elements to ponder the relation between Psychoanalysis and testimony.

Keywords: Psychoanalysis, trauma, testimony, Althusser.


RÉSUMÉ

Le récit de Louis Althusser dans L'avenir dure longtemps (1992) intéressé à fournir un témoignage de leur effort constant de répondre pour le meurtre qu'il avait commis. Il considère qu'il destin du non-lieu, la pierre tombale du silence, une punition plus violente que n'importe quelle peine pourrait être. Pour s'en débarrasser, Althusser écrit son histoire fracturée par la rencontre avec le réel. Prenez la peine d'écrire le témoignage permet de déplacer la pierre du silence, de libérer l'accès à d'autres chemins, même s'il n'est pas possible de l'éliminer. Ainsi, à partir base du récit laissé par Althusser, nous proposons actuellement l'article pour extraire certains éléments pour réfléchir à la relation entre la psychanalyse et le témoignage.

Mots-clés: Psychanalyse, traumatisme, témoignage, Althusser.


 

 

O drama privado tornou-se discussão pública: já existe
hoje um "caso Althusser"
Luiz Fernando Matos e Michel Lahud

Não é possível generalizar o que os achados de um caso nos trarão, mas a partir de um caso singular algumas reflexões podem ser propostas. Se o caso clínico tem função metafórica que pode tanto ilustrar quanto criar nova significação a partir de um processo transformativo, temos na literatura de teor testemunhal uma forma narrativa em que outros podem se reconhecer (Dunker, Paulon, & Milán-Ramos, 2016), ou serem reconhecidos. Desse modo, a partir da narrativa deixada por Althusser, pretendemos extrair alguns elementos para pensar a relação entre Psicanálise e testemunho, especialmente quando atravessados pela loucura e pelo crime. Posto que "a leitura do livro de Althusser traz [...] um aporte inestimável para pensarmos a posição do sujeito psicótico diante de seu ato" (Lobosque, 1997, p. 73), podemos desejar que esse caso singular possa se tornar universal através das constâncias que surgem em cada caso e que permitem induzir um tratamento teórico e prático, um por um.

Recuperaremos alguns elementos da história do filósofo francês, ricamente retratados em O futuro dura muito tempo (1992). Nesse texto Althusser busca localizar marcas da sua vida que se mostraram importantes. Em 1985 o filósofo decidiu reconstruir a cena do assassinato de sua mulher Hélène após ter tido contato com a história de Issei Sawaga através do jornalista Claude Sarraute do Le Monde, que relata o ato criminoso de Sawaga (Roudinesco, 2007). Para Passos (2006), contudo, foi inspirado nasConfissões de Rousseau que Althusser resolveu relatar o que havia feito, pensado e quem havia sido. Independente de onde tenha surgido o impulso de romper com o silêncio, até a publicação póstuma de O futuro dura muito tempo não era de conhecimento público como aconteceu a passagem ao ato.

Sobre a escrita de suas memórias, Althusser (1992, p. 25) afirma que a escreve "primeiramente para meus amigos, e para mim, se possível". Trata-se de uma escrita testemunho porquanto carrega uma aposta de transmissão de uma experiência do singular que visa um laço com o outro. Algo que a testemunha não pode prescindir é de um ouvinte/leitor para quem a transmissão da experiência fraturada possa chegar. Essa escrita em particular tem como bússola responder a uma pergunta formulada pelo filósofo: "como é possível que eu tenha matado Hélène?" (Althusser, 1992, p. 228).

A elaboração do passado, afirma Adorno (2000, p. 48), "é essencialmente uma tal inflexão em direção ao sujeito". Isso significa que elaborar o passado requer uma implicação do sujeito em sua própria história. Debruçar-se sobre o tempo decorrido a fim de encontrar uma resposta a uma questão formulada no tempo presente não é tarefa fácil. Como a história possibilita um certo sentido de continuidade e identidade e é o que o sujeito tem de mais singular (Bogochvol, & Teixeira, 2017), revê-la pode representar uma revisão das próprias formulações identificatórias do sujeito. A história evocada no testemunho é aquela guardada pela memória e fragmentada pelo esquecimento, mas que possibilita àquele que conta a sua experiência se reposicionar diante dela. Althusser (1992) restinge-se aos fatos e ressalta que as alucinações não deixam de ser fatos.

Chaves (2015) pondera que a verdade histórica só se apresenta por meio de distorções e equívocos que são próprios da cadeia discursiva; pois a linguagem, bem como a memória, não dá conta de tudo comunicar. Isso implica dizer que qualquer comunicação porta, intrinsecamente, elementos de ficção, elementos alucinantes, por fazer uso da linguagem como meio de transmissão de um saber. A própria memória, elemento intimamente articulado à linguagem, é formada por recordações misturadas a fantasias e ficções, ela "não é um aparelho fotográfico; ela modifica, suprime, fantasia os objetos. Em condições normais, ela 'falha', não reproduz o objeto como tal" (Bogochvol, & Teixeira, 2017, p. 204). Essa perspectiva interessa particularmente quando consideramos a narrativa dos analisantes que acolhe contradições, lapsos, esquecimentos e não deixa de fazer parte da cena testemunhal. Aliás, o século XX tem ensinado que todo produto da cultura pode ser lido em seu teor testemunhal (Seligmann-Silva, 2008). Outrossim, o fato de a linguagem ficcionar não faz dos ditos (ou escritos) elementos descartáveis ou mentirosos, pois "a ficção é o destino que pode levar adiante e transmitir um saber fazer com o real" (Britto, & Caldas, 2011, p. 7) e é nesse ponto de não saber que se supõe haver uma verdade (Dunker, Paulon, & Milán-Ramos, 2016).

O testemunho de Althusser foi escrito às pressas; evidências indicam que O futuro dura muito tempo foi produzido em poucas semanas, dos últimos dias de março ao final de abril ou início de maio do ano de 1985 (Corpet, & Boutang, 1992). Apesar do curto tempo em que o texto foi escrito, Althusser (1992) consultou extensa e cuidadosamente os médicos que dele trataram desde a sua internação, bem como os amigos, os especialistas em farmacologia e biologia médica, além de artigos de imprensa publicados na França e em outros países após o assassinato de sua esposa, Hélène.

Foi François Boddaert, sobrinho de Althusser, que decidiu publicar o texto como o primeiro volume póstumo e inédito do autor (Corpet, & Boutang, 1992). A partir dessas narrativas é possível entrar na escrita da fantasia e da alucinação. Com efeito, trata-se do testemunho do modo que um homem habita a sua loucura e daquilo que ele pôde construir a esse respeito. A explicação de Althusser visa dar contorno àquilo que não é possível ser de todo dito. Ele apresenta o seu testemunho da seguinte maneira:

é provável que se julgue chocante que eu não me resigne ao silêncio depois do ato que cometi, e também a impronúncia que o sancionou e da qual, segundo a expressão espontânea, eu me beneficiei. Mas, não tivesse eu esse benefício, e deveria ter sido julgado. E, se tivesse de ser julgado, teria de responder. Este livro é essa reposta à qual, de outra forma, eu teria sido submetido. E tudo o que peço é que isso me seja concedido; que me concedam agora o que então poderia ter sido uma obrigação. [...] É meu destino só pensar em acalmar uma inquietação arriscando-me a outras, indefinidamente (Althusser, 1992, p. 21).

Sem direito a defesa ou a pronunciar-se abertamente, o filósofo escreve; não para defender ou negar o ato cometido, mas a fim de demandar a possibilidade de responder pelo seu ato. A escrita visa restituir aquilo que não teve consistência no âmbito jurídico: o seu testemunho (Racciatti, 2010). E eis que ele apresenta a cena do assassinato tal como a viveu; cada detalhe da cena é descrita por Althusser (1992, p. 24): os olhos fixos, o roupão, a cortina do quarto e o terror que se seguiu à descoberta "estrangulei Hélène!".

É com a cena traumática da morte de Hélène que Althusser inicia o seu testemunho, tentando resgatar em sua história os elementos capazes de dar conta desse ato. Ele fará um percurso em que a cronologia pouco importa, ele escreve no lugar de analisante, como se associasse livremente: um assunto levando a outro até que, ao final, ele reencontra a cena inicial, fornecendo a ela uma ficção de verdade. No curso da sua narrativa, Althusser questiona o silêncio que lhe fora imposto pela Lei o qual nomeia de pedra sepulcral do silêncio. Eis a pedra no meio do caminho.

 

A pedra sepulcral do silêncio

Na tentativa de encontrar uma resposta para a morte de Hélène, Althusser testemunha também da sua posição de cidadão e louco diante da lei. Conhecedor da história da loucura através de Foucault, não é sem motivo que Althusser faz prudentes considerações sobre sujeitos em situação semelhantes à dele. O filósofo expõe as ambiguidades da legislação que tanto protege quanto condena o louco que comete crime: da anulação da personalidade jurídica ao sigilo médico; da impronúncia - a pedra sepulcral do silêncio - à reclusão por tempo indeterminado que não tem efeito de pagamento de dívida.

Para ser imputável, ou seja, para ser considerado responsável por um fato punível, o sujeito deverá ter condições de ser culpável. Isso significa ter juízo de reprovação social. Assim, quem pode ser responsabilizado por um crime é aquele a quem se pode atribuir culpa. No caso do louco, se a capacidade de entendimento do caráter ilícito do fato ou a capacidade volitiva estiverem suprimidas no momento da ação ou omissão, ele será considerado inimputável e, por essa razão, fica impossibilitado de responder pelo ato e de sofrer as suas consequências (Peres, & Nery Filho, 2002). Nesse contexto o ato não é caracterizado crime, mas infração penal. De acordo com o entendimento legal, é estabelecida uma medida de segurança que pode ser ambulatorial (cumprida em liberdade) ou de internação (executada em privação de liberdade) (Carneiro, 2011).

Althusser (1992) argumenta que a pena apagaria o crime permitindo ao criminoso comum reintegrar-se à vida em sociedade, o que não alcança o louco infrator. Com efeito, um criminoso condenado à prisão terá que cumprir pena de reclusão pelo tempo determinado na sentença que o condenou, ao fim da qual, teoricamente, terá a sua dívida com a sociedade paga. O louco infrator, por seu turno, desaparecerá por tempo indefinido da vida social sem jamais saldar a sua dívida. Excluídos no silêncio do hospício ou manicômio judiciário, acabam vivendo no isolamento. Silêncio também imposto pelos tribunais que o proíbem de qualquer explicação pública, ignorando todo o esforço deste em buscar compreender o motivo "de um drama no qual foi literalmente jogado em estado de inconsciência e delírio" (Althusser, 1992, p. 31). Por essa razão a resposta possível de Althusser só ganhou corpo enquanto palavra escrita e fora do âmbito jurídico.

Se no campo do direito a periculosidade diz respeito à probabilidade de um ato criminoso, no campo da clínica psicanalítica ela faz referência à passagem ao ato (Dutra, 2000). O termo passagem ao ato é usado para indicar atos, ou seja, o avesso do pensamento, normalmente impulsivos e mal motivados, de forma auto ou heteroagressiva. Apesar de poder ser direcionado ao outro ou a objetos, Miller (2014) pondera que o ato é sempre "auto". O ato é o que separa o sujeito do Outro e por essa razão ele sai de cena, ele se subtrai dos equívocos da fala e de toda dialética do reconhecimento.

Com a prevalência do registro imaginário na psicose há uma acentuação das marcas de rivalidade e agressividade, aumentando, assim, o risco de passagens ao ato que emergiriam como resposta à angústia. A desordem localizada pelo psicótico como fora de si está nele mesmo e ao se deparar com o real, o sujeito sem apoio simbólico sucumbe numa passagem ao ato (Salum, 2009). Dessa forma, a passagem ao ato na psicose, mesmo quando atinge algum outro, é entendida como um sacrifício primordial suicida no qual o sujeito resolve a posição imaginária do eu através da morte (Senra, 2004; Santiago, 2001). O suicídio, sendo o único ato considerado bem-sucedido, é o paradigma do ato propriamente dito (Miller, 2014). Vale frisar que o objeto atingido na passagem ao ato pode ser tanto um patrimônio, quanto uma outra pessoa, ou a si mesmo. Seria, portanto, a partir da falência do recurso simbólico, uma tentativa em ato de estabelecer um corte de separação do excesso de gozo que exigiria, essencialmente, um sacrifício de um objeto real que pode corresponder a um homicídio (Pereira, 2008). Nessa perspectiva evocamos o conceito de kakon que faz referência ao mal que invade o sujeito psicótico e é projetado para fora; na tentativa de se livrar desse mal que retorna desde fora, a violência emergiria (Santiago, 2001). Nessa reação inadaptada o sujeito não entende o que lhe acontece e nem reconhece quem se busca atingir - a função é libertar o sujeito do mal-estar (Dutra, 2002). Portanto, tais atos não seriam propriamente imotivados, mas uma última tentativa do sujeito de se libertar.

Por estar fora do discurso, a passagem ao ato não faz laço social e não tem endereçamento, no entanto se constitui na psicose como uma tentativa de cura, de inserção em algum discurso ou um apelo à lei (Quinet, 2006). Ao devolver a esses sujeitos a palavra, além de possibilitarmos que se façam responsáveis, estamos assegurando um lugar dentro da humanidade, o que é possível quando o sujeito é integrado ao universo da falta (Cottet, 2009). Afinal, quando o Outro jurídico se pronuncia sobre o ato infracional dá provas que o sujeito está atravessado pela linguagem e por leis. E a lei, ainda que localizada fora do psicótico, suscita questões a ele (Lobosque, 1997). É o que afirma Barros-Brisset (2010) quando relata, a partir de sua experiência com loucos infratores no Tribunal de Justiça de Minas Gerais

responder pelo crime diante do juiz, demonstrar para sua cidade e sua família que tinha pagado "direito" pelo que fez eram respostas que começavam a se apresentar com certa regularidade nas falas e nos comportamentos daquelas pessoas [loucos infratores]. Parecia, enfim, cada um do seu modo, que estavam verdadeiramente envolvidos num trabalho muito particular de construir algum sentido para o sem sentido de seu ato, ensejando encontrar um apoio para o que emergiu estranho de si mesmo, inscrevendo essa esquisitice no mundo, e isso significava consentir com solução jurídica que se inscreve no social, dirigida a todos os que cometem crimes, no contexto sociológico e jurídico de sua época (Barros-Brisset, 2010, p. 24).

Se por um lado é pelo castigo ou punição do mal que se entende que o ato infracional pode ser evitado, por outro, a responsabilidade inferida pela lei a alguém que comete um crime não garante que esse alguém se sentirá responsável pelo seu ato. De igual modo, a lei não responsabilizar objetiva ou juridicamente o louco infrator não exclui que este possa se implicar em seu delito. Afinal, a responsabilidade jurídica e a subjetiva não são correlatas. É isso que nos afirma Lacan (1950/1998, p. 128) quando diz que "toda sociedade manifesta a relação do crime com a lei através de castigos cuja realização, sejam quais forem suas modalidades, exigem um assentimento subjetivo". Para que uma relação entre o crime e a sua consequência seja percebida é necessário um assentimento do sujeito que seria traduzido pela crença de que é possível se responsabilizar e responder por seu ato. E assim "o homem se [faz] reconhecer por seus semelhantes pelos atos cuja responsabilidade ele assume" (Lacan, 1950/1998, p. 127). Aí encontramos o valor testemunhal do relato de Althusser; pois ele se vale de uma escrita-testemunho para falar de seu encontro com o real e com isso se implicar no ato que protagoniza, buscando fazer frente à decisão do Outro jurídico de destituí-lo da palavra. Para Althusser era urgente dar voz à sua experiência e tirar do seu caminho a pedra sepulcral do silêncio.

 

O testemunho em um recorte

Nascido em 16 de outubro de 1918, o filósofo é batizado com o nome do tio, irmão do seu pai, para quem sua mãe fora prometida e que morreu antes de contrair as núpcias. Sobre o seu nome, afirma que

talvez esse nome dissesse um pouco demais, em meu lugar: oui, e eu me revoltava contra esse "sim" que era o "sim" ao desejo de minha mãe, não ao meu. E, sobretudo, ele dizia: lui, esse pronome de terceira pessoa que, soando como a chamada a um terceiro anônimo, me despojava de toda personalidade própria, e fazia alusão a esse homem às minhas costas: Lui, c'était Louis, meu tio, que minha mãe amava, e não eu (Althusser, 1992, p. 42).

Essa identificação com o tio Louis morto, que Althusser jamais poderia ser, teve desdobramentos, em especial na relação com sua esposa, Hélène. À questão do duplo com o tio ele respondeu seduzindo a mãe superprotetora, se apresentando tão puro e comportado quanto podia para que ela consentisse em olhá-lo e amá-lo. Ao se perguntar se havia alcançado o objetivo intentado, responde que sim e não:

sim, porque reconhecendo em mim a realização de seu desejo, ela estava feliz comigo, e extremamente orgulhosa. Não, porque nessa sedução eu tinha sempre a impressão de não ser eu, de não existir realmente, mas de existir apenas pelos artifícios e nos artifícios, [...] e, portanto, de não ter realmente conquistado minha mãe, mas de tê-la artificial e artificiosamente seduzido (Althusser, 1992, p. 58).

A posição de sedução assumida em relação à mãe seria repetida, tornando-se "uma impostura fundamental" (Althusser, 1992, p. 84). Usava-a por sentir-se incapaz de manter relações afetivas. Um artifício para seduzir os professores e demais, imitando os seus gestos e gostos a fim de ser amado por eles. Ele conclui que não existia verdadeiramente, pois não passava de um ser de artifícios, um copiador de traços daqueles que queria que o amassem e de quem queria o reconhecimento da sua própria existência.

Durante o período de estudos na École Normale Supérieure, Lesèvre, amigo de Althusser, apresenta-lhe Hélène. Percebendo nela uma dor e solidão insondáveis, desejou salvá-la e ajudá-la a viver - missão da qual afirma não ter cessado de se ocupar, sendo sua motivação de vida até o momento fatídico.

Hélène, de família judia originária da Rússia e Polônia, de sobrenome Rytmann, veio a nascer na França. A mãe, que desejava um menino, odiava a filha - um animal escuro e selvagem, impossível de ser domesticado que, por defesa, assumia uma posição furiosa e violenta. Hélène temia ser uma megera tal qual a mãe a denunciava. Apesar do temor de ser incapaz de amar e ser amada, Althusser (1992) relata nunca ter visto uma mulher com tanta capacidade de amar. Durante o seu testemunho, o filósofo alterna entre uma Hélène insuportável e outra que o salvou e suportou seus maus-tratos.

Aos trinta anos, Althusser é beijado pela primeira vez em sua vida por Hélène, que tinha trinta e oito anos. Nessa mesma noite tiveram relações sexuais e, quando Hélène foi embora, abriu-se um "abismo de angústia, que não mais fechou" (Althusser, 1992, p. 114). No dia seguinte, Althusser telefona para Hélène avisando-a que não mais fariam amor, mas era muito tarde para ele, a angústia o tomara e se tornava cada vez mais intolerável. A sua primeira depressão remonta a um momento em que a sua autoridade foi questionada quando era chefe de patrulha dos Escoteiros, ainda aos doze anos, mas é no encontro com o outro sexo que Althusser localiza a sua primeira grande crise depressiva, que culminou em sua primeira internação psiquiátrica (Althusser, 1992).

Internado no Saint-Anne, Althusser recebe o diagnóstico de demência precoce do psiquiatra e psicanalista Pierre Mâle. O Saint-Anne não era qualquer hospital, pois fora o primeiro a incluir o saber psicanalítico como referência na condução do tratamento (Passos, 2006). No Saint-Anne também, Lacan deu os seus seminários até 1963. O diagnóstico dado a Althusser por Pierre Mâle teve efeitos contraproducentes, refletindo negativamente inclusive na medicação que o filósofo veio a receber (Passos, 2006). Foi com a ajuda de Hélène que Julian Ajuriaguerra interveio na situação, concluindo pelo diagnóstico de depressão gravíssima e aconselhando-lhe eletrochoques (Althusser, 1992). Uma melancolia, ainda que grave, possibilitava melhores perspectivas e parceiros de sofrimento mais nobres como os gênios, intelectuais, poetas e outros filósofos (Passos, 2006).

Althusser (1992) aponta três motivos principais para as suas depressões:

o medo de ser abandonado (por Hélène, meu analista ou algum de maus amigos ou amigas), o medo de ser exposto a uma demanda de amor que sentia como a ameaça de que me "pusessem a mãe em mim", ou, mais genericamente, e voltarei a isso, que tiveram "idéias sobre mim", evidentemente não as minhas; e, por ultimo, o medo de ser exposto, em público, em minha nudez: a de um homem insignificante, sem nenhuma existência a não ser a de seus artifícios e de suas imposturas, e então todo mundo iria descobrir, às claras e deixando-me confuso, minha condenação definitiva (Althusser, 1992, p. 131).

Nessa época, através de uma amiga, Althusser recebe a indicação de seu futuro analista Diatkine que, segunda ela, seria um homem com ombros suficientemente largos para sustentá-lo. Althusser manteve com a psicanálise uma relação ambivalente; pois, entusiasmado com a renovação lacaniana, manteve um tratamento ortodoxo.

No final de 1979, Althusser sofre dores no esôfago oriundas de uma hérnia do hiato que exigia cirurgia. Tomado por um grave pressentimento quanto à aplicação da anestesia, por duas vezes adiou o procedimento. Por fim a operação foi realizada e, apesar de tecnicamente tudo ter corrido bem, Althusser (1992, p. 218) foi tomado por uma "melancolia aguda totalmente clássica" que o levou a uma internação em junho de 1980. Com o retorno da internação de Althusser para o apartamento do casal, a convivência se mostrou insuportável para Hélène. Ela teria declarado não mais poder viver na companhia do marido, abandonando-o em própria presença, ele afirma. Nesses momentos Hélène confessava não ver outra solução que não fosse se matar sem prevenir o marido da forma ou momento. Hélène pede também que ele a mate, o que causara enorme horror ao filósofo. Por fim,

no domingo 16 de novembro [de 1980] às nove horas, tirado de uma noite impenetrável e na qual desde então nunca pude penetrar, encontrei-me ao pé de minha cama, de roupão, Hélène deitada a minha frente, e eu continuando a lhe massagear o pescoço [...] Depois compreendi, não sei como [...] que ela estava morta. [...] O destino havia se cumprido (Althusser, 1992, p. 224).

De fato, tanto para Hélène quanto para Althusser, era tarde demais. Althusser matou sem saber que o fazia, num gesto corriqueiro e recorrente entre o casal, que até então não parecera com o ato de um assassino. De acordo com um amigo do filósofo "bastaria talvez que Hélène lhe desse uma boa bofetada ou fizesse um gesto sério para tirá-lo da sua inconsciência [...] Ora, ela nada fez" (Althusser, 1992, p. 247). Assim, Althusser matava com o consentimento de Hélène. Pelo menos é assim que ele consegue formular o assassinato. É assim que ele se sente desculpabilizado por ela morrer por suas mãos e feliz por ajudá-la nesse pedido de morte. Vale dizer que Hélène, antes de ter completado 13 anos, recebeu a incumbência de matar os pais para "salvá-los". Aos 11 anos ela aplica, por indicação do médico da família, uma injeção com alta dose de morfina no pai, que era paciente terminal de câncer. A mesma história se repete com a mãe cerca de um ano depois. Sobre a morte de Hélène ainda, Althusser

dava voltas e voltas, mas sem jamais me sentir culpado, em torno da razão profunda de meu crime. Lembro-me (eu já havia formulado diante dele [analista] no Saint-Anne) de ter avançado uma hipótese: o assassinato de Hélène teria sido "um suicídio por pessoa interposta" (Althusser, 1992, p. 235).

O termo "suicídio por pessoa interposta" ou "suicídio altruísta" foi usado por um amigo médico de Althusser que apontara que essas ocorrências são frequentemente observadas nos casos graves de melancolia. Régis Debray, em 1988, comparou a cena de um assassinato a um suicídio altruísta, dizendo que um homem asfixiou uma mulher para salvá-la da angústia que o asfixiava, salvando a sua pele e se sacrificando pelo outro (Roudinesco, 2007). Chamado de suicídio idealista por Catherine Clement do jornal Le Martin, tal ato é descrito como a morte do outro por ter-se tornado parte do si mesmo e, por essa razão, o sujeito pensa estar matando a si enquanto o outro é atingido (Matos, & Lahud, 1981). Althusser (1992), que sentia não existir, pondera que por meio do crime tinha

desejado realizar inconscientemente o seu próprio desejo de autodestruição, por meio da morte da pessoa que era a que mais acreditava em você, para ficar absolutamente certo de ser apenas essa personagem de artifícios e de imposturas que sempre o obcecou. A melhor prova que alguém pode se dar de não existir é, de fato, destruir aquela que o ama e, acima de tudo, acredita na sua existência (Althusser, 1992, p. 248).

Talvez pudéssemos aqui aproximar a noção de suicídio altruísta da concepção de passagem ao ato kakon, em que, apesar do outro ser atingido, trata-se essencialmente de um ato autoinfligido. Nesse sentido Miller (2014, p. 5) pesa que todo ato verdadeiro em Lacan e em conformidade com a noção de pulsão de morte em Freud é "um "suicídio do sujeito". Podemos colocar entre aspas para indicar que ele pode renascer disso, mas renasce diferente". O ato, então, que visa o cerne do sujeito em seu gozo é apontado como suicídio. No caso Althusser, Hélène se interpôs ao ato, ainda que de forma não idêntica àquela que Althusser pôde formular.

E assim o filósofo marxista finaliza o seu testemunho:

então, a vida ainda pode, apesar de seus dramas, ser bela. Tenho sessenta e sete anos, mas finalmente sinto-me, eu que não tive juventude, pois não fui amado por mim mesmo, sinto-me jovem como nunca, ainda que a história deva acabar brevemente. Sim, o futuro então dura muito tempo (Althusser, 1992, p. 245).

Com a última frase do relato - e título do livro -, Althusser colocara seu relato no registro do tempo eterno da duração da morte, do luto nunca concluído, da própria melancolia (Roudinesco, 2007). Althusser fez o que pôde para prestar contas de seu ato e, de fato, salda com muita elaboração uma dívida impagável.

 

Mover a pedra

Encontramos em Althusser um sujeito legalmente impossibilitado de dizer do seu ato, mas que pela escrita busca a construção de uma resposta. Tal construção consistiria de um reinvestimento na realidade e estaria associada à criação de uma unidade da associação entre fragmentos de sentido (Dunker, Paulon, & Milán-Ramos, 2016). Seria, portanto, fruto do trabalho de costura dos pedacinhos de sentido e de memórias que uma unidade, tal como uma colcha de retalhos, pôde ser construída.

O convite a responder pelo ato que não veio do outro social surge como um imperativo imposto desde dentro. A resposta construída por Althusser está atrelada à leitura que ele fez do seu ato e do que foi possível produzir com os recursos que lhe foram oferecidos. Toda a pesquisa realizada sobre a percepção dos amigos e das reportagens publicadas a seu respeito conferiu um meio de amarrar a sua própria versão dos fatos ao contexto externo. Tal como se ele precisasse de uma confirmação desde fora para dizer da própria experiência. Isso corrobora a inferência de que há um direcionamento de Althusser ao ordenamento social - ele quer responder ao outro com elementos que o outro seja capaz de reconhecer. Nesse sentido, podemos considerar de forma análoga o testemunho e o discurso que está posicionado entre a fala individual e a história coletiva, constituindo uma modalidade de memória compartilhada e mediada por atos de reconhecimento (Dunker, Paulon, & Milán-Ramos, 2016).

É o assentimento que aponta para um sujeito que crê no que diz, pois assente e dá resposta àquilo que lhe escapa em relação ao ato que cometeu (Salum, 2009). Esse reconhecimento do sujeito diante do seu ato seria um consentimento às ficções que delimitam o campo de realidade do sujeito. Consentir às ficções indica um sujeito capaz de testemunhar a sua própria lacuna de saber. Dessa forma o testemunho amarra literatura e trauma, fazendo surgir em palavras o impossível de dizer. Tomamos o trauma não como um acontecimento catastrófico - até mesmo porque uma tragédia não produz necessariamente um trauma, mas o localizamos no encontro com o real sem sentido. Logo, há um deslocamento do trauma do evento em si e uma aproximação dele ao enigma, à "ruptura que perturba as explicações e sentidos coletivos e universais e que terá, a duras penas, de ser construído" (Vieira, 2008, p. 511). Somente nesse sentido podemos tomar o trauma, assim como o testemunho, como um conceito universal, afinal, especialmente em análise, se fala do impossível de dizer, cada um em sua singularidade (Caldas, 2015).

Althusser dava "voltas e voltas" (Althusser, 1992, p. 235) em sua "interminável pergunta: mas como é possível que eu tenha matado Hélène?" (Althusser, 1992, p. 228). Seguindo a lógica argumentativa, ponderamos que a dificuldade de Althusser em colocar os fatos em ordem e de encontrar resposta ao seu ato não diz necessariamente "da dificuldade que experimentamos toda vez que procuramos comunicar a outros as nossas experiências mais íntimas. A dificuldade tem a ver com a própria estrutura do testemunho" (Agamben, 2008, p. 20). Tal estrutura tem um caráter paradoxal, pois apresenta a experiência como a única coisa verdadeira e, ao mesmo tempo, "irredutível aos elementos reais que a constituem" (Agamben, 2008, p. 20). Por essa razão o testemunho sempre partirá de algo que, por estrutura, é impossível de ser testemunhado. É da lacuna que se testemunha.

E é o "uso 'individual' da linguagem, enquanto fala constrangida pela língua, que definirá a posição do que Lacan chama de sujeito" (Dunker, Paulon, & Milán-Ramos, 2016, p. 133). O evento da morte de Hélène seguido da impronúncia convocou Althusser a se inscrever nele por meio de uma produção narrativa que atestasse a sua posição de sujeito dessa experiência lacunar. É pelo testemunho que ele retorna à cena na posição de sujeito. Althusser, na figura de testemunha superstes, "indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso" (Agamben, 2008, p. 27).

A intrínseca dificuldade de transmissão do testemunho, bem como a sensação de impotência da testemunha diante do imperativo de dizer, pode colocar a confiabilidade do narrador em questão. Nesse ponto, a desconfiança ou negação do testemunho pode ser tão traumática quanto a experiência que lhe deu lugar. O mérito do testemunho não se fia no uso da palavra exata, mas pela palavra fundada na verdade do sujeito, que tem relação com o seu non-sense próprio, com o seu ponto de tropeço na linguagem. Afinal, as situações traumáticas demandam uma reordenação dos significantes a fim de apresentarem o trauma não apenas àqueles que ouvem a narrativa, mas principalmente para aquele que viveu a experiência. E pela ficção ou pelo fantasiar a própria experiência é possível, em alguma medida, tornar o impossível de dizer mais tolerável. Tornar mais tolerável não implica exorcizar o trauma, dado que o testemunho não é uma elaboração que mira o esquecimento ou a cura. Ele tampouco é estático ou definitivo. A narrativa do testemunho traz a história como construção, e, portanto, é mutável.

Assim, o valor do testemunho não está na sua equivalência à comprovação dos fatos e sim com o seu compromisso com a verdade. No campo dos ditos a verdade tem uma estrutura de ficção (Lacan 1956-1957/1995) e por isso as palavras tentam contornar o indizível sem o recobrirem totalmente. As estruturas de ficção apontam condições hipotéticas "para que um determinado regime de verdade possa ser descrito" (Dunker, Paulon, & Milán-Ramos, 2016, p. 123). Lacan (1976/2003) nos adverte que a verdade só pode ser apresentada enquanto mentirosa. Ademais, em Televisão ele sustenta que dizer a verdade toda é impossível materialmente, pois "faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real" (Lacan, 1974/1993, p. 11). A verdade real é lacunar. Por isso a lei informal da enunciação da verdade é o semidizer, o bem-dizer, o dizer por alusão, o dizer a verdade pela metade, dizer entre as palavras ou dizer a verdade de lado. Bem-dizer a verdade parte de um dizer que se origina no real e é a maneira pela qual um sujeito pode desembaraçar-se do real com o significante. Admitir que a ordem simbólica é marcada por uma falta e, por isso, deve-se bem-dizer aquilo que não pode ser dito por completo é reconhecer que no testemunho algo do real pode aparecer, ainda que fazendo uso de uma linguagem alucinada. E dessa forma, é tomando a palavra pelos furos, construindo "bordas em torno de um impossível de dizer" (Caldas, 2015, p. 5) que o testemunho ganha forma.

A verdade do sujeito, cuja marca do real se apresenta como impossibilidade de tudo mostrar ou de tudo esconder, é apresentada pelo semblante, que em psicanálise não é engodo ou embuste, mas o meio pelo qual a transmissão do testemunho é possível. Vale destacar que diferentemente da comunicação, a transmissão põe ênfase na força experiencial (Rivera, 2016). Ou seja, o que está em jogo no testemunho é a transmissão de uma experiência singular e não os fatos de um evento, como dito anteriormente. O desafio do testemunho é, pela transmissão, criar uma ponte com o outro.

O esforço de construir a sua versão dos fatos, de colocar em palavras a sua própria lacuna pode ser entendido como uma forma de se fazer existir no meio social, "mesmo libertado após dois anos de internação psiquiátrica, sou [...] nem morto nem vivo, não ainda enterrado mas 'sem obra' - a magnífica expressão de Foucault para designar a loucura: desaparecido" (Althusser, 1992, p. 29). O que Althusser aponta é um outro tipo de apagamento, o da própria existência em função da loucura. Opera-se, portanto, um duplo apagamento da experiência que a sua escrita busca corrigir: o da loucura e o da impronúncia.

Nesse sentido podemos elevar o testemunho a meio para refletir sobre o espaço político, como uma política da memória que não visa apenas a sua manifestação, mas também a "uma atividade do pensamento aplicada à compreensão do inumado enquanto produção política humana" (Koltai, 2016, p. 25). Dessa forma, o testemunho como modalidade da memória assume uma posição não neutra diante do outro social. Acolher o testemunho, ainda que este se apresente delirante, possibilita um tratamento ao trauma, na medida em que um de seus caminhos é integrar "a vivência do trauma no mundo, dar ao trauma subjetivo um lugar" (Vieira, 2008, p. 512). Ainda em relação ao tratamento do trauma, a ficção é um dispositivo central, pois concede um lugar ao sujeito na situação em que ele é excluído. Com Lacan (1953-1954/1983, p. 22) podemos afirmar que "o fato de que o sujeito revive os eventos formadores de sua existência não é, em si mesmo, tão importante quanto o que disso ele reconstrói. Trata-se menos de lembrar a história do que de reescrevê-la". Assumir a pena da escrita do testemunho reconstruindo as veredas da vida possibilita mover a macabra pedra do silêncio, liberando o acesso a outros caminhos, ainda que não seja possível de todo removê-la.

 

Conclusão

Através do livro O futuro dura muito tempo Althusser testemunha a sua história fraturada e desafia a impronúncia. Ele faz da sua escrita um estandarte que marca a sua posição de sujeito e questiona seu lugar de louco diante do Direito, da Psiquiatria e da sociedade que o fizeram calar. Ele confia a sua escrita ao público para que possa "entrar definitivamente no anonimato, não mais da pedra sepulcral da impronúncia, mas da publicação de tudo o que se pode saber sobre mim" (Althusser, 1992, p. 188). Em sua escrita alucinada ele visita a história dos pais e aquilo que considerou essencial em sua constituição. Ele rememora, por um longo e sinuoso caminho, situações da infância, da guerra, da Escola Normal Superior, do Partido Comunista, do encontro com a psicanálise, dos encontros amorosos até chegar à morte de Hélène, para a qual busca uma resposta. Um retorno principalmente para si, mas não somente, pois ele escreve para o outro que lhe vetou a voz. Sua narrativa toma a forma de um diálogo com o outro que, se não imaginado, é ao menos desejado.

E assim o seu relato nos convida a também testemunhar do silêncio imposto e de uma vida marcada por um ato. Por fim, nos colocamos também como testemunhas daquilo que foi possível a Althusser costurar da sua história. Reintegrar o seu testemunho à cultura é uma possibilidade de reintegrá-lo à condição de cidadão, é dar-lhe um lugar no coletivo humano.

Testemunhamos, portanto, tal como nos propõe Gagnebin (2006), não indo embora diante da narrativa insuportável do outro e aceitando que as suas palavras levem adiante a sua própria história. Participamos, portanto, da transmissão dessa história, contribuindo para que o silêncio não sobrevenha novamente sobre essa experiência singular. Afirmamos, assim, a validade de seu testemunho rasurado. Afinal, passar o testemunho adiante é também um dever político e ético.

 

 

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Artigo recebido em: 01/08/2017
Aprovado para publicação em: 05/12/2017

Endereço para correspondência
Keilah Freitas Gerber
E-mail: keilahgerber@gmail.com

 

 

*Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas.

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