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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Elementos para repensar a sublimação: pulsão de morte e plasticidade psíquica

 

Elements to rethink the sublimation: death drive and psychic plasticity

 

Elementos para repensar la sublimación: pulsión de muerte y plasticidad psíquica

 

 

Alexandra Arnold RodriguesI*; Jô GondarII**

ICentro Universitário Curitiba - Brasil
IIUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe uma análise crítica do conceito psicanalítico de sublimação, explorando trilhas que permitam alçar novas perspectivas para sua compreensão. A partir do texto "O Eu e o Isso" de 1923, sob o viés da segunda tópica, identificou-se a relação entre a noção de Pulsão de Morte e o conceito de sublimação. Isso permite conceber a sublimação como um processo desorganizador do circuito narcísico-pulsional do sujeito que, ao contrário de conduzir imediatamente a recursos defensivos e à fixação psicopatológica, leva a uma experiência de desterritorialização subjetiva. Por esta análise, a sublimação diz muito sobre a plasticidade psíquica, sobre a relação dos sujeitos com a diferença e o novo suscitados pela experiência estética, na contramão da ideia de uma "purificação pulsional" frente ao sexual, conforme vislumbrado por Freud na esteira da primeira tópica.

Palavras-chave: Sublimação, plasticidade psíquica, pulsão de morte.


ABSTRACT

This paper proposes a critical analysis of the psychoanalytical concept of sublimation, exploring trails that allow raising new perspectives for your understanding. From the text "O Eu e o Isso" of 1923, under the bias of the second topical, identified the close relationship between the notion of Death Drive and the concept of sublimation. This allows conceiving the sublimation as a disorganizing process of the narcissist-drive circuit of the subject that, as opposed to immediately leading to defensive resources and psychopathological fixation, leads to an experience of subjective deterritorialization. By this analysis, the sublimation says much about the psychic plasticity, about the relation of the subjects with the difference and the new one raised by the aesthetic experience, in opposition to the idea of a 'drive purification' versus the sexual, as Freud envisions in the wake of first topical.

Keywords: Sublimation, psychic plasticity, death drive.


RESUMEN

El trabajo propone un análisis crítico del concepto psicoanalítico de sublimación, explorando sendas que permitan alzar nuevas perspectivas para su comprensión. A partir del texto "El yo y el eso" de 1923, bajo el sesgo de la segunda tópica, se identificó la relación entre la noción de Pulsión de Muerte y el concepto de sublimación. Esto permite concebir la sublimación como un proceso desorganizador del circuito narcisito-pulsional del sujeto que, a diferencia de conducir inmediatamente a recursos defensivos y la fijación psicopatológica, lleva a una experiencia de desterritorialización subjetiva. Por este análisis, la sublimación dice mucho sobre la plasticidad psíquica, sobre la relación de los sujetos con la diferencia y el "nuevo" suscitados por la experiencia estética, en contra de la idea de una "purificación pulsional" frente al sexual, conforme vislumbrado por Freud en la base de la primera tópica.

Palabras clave: Sublimación, plasticidad psíquica, la pulsión de muerte.


 

 

Introdução

Coisa alguma conserva sempre a mesma aparência, e a natureza
renovadora encontra outras formas nas formas das coisas. Nada
morre, acreditai-me, no vasto mundo, mas tudo assume aspectos
novos e variados. O que se chama nascimento é apenas o começo
de um estado diferente do estado anterior, e a morte é o fim de tal
estado... acredito que coisa alguma permanece muito
tempo com o mesmo aspecto.
Ovídio

A metapsicologia freudiana é densa. Guarda contradições e se sustenta em reformulações. Jean Laplanche (1989, p. 13) a vê como uma construção diacrônica: a metapsicologia "permite certas colocações em perspectiva, convida a clivagens e a agrupamentos, exige até que façamos opções em relação a noções aparentemente ambíguas e que se tornaram, em todo caso, englobantes e abrangentes demais". Essa polifonia de sentidos recai sobre vários conceitos da teoria freudiana; dela resultam inúmeros desmembramentos rumo a pontos de vista conflituosos. A sublimação se apresenta como um desses conceitos nebulosos dentro da psicanálise, mas que diz muito sobre a possibilidade de o sujeito se reorganizar frente ao seu desejo e, dir-se-ia ainda, frente a um cenário traumático.

O conceito de sublimação, tal qual elaborado e apresentado por Freud ao longo de sua produção teórica, permite-nos desatar nodulações para produzir novas apreensões do conceito. Como pontua Freud:

É importante estarmos preparados para abandonar um caminho que perseguimos por algum tempo, se este afinal não mais se mostrar adequado. Somente os crédulos, os que exigem da ciência um substituto para o catecismo abandonado, repreenderão o pesquisador por este desenvolver, ou mesmo reformular, seus pontos de vista (Freud, 1920/2006, p. 182).

O objetivo deste trabalho segue essa trilha. Partimos da ideia de que a sublimação tem no conceito de pulsão o seu ponto nodal, já que a primeira é um dos destinos da segunda. Por isso, a sublimação será assumida como um processo psíquico que culmina em uma construção, sendo esta construção a expressão de um campo de forças e de transformação no qual a dimensão econômica sobressai à tópica e à dinâmica psíquica. Sustentamos também certa ruptura com o olhar historiográfico e psicopatológico que tradicionalmente é lançado sobre a relação do artista com sua criação (ou bem sobre o espectador com a obra) para permitir uma análise metapsicológica e conceitual (com foco na perspectiva econômica) em detrimento de uma perspectiva moralizante, calcada nos valores já estabelecidos de uma cultura.

 

Sublimação: um conceito sobre (ou em) transformação

Podemos dizer de início que Freud (1923/2007), com as mudanças na segunda tópica de sua metapsicologia, deixa implícita a noção de transformação como aspecto inerente ao conceito de sublimação. Contudo, mais do que isso, a própria sublimação aparece como um conceito em transformação, sendo repensado até os dias de hoje. Ainda que toda sublimação invoque a força criativa do homem, podemos deduzir, pela sistematização que proporemos aqui, que nem toda criação humana pode ser considerada fruto de sublimação.

Para ampliar e aprofundar essa reflexão inicial, perguntamos: afinal, o que pode dizer a psicanálise a respeito dos processos artísticos e criativos? Sigmund Freud recorreu ao conceito de sublimação de forma esporádica ao longo de sua densa produção teórica e não se permitiu sistematizar de forma concisa os mecanismos metapsicológicos em jogo no processo sublimatório. Sabe-se que, em 1915, Freud iniciou a produção de um de seus projetos - um "tratado de metapsicologia" -, que incluía um capítulo sobre o conceito de sublimação (Laplanche, 1989). Contudo, esse e outros textos do conjunto foram destruídos ou perdidos, e suas ideias a respeito do conceito se reduziram a poucas menções feitas ao longo de suas outras obras. Independentemente disso, Freud não abriu mão do conceito e, em 1930, ainda expressava a esperança de um dia entrever os mecanismos em jogo na sublimação:

Satisfações tais como alegria do artista ao criar, em dar corpo aos produtos de sua fantasia, ou do pesquisador na solução de problemas e na descoberta da verdade possuem uma qualidade especial que um dia com certeza seremos capazes de caracterizar metapsicologicamente (Freud, 1930/2010, p. 69).

Alguns eixos conceituais foram traçados por Freud e outros psicanalistas que aceitaram o desafio. Entre esses eixos, aqueles diretamente ligados à gênese do conceito foram marcados pelas questões relacionadas à primeira tópica do aparelho psíquico. Já com o desenvolvimento posterior da teoria freudiana e o vislumbre da segunda tópica, estruturam-se novos eixos que vêm viabilizando (des)construções e novidades acerca da noção de sublimação (ainda que não postuladas diretamente por Freud). Frente aos limites da produção teórica de Freud no que tange à sublimação - conceito este embebido na perspectiva da primeira tópica -, desenvolvimentos e análises a respeito do conceito surgiram em diversas áreas do conhecimento. Muitas dessas análises, por vezes, reafirmaram a concepção freudiana - com suas lacunas e comprometimento com uma concepção tradicionalista de arte; outras vieram com a proposta (ou até aposta) de recriar o conceito, problematizando dois dos suportes mais precários, mas também centrais do termo, a saber:

Origina-se da força da pulsão sexual, mas conduz a uma meta não sexual. Seria, portanto, um desvio de meta (consequentemente, também de objeto), uma dessexualização da pulsão, nem satisfeita direta e sexualmente, e nem recalcada totalmente.

A satisfação da pulsão se daria em atividades culturalmente reconhecidas, com objetos socialmente elevados e valorados.

Se assumidas como pressupostos do processo criativo, ambas as caracterizações podem instigar acirrados debates sobre o que é "arte" e o que é "ser artista". Uma obra que envolva diretamente a dimensão sensória-corporal, uma satisfação erógena-sexual, tanto em sua produção como em sua fruição, deveria ser considerada arte ou fruto de sublimação? Um artista que tem "alta capacidade" sublimatória escaparia da formação de sintomas, já que evitaria o recalque? O que dizer então de uma obra que rompa com os cânones de uma cultura ou de um tempo, chocando e sendo negada enquanto arte pela sociedade em questão? A arte de vanguarda não seria uma produção artístico-criativa por não ser reconhecida ou aceita socialmente?

Sendo assim, pode-se ponderar, corroborando Kupermann (2003, p. 71), que tal perspectiva aloca a sublimação como

a passagem de uma energia sexual egoísta para uma energia dessexualizada altruísta, vinculado a um bem comum, cuja mola mestra, é preciso reconhecer, seria menos a pulsão e libido do que a moralidade [...] a sublimação parece servir exclusivamente para a manutenção da ordem civilizatória e do status quo dominante.

Assim, lidaríamos com um conceito muito mais do campo valorativo-moral do que com um construto teórico capaz de compreender o processo criativo no campo da metapsicologia. Segundo Kaufmann (1996), as origens do termo sublimação já o predestinam a uma transposição para o registro moral, pois por um lado, etimologicamente, o termo Sublimis remete ao que se eleva e se sustenta no ar - ou ainda Sublimitas, como nobreza, grandeza (Saraiva, 2006); por outro lado, a mesma noção indica na alquimia, bem como na química,

certo tipo de mutação rápida e admirável, como a passagem do estado sólido para o estado gasoso sem fase líquida intermediária. A particularidade do corpo sublimado é conservar intactas as suas propriedades, a tal ponto que a operação se manifesta de início como um procedimento de purificação, destinado a liberar o corpo de suas partes heterogêneas (Kaufmann, 1996, p. 494).

Segundo Mijolla-Mellor (2011, p. 41), haveria necessidade de se "ter coração puro para conseguir a transformação alquímica, pelo menos era o que se acreditava, o que conota também moralmente essa noção [de sublimação]". Para Moore e Fine (1992, p. 200), trata-se também de uma "metáfora poética do sublime, em oposição ao ridículo ou vil".

Essas ideias de purificação da substância original, da produção de algo elevado e nobre, de algo que não produz "restos" (no caso, líquidos), extravasa o âmbito etimológico e ganha o imaginário cultural, fornecendo uma aura quase mágica ao conceito. Essa "aura" foi reiterada por Freud, em 1905, na obra "Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade" e se aprofundou com a falta de análise conceitual sistemática nas obras seguintes, a ponto de Laplanche (1989) considerar o termo sublimação antes um índice de questionamento do que um conteúdo capaz de ser apreendido em um conceito.

Para problematizar o exposto, seguimos com a provocação filosófica de Theodor W. Adorno que, no aforisma 136 de sua obra Mínima Moralía, apresenta um questionamento intenso à concepção clássica de sublimação elaborada por Freud:

os artistas não sublimam. Crer que eles não satisfazem nem reprimem seus desejos, mas transformam-nos em realizações socialmente desejáveis, suas obras, é uma ilusão psicanalítica; aliás, nos dias de hoje, obras de arte legítimas são, sem exceção, socialmente indesejadas. Antes, manifestam os artistas instintos violentos, de tipo neurótico, que eclodem livremente e, ao mesmo tempo, colidem com a realidade (Adorno, 1951/1993, p. 186).

Para Adorno, o próprio artista veria nas concepções estéticas do "elevado", do "bom gosto", etc., "uma formação reativa inferior contra a inclinação ao que é inferior" (Adorno, 1951/1993, p. 186), ou seja, contra o sexual. Nesse caso, a sublimação, como Freud a concebe, estenderia fortes raízes sobre o campo das defesas psíquicas e sobre o campo valorativo-moral. Como pontua Adorno, a ideia de que os artistas, "privilegiados filhos da renúncia", possam ser indiferentes e até recusar um bom estilo de vida e ambientes bem cuidados, tendo até interesse pelo "que é grosseiro, ridículo, indecente", não se encaixaria na noção de sublimação elaborada por Freud até então (Adorno, 1951/1993, p. 187).

Esses problemas levantados pelo conceito de sublimação podem ser analisados num plano metapsicológico. Sob a perspectiva da primeira tópica, a sublimação aparece como uma defesa psíquica decorrente dos possíveis desenlaces "anormais" da disposição energética do psiquismo, ao lado do recalcamento e da formação reativa (Freud, 1905/2007). A consequência dessa compreensão da sublimação é tomá-la como uma função do Eu - a serviço das pulsões do Eu -, ou seja, fruto da autonomia das funções de autoconservação em detrimento da sexualidade, conforme pressupõe a primeira teoria pulsional. A partir disso é que a sublimação passa a aparecer como uma forma especial de defesa, culminando em definições tais como:

[a sublimação resulta em] comportamentos que outrora tiveram metas sexuais ou agressivas e a seguir se alteraram, de maneira que seus objetivos não são explicitamente sexuais nem explicitamente agressivos, mas socialmente apropriadas (se não úteis), conscientemente satisfatórios, e adaptativos e flexíveis (antes que compulsivos) (Moore, & Fine, 1992, p. 201).

Disso surgem "impasses da dessexualização pulsional" embutidos na concepção da sublimação assentada na primeira tópica, o que nos conduz à compreensão de que, por mais que se pretenda, pela via da sublimação, uma espécie de "imunidade" ao sexual, ela imperativamente se sustenta no sexual1 (Castiel, 2007).

Sobre esse impasse, reafirmando a ambiguidade e complexidade do conceito de sublimação em Freud, é possível agora apontar uma contraface embutida no próprio termo. Sua etimologia, para além da ideia de elevação e purificação, também guarda a derivação do adjetivo Limus ou Limis, que remete para algo "oblíquo [em sentido figurado, algo dúbio], que olha de lado ou de través, que sobe em linha oblíqua ou em declive" (Kaufmann, 1996, p. 494) e Limen, que traz a ideia de limite, de transposição de um limiar e até de transgressão, ainda conforme o autor. Em outro dicionário de psicanálise, a mesma noção aparece realocando o sentido do termo sublimação, sendo esse considerado na filosofia estética aquilo que "coloca o indivíduo fora de seus limites e o eleva acima [ou para além] de si mesmo" (Mijolla-Mellor, 2005, p. 1803). Portanto, o termo também sugere trans-formações ou trans-figurações ("trans" como prefixo para "através de, para além de"), indicando mudança de caráter ou o extravasar da forma, da figura (Cunha, 1986). Nesse caso, a noção não estaria mais atrelada a uma purificação, mas a uma possível subversão ou ruptura com o estabelecido; seria, em última instância, uma forma de transformar o pulsional a partir de mudanças no funcionamento psíquico, conforme interpreta Castiel (2007).

Assim, a contraface do conceito de sublimação postula a transformação como uma possibilidade de compreensão que o próprio Freud viabilizou a partir da formulação da sua segunda tópica, via "segunda teoria pulsional". Vislumbrada a partir de 1914, em "Introdução ao narcisismo", a nova proposta teórica do campo pulsional permite lançar luz sobre concepções alternativas do processo sublimatório. Ao reconhecer que as pulsões do Eu são de natureza libidinal e tomam o próprio Eu como seu objeto, em forma de pulsões narcísicas de autopreservação, Freud poderá teorizar um novo par antitético para compreender a economia psíquica - as pulsões de vida e de morte, princípios conjuntivos e disjuntivos, respectivamente2.

Essa possibilidade de transformação se torna mais forte em "O Eu e o Isso". A partir da obra de 1923, Freud possibilita a muitos psicanalistas alocar a sublimação sob o mesmo pilar da simbolização, como fruto da transformação do pulsional (da libido objetal à libido narcísica) rumo a uma meta dessexualizada. Pautados nisso, alguns autores defendem concepções análogas: para Mijolla-Mellor (2010, 2011), a sublimação é um trabalho de luto e de elaboração frente à perda das relações de objeto (que garantiam uma referência narcísica e um sentimento identitário) e frente ao desamparo de lidar com a interrogação da própria existência (desmoronamento do Eu e perda do solo da evidência de si). Segundo Castiel (2007), apesar de Freud colocar a sublimação como uma mudança de meta, ele focaria muito mais em uma mudança no tipo de descarga que, no caso, não seria mais direta, e sim diferente da original, mas ainda mobilizada pela sexualidade; para ela, Freud também estaria privilegiando uma mudança de objeto da pulsão, não de forma a evitar o objeto original, e sim de maneira a representá-lo (portanto, simbolizá-lo) pelo novo objeto então produzido pelo sujeito. Wine (1992, p. 16) entende a sublimação como o próprio processo constitutivo do sujeito na "sublimação: o ser-corpo se faz saber-psíquico". Para a autora, a sublimação pressupõe a formação de ligações e a inserção na ordem simbólica, mesmo que a considere sempre aberta, já que, partilhando das ideias de Lacan, Wine advoga que o sujeito é sempre intervalar, escapando sempre à simbolização.

É válido citar ainda a perspectiva de Laplanche (1989), que converge com uma leitura focada na dimensão simbólica. Para ele, a sublimação resulta de certa perturbação traumática de ordem sexual. Laplanche insere a pulsão de morte, disruptiva, no campo da sexualidade, o que daria lugar a uma neocriação do pulsional. Uma tal neocriação sugere que o pulsional poderia ser simbolizado diferentemente ou ligado de uma forma singular.

Vale enfatizar esse aspecto apontado por Laplanche: a presença da pulsão de morte no processo sublimatório. Ainda que não se pretenda aqui seguir uma linha teórica laplancheana, a articulação entre sublimação e pulsão de morte parece uma questão importante a ser desenvolvida.

Conforme pontua Garcia-Rosa (1990), o aspecto disruptivo da pulsão de morte aparece na origem do psiquismo como fragmentação, dispersão, massa de intensidades que, enlaçada pela pulsão de vida, sob o julgo do princípio de prazer, instaura os circuitos pulsionais. É a combinação entre esses dois aspectos pulsionais que nos permite extrair a categoria de diferença. Esse ponto é importante, permitindo pensar que a constituição subjetiva se faz também para além do princípio do prazer, já que o princípio do prazer, tomado isoladamente, tenderia a ignorar a diferença pela ânsia de integração ou ligação (Rosa, 1990). Por isso, a formação do circuito pulsional, regido pelo princípio de prazer, parte da premência da identidade no território de Eros (Hornstein, 1990): prevalecem as ligações das representações e simbolizações que apaziguam o sujeito pelo sentimento de semelhança consigo mesmo e a sustentação de certa egossintonia. O que, de fato, por si só, não cria o novo nem instaura novidades no circuito. Desse modo, para a sublimação ocorrer será preciso pensar em algo anterior à simbolização, o que equivale a dizer que sublimação não é ipsis litteris simbolização e que a mesma pode estar a favor de uma ruptura do circuito pulsional para, somente depois, recriar e enriquecer o circuito com a assimilação da diferença disruptiva.

Dito isso, compreendemos a necessidade de conceber não um processo sublimatório, mas variações sublimatórias, ou seja, as nuances (gradações) envolvidas nesse processo. Supõe-se, assim, a necessidade de viabilizar uma hipótese que possa tensionar a ideia de sublimação afirmada até aqui pelos autores listados: tal ideia assimila a simbolização das "perdas objetais" da libido sexual à sublimação das pulsões, como se fosse um redirecionamento narcísico da libido que passa a ficar disponível para o Eu:

Freud descreve duas operações paralelas: a transformação da libido objetal em narcísica e a sublimação. A libido narcísica [em suspensão] é aquela que será sublimada, já que, ao perder sua relação com os objetos, fica à disposição do ego. O processo sublimatório, por estar dessa forma vinculado às identificações [e aos ideais], é produto de uma história complexa e não unívoca (Hornstein, 1990, p. 17).

Para sustentar nossa hipótese, procuraremos resgatar a participação da pulsão de morte no contexto sublimatório. Apesar de Freud afirmar que a energia sublimada corresponde ao desígnio de Eros - função de atar e unir, "a serviço de estabelecer a unidade que é a característica do Eu, ou melhor, pela qual o Eu anseia" (1923/2007, p. 54), ou seja, a serviço da formação do circuito pulsional, não se pode desconsiderar o papel da pulsão de morte nesse contexto. Desconsiderá-la é evitar o desafio de fornecer elementos que permitam pensar como se dá a abertura para o novo e para a diferença, para a recriação pelo pulsional, a partir do aspecto disruptivo presente no processo sublimatório. Sobre isso, Freud questiona-se: "poderíamos nos perguntar se esta transformação [da libido objetal em libido narcísica] pode levar a outros destinos pulsionais que não sejam a sublimação, por exemplo, a uma desfusão das diferentes pulsões até então fusionadas" (Freud, 1923/2007, p. 41). De nossa parte, questionamos se a desfusão pulsional, ao invés de ser um destino alternativo ao da sublimação, não seria, na verdade, um processo inerente à sublimação. Nesse sentido, é possível e valioso admitir construções teóricas que deem vazão do denso parágrafo freudiano de 1923, em "O Eu e o Isso":

o Supra-Eu se originou, conforme já sabemos, de uma identificação com o modelo do pai. Uma identificação deste tipo sempre se caracteriza por uma dessexualização ou mesmo uma sublimação. O que parece então estar em jogo aqui é que, em paralelo à conversão, também ocorre uma desfusão das pulsões que antes estavam mescladas. Na medida em que, depois de uma sublimação, o componente erótico já não tem mais a força de enlaçar e capturar toda a destrutividade a ele acrescentada, esta última se libera na forma de tendência agressiva e destrutiva (Freud, 1923/2007, p. 62).

Podemos perceber que o que Freud chama de libido dessexualizada não equivale à pulsão de morte. Trata-se, na verdade, de uma libido não mais ligada ao objeto, mas potencialmente direcionada a um novo objeto a partir de um represamento ou suspensão no Eu. Portanto, trata-se de uma libido narcísica, deslocável e plástica, passível de novas ligações. Contudo, essa dessexualização da libido pode ser paralela à desfusão pulsional, ou ainda "essa energia [deslocável e não diferenciada] poderia, então, somar-se tanto à moção pulsional erótica quanto à destrutiva" (Freud, 1923/2007, p. 53), conforme pontua o próprio Freud. Desinvestir objetos que antes fixavam a libido, por vezes até de forma estrutural, corresponde a uma quebra no circuito pulsional, sendo assim uma ação disruptiva - o que alimenta certa desfusão e prevalência da pulsão de morte.

A partir dessas colocações, questionamos: qual o papel da pulsão de morte na sublimação? Seria possível conceber a produção artística como resultado de uma estratégia alternativa de reorganização psíquica, para além da simbolização?

 

Sobre a plasticidade psíquica enquanto potência estética e sublimatória

Uma das controversas acepções de sublimação no campo psicanalítico é sua equivalência à noção de saúde mental pela via da simbolização e da decorrente "estabilidade" do pulsional. A hipótese aqui apresentada vai na contramão dessa acepção: defendemos que é possível pensar na sublimação em uma anterioridade ao registro da representação e, além disso, que a sublimação se oferece menos como um "antídoto", um remédio ou cura, e mais como uma expressão estética do sujeito, uma anunciação do devir de outras possibilidades de existência, o que inclusive se dá, muitas vezes, pela via da desestabilização e desequilíbrio, e concomitante aos conflitos e às formações sintomáticas. Pensamos que algo da ordem do irrepresentável e disruptível, escapando ao circuito pulsional, eclodiria no processo sublimatório. Isso é o que mobiliza e comove afetivamente, relançando os enigmas e a incerteza como motores do trabalho da pulsão (Marucco, 2005). Para explorar essa dimensão, recorremos à noção de plasticidade psíquica não no que tange à adaptação e harmonização pela mera capacidade de resistir (submetendo-se ao jogo de forças), mas por prestar "resistência a", ou seja, por viabilizar o confronto com o estabelecido, o pressuposto - o que implica considerar os (des)enlaces da ordem (inclusive simbólica)3.

Outeiral (2011) recorda Nietzsche em dois importantes aforismos que valorizam a quebra da ordem e incitam a pensar na inserção da diferença no campo da criação: " Não é a duvida, e sim, a certeza que enlouquece " (Nietzsche, 1908/2008, p. 33) e "é necessário ter um caos em si para poder dar luz a uma estrela" (Nietzsche, 1883/2011, p. 27). Na sequência, o autor discorre a respeito das identificações que formam nossos circuitos pulsionais, afirmando que essas são de fato estruturantes. Contudo, a partir das próprias frases anunciadas pelo autor, pensamos que as dimensões desestruturantes também seriam fundamentais na constituição do sujeito, podendo conduzir ao novo sem ser preciso recorrer à noção de patologia, e sim à ideia de plasticidade psíquica: a desestruturação, a regressão, a dúvida e o caos imputam fendas no circuito pulsional do sujeito que permitem o emergir do novo e entronizam a diferença-estrangeiro.

Freud (1915/2004) assume que a fixação da pulsão ao objeto, ou sua estreita aderência ao objeto, é o que "põe fim à mobilidade da pulsão", o que ocorreria com frequência nos períodos iniciais do desenvolvimento da pulsão, no caso durante o desenvolvimento psicossexual da libido através da formação de sintomas. A esse respeito, Castiel (2007) afirma que o recalcamento difere da sublimação justamente porque a última não se encontra fixada em seus objetos originais; ela pressupõe uma plasticidade psíquica.

Sobre isso é possível observar que as bases identificatórias e o circuito pulsional organizado pelo Eu (ligações, fixações, recalcamentos), ao mesmo tempo que dão suporte estrutural ao sujeito, geralmente o fazem de forma defensiva e enrijecida, impedindo de acessar e desvelar a multiplicidade de dimensões da experiência, as múltiplas dimensões do Eu (Reis, 1997). Logo: "a noção de continuum é necessária para que não nos percamos numa dispersão caótica de instantes, mas a crença demasiada na fixidez da continuidade pode nos lançar na repetição de hábitos idênticos a si mesmos, que não fazem sentido e perdem a própria memória" (Reis, 1997, p. 151).

Como já pontuado, o narcisismo também tem um papel importante na organização e estruturação do sujeito, funcionando como um cimento que reúne componentes para dar uma identidade formal ao sujeito, de forma que a "identidade pode ser considerada como uma necessidade primordial, que se opõe à sensação de morte psíquica [...] mas a dúvida está sempre presente, e as certezas sempre têm o preço de certa mutilação das nossas potencialidades" (Hornstein, 1990, p. 74). Conforme pensa também Figueiredo (1999), é possível entender que o psiquismo sofre certa mortificação por conta da rigidificação e da síntese excessiva que as ligações narcísicas por vezes estabelecem em prol da estabilidade.

Seguindo essa linha, resgatamos o apontamento de Freud em 1915 de que o corpo só se unifica pela formação de sentido das experiências conduzindo à formação de cadeias ou redes associativas sustentadas pelo "aglomerado de pulsão-afeto-imagem enlaçados" (Freud, 1915/2004, p. 131). Depreende-se disso que a formação e estabilidade do circuito pulsional se efetivam quando somos capazes de constituir certa permanência de sentidos, ligações, escorando um senso de Eu. Entretanto, conforme assume Reis (2004), o senso de Eu é a experiência de equilíbrio, mas que se forma por uma rede de dinâmicas (re)constituições, bem como de dissoluções e corrosões do Eu. Ou seja, deve-se conceber o sujeito não pela primazia da identidade, mas pela coexistência de uma intensa plasticidade pulsional e afetiva que o psiquismo comporta, incidindo na diferença continuada de si próprio.

Em 1914, Freud assinala que as pulsões sexuais "são numerosas, provêm de múltiplas fontes orgânicas, exercem de início sua atividade independentes umas das outras e só bem mais tarde são amalgamadas em uma síntese mais ou menos completa" (Freud, 1914/2004, p. 151). Tal enunciado implica a ideia de que a constituição do Eu não se apoia em uma síntese final ou última, encerrando o sujeito em uma ordem rígida. As primeiras moções inscritas no inconsciente, dispersas e isoladas, são o suporte da constituição do Eu que se organiza continuadamente e confere ordenação aos representantes pulsionais dispersos. Contudo, a pulsão não se inscreve por completo, algo dela continua exercendo pressão, ficando em aberto, de forma que o Eu não se cristaliza em uma organização imutável e fechada, é capaz de se abrir ao novo. Essa capacidade de abrir-se ao novo, suporte da plasticidade psíquica e pulsional, será considerada por nós como o dispositivo que viabiliza a sublimação.

Nesse sentido, Hanns (2004, p. 144) pontua que a sublimação aparece como um destino possível para o pulsional quando oferece representações e afetos menos investidos e mais deslocáveis, ou seja, quando o pulsional está menos comprometido com ligações de um circuito pulsional que arraiga o sujeito a uma fixação identitária. Os sujeitos mais sensíveis, moldáveis ou abertos ao estrangeiro e à diferença, seriam mais abertos também à sublimação. Como uma obra aberta, que não se fecha interpretativamente ou exclui possibilidades de amarrações alternativas ou menos austeras, o sujeito que sublima se abre e acolhe esteticamente o mundo, de forma que, com um abalo identitário frente ao estrangeiro e disruptivo, não se defende sólida e imediatamente, encolhendo-se ou afastando o diferente, pois "é quando a identidade se fecha sobre si mesma numa crença em sua consistência que nos tornamos mais vulneráveis às intempéries" (Reis, 1997, p. 157).

A esse respeito, Reis (1997) apresenta uma analogia com a mítica do salgueiro e do carvalho. Enquanto o carvalho, de grande porte e imponente, aparenta estabilidade e força, o salgueiro esguio, de ramos frágeis e leves, apresenta-se aos nossos olhos como vulnerável. Contudo, frente a uma tempestade, o primeiro tomba enquanto o segundo se esgueira e sustenta-se pela sua flexibilidade (Reis, 1997). Essa analogia não aponta meramente para a garantia de integridade de sujeitos capazes de se adaptarem frente à pressão. A flexibilidade do salgueiro equivale ao potencial expansivo do Eu para acolher a multiplicidade e a diferença. É uma analogia importante para pensar o que torna o Eu sensível aos excessos e maleável nas estratégias de absorção ou tramitação da ferocidade das intensidades, inclusive por vias sublimatórias. Assim, também a ilusão de invulnerabilidade (conforme representada pelo carvalho) é o caminho para as mais abruptas quebras narcísicas, que relançam o sujeito na condição de desamparo e na experiência de aniquilação do Eu.

Pensamos que a plasticidade psíquica pode ser encarada como potência estética, a partir da qual se constrói um processo sublimatório que permite não apenas a criação das obras de arte, mas também as experiências criativas da vida cotidiana. Em outros termos: a flexibilidade e a criatividade do psiquismo e de seus circuitos se encontram indissociavelmente ligadas à possibilidade de acessar a dimensão estética e sensível que nos constitui cotidianamente, mesmo que de forma violenta. Essa dimensão estética reanima o território estrangeiro interno, sempre recriado e alargado pela realidade externa. Como pontua Reis acerca da plasticidade do salgueiro:

cada vez que nos recusamos a viver as tempestades, ou as pequenas fissuras de nosso cotidiano, empurramos para o lado inúmeras percepções e sensações que poderiam servir de matéria-prima em nosso viver. Acabamos nos endurecendo e correndo o risco de nos sentirmos quebrados, com as raízes arrancadas pela violência dos acontecimentos (Reis, 1997, p. 157-158).

Dessa forma, falar em plasticidade psíquica remete à abundância de experiências junto ao mundo no qual o sujeito está suscetível, sendo capaz de guardar consigo ou ser afetado por uma intensa gama de tonalidades estéticas, que impulsionam o disruptivo. Será essa potência estética o fomento das intensidades irrepresentáveis que ganharão forma na produção artística. Nesse ponto, pensamos menos no conteúdo do que na forma, ou ainda, menos na simbolização do que na sensorialidade. Trata-se de pensar a corporeidade como dispositivo que ativará as transformações sublimatórias, como exploramos a seguir.

 

Pulsão de morte e uma "outra" sublimação: (des)territorialização subjetiva como "causa do devir"

Uma das hipóteses que lançamos aqui é de que a sublimação só ocorre se, em algum momento, a pulsão de morte se fizer presente e destacar-se. Supomos, assim, a participação de algum grau de desfusão pulsional no processo sublimatório. Isso diferenciaria a sublimação da elaboração simbólica: a simbolização-ligação pode ser, sim, consequência do processo sublimatório, mas, por si só, a sublimação apresentaria uma dimensão não convergente com a formação de representação, já que produziria uma "regressão" a uma dimensão mais arcaica, sensório-corporal, experimentada como elaboração sensível, no contato com o disruptivo da pulsão de morte.

Para estruturar uma argumentação que suporte essa hipótese, recorremos a uma determinada concepção psicanalítica sobre o processo sublimatório fornecida a partir da segunda tópica. Trata-se de localizar a sublimação, economicamente, como "ruptura de fixações eróticas" e como uma "experiência de desterritorialização", conforme sustenta Joel Birman (2002).

Vimos que após a segunda tópica, com a formulação do conceito de pulsão de morte, Freud teria dado margens para compreender a sublimação como uma exigência de trabalho criativo posto pelo quantum de energia livre, produzida pela dessexualização (Kupermann, 2003). A partir desse indício em Freud, pode-se propor nova possibilidade interpretativa ao mecanismo da sublimação; com a dessexualização e a potencial desfusão pulsional, vislumbra-se a presentificação da pulsão de morte ou destrutiva no processo sublimatório, ainda que em última instância a sublimação esteja no domínio da pulsão de vida. A pulsão de morte - força motriz e desterritorializante, intensidade não ligada à representação - estaria, portanto, na origem de todo o processo criativo. A pulsão de morte ou impulso para desfazer unidades (ou laços, ligações, concepções, etc.) constituídas aparece como destruição, que também será vista como fonte do novo: para criar novas formas, será preciso destruir as antigas. A pulsão de destruição torna possível a criação.

Ainda no mesmo viés, Souza e Kupermann (2011) assumem que, em 1923, em "O Eu e o Isso", instaura-se o paradoxo e a ambivalência sobre a figura da sublimação. Se por um lado ela remete a pulsão para um destino criativo, por outro aparece como liberação de forças destrutivas próprias do domínio da pulsão de morte. Para compreender esse ponto, recorremos a Birman (2002), que afirma que, se a formação de fixações eróticas originais do circuito libidinal é uma resposta defensiva contra o movimento primário, imperativo e voraz da pulsão de morte - permitindo ligações e a constituição do psiquismo -, a sublimação se apresentaria como ruptura, desligamento desses investimentos libidinais que formavam o tecido de representações que sustentavam o Eu. Sob tal ruptura se viabilizam novas ligações e permite-se criar outros objetos possíveis de satisfação, renovando o erotismo, portanto "ressexualizando" (Birman, 2002). Por isso, tem-se na sublimação a liberação de forças destrutivas coexistindo com a ligação pulsional criadora.

Sendo assim, falar em sublimação exige conceber certa suscetibilidade do sujeito à pulsão de morte e o relançar do psiquismo ao estado de desamparo original, desterritorializando-o, para que novas ligações sejam possíveis (Birman, 2002). Tal processo se aproxima do não representado, da sensibilidade estrangeira e dionisíaca que habita os indivíduos e fomenta certo horror, mas também certo fascínio. Em outras palavras, o contato com a outridade desconhecida, a que a pulsão de morte instiga, habilita o sujeito a abrir espaço para outros campos representacionais e sensórios que não os anteriormente pré-fixados e estereotipados por uma rígida amarração narcísica e, consequentemente, defensiva.

Portanto, a arte, ao invés de reafirmar os "fins egoístas", as certezas egoicas do homem, pressupõe uma entrega e ruptura com as fixações e a ordem narcísica para promover uma desterritorialização subjetiva, abrindo espaço a novas ligações. Conforme pondera Reis (1997, p. 156),

os loucos, os poetas e às vezes os artistas parecem ter mantido em aberto a possibilidade de passar do continuum para o descontínuo, sair da ordem para o caos e fazerem seu testemunho. No caso dos loucos, ninguém presta muita atenção, pois nos incomoda demais sua explosão sensorial e seu sofrimento por não conseguirem reconstruir um mosaico desses cacos [enquanto o artista é capaz de recriar o mundo e a si diante do descontínuo e dos restos].

Logo, conforme a hipótese assumida aqui, antes de a sublimação remeter às ligações-simbolizações ou à constituição de estruturas e estabilidade narcísica, pressupõe como fundamento a pulsão de morte, a dissipação e ruptura de circuitos pulsionais, bem como a desestruturação e instabilidade, rumo à produção de um novo si e uma nova concepção de mundo. Pressupõe ainda que o sujeito "saia de si" e extravase os limites, a organização e a ordem que o contêm, mesmo que se trate de um processo ínfimo, menos intenso e desestruturante do que o processo constitucional-original do sujeito (ou mesmo menos intenso que os efeitos do traumático sob o psiquismo).

Sendo assim, concebe-se aqui a pulsão de morte como um princípio que rege cada novo começo. Se Freud o define como um esforço de retorno ao inorgânico ou a um estado anterior, pode pensar se tratar de um estado no qual tudo pode se criar, ou seja, a pulsão de morte como uma "vontade de destruição" que os sujeitos abrigam e que equivale à vontade de criação a partir do nada, vontade de recomeçar, conforme indica Garcia-Roza (1990), apoiado em Lacan.

O retorno ao inorgânico pode ser compreendido então como o retorno a um "vazio" em prol de um novo preenchimento ou o estabelecimento de processos regressivos rumo ao estado de dispersão para uma nova remodelação ou organização. Encarado como um processo de ruptura da ordem (inclusive simbólica), de ruptura com o estabelecido narcisicamente, a regressão ou bordejamento do vazio nunca é absoluto, algo sempre resta. Dos restos dispersos, encontros/acontecimentos novos se estruturaram, mesmo que não se trate da produção de um novo radical ou de uma diferença pura, pois algo da identidade e do mesmo, paradoxalmente, sustenta-se. Por esse motivo, é possível conceber a constituição do sujeito para além do determinismo psíquico tradicionalmente convocado na psicanálise, sem necessariamente recusá-la.

Disso se depreende que a pulsão de morte impede a cristalização das formas constituídas e a perenização das uniões mantidas por Eros, de forma conservadora. Essa recusa da permanência e a força renovadora indicam uma positividade da negatividade da pulsão de morte, pois se trata da negatividade como ação criadora: ao negar a natureza é que o homem a destrói e a transforma, produzindo o novo. Assim como é preciso negar, degradar, questionar a si mesmo e as próprias representações de mundo para romper com a ideia que se tem de si e se recriar, se transformar - permitir outras ligações, viabilizando o acesso à alteridade, à diferença.

Assim como o pensamento, a arte também tem suas regras reguladas pelo princípio de realidade, mas também pelas ficções do princípio do prazer (Birman, 2002). Como pontua Birman, para pensar ou mesmo para experimentar e produzir arte pressupõe-se uma subjetividade que tenha coragem de colocar em questão os seus signos de reconhecimento e de desconstruir as certezas narcísicas - certezas essas que levariam os homens a "repetições infinitas". Tanto o pensar como a arte propõem o "jogar com outros possíveis", transgredindo e reinventando enunciados sobre si e sobre o mundo, para que o "outro" como diferença possa acontecer (Birman, 2002). Por isso, a arte e a estética serão concebidas como enunciações da diferença, memória do devir, lançando possibilidades outras de enunciar a existência e a subjetividade.

Conclui-se assim que a (des)estruturação do Eu e o processo sublimatório se dão em coexistência com a "morte das unidades" ou, em outras palavras, com regressões que implicam dispersões, cisões e descentramentos que flexibilizam o circuito pulsional original. Assume-se também que a constituição do sujeito não se finda na infância, mas é (des)contínua, dá-se em um "devir", em um tornar-se, repleto de rupturas. Rupturas ou lacunas simbólicas que presentificam o potencial sublimatório. Assim, o processo de acesso à pulsão de morte e seus efeitos são recorrentes ao longo da vida, seja pela via traumática ou, quiçá em menor grau, por meio de experiências estéticas - que impliquem uma mobilização e (re)constituição do universo sensível e/ou intelectual.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 11/09/2017
Aprovado para publicação em: 05/12/2017

Endereço para correspondência
Alexandra Arnold Rodrigues
E-mail: aarnold.rodrigues@gmail.com
Jô Gondar
E-mail: jogondar@uol.com.br

 

 

*Doutora em Memória Social, docente e pesquisadora no Programa de Mestrado Profissional em Governança e Sustentabilidade (PPGS/ISAE) e no curso de graduação em Psicologia da FAE Centro Universitário (Curitiba-PR).
**Doutora em Psicologia, professora titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPMS/Unirio) e no Departamento de Ciências Sociais.
1Se por um lado Freud, em sua rica obra "O Eu e o Isso" (1923), deixou certos "fios sem amarrações", dando substrato para sustentar outros desenvolvimentos possíveis sobre o conceito de sublimação, conforme veremos adiante; por outro lado, tal obra deixa clara a necessidade de encontrar no aparelho psíquico desenvolvido pela psicanálise um espaço para o elevado, para os ideais culturais e "funções psíquicas superiores - situadas em pontos mais altos na nossa escala de valores" (Freud, 1923/2007, p. 39), em detrimento do que a moral vitoriana considerara baixeza da sexualidade. Disso decorrem os conceitos de Ideal de Eu e Supereu como diferenciações a partir do Eu que acolheriam e internalizariam as exigências culturais, gerando novos processos junto à realidade interna do sujeito, como a autocrítica e a consciência moral. A sublimação surge ao lado desses novos conceitos como tábuas de salvação às quais Freud se agarra, conceitos que são convocados como um piso mais elevado no edifício do psiquismo para defender a psicanálise contra as fortes críticas atreladas a um suposto imoralismo e pansexualismo.
2Ainda que tal par antitético receba certo paradoxo, conforme raciocínio de Figueiredo: "a sexualidade, a libido não milita apenas no partido das ligações, mas também joga no outro time, o dos desligamentos [...] nem Eros liga nem Tânatus desliga de forma tão inequívoca, ou seja, a dupla 'ligação-desligamento' nada tem de simples no pensamento psicanalítico" (1999, p. 37-38).
3Duplo e paradoxal suporte etimológico da palavra resistência: aquilo que resiste e suporta a pressão do meio, portanto, sob uma lógica adaptacionista e aquilo que combate, confronta, resiste à ordem imposta, sob uma perspectiva política.

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