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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Musicalidade e psicanálise

 

Musicality and psychoanalysis

 

Musicalité et psychanalyse

 

 

Bruno Gonçalves dos SantosI*; Gustavo Henrique DionísioI**

IUniversidade Estadual Paulista - Unesp Assis - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Seguindo a perspectiva de Freud e Lacan, este trabalho discorre teoricamente sobre a musicalidade e suas implicações na constituição psíquica do sujeito, considerando as peculiaridades que ocorrem na dinâmica de significantes sonoros. Segundo nossos desdobramentos, a musicalidade mantém em si a relação primordial do significante que não foraclui o Real, evidenciando um processo de encadeamento significante ainda anterior à produção de significação imaginária. Nesse sentido, a musicalidade é tomada como produção de relação significantes sonoros que mantêm em si a elementaridade do Real, demonstrando uma via de intervenção na clínica pela via da musicalidade para a produção de discurso sonoro, mesmo que sem significação, que dê vias ao sujeito de tratamento de seu gozo. Para fundamentar tal hipótese, discorremos sobre a Pulsão Invocante no que concerne à relação com o Outro primordial, e a voz na qualidade de objeto a, como fenômeno diverso do som.

Palavras-chave: Musicalidade, psicanálise e música, foraclusão, pulsão invocante, voz.


ABSTRACT

Following the perspective of Freud and Lacan, this work theoretically discusses the musicality and its implications in the psychic constitution of the subject, considering the peculiarities that occur in the dynamics of sound signifiers. According to our developments, musicality maintains in itself the primordial relation of the signifier in which there is no forclusion (Verwerfung) the Real, evidencing a process of significant chaining even before the production of imaginary signification. In this sense, musicality is taken as producing significant sonorous relation that maintains in itself the elementarity of the Real, demonstrating a way of intervention in the clinic by way of musicality for the production of sound discourse, even if without meaning, that gives ways to the subject of treatment of their enjoyment. In order to substantiate this hypothesis, we discuss the I nvocative Pulsion in relation to the primordial Other, and the voice as the object a, as a phenomenon other than sound.

Keywords: Musicality, psychoanalysis and music, forclusion, invocating pulse, voice.


RÉSUMÉ

À partir de la perspective de Freud et de Lacan, cet article veut discuter théoriquement sur la musicalité et ses implications à la constitution psychique du sujet, en considérant les particularités qui se produisent dans la dynamique des signifiants sonores. Selon nos développements, la musicalité maintient en soi la relation primordiale du signifiant qui n'inclut pas le Réel, mettant en évidence un processus de chaînage significatif avant la production de la signification imaginaire. En ce sens, la musicalité est considérée comme produisant des relations sonores significatives qui maintiennent en soi l'élémentarité du Réel, démontrant une manière d'intervenir dans la clinique par voie musicale pour la production de discours sonores, même si sans signification, qui donne au sujet un possible traitement de la juissance. Pour étayer cette hypothèse, nous discutons la pulsion invocante en ce qui concerne la relation avec l'Autre primordial, et la voix en tant qu'objet a, c'ést-à-dire, phénomène différent du son.

Mots-clés: Musicalité, psychanalyse et musique, forclusion, pulsion invoquant, voix.


 

 

Musicalidade e subjetivação

Sabemos que a musicalidade está em íntima ligação com a condição humana de linguagem, o que compreenderia desde a centelha da constituição psíquica à dinâmica complexa do enlaçamento social. Contudo, poucos são os psicanalistas que se debruçaram sobre a articulação dessas duas áreas; Freud, como se sabe, fez pouquíssimas citações (quatro, para sermos mais precisos) acerca da musicalidade ao longo de sua extensa obra, demonstrando a inexpressiva afinidade de suas investigações para com a experiência musical. Chegou até mesmo a apontar sua "dificuldade" com relação à música, sobretudo em função da ausência da palavra (quando é o caso) que poderia se interpor às emoções e percepções (Neto, & Gerber, 2007, p. 10).

Sua inclinação a tentar legitimar a psicanálise como ciência é o que possivelmente explica seu apreço especial pela literatura em detrimento da arte musical. Pela biografia escrita por Ernest Jones (1989) a seu respeito, ficamos sabendo que muito ocasionalmente Freud frequentava a ópera, preferindo no geral dedicar seu tempo de lazer à sua coleção de antiguidades.

Tenho observado que o assunto de uma obra de arte tem pra mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora, para o artista, o valor delas esteja, antes de tudo, nestas. [...] Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta (Freud, 1914/1974, p. 253).

Melane Klein, por exemplo, que chegou a escrever sobre literatura, cinema e teatro (em especial sobre a tragédia grega), tampouco chegou a apresentar algum escrito relacionado diretamente com a musicalidade em suas obras (Lopes, 2006). De sua parte, Lacan mencionou vez ou outra, ao longo de seu seminário, a questão da sonoridade e da dinâmica pulsional do ouvido entendido como orifício erógeno; ainda assim, acabara por se debruçar mais detidamente sobre outras modalidades artísticas, tais como o cinema, a literatura surrealista e a de James Joyce. De acordo com Lopes (2006),

A repulsa ou a indiferença dos principais nomes da Psicanálise em parte explica por que, apesar da enorme influência que a Psicanálise teve para a compreensão de todas as outras artes, assim como serviu de fundamento para novas propostas artísticas, como o surgimento do surrealismo, a música permaneceu-lhe um continente negro. Ao longo de cem anos da história da Psicanálise, contam-se nos dedos de uma mão os autores que se atreveram a tentar psicanalisar a música (Lopes, 2006, p. 74).

Apesar dessas poucas referências à musicalidade existentes no trabalho dos principais psicanalistas, não seria impossível verificar alguns pontos-chave da relação entre sonoridade e constituição do sujeito que por sua vez poderiam nos ajudar a pensar qual seria o estatuto da musicalidade segundo a psicanálise. Vejamos.

Em "O ego e o id" (1923/1990), Freud chega a traçar, mesmo que brevemente, certas implicações acústicas da constituição do ego, focando-se em particular nos sons das palavras. Apresenta nesse texto a figura do "receptor acústico" com a finalidade de demonstrar figurativamente como o eu se formaria como uma extensão do isso uma vez modificado diretamente pelo mundo externo e por intermédio do sistema Pcpt.-Cs. Um apontamento se nos parece ser importante no momento em que Freud apresenta esse receptor acústico: "para o ego", escreve o psicanalista, "a percepção desempenha o papel que no id cabe à pulsão1" (Freud, 1923/1990, p. 39). Isso nos permitiria pensar que, se a pulsão cumpre a função de ser o ponto de cruzamento do que é corporal com o que é da ordem mais primitiva no psiquismo, a percepção sonora desempenhará uma função de gestalt (fechamento; forma) do infinito perceptual que se articula com o corpo em uma totalidade ou fragmentação. É interessante notar que Freud se utiliza do registro acústico como meio perceptual da constituição psíquica, demonstrando assim uma certa pertinência do campo sonoro para com o sujeito em sua constituição.

Já em "Além do princípio do prazer" (1920/2006), Freud nos traz importantes apontamentos sobre o Fort-Da, de tal forma que nos é possível derivá-los à dimensão do psiquismo na sua relação com a sonoridade: como se sabe, ali o jogo de carretel consiste em que a criança o pegasse e, ao lançá-lo para fora do berço, balbuciasse um prolongado "o-o-o" junto da saída do objeto de seu campo de visão, para, logo em seguida, puxar a linha em que o carretel estava preso com a finalidade de resgatá-lo, vocalizando nesse momento um saudoso "Da!" a partir do retorno do objeto. Freud entendeu a brincadeira como uma tentativa primitiva de dominação da ansiedade do bebê frente à ausência da mãe. O fort-da anuncia portanto uma simbolização primordial da angústia de castração, que se faz, em termos lacanianos, através de uma substituição significante, cambiando um significante/objeto (mãe) por outro (carretel) e possibilitando uma atividade psíquica de subjetivação não-desprazerosa e que paralelamente poderia contornar a angústia. Segundo Freud,

O bebê ainda não separa seu eu de um mundo exterior como fonte das sensações que vêm sobre ele. Aprende a fazê-lo pouco a pouco, com base em incitações diversas. Deve causar-lhe a mais intensa impressão o fato de que muitas das fontes de excitação que mais tarde discernirá como seus órgãos corporais podem lhe enviar sensações a todo momento, enquanto outras - e entre elas a mais desejada, o seio materno - lhe são temporariamente subtraídas, e ele só consegue recuperá-las gritando por socorro: deste modo, contrapõem-se pela primeira vez um eu e um "objeto" como algo que se encontra "fora" e que só mediante uma ação particular é forçado a aparecer (Freud, 1930/1996, p. 67-68).

O fort-da, nesse sentido, permeia a complexificação simbólica da experiência angustiante que o bebê sofre, sobretudo em seus primeiros meses, quando lhe são subtraídas certas fontes de excitação; fontes essas que só se constituem como objetos a partir das relações de presença e ausência que experiencia junto às sensações corporais. Prazer e desprazer começam a constituir uma binariedade sensorial contígua à constituição simbólica dos significantes presença-ausência, situação em que uma ação física - o choro, por exemplo -, que geralmente faz uma mediação entre essas percepções, passa aos poucos a ser assimilada para então se constituir em uma atividade psíquica propriamente dita com a tentativa de fazer retornar algo que fora perdido. Le Poulichet (1996, p. 21) sugere que o corpo do infans se modela justamente "na precipitação de presenças sobre um fundo de ausências", tal como uma "constelação singular de compostos fora/dentro" que vão demarcando a espacialidade corporal e a montagem das pulsões parciais e seus respectivos objetos.

Lacan, em sua releitura da obra freudiana, aponta o fort-da como

[...] esse momento que podemos considerar como teoricamente primeiro da introdução do sujeito no simbólico, porquanto é na alternância de um par significante que reside essa introdução [...]. Eis aí então o elemento de que se trata, e no qual o que se expressa é algo que está justo antes da aparição do sujeito [...] (Lacan, 1958-1959, p. 441).

Vemos como Lacan descreve a experiência do fort-da a partir da relação de um par significante. Essa afirmação permite pensar na possibilidade de os significantes se dinamizarem em dimensões mais complexas - no que concerne ao encadeamento significante e suas relações com a sonoridade, por exemplo. Se pensarmos numa dinâmica de sincronia significante e entrecruzamento de pulsões, logo percebemos a importância dos significantes acústicos em sua articulação com os significantes visuais: a relação do ver/não ver o carretel é inscrita no bebê a partir de uma função sincrônica do som/silêncio do cair do carretel, assim como o jogo verbal de sua vocalização ("o-o-o"/"Da!"). A cena é composta por decalques perceptuais do Real em sua condição de relação significante em vista da capacidade sensorial do corpo do bebê, tanto nas percepções externas quanto nas internas a seu pequeno organismo. Vemos, nesse sentido, a pertinência do papel da sonoridade em sua relação com o visual, o que engendraria uma espécie de "devir acústico" na constituição psíquica da criança em vias de se subjetivar.

Sendo assim, em nossa concepção o fort-da descrito por Freud parece dar mostras de uma operação extremamente complexa em que ocorre o entrecruzamento de pulsões e a possibilidade de enlaçamento dos objetos a em uma codificação psíquica que se faz na relação entre presença-ausência, atividade-passividade, dentro-fora. Jogando e trazendo o carretel, a criança performa uma sincronia significante a partir de suas percepções - o campo do visual, os sons do cair do carretel e de sua própria voz, as sensações táteis etc., estruturando uma virtualidade imaginária para a realidade. Ainda é possível pensar a atividade psíquica da pulsão com relação à sonoridade no fort-da no que concerne à organização dos sons da queda do carretel em sincronia com a voz do menino: quando emite um "o-o-o" ao jogá-lo, e um "Da" ao resgatá-lo, além de representar a ausência da mãe por uma "protopalavra", deixa perfazer uma dinamização originária da pulsão pela via da articulação de significantes acústicos externos e internos ao seu corpo (som do carretel e voz), isto é, pelo som externo provocado e ouvido (ativo/passivo) e pelo som interno provocado e ouvido (igualmente ativo/passivo). Assim, o fort-da parece nos apresentar então a evidência de um momento da estruturação psíquica em que se busca a sonoridade para além do próprio corpo, demonstrando uma tentativa de articulação significante e de potencialização da voz para aceder à verbalização num estágio em que a fala ainda não é possível. Essa verbalização do infans no fort-da não é exatamente palavra mas encadeamento de sons produzidos ativamente. Nessa perspectiva, apontamos que a origem da musicalidade poderia ser pensada enquanto atividade de organização de significantes sonoros, ou seja, como produção ativa do sujeito que mais tarde poderá configurar uma estrutura própria de fala.

Apesar de pouco falar sobre a musicalidade, coube também a Lacan trazer uma abertura para a musicalidade na teoria psicanalítica, principalmente ao situar a voz como objeto pulsional de modo a inseri-la no rol dos objetosa primordiais. Chegou até a perceber a importância disso quando, no Seminário 20, advertiu que "seria preciso, alguma vez, falar da música; não sei se jamais terei tempo" (Lacan, 1972-1973/1982, p. 158). E de fato não teve.

O objeto a, segundo Lacan, parte do princípio de que entre a satisfação possível de ser obtida e a satisfação buscada pela pulsão há uma diferença, ou seja, a primeira pode ser dinamizada através de um objeto e a segunda estaria sempre incompleta por estar no Real - portanto no impossível -, fazendo cair um objeto mítico, inacessível. Vale lembrar que esse apontamento já era anunciado por Freud desde 1912 quando discorria sobre a impossibilidade da satisfação da pulsão, separando assim os planos da realidade psíquica e da realidade propriamente dita: "Por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em consideração a possibilidade de que algo [...] na natureza da própria pulsão sexual é desfavorável à realização da satisfação completa (Freud, 1912/1996, p. 171). Ao tomar a pulsão como aquilo que, ao apreender seu objeto, apreende algo que não é justamente o que a satisfaz, Lacan está inserindo justamente a função do impossível que diferencia a necessidade biológica da demanda simbólica. Nesse sentido, o objeto a aborda ambos processos - biológicos e simbólicos - no movimento da pulsão, uma vez que a busca da satisfação biológica não é correlativa ao objeto apreendido, pois esse objeto não será outra coisa que não "a presença de um cavo, um vazio" (Lacan, 1964/1979, p. 170). Ao ir de encontro com o objeto, a satisfação se depara com a impossibilidade de sua plenitude, e por isso mesmo se fará apenas parcialmente através do contorno do objeto no retorno em circuito sobre a zona erógena. Ora, é precisamente esse vaivém, como propunha Lacan, o que é de ordem fundamental no nível das pulsões. Enfim, esse objeto sem materialidade que redireciona o movimento da pulsão em um circuito de retroalimentação é o que Lacan aponta como objeto a.

[...] esse movimento circular do impulso que sai através da borda erógena para a ela retornar como sendo seu alvo, depois de ter feito o contorno do que eu chamo de objeto a. Ponho que [...] é por aí que o sujeito tem que atingir aquilo que é, propriamente falando, a dimensão do Outro (Lacan, 1964/1979, p. 183).

No decorrer de seu ensino acerca do objeto a, Lacan propõe a voz como uma de suas modalidades. Mas não só: a voz, em consonância com a zona erógena auditiva, é então definida por ele como um objetoa primordial ao lado dos outros já estabelecidos por Freud - seio, fezes e falo2. Dessa forma, a pulsão concernente ao circuito da voz e ouvido passa a ser denominada pulsão invocante, sobre a qual discorreremos a seguir.

 

A pulsão invocante

Como vimos, Lacan introduziu a pulsão invocante em seu ensino ao tratar a voz como um dos objetos a, mas pouco discorreu sobre ela. Outros autores, no entanto, se interessaram pela tarefa, tais como Didier-Weill, Vivès e Catão, que retomaram a questão da pulsão invocante de maneira mais detalhada. De modo geral, a pulsão invocante diz respeito à relação com o Outro na sustentação de uma posição que fará com que o infans se ratifique enquanto sujeito por vir. De forma diversa da demanda, a pulsão invocante supõe "que uma alteridade possa advir, de onde o sujeito, pura possibilidade, seria chamado a tornar-se" (Vivès, 2009a, p. 187-188). Por meio da voz do Outro, a invocação chama pelo bebê e sustenta sua posição como sujeito-vir-a-ser. Nesse sentido, invocação e demanda se distinguem por uma diferença essencial: enquanto na demanda o infans está em posição de dependência absoluta do Outro, ligada às necessidades corporais e sujeita à sua disponibilidade em oferecer ou não significantes sonoros, a invocação, por outro lado, está localizada no campo erógeno já que supõe um sujeito que não está apenas em dependência vital mas em um campo imaginarizado pelo Outro como uma promessa de intersubjetivação na qual emerge não somente a expectativa como também a certeza de que uma alteridade acederia em resposta ao chamamento.

A pulsão invocante conduz o processo de estruturação psíquica e de desenvolvimento da criança ao longo de seu crescimento e subjetivação; surpreendentemente, ademais, seria também possível pensar que ela aponta para uma ligação com um tempo "mítico", isto é, a vida intrauterina. Sabe-se que, no processo de desenvolvimento do feto humano, o sistema nervoso já apresenta a maturação do sistema auditivo desde a vigésima semana (Cardoso, 2013, p. 105) e já traz em si a possibilidade sensorial de perceber o som. A audição, nesse período, diferentemente dos outros sentidos do corpo humano, se encontra precocemente desenvolvido em termos fisiológicos. Isso nos permite pensar como esse momento prematuro aponta que a audição do bebê parece antecipar aquilo que ocorrerá futuramente no estágio do espelho, ultrapassando qualquer capacidade de percepção em relação aos outros sentidos corporais. Ou seja, ainda que os demais sentidos do corpo apresentassem uma maturidade, eles não possibilitariam a captação de relação de diferença perceptual devido ao estado homeostático do ventre. A percepção sonora, por outro lado, já estabelece relações de presença e ausência com a pulsação do coração da mãe, assim como do próprio feto; também é possível perceber muito precocemente uma diferença entre a voz da mãe e de outras pessoas próximas, sons e ruídos do mundo externo e os sons do próprio funcionamento orgânico (Cardoso, 2013, p. 105) -, ainda que não haja uma "fronteira" nesse corpo monossomático. Uma vez constituída em sua anatomia funcional, a audição denota uma peculiaridade com relação aos outros sentidos porque o ouvido se apresenta como orifício que " não pode se tapar, se cerrar, se fechar", como indicava Lacan (1975-1976/2007, p. 19), funcionando assim como "a experiência mais próxima do inconsciente".

O meio ambiente do feto é rico em estimulação acústica proveniente do interior do corpo da mãe através do seu comer, beber, respirar, dos batimentos cardíacos, das suas vocalizações e dos ruídos ambientais atenuados. Porém, o som mais frequente que o feto ouve é o da pulsação da principal artéria abdominal e o segundo mais frequente é o da voz da mãe (Nunes, 2009, p. 4).

Junto aos efeitos arrítmicos de seu coração, a sonoridade do movimento de sístole e diástole da mãe traz em si a inserção do diacronismo da repetição significante. Nessa via, as alterações de seu estado afetivo inserem uma descontinuidade ao ritmo anterior do organismo, promovendo diversas relações de diferença sonora. Vemos aí, então, que o ritmo do corpo da mãe já aparece como possibilidade de relação de diferença sonora no prematuro sistema perceptual do feto. Pela via do corpo, o afeto da mãe inscreve a diferença através da rítmica do corpo, capturável pela audição do bebê3 ainda no ventre.

Por sua vez, a voz da mãe porta igualmente uma relação de diferença acústica em suas vocalizações, principalmente pelo chamado manhês que é sustentado por ela no endereçamento que faz à criança. A melodia da emissão vocal que a mãe dirige ao filho - seja em forma de cantigas de ninar, da variação da prosódia peculiar ao falar com a criança, ou da ludicidade de seu endereçamento fonético - configura toda uma gama de musicalidade da voz que adentra a constituição psíquica do infans. Podemos afirmar que a voz da mãe é uma invocação por excelência: "Porque esta pulsão [invocante], quem é quem traz à tona o sujeito, é o traço unário, ele é inscrito primeiramente como uma forma musical. A voz materna não é invocante pelo que diz, mas pelo tom - diga-se afeto - do que diz" (Lopes, 2006, p. 77). Na relação primordial do Outro com o sujeito-vir-a-ser, o ritmo corporal e a ento(n)ação da voz da mãe é o que sustenta um trajeto que vai do orgânico ao campo da linguagem, isto é, do Real ao Simbólico, possibilitando aí o advir de um sujeito. No Seminário 5 (1957-1958/1999), Lacan diz que

a invocação exige, é claro, uma dimensão inteiramente diversa, ou seja, que eu faça meu desejo depender do teu ser, no sentido de te convidar a entrar na via desse desejo, seja ele qual for, de maneira incondicional. [...] Esse é o processo da invocação. Essa palavra quer dizer que eu apelo para a voz, isto é, para aquilo que sustenta a fala. Não para a fala, mas para o sujeito como portador dela, e é por isso que, nesse ponto, encontro-me no plano do que há pouco chamei de nível personalista (Lacan, 1957-1958/1999, p. 157-158).

O circuito da pulsão invocante se efetiva a partir do grito do infans, que, apesar de surgir como uma necessidade, é interpretada e respondida pelo Outro como uma demanda. O Outro então sustenta uma invocação na resposta a essa demanda. Pensando a pulsão em seus três tempos, Catão (2009) articula a invocação da seguinte forma: 1) ouvir - lançamento significante do Outro; 2) se ouvir - quando a reposta do Outro sobre o grito sem direcionamento do infans retorna em forma de demanda/significação imaginária; e, por fim, 3) se fazer ouvir - evanescência do sujeito da pulsão; atividade psíquica de endereçamento. A invocação surge do movimento do segundo para o terceiro tempo, isto é, quando o infans só se faz ouvir por um atravessamento Simbólico/Imaginário do Outro sobre seu corpo. Assim, o grito da necessidade - que é num primeiro momento pura manifestação de tensões orgânico-somáticas - é convertido em grito de demanda na interpretação do Outro, e a resposta do Outro a essa demanda impõe uma alteridade através de uma identificação imaginária (Vorcaro, 1999). Nessa medida, é por um sentido no nível do significado que o infans é arrancado do automatismo do fluxo vital e tem acesso à voz do Outro, inclui e é incluído no Outro. "Num movimento ulterior, é preciso que o sujeito, tendo sido destinatário da voz do Outro, agora a esqueça para que possa dispor de sua própria voz sem ser invadido pela mensagem do Outro" (Schwarz, & Moschen, 2012, p. 162).

Alain Didier-Weill (1998) nos propõe que a invocação é o meio de entrada do ser na linguagem através de dois pactos entre o sujeito nascente e a estrutura simbólica. Tais pactos, que nos parecem coadunar com os processos de alienação e separação propostos por Lacan, constituem, num primeiro momento, a afirmação primordial do significante, através de uma marca - o traço unário - que cria a distinção entre a presença e a ausência, afirmando sua presença, isto é, o "há" significante. O segundo momento consiste no que viria após o trauma do confrontamento com a ausência do significante, o "não há". Por meio do efeito do recalque originário, o sujeito faz então uma aliança entre presença e ausência de forma metafórica, ou seja, a presença na ausência (Lima, & Lerner, [s.d.], p. 4). Segundo Didier-Weill (1997b), é a musicalidade presente na voz da mãe que faz o traço onde posteriormente a palavra irá germinar, ou seja, é o que estabelece a primeira afirmação, que, depois do Urverdrängung, poderá dar passagem à palavra como possibilidade simbólica de fazer presença naquilo que está ausente. O infans só poderá advir como sujeito da fala se, num primeiro tempo, surgir como um efeito de musicalidade dessa afirmação primordial. É na musicalidade da voz da mãe que um significante originário será transmitido e possibilitará a introdução da alternância ritmada entre presença e ausência, o "há" e "não há". Desse modo o Outro poderá criar condições para que num segundo tempo lógico a criança possa reconhecer não só a presença simbólica na ausência real (metáfora), mas também a ausência na presença do Outro, isto é, sua incompletude (representada, aqui, como objeto a).

Podemos sugerir, coadunando com as propostas de Didier-Weill (1997b), que o infans, em sua prematuridade simbólica, encontra-se indiferenciado dentro do caos atemporal. Seria então através das escansões e cortes rítmicos transmitidos pela voz da mãe que se poderá receber a marca de um traço primordial, cavando espaço para a constituição do objeto a. É a musicalidade da voz que invoca o infans à subjetivação, ao mesmo tempo que permite a inscrição pulsante do som/não som. Catão (2009, p. 169) nos diz que a "voz da mãe seduz pela ausência de sentido, pela continuidade musical. Mas é a descontinuidade consonantal da fala materna que portará a lei", ou seja, a criança, antes mesmo de inserir o significado dos fonemas, percebe e é capturada pela prosódia da voz materna - sonoridade musical que não corresponde à palavra enquanto representação mas a algo que provém do desejo do Outro (Seger, & Sousa, 2013, p. 68). Essa musicalidade da voz materna constitui a relação entre mãe e bebê por meio de uma invocação que sustenta uma afirmação primordial e caracteriza um gozo. Paralelamente, o ritmo dessa voz também escande o Real do organismo e inscreve a diferença por meio de uma síncope (Catão, 2009, p. 210). A continuidade musical da voz traz a marca da afirmação, o "há"; já a rítmica da voz, no interior dessa invocação, inscreve uma real descontinuidade, o que corresponde a uma diferença significante, o "não-há" que permite a percepção da unidade sonora. Da indiferenciação ao reconhecimento da ausência e da presença, o significante unário advém no infans a partir de dois efeitos da musicalidade da voz da mãe: 1) no que tange à continuidade melódica de sua invocação, e 2) através da inserção das alternâncias rítmicas de sua prosódia.

Com a inscrição do Um primordial, a presença e ausência não estão mais em equivalência e poderão se dispor de forma diacrônica, podendo ainda se vincular à lógica sincrônica. No segundo tempo lógico dessa inscrição, a sincronia permite ao infans acessar o traumático de sua entrada na linguagem, isto é, a ausência na presença do Outro primordial. É esse encontro com a ausência na presença que imputará ao infans a constituição do objeto a como efeito de impossibilidade Simbólica. Em outras palavras, ao se deparar com o vazio do Outro, o infans deixa cair o Real da voz para se utilizar da fala como meio possível de veicular a sincronia do "há e não há Um" (Didier-Weill, 1997b).

Nasio (1991) nos fala que na constituição do sujeito ocorre uma foraclusão do Real que possibilita a linguagem enquanto estrutura Simbólica e Imaginária. Seguindo tal pensamento, poderíamos chamar essa operação em que a voz se inscreve como objeto a de foraclusão do Real da voz. Essa inscrição se dá na passagem da operação (Lacan) de alienação para a separação, em que o sujeito consente perder o acesso direto à materialidade vocal em prol do recalcamento dessa voz Real. A partir daí, a voz estará sempre velada pelo processo de significação (Vivès, 2009a). Lacan dizia que "O que sustenta o a deve ser bem desvinculado da fonetização", pois quando "alguma coisa desse sistema passa para a emissão, trata-se de uma dimensão nova, isolada, de uma dimensão em si, a dimensão propriamente vocal (Lacan, 1962-1963/2005, p. 273). O Real perdido na voz é algo que estará sempre além da simples articulação e encadeamento fonético, pois se trata de um não-dizível, um não-falável dentro da dimensão emissora.

Nesse sentido, para o sujeito entrar no campo da fala é preciso haver um ensurdecimento à voz sem significação advinda do Outro, à voz como pura invocação musical. É preciso foracluir o Real da voz para dar passagem ao plano da significação da fala. Como bem apontado por Catão e Vivès (2011, p. 86), os bebês nascem aptos a falar todas as línguas, mas a partir de algum ponto da estruturação psíquica vão perdendo, aos poucos, essa possibilidade, na medida em que vão fazendo suas "escolhas" fonéticas em função de sua língua materna. Nesse ponto, já estamos autorizados a pensar a voz em sua relação com o som e em seus efeitos de musicalidade.

 

Som e voz

Consideramos que a pulsão invocante traz o infans para uma humanização no campo da linguagem em um processo que tem a voz como elemento fundamental, e que acontece desde a relação primordial entre o sujeito-vir-a-ser e o Outro. A voz, nesse sentido, pode ser pensada e referida ao Real enquanto função de engendramento psíquico, e não à voz sonora. Com isso, a voz é o objeto pulsão invocante justamente por ser o algo que não se localiza no fonema ou no som, e sim em algo que compete ao desejo do Outro. É nessa lógica que Lacan (1964-1965) afirma a voz como uma espécie de modelo privilegiado dessa primeira relação com o Outro. Ainda, "[...] a voz faz necessariamente intervir um outro órgão, ou seja, o ouvido, o que, de modo mais singular, representa o circuito do sentido, da boca ao ouvido", e isso "porque a voz é o vetor privilegiado do significante" (Lacan, 1964-1965, p. 274). De modo singular, "[...] a pulsão invocante convoca não um, mas dois orifícios: a boca para falar, chamar, e a orelha para escutar, ouvir. Ela está imprensada entre o oris (oralidade) e o auris ('a auricularidade')" (Porge, 2014, p. 86-87). Essa particularidade da pulsão invocante é que confere o caráter inapreensível da voz e da impossibilidade de localizá-la a não ser em um "entre", isto é, entre a boca e o ouvido, entre o falar e o ouvir. [...] "o ouvir e o falar são como o direito e o avesso" (Lacan, 1955-1956/1985, p. 159). A voz é então diferente do som, justamente porque se constitui como um objeto a, isto é, um elemento que está em correspondência ao Real, ao passo que está minimamente situado no Simbólico, como o lugar da falta - ainda que não seja um significante. A voz como objeto a está entre Real e Simbólico por não estar completamente no Real e também por não ser apreendida pelo significante, como aquilo que representa algo para outro significante. Quando o sujeito apreende a língua ocorre a foraclusão do Real para a função de significação operada pela fala, deixando cair o objeto a. É importante notar que o som e a voz estão ambos referidos ao estatuto do significante, mas em dimensões diferentes. Essa diferença é muito importante para pensarmos as implicações da musicalidade na estrutura psíquica do sujeito.

Som e voz são fenômenos que possuem propriedades do significante justamente porque evidenciam em si a elementaridade da relação de diferença, assim como assinalam a propriedade de, essencialmente, não significarem nada por si próprios e isoladamente. Por outro lado, som e voz se constituem em estruturas diferentes. A voz, uma vez constituída como objeto a, opera a transmutação da percepção do som para a significação pela via da foraclusão do Real. Nessa perspectiva, podemos referir o som em dois fenômenos diferentes: o som como aquilo disperso no Real, o som sem sentido, e o som como efeito de significação operado pelo Nome-do-Pai. O objeto a voz está entre esses dois fenômenos, operando uma função por tempo lógico. Só podemos falar do som em dois tempos lógicos diferentes se apontarmos o antes e o depois da função da voz como objeto a. O que queremos dizer é que, antes da configuração da pulsão invocante, o som é um fenômeno percebido em seu estado de não-sentido e desvinculado de organização sincrônica. É a voz que, constituída nessa função de operador da foraclusão do Real no som, transmutará a percepção do som para o encadeamento de significantes como via de significação. A partir da voz e da ratificação do sujeito na constituição desse objeto a o som passa a ser percebido sempre na recusa do não-sentido e na constituição de uma realidade sonora imaginarizada. Daí a necessidade de atribuirmos uma lógica de sentido a todo e qualquer fenômeno sonoro: ouvir um ruído estrondoso por si só não é possível sem derramarmos a significação imaginária de ser um trovão ou uma explosão, por exemplo, pois a insuportabilidade de lidar com o Real do som é recoberta pela foraclusão deste mesmo Real.

Desse modo, diferenciamos o som antes e depois da função da voz. Há o som que porta o Real em sua manifestação fenomênica e o som que foraclui o Real para se atribuir significação. Entre essa diferenciação há a função da voz que inscreve a condição psíquica do sujeito de perceber a sonoridade. Há como pensarmos a partir daí o som nos primeiros momentos de constituição psíquica, isto é, que está no campo do significante no que se refere à percepção da relação de diferença sensorial e que está na prematuridade Simbólica. O infans como sujeito-vir-a-ser constitui seu campo de audibilidade nessa primórdia marca de linguagem, e o Outro, operando a voz, erotiza o corpo do infans e inscreve a pulsão, transpondo a percepção corporal do Real do som para a realidade imaginária sonora.

Catão (2011, p. 1) nos diz que "Na constituição do sujeito do inconsciente, o ser falante faz um percurso entre dois reais: do real do barulho ao real da voz, passando pelo sonoro e pela musicalidade". A autora aponta que, para pensarmos o tempo mítico do sujeito antes do sujeito do desejo, convém tomar as operações de alienação e separação propostas por Lacan, pensando-as em relação ao objeto voz antes de sua organização enquanto tal. Ou seja, se é a voz que invoca um sujeito-vir-a-ser, o que é a voz antes de ser um objeto? Um puro Real? Ao pensarmos o endereçamento significante que a mãe faz ao bebê pela sua voz, e que chega até a criança pela dimensão do Real, as operações de alienação e separação nos dão uma pista dessa dinâmica, uma vez que apontam as relações entre inscrição significante e significação imaginária. Notaremos que é o Real da Voz da mãe que, em confluência ao Real do corpo do bebê, possibilita uma incidência de articulação significante no infans. De fato é de dois reais que se trata, um "dispositivo pelo qual o real toca no real" (Lacan, 1975/2003) e que apontamos como voz da mãe e corpo da criança. A voz na relação primordial - que se faz enquanto percurso da alienação - ainda não se configura como objeto. A objetalização da voz se dará num processo posterior, ou seja, pela sincronia do plano imaginário de significação operacionalizado pela separação. "A voz propriamente dita, objeto vazio da pulsão invocante, este que só se constitui enquanto tal com a separação, faz a articulação entre o campo da linguagem e o real do corpo, possibilitando o advento da função da fala" (Catão, 2011, p. 10). Isso nos permite pensar o Real do som da voz como aquilo que sustenta o significante como pura relação de diferença, já que a "função da fonação é suportar o significante" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 74).

A voz é o que instaura a passagem do Real para o significante numa lógica temporal, estabelecendo as relações entre diacronia e sincronia e atestando o estatuto Simbólico/Imaginário do significante. Lacan nos diz que

[...] apesar do significante se inscrever entre outros significantes, o que resta após o apagamento é o lugar onde se apagou, e é também esse lugar que sustenta a transmissão. A transmissão é algo de essencial nisso, já que é graças a ela que o que acontece na passagem ganha consistência de voz. (Lacan, 1957-1958/1999, p. 355)

Observamos, portanto, que antes da operação de separação a voz está no ponto de entrecruzamento do Real do som, do significante da diferença e da significação do desejo do Outro. Parece-nos cabível perceber, através da voz, que há, antes da linguagem, uma noção de relação significante não significável, ou seja, anterior a significante/significado, apontando o significante como continuidade moebiana do Real. Seria uma nova perspectiva de pensarmos o significante na clínica? Ou ainda, essa relação do significante com o Real em sua sonoridade estaria num campo da linguagem que poderíamos pensar como protolinguagem? Nessa direção, entramos em consonância à teoria lacaniana de que a voz cumpre a função de ponto sincrônico de passagem lógica retroativa entre alienação/separação, Real/significante e significante/significado, a partir da instauração do desejo do Outro:

o objeto a é diretamente implicado quando se trata da voz e isso no nível do desejo. Se o desejo funda-se como desejo do Outro, esse desejo enquanto tal manifesta-se no nível da voz. A voz não é apenas o objeto causal, mas o instrumento pelo qual se manifesta o desejo do Outro (Lacan, 1965-1966, s.p.; tradução livre).

Fica evidente então que a função da voz do Outro é instaurar, a partir da própria materialidade sonora do Real acústico, a lei simbólica que possibilite a inserção do plano Imaginário para o sujeito.

O sujeito acedendo ao real, por essa "percepção interna", sem mediação significante, tem a experiência mortífera do mundo de iniquidade que é o mundo sem lei: a lei é, com efeito, a introdução de um significante de alteridade que, interpondo-se entre o real e o sujeito, tem por efeito interditar o real de se oferecer à percepção interna do sujeito, que é simbolizada num dizer (Vivès, 2009a, p. 14).

A ascendência de um sujeito do desejo a partir do desejo do Outro - que poderíamos ler como "a passagem da necessidade à demanda do infans pela invocação materna" - vem a partir do grito do infans. O grito, como expressão vocal de sofrimento, só se tornará apelo através resposta da Voz do Outro, que porta, nessa demanda, um desejo:

[...] "que queres tu que eu te queira?". O sujeito é aqui chamado a ser. Em outras palavras, ele não é um produto natural. Para existir é preciso o Outro convocá-lo (no duplo sentido de apelo e nomeação). Pela invocação do Outro, o significante entra no real e produz o sujeito enquanto efeito de significação, sob a forma de resposta. Com a resposta do Outro, o grito puro [pur] tornar-se-á grito para [pour]. A voz do Outro introduz o infans à palavra, fazendo-o perder, para sempre, a imediatez da relação à voz como objeto. A materialidade do som será, a partir de então, irremediavelmente velada pelo trabalho da significação. A palavra faz calar a voz (Vivès, 2009a, p. 10-11).

Nesse apagamento, aquilo que Lacan dizia acerca de um ponto cego que estrutura a visão na pulsão escópica (Vivès, 2009a, 2009b) é o que traz seu correlativo na pulsão invocante: "[...] para tornar-se falante, o sujeito deve adquirir uma surdez a este outro que é o real do som musical da voz" (Vivès, 2009a, p. 12). Este "ponto surdo", convergente ao ponto cego que estrutura uma virtualidade visual no sujeito, é o que se constitui no recalcamento originário e que protege o sujeito de um transbordamento do Real em forma de alucinação auditiva. Não é a toa que os fenômenos alucinatórios da psicose geralmente se iniciam por meio auditivo. É esse ponto surdo que apaga a materialidade da voz e dá passagem à significação, possibilitando a fala ao sujeito. Em contrapartida, mesmo que o Real do som seja foracluído, a musicalidade que existia na manifestação do som em vias de Real ainda continua a existir no significante depois dessa foraclusão. E parece-nos ser exatamente essa particularidade da musicalidade que pode nos apontar implicações na clínica psicanalítica.

 

Uma clínica possível

A psicanálise, apesar de haver se constituído e se orientado através da fala, não se limita a essa única modalidade de linguagem, uma vez que o que sustenta um discurso não é necessariamente a verbalização, e sim um arranjo significante, sejam eles visuais, acústicos, táteis e todos os outros ligados à capacidade sensorial humana. Sendo assim, podemos nos autorizar a pensar o campo das sonoridades em sua particularidade musical de discurso significante. A partir de nossos desdobramentos sobre a voz, podemos constatar que o som pode se manifestar em fenômenos diferentes, de acordo com o momento lógico da psique: pode estar em vias do Real, enquanto relação sensorial de diferença significante ainda sem significado; ou como articulação imaginária de significante(s) acústico(s) atrelado(s) a significado(s). A musicalidade se manifesta em ambos os fenômenos, seja aquela do manhês e da melodia da voz da mãe para sua criança (significante sem significado) ou aquela da música enquanto signifiCanção. Considerando o inconsciente em uma estrutura de linguagem, pensamos que a musicalidade repousa em um campo diverso do campo da fala, apesar de ambas se viabilizarem pelo som e pela mesma dinâmica pulsional. A fala, em seu engano fundamental de discurso, foraclui o Real através da significação, na busca de uma suposta significação que possibilite um arranjo imaginário de enredamento da realidade. A musicalidade, por sua vez, além de também se manifestar na melodia das palavras, aponta ainda o encadeamento de significantes acústicos que se desenrola em momento estruturalmente anterior à lógica de significação. Pode ser verbal ou puramente sonoro. Destarte, ainda performa um discurso que é aberto tanto ao prazer estético particular de um sujeito quanto aos enquadramentos gramaticais típicos de cada cultura musical.

Parece-nos, então, ser possível notar uma forte implicação inconsciente nos processos constitutivos de um "discurso musical" em que, através do significante e para além dele, as marcas particulares do sujeito são presentificadas em suas sonoridades e na criação musical, impulsionado pelo desejo e pela dinâmica das pulsões. Esse discurso musical estaria no ato do falasser em suas produções sonoras, sejam elas em sua prosódia verbal, fonética, corporal ou pelo uso de elementos fora do corpo - como pelo uso de instrumentos musicais, ou um encadeamento sonoro criado a partir de uma caneta sobre a mesa, por exemplo. O ato de produzir musicalidade é o que ratificaria a posição do sujeito em se fazer pela linguagem para além da fala. Discurso musical, nessa perspectiva, se definiria então como encadeamento de significantes acústicos por metáfora e metonímia, que podem ou não remeter ao plano da significação.

O que torna a aproximação música x psicanálise uma reflexão necessária é particularmente o fato de que o investimento em atividades musicais favorece a constituição de uma dialética da alteridade por meio da inscrição da pulsão no campo da cultura, além do que, no processo de criação, no trabalho de construção/escuta de formas sonoras, o músico encontra o lugar psíquico de constituição de uma estética da subjetividade (Sekeff, 2005, p. 1359-1360).

A musicalidade então, não só como uma construção de sentido, convoca o prazer estético de fruição de prazer entre compositor e receptor, em expressões sonoras que legitimam a ligação da pulsão aos mecanismos imaginários de identificação. Pensando a musicalidade nessa perspectiva, parece-nos ser plausível considerá-la na clínica, ainda que tal análise não seja comumente realizada no campo da psicanálise. Se a musicalidade permeia o Real do significante, em seu estatuto de não significar nada e estar ainda aquém da significação, não podemos pensar uma clínica senão através do Real como ponto de fruição - e não como ponto de "partida" ou "chegada". Uma clínica que considere essa dimensão do Real pela via da musicalidade se daria a partir da inserção de elementos que suscitem a possibilidade de musicalização do discurso do sujeito frente ao Outro: pela musicalidade da fala, do corpo, do uso de instrumentos musicais ou da composição de letras em músicas, é possível intervir na produção do sujeito na sua relação com o Outro, seja pelo enredamento de sua realidade psíquica ou pelo próprio discurso que constrói. A pertinência da intervenção por meio da musicalidade está então na possibilidade de transformar os recursos utilizados pelo sujeito no nível de tratamento de gozo, de um saber-fazer com sua linguagem própria. Uma clínica que possibilite a intervenção da musicalidade, que abarque sonoridades fonéticas que vão de sons sem sentido, neologismos, a signos comuns ao laço social pode ser uma aposta. É possível atuar num tipo de intervenção que promova ao sujeito deslizar o gozo do encadeamento de significantes sonoros, possibilitando ao sujeito sair de um sofrimento de gozo pela repetição significante a partir de um tratamento significante pela via musical. O uso de instrumentos musicais de fácil manejo motor para sujeitos que possuem pouca ou nenhuma afinidade musical e o uso de instrumentos que mantenham maior tempo de ressonância acústica parecem ser importantes ferramentas de facilitação de produção de um discurso sonoro numa clínica psicanalítica que considere a musicalidade.

Segundo Didier-Weill (1997a, p. 29), "se a música tem por sua conta um real ilimitado que o limite da palavra sequer pode transmitir, significa isto que o homem, quando tomado pela música, cessa radicalmente de estar sob a ascendência da ética transmitida pela palavra?". É a partir desse questionamento que apostamos numa clínica psicanalítica que abarque o Real através da musicalidade como intervenção possível.

 

 

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Artigo recebido em: 07/05/2017
Aprovado para publicação em: 17/02/2018

Endereço para correspondência
Bruno Gonçalves dos Santos
E-mail: hotmail_do_bruno@hotmail.com
Gustavo Henrique Dionísio
E-mail: gustavohdionisio@gmail.com

 

 

*Músico e produtor musical. Mestre e doutorando em Psicologia pela FCL Unesp Assis. Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Mato Grosso. Pesquisador bolsista financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.
**Professor Assistente Doutor no Departamento de Psicologia Clínica da FCL Unesp Assis.
1O texto original traz o conceito de instinto, o qual retraduzimos por pulsão.
2Há ainda outro objeto a proposto por Lacan, o olhar, do qual não discorreremos aqui.
3Cabe-nos também considerar que, dependendo da fase de desenvolvimento em que o feto se encontra, tal inscrição da rítmica de pulsação do corpo materno também será capturada pelos mecanorreceptores de uma forma geral, como por exemplo a estimulação tátil da pele do feto através da vibração sonora que percorre o meio fluído do líquido amniótico.

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