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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

 

RESENHAS

 

Ferenczi na contemporaneidade

 

Ferenczi in contemporaneity

 

Ferenczi dans l'époque contemporaine

 

 

Joel Birman*

Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos - Brasil
Espace Analytique - França
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
Université Paris Diderot - França

Endereço para correspondência

 

 

Resenha de: Com Ferenczi: clinica, subjetivação, política. Eliana Schueler Reis & Jô Gondar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017. 230p.

 

 

I. Volta por cima

Desde os anos 80 do século XX começou a ocorrer, de forma progressiva mas sempre segura, a restauração simbólica da figura e da obra do psicanalista húngaro Sandor Ferenczi pela comunidade psicanalítica internacional. Com efeito, se até então este estava certamente marginalizado nessa comunidade, num processo iniciado no final dos anos 20 em decorrência das críticas de que foi objeto pelas inovações teóricas e clínicas que enunciou sobre a experiência psicanalítica e que se confrontaram com a ortodoxia então vigente na Associação Internacional de Psicanálise, o final do século passado entreabriu outro horizonte e novas possibilidades para o discurso teórico-clínico de Ferenczi.

Assim, com os impasses crescentes acumulados na prática clínica norteada pelo paradigma ortodoxo imperante na psicanálise, pois este não podia lidar de forma produtiva com as novas modalidades de subjetivação (Foucault) constituídas na contemporaneidade e que se impunham na cena clínica de forma inequívoca, o arquivo da experiência psicanalítica (Foucault, Derrida) passou a investir decididamente nos rastros e nos traços deixados pelas experimentações realizadas outrora por Ferenczi de maneira pertinente. Em decorrência disso, as obras deste passaram a ser revisitadas com vivo interesse pela comunidade psicanalítica internacional, de forma que tais obras passaram a ser não apenas traduzidas em vários idiomas, inclusive o português, como também seu discurso teórico-clinico passou a ser objeto de publicação específicas, sob forma de monografias, em diferentes países.

Dessa maneira, o discurso teórico-clínico de Ferenczi, passou a ser meticulosamente esquadrinhado, pelas comunidades psicanalítica e universitária, de maneira a enfatizar as diversas dimensões presentes naquele discurso, assim como os conceitos teóricos fundamentais que norteavam tais dimensões e que lhes ofereciam consistência argumentativa efetiva. Constituiu-se com isso uma tradição crítica sobre a obra de Ferenczi, na qual a especificidade teórica e clinica do percurso deste foi cantada em prosa e verso, de maneira ampla, geral e irrestrita. Enfim, Ferenczi estava assim finalmente de volta, saindo do ostracismo em que fora colocado pela ortodoxia psicanalítica de outrora, no campo da Associação Internacional de Psicanálise, pela mediação da publicação das suas obras e das que foram escritas sobre o seu discurso teórico-clinico, dando assim Ferenczi a sua volta por cima, de maneira triunfal.

Contudo, nos tempos áridos do deserto e da marginalidade institucional, em que a obra de Ferenczi foi colocada na berlinda, Balint foi certamente o seu maior porta-voz. Analisante de Ferenczi, em Budapeste, Balint emigrou posteriormente para a Inglaterra, onde começou a realizar a transmissão do discurso teórico-clínico daquele, tanto pela constituição de uma obra original sobre a psicanálise baseado nos pressupostos teóricos de Ferenczi, quanto pela organização da tradução em inglês das obras deste. Pode-se afirmar assim, sem qualquer vacilação, que a obra de Balint foi, portanto, a condição concreta de possibilidade para a sobrevivência do discurso teórico-clínico de Ferenczi na comunidade psicanalítica nos tempos cinzas de sua exclusão institucional, assim como para a construção dessa posterioridade efetiva assumida por esse discurso na transmissão da psicanálise na atualidade.

 

II. Ética e política

No entanto, é preciso destacar nesse contexto a novidade da recente obra publicada por Eliana Schueler Reis e Jô Gondar, no livro intitulado Com Ferenczi: clínica, subjetivação e política. Isso porque o que está presente na composição desse livro não é mais uma obra "sobre Ferenczi", mas um livro "com Ferenczi", como se enuncia literalmente no seu título. Assim, não obstante, se referiram e citaram fartamente Ferenczi ao longo desse livro, se valendo do campo conceitual deste para sustentar suas hipóteses de trabalho e seus comentários sobre a psicanálise na atualidade, as autoras pretenderam realizar um estudo teórico-clínico com Ferenczi nos diferentes registros da clínica, da subjetivação e da política. Evidentemente, se tais registros são efetivamente diferentes, eles são, em contrapartida, organicamente complementares.

Além disso, se a singularidade é a marca que se destaca na leitura do sujeito pelo discurso psicanalítico, os ensaios constituintes dessa obra são efetivamente singulares, de forma que cada uma das autoras assina as suas contribuições de maneira singular e intransferível. Assim, nos diferentes registros constitutivos do livro - clínica, subjetivação e política -, as autoras compõem diferentes duetos sobre problemas similares, de maneira que a obra em pauta evoca a construção de uma composição musical cantada, na qual as duas vozes se intercalam de forma temperada, mas de maneira repetida e regular. Enfim, a autoria se distribui então de forma equivalente ao longo do livro, escrito que este foi a quatro mãos.

Contudo, a espinha dorsal que norteia certamente a composição do livro em questão é a crítica sistemática da ideia de verticalidade e de hierarquia bastante presentes no campo psicanalítico contemporâneo e a defesa, em contrapartida, da ideia de horizontalidade nesse campo. Seria por conta disso, com efeito, que a experiência analítica pode sustentar o enunciado da singularidade do sujeito, que deve igualmente se inscrever na comunidade institucional da psicanálise, como seu correlato. Foi ainda em decorrência disso que as autoras escolheram realizar um livro com Ferenczi e não sobre Ferenczi, para destacar seja a dimensão da horizontalidade na comunidade psicanalítica, seja para respeitarem a dimensão da singularidade presente em ato na experiência do sujeito na psicanálise.

Assim, Ferenczi foi convocado e evocado pelas autoras no confronto direto que estas estabelecem no campo psicanalítico na contemporaneidade, nos diferentes registros acima destacados. Com isso, Ferenczi se inscreve decididamente numa comunidade de destino com as autoras da obra e não numa comunidade de origem, que aludiria necessariamente às dimensões da verticalidade e da hierarquia que foram devidamente criticadas. Em consequência, são os problemas colocados de forma eloquente na cena social da atualidade (Foucault) o que interessa vivamente as autoras, nos registros da clínica, da subjetivação e da política, respectivamente.

Com isso, o campo da fraternidade e da amizade (Derrida) se destacam como as marcas ética e política constituintes do campo psicanalítico, nos registros diferentes mas complementares da experiência analítica e da institucionalidade. Seria por esse viés que as questões da singularidade do sujeito e da horizontalidade ganham efetivamente consistência teórica.

Nessa perspectiva, o campo da experiência analítica se modula como uma modalidade concreta de prática micropolítica (Foucault) nas relações estabelecidas entre as figuras do analista e do analisante, na qual a crítica do poder ganha volume e relevância fundamental para a realização da experiência analítica, para que a singularidade do sujeito seja efetivamente patente no campo dessa experiência. Portanto, a ética psicanalítica supõe necessariamente uma política como seu corolário, não sendo assim possível destacar a experiência psicanalítica de suas implicações ética e política. Enfim, não existe assim qualquer modalidade de neutralidade possível no campo da experiência psicanalítica.

Evidentemente, tudo isso se desdobra numa leitura do laço social pela qual o campo dos conceitos, enunciados por Ferenczi, seriam assim instrumentos teóricos importantes para pensar o campo da política e as interações do sujeito no espaço social. Seria por esse viés que a catástrofe e o trauma, como questões cruciais da contemporaneidade, poderiam ser elucidadas pelas ferramentas teóricas oriundas do discurso teórico-clínico de Ferenczi. Enfim, a atualidade desse discurso se impõe na contemporaneidade, de forma incontornável, como um dos instrumentos teóricos para pensar os impasses presentes para o sujeito na contemporaneidade.

 

Artigo recebido em: 04/01/2018
Aprovado para publicação em: 19/02/2018

Endereço para correspondência
Joel Birman
E-mail: joelbirman@uol.com.br

 

 

*Psicanalista, Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e do Espace Analytique, Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor e Pesquisador Associado da École Doctoral de Psychanalyse da Université Paris Diderot, Pesquisador do CNPq.

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