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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

Perspectivas político-clínicas: psicanálise, autismo e a razão neoliberal

 

Political-clinics perspectives: psychoanalysis, autism and the neoliberal reason

 

Perspectivas político-clínicas: psicoanálisis, autismo y la razón neoliberal

 

 

Natália de Andrade de Moraes*; Cláudia Maria PerroneI, II**

ISigmund Freud Associação Psicanalítica - Brasil
IIUniversidade Federal de Santa Maria - UFSM - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetivou problematizar o estatuto do autismo no contemporâneo, bem como o lugar reservado aos sujeitos autistas em um social atravessado pelos discursos neoliberal e capitalista. Nessa direção, buscou compreender o uso dos significantes "autismo/autista" para representar o momento histórico atual, catalisador do apagamento do outro e da dimensão da alteridade. Para tal, propôs a análise de um vídeo publicitário referente à "jaqueta do abraço", produto destinado a acalmar crianças diagnosticadas autistas. Em um cenário ultraindividualista, imperativo de objetos e carente de laços sociais, o sujeito autista emerge no lugar do estranho, familiar excluído, ao refletir a tendência contemporânea à ausência do Outro, à mesmice e ao isolamento. Ao encarnar o que o social não quer saber, ao autista restam fundamentalmente a exclusão e as propostas de inclusão via adestramento e supressão das diferenças. Em outra direção, a psicanálise propõe uma saída possível do discurso capitalista através da introdução do novo, na sustentação de um desejo que possibilite ao sujeito a pequena singularidade que é sua, que não entra no circuito do discurso.

Palavras-chave: psicanálise, discurso capitalista, neoliberalismo, autismo.


ABSTRACT

This article aimed to problematize the autism statute in contemporary days, as well as the place reserved to autistic subjects in a social crossed by neoliberal and capitalistic discourses. On such direction, it was aimed to comprehend the usage of the significants "autism/autistic" to present the current historical moment, catalyst of the erasure of the other's existence and of the alterity dimension. Therefore, it was proposed the analysis of an advertisement video referring to the "hug jacket", a product destined to ease autistic children. In an ultra-individualist scenario, objects' imperative and lacking social bonds, the autistic subject emerges in the place of weirdness when reflecting on the contemporary tendency of the Other's absence, the monotony and the isolation. Being what the social denies to acknowledge, there remains to the autistics the exclusion or the proposals of inclusion through training and through the denial of the difference. In other direction, psychoanalysis proposes a possible way out of the capitalist speech throughout the introduction of the innovative, in the support of a desire that enables the subject its tiny singularity that it owns.

Keywords: psychoanalysis, capitalist discourse, neoliberalism, autism.


RESUMEN

Este artículo buscó problematizar el estatuto del autismo en el contemporáneo, así como el sitio reservado a los sujetos autistas en un social atravesado por los discursos neoliberal y capitalista. En esta dirección, se buscó comprender el uso de los significantes "autismo/autista" para presentar el momento histórico actual, catalizador de la supresión del otro y de la dimensión de alteridad. Así, se ha propuesto el análisis de un video publicitario referente a la "jaqueta do abraço" (chaqueta del abrazo), producto destinado a relajar niños diagnosticados autistas. En un escenario ultra-individualista, imperativo de objetos y carente de lazos sociales, el sujeto autista emerge en el lugar del extraño, familiar excluido, al reflexionar la tendencia contemporánea a la ausencia del Otro, a la monotonía y al aislamiento. Al personificar lo que el social se niega a reconocer, al autista quedan la exclusión y las propuestas de inclusión a través del entrenamiento y de la supresión de las diferencias. En otra dirección, la psicoanálisis propone una salida posible al discurso capitalista a través de la introducción del nuevo, en el apoyo a un deseo que permita al sujeto la pequeña singularidad que es suya, que no entra en el circuito del discurso.

Palabras clave: psicoanálisis, discurso capitalista, neoliberalismo, autismo.


 

 

Introdução

Neste artigo, objetiva-se problematizar o estatuto do autismo no contemporâneo, bem como o lugar reservado aos sujeitos autistas em um social atravessado pelos discursos neoliberal e capitalista. Para tal, apresenta-se um percurso teórico que considera os desenvolvimentos de Dardot e Laval (2016) acerca da razão neoliberal e do sujeito por ela engendrado, explicitando sua articulação ao que Jacques Lacan propôs como discurso do capitalista, aquele que desfaz o laço social. Parte-se dessas considerações para destacar e compreender o uso do significante autismo por autores como Alemán (2009) e Bernardino (2016), como modo de apresentar o momento histórico atual, catalisador do apagamento do outro e da dimensão da alteridade.

Na esteira dessa discussão, propõe-se analisar um vídeo publicitário referente à "jaqueta do abraço", produto destinado a acalmar crianças diagnosticadas autistas. A argumentação trabalha no sentido de compreender de que modo certas articulações discursivas, produtoras de sujeitos ultraindividualistas, podem contribuir para um cenário imperativo de objetos e carente de laços sociais, assim como seus efeitos na atenção aos sujeitos autistas.

 

Neoliberalismo e discurso do capitalista

Acompanhamos hoje a transformação das sociedades pela ampliação da influência do neoliberalismo no mundo. Tradicionalmente concebido enquanto doutrina econômica, o neoliberalismo pode ser lido como racionalidade, a razão do capitalismo contemporâneo (Dardot, & Laval, 2016; Rose, & Wickham, 1993). Como tal, tende a estruturar e organizar a ação dos governantes e a conduta dos governados, estendendo a lógica do capital às relações sociais e a todas as esferas da vida humana.

Uma leitura de base foucaultiana do neoliberalismo permite-nos compreendê-lo não apenas como ideologia, um tipo de política econômica, mas como sistema normativo que produz formas específicas de relações sociais, levando a novos modos de subjetivação (Dardot, & Laval, 2016). O neoliberalismo estabelece uma nova forma de ser, moldada para atender às demandas de um mercado altamente competitivo e autônomo.

No governo das vidas, o sistema neoliberal busca criar uma esfera de liberdade na qual agentes independentes assumem suas próprias decisões, perseguem suas preferências e buscam maximizar sua qualidade de vida (Rose, & Wickham, 1993), na construção de um viver muito mais individualizado. Nesse enquadre, os autores sugerem que o sujeito político deixa de ser o sujeito social, com direitos e obrigações derivadas de sua filiação ao corpo coletivo, para torna r-se o indivíduo cuja cidadania está ativa. Esta passa a manifestar-se fundamentalmente na busca enérgica de realização pessoal, meta última do chamado sujeito neoliberal (neossujeito).

Para o neoliberalismo, a produção desse sujeito não é ocasional. Como produto, o homem neoliberal constitui-se homogeneizado a uma lógica empresarial, sendo organizado por distintos dispositivos para conceber-se empreendedor, gerente da própria existência (Alemán, 2013a). Alienado à lógica de concorrência do mercado financeiro, ele administra sua vida como uma pequena empresa e produz consigo uma relação na qual o indivíduo, ele mesmo, torna-se o capital humano que deve crescer indefinidamente, valorizando-se cada vez mais.

Sem a distância simbólica que permite a elaboração política de seu lugar nos dispositivos que adestram seu corpo e sua subjetividade (Alemán, 2013b), o sujeito neoliberal é governado na medida em que foi constituído para "se governar" (Dardot, & Laval, 2016). A estratégia está na submissão do indivíduo a uma lógica que racionaliza todos os aspectos da existência, remodelando os processos de subjetivação.

A racionalização do desejo inscreve-se nesse cenário através da ideia de controle. Crente de que domina a realidade e pode calcular seu futuro, o neosujeito investe a si mesmo na garantia de que terá um percurso "vitorioso", transformando-se e aprimorando-se em uma formação para toda a vida. Se no caminho em direção ao sucesso as estruturas sociais revelarem sua precariedade, a desigualdade social se impuser e as contingências da vida acontecerem, como sempre acontecem, nada disso importa. Uma vez que tudo depende do indivíduo e de seus investimentos, a falta e a falha não têm outra função senão denunciar o fracasso, a insuficiência e a impotência desse neosujeito1.

Nesse sentido, as mutações subjetivas provocadas pelo neoliberalismo não são sem consequências. Elas operam na direção do egoísmo social, da negação da solidariedade e da redistribuição, e podem desembocar em movimentos reacionários e até mesmo neofascistas (Dardot, & Laval, 2016), gerando violência e exclusão social.

Para Alemán (2009), essa lógica aproxima-se do que Lacan nomeou discurso do capitalista. No campo lacaniano, os discursos são estruturas que, ordenadas pela linguagem, indicam a organização específica das relações do sujeito com os significantes e com o objeto, de modo que cada discurso representa uma modalidade de laço social. O discurso do capitalista faz exceção aos demais ao desfazer esse laço. Isso se dá na medida em que ele não escreve nenhum laço na relação entre os parceiros humanos (Figura 1). Escreve apenas a relação de cada sujeito com certo objeto mais-valia2, realizando uma forma de fantasia: o laço direto do sujeito com o objeto a (Soler, 2011).

Fig. 1. Discurso do capitalista

A escrita e, portanto, a leitura desse quinto discurso apresentado por Lacan é polêmica e não consensual entre os psicanalistas. Algumas interpretações, contudo, repetem-se na literatura (Alberti, 2000; Alemán, 2009; Pereira, & Gurski, 2014), sugerindo que essa estrutura discursiva põe em jogo a rejeição da castração.

Nessa escrita do discurso do capitalista, o importante é que entre os quatro termos [...] Lacan desenha uma flecha contínua, sem ruptura. Enquanto nos outros quatro discursos existe uma ruptura, uma descontinuidade, que é uma barreira [...] para designar que entre o gozo que um discurso torna possível e a verdade daquilo que é esperado como gozo, existe sempre um hiato. Na escrita do discurso do capitalista não há nenhum hiato (Soler, 2011, p. 61).

Ao velar as marcas da falta, esse discurso promove uma ilusão de completude e demonstra o modo como o sujeito encontra-se fixado ao objeto e, ao mesmo tempo, sujeitado a nada, sem dívida com a lei e com os semelhantes (Pereira, & Gurski, 2014). Para Lacan, essa lógica discursiva faz equivaler o que qualificamos de "humano" a qualquer objeto mais-de-gozar produzido pela indústria, ou seja, indica a degradação a qualquer objeto mais-de-gozar do que poderia trazer a marca do desejo, necessariamente singular (Lacan, 1970/1992; Alberti, 2000).

No mesmo movimento, o discurso do capitalista promove o apagamento do outro através da massificação dos objetos, do desgaste das relações políticas, da supressão da diferença geracional, do consumo hedonista e do desregramento pulsional (Pereira & Gurski, 2014). Ao fazer desaparecer o outro e excluir "as coisas do amor", segundo expressão de Lacan, esse discurso vai ao encontro da racionalidade neoliberal na produção de um sujeito ultraindividualista, centrado em sua própria promoção e sucesso pessoal. Ou, ainda, na produção de um indivíduo autista e consumidor, indiferente à dimensão constitutivamente política da existência (Alemán, 2009).

Interessa-nos destacar a escolha de Alemán pelo significante "autista" para caracterizar o sujeito neoliberal, marcado pelo discurso capitalista. Como podemos acompanhar a seguir, esse uso não é inédito na literatura psicanalítica. Silva (1997, p. 29) lança a questão:

Seria muito ousado considerar o autismo emblemático deste nosso tempo pós-moderno, onde a individualidade e a singularidade já se consolidaram como valores absolutos e a força da tradição não possui mais o impacto de antes? Um tempo onde o que parece prevalecer é uma referência a si próprio, como se fosse possível viver sem relação e sem referência ao outro?

Conforme Kupfer (1999), a invenção do autismo é, ela mesma, condicionada pelos discursos e experiências da atualidade. Assim, o autista criado por Kanner não é o mesmo que poderia ter surgido no mundo antigo, pois esse nome recorta e cria um novo discurso que o situa e dá lugar no contemporâneo. Mundo que, há 20 anos e em termos de Brasil3, abria as portas para a globalização e o neoliberalismo, inaugurando um período de intensas transformações sociais.

A rapidez e a intensidade dessas transformações causaram preocupação sobre o futuro: "Diante do mundo atual [...] bombardeado pelas frequências graves de filmes e propagandas, pergunto-me: será que o mundo que ora projetamos para o futuro não é exatamente esse mundo autista de singularidades, sem objeto, sem relações?" (Rocha, 1997, p. 109).

Dez anos depois, Aléman (2009) asserta que comparece na atualidade um indivíduo autista, referido ao gozo autista do objeto técnico que é vendido como mercadoria subjetiva na cultura de massas. Mais recentemente, Bernardino (2016) dispõe da expressão tempos de autismo para referir-se ao presente momento histórico, no qual as condições simbólico-culturais favorecem alguns sintomas próprios ao quadro autístico, em especial a foraclusão do Outro.

A que se referem os autores? Como justificar tal emprego significante?

 

Autismo e psicanálise

Em nossa leitura, consideramos que o autismo põe em cena uma fragilidade no laço ao Outro, o que pode ocorrer pelas mais diversas razões. Em termos da constituição do sujeito, o Outro é o tesouro dos significantes, portador primordial da linguagem endereçada ao bebê. Em Lacan, é uma função a ser desempenhada por personagens em posição privilegiada na relação com o infans. Essa função depende de um outro corporificado, uma vez que a transmissão precisa de um nome e de um corpo (Jerusalinsky, 2016), e envolve o endereçamento de significantes e interpretações que marcam e medeiam a relação da pequena criança com o próprio corpo, o outro e o mundo, trabalho fundamental para a constituição subjetiva.

Diferente do que se apresenta nas demais estruturas, no autismo a fragilidade do laço ao Outro é impeditiva, visto que testemunha o fracasso na construção das redes de linguagem, fornecedoras de saber sobre o mundo e as pessoas (Jerusalinsky, 2012). Com a falha na inscrição da linguagem, a criança fica sem marcas. Isto é, mantém uma prevalência de automatismos que, fora do simbólico, fazem resistência tanto à entrada do outro no seu mundo quanto à sua entrada no mundo social.

Sem reconhecer uma existência outra, o autista fica em exterioridade ao coletivo, estando aí na condição de estrangeiro. "Desenlaçado" do social, sem acesso à mediação discursiva, o pequeno sujeito está sempre correndo o risco de ser destruído pela própria violência do gozo que não consegue escoar pelas vias comuns oferecidas pela cultura (Laurent, 2014). Às vistas disso, a clínica do autismo mostra as consequências da recusa da alienação do sujeito ao discurso do Outro.

A aceitação em se alienar à demanda desse Outro do qual o bebê depende está na satisfação em ser reconhecido e amado. Ele encontra nisso um prazer, um "gozo aparelhado aos significantes do Outro" (Nominé, 2012, p. 36). Todavia, a alienação à demanda está condicionada igualmente à renúncia de parte desse gozo, que será perdido. Quando recusa essa perda, o bebê fica sem poder "gozar-se" por intermédio do outro; o sujeito "se goza" sem o trajeto pulsional que poderia articular seu corpo ao Outro (Laurent, 2014).

Nesse contexto, a exp ressãogozo autista remete a um gozo não barrado, mortífero na medida em que não encontra mediação nos discursos e produções humanas, linguageiras. Na cena capitalista, gozo autista remete à venda de uma ilusão de completude: o que deveria ser renunciado o capitalismo oferece na forma de objeto-mercadoria. Trata-se de uma lógica econômica de gozo que dissolve o desejo através do oferecimento de um gozo dos objetos que sustenta a ilusão de que uma recuperação do gozo perdido é possível no âmbito do mercado (Danziato, 2012). Essa promessa de acesso ao gozo, por sua vez, está relacionada ao que demarcamos no discurso do capitalista como rejeição da castração. É a anulação da impossibilidade est rutural, causadora do desejo e da possibilidade de um dizer próprio (Bernardino, 2016).

No simbólico, a dimensão do impossível está sempre em jogo, razão pela qual falamos em ilusão de completude e de gozo pleno. Por outro lado, no real nada falta, não há furo. Ao assumirmos que o sujeito autista não opera na linguagem, restando imerso em real (Jerusalinsky, 2012), consideramos que para esses sujeitos não há inscrição da falta, o que os faz apresentar uma intolerância ao furo, como nomeada por Laurent (2014).

Visto que as crianças autistas estabelecem uma espécie de recusa no encontro com a linguagem, o sujeito fica sem furo, como em uma estrutura esférica. Se não há furo, não há borda para delimitá-lo. Zona fronteiriça, possível de ser transposta, a borda é o lugar onde trocas e contatos podem ocorrer (Laurent, 2014). Na produção do fechamento autístico, o sujeito realiza o contrário: um limite intransponível, lugar de pura presença que o torna inacessível ao outro.

A fim de possibilitar esse acesso, as bo rdas, os limites e as formas do corpo precisarão ser produzidas junto à criança, o que se dá no encontro com o significante. Restrepo (2012) faz uma escolha interessante para falar desse trabalho. Ela propõe que o analista, junto à criança, seja o Outro que se deixa descompletar. Um Outro barrado, em falta, que possa calar, depor seu olhar e sua voz quando se tornarem excessivos para o paciente, mas ao mesmo tempo emprestar-lhe a presença, o corpo e as palavras, dando lugar ao surgimento, ao desenvolvimento do que singulariza cada sujeito.

Mediante a interferência de um Outro presente, real e incompleto, vemos despontar um espaço possível para o particular de cada sujeito, seu desejo. Qualificado de autista, o sujeito neoliberal abstém-se do desejo a fim de encobrir a angústia gerada por sua condição de falta, ela mesma essencial ao ato de desejar. Enlaçado ao social, portanto alienado aos discursos que o constituem, cabe a ele o trabalho de manutenção de um espaço singular que, no entanto, não o fará autônomo ou independente, na medida em que o sujeito de que tratamos não é abstrato ou individualizado, mas atravessado pelo gozo e pelo desejo.

Às avessas do que promete o discurso do capitalista, a psicanálise propõe trabalhar com o impossível em seus diversos nomes. Enquanto o capitalismo lança a oferta incessante de objetos de consumo descartáveis e anestesiantes da relação do sujeito com o mundo, na frustrada missão de obliterar um vazio que insiste em comparecer, o psicanalista oferece em transferência um trabalho de produção de furos e de relações descompletas, porém possíveis, com o real.

 

Onde ciência e capitalismo se encontram engenhocas abraçam

No discurso capitalista, a relação direta a → $ evidencia o sujeito comandado pelo objeto, pelos produtos. Quanto mais a civilização avança, mais os humanos são instrumentalizados pelos aparelhos e ferramentas, sem os quais não podem ficar, sendo suficiente um pequeno defeito para que tudo trave de modo dramático (Soler, 2011). Mais que produzir dependência, os objetos consomem os sujeitos, anestesiando suas relações políticas e afetivas com o mundo.

O encontro do capitalismo e da ciência levou à produção extensiva desses objetos que, feitos para servir ao humano, muito frequentemente servem-se dele na geração do consumo e do lucro. Como lembra Bernardino (2016, p. 415-416), o cientificismo passou a constituir a autoridade contemporânea, com dois traços prevalentes: a retirada da categoria do impossível (a ciência vai dar conta de todo o real) e a perda da relação espontânea com o mundo. Nesse lugar de referência, a ciência, ao contrário do falo, não vem representar a falta, mas anular os limites. Ao invés de garantir um pacto simbólico que envolve o senso comum, propõe o abandono desse senso.

Por sua vez, a submissão da ciência à técnica teve como efeito um meio habitado por objetos produzidos pela primeira e oferecidos pelo mercado aos sujeitos, então meros consumidores que fazem a cadeia econômica funcionar (Bernardino, 2016; Restrepo, 2012). Em "A terceira", Lacan (1974/2002, p.) refere-se às "engenhocas" criadas pelo capitalismo tecnológico nos seguintes termos:

[...] no que é que isso dá, afinal de contas, a ciência? Isso nos dá alguma coisa para colocar no lugar do que nos falta na relação, na relação do conhecimento, como dizia há pouco, nos dá nesse lugar, afinal de contas o que, para a maioria das pessoas, todos aqueles que aqui estão em particular, se reduz a engenhocas: a televisão, a viagem à Lua e, ainda assim, a viagem à Lua vocês não farão, só existem alguns selecionados. Mas vocês veem isso na televisão. É isso, a ciência parte daí. [...] Então aí o círculo se fecha sobre o que acabo de lhes dizer há pouco: o futuro da psicanálise é algo que depende do que advirá desse real, ou seja, se as engenhocas, por exemplo, ganharão verdadeiramente a dianteira, se chegaremos a ser, nós mesmos, verdadeiramente animados pelas engenhocas. Devo dizer que isso me parece pouco provável. Não chegaremos a fazer com que a engenhoca não seja um sintoma, pois ela o é, por enquanto, muito evidentemente (Lacan, 1974/2002, p. 70; grifo nosso).

Sintomas do contemporâneo, esses produtos vêm responder às exigências de um social inconsistente, que demanda a cada um, individualmente, que seja responsável por seus laços sociais. À diferença de outras épocas históricas, em que os sujeitos buscavam escapar das amarras de um laço social consistente, hoje o problema é adentrá-lo (Soler, 2011), estar aí com o semelhante.

Nesse cenário, o autismo adquire certo status por colocar o laço social radicalmente em questão, apresentando um sujeito que recusa a alteridade. Influenciadas pela colusão ciência-capitalismo, disciplinas como a psicologia e a psiquiatria emergem nesse âmbito como aquelas capazes de responder aos ideais de um discurso científico, positivista, que busca produzir resultados rápidos via abordagens homogeneizantes (Restrepo, 2012). No caso do autismo, a medicalização infantil e a adoção de técnicas com foco na adaptação social da criança.

Um objeto técnico inserido nessa lógica discursiva é a T-jacket, jaqueta do abraço, sobre a qual propomos um trabalho de análise. Trata-se de um dispositivo designado para simular a sensação de um abraço, através do trabalho com sistemas de pressão de ar. Sua finalidade é produzir conforto e acalmar qualquer pessoa em situação de estresse ou ansiedade4, sendo utilizada preferencialmente em crianças com diagnóstico de autismo.

A jaqueta possui o design de um colete, possibilitando uso diário e discrição quanto à sua função terapêutica. É controlada por aplicativo via smartphone ou tablet, permitindo ser operada remotamente pelos pais, e interpreta os sinais do usuário para modular os níveis de pressão de ar, intensidade e duração do efeito de acordo com a situação. É capaz de detectar sinais de agitação na criança e indicar o momento em que o "abraço" deve ser acionado.

Vendido nos Estados Unidos, o produto conta com site para informações e publicidade, assim como uma área dedicada às opiniões e experiências dos usuários. Dentre o material disposto, destacamos para análise o vídeo de divulgação da jaqueta5, que exemplifica em imagens seus usos e efeitos. Descrevemos o material a seguir:

Cena 1. Criança e mãe na estação de metrô. Criança se agita. Mãe, ao seu lado, ativa a jaqueta via aplicativo de celular. Jaqueta infla e "aperta" a criança. Mudança imediata na expressão facial infantil, indicativa de calma.

Cena 2. Menino na escola. Mostra sinais de incômodo (bravo?). Jaqueta detecta mudança na criança e emite aviso para a mãe, via aplicativo de celular. Mãe avisa a professora (via celular), que ativa a jaqueta na intensidade strong (forte). Mudança imediata na expressão infantil, indicativa de calma. Aplicativo envia à mãe a mensagem: "John is happy" (John está feliz).

Cena 3. Criança brincando sozinha, girando, emitindo risinhos. Demonstra excesso de excitação. Ela mesma ativa a pressão da jaqueta via celular. Mudança imediata em sua expressão, indicando alívio.

Primeiramente, interessa-nos destacar a preeminência do objeto nas cenas. Como objeto técnico, a jaqueta vende a produção de certos efeitos terapêuticos sobre o usuário, tais como calma e conforto. Seu desenvolvimento, realizado em parceria com terapeutas ocupacionais, pesquisadores, psicólogos clínicos e educadores, recorta o problema (ansiedade, agitação, crise) a partir de um discurso científico específico, neurofisiológico, que oferece ao produto seu respaldo técnico. Como lugar de saber último (Bernardino, 2016), a ciência certifica o valor do objeto.

Contudo, o esforço publicitário não se detém nos aspectos técnicos, apostando na venda da ideia de que a jaqueta acalma "como um abraço", slogan ao qual são associadas as figuras da mãe, da professora e de um gigante urso de pelúcia. Secundário, o elemento afetivo surge como ponto de captura. É o "a mais" que, associado ao objeto, faz com que seja causa de desejo. Como em um abraço, a jaqueta não apenas contém a criança, desempenhando sua função formal, mas associa-se igualmente às ideias de carinho, cuidado, afago. O objeto passa a comportar múltiplos sentidos, na medida em que o consumidor participa da criação desse imaginário. Ele contribui com suas próprias associações e universo fantasmático.

Por que, então, situamos o elemento afetivo em segundo plano? Paradoxalmente, a mercadoria dispensa as próprias figuras a que faz referência. No vídeo a expressão é clara: não há nenhum tipo de endereçamento ou contato físico entre pessoas, o "abraço" fica a encargo exclusivo da jaqueta. Mesmo que as personagens estejam ao lado da criança, destacam-se em todas as cenas os objetos, seja o produto central ou os gadgets que possibilitam seu uso. Vemos desaparecer as figuras humanas, em favor dos objetos que medeiam o contato entre elas.

Tal montagem se reflete igualmente na completa ausência de diálogos ou falas. Afora referências básicas de localização e as palavras grafadas do aplicativo, compõem o vídeo apenas sons inarticulados e ruídos. A construção realiza-se primordialmente sobre imagens, privilegiando, portanto, o registro do imaginário e a ilusão de totalidade que apresenta.

Como lembra Julieta Jerusalinsky (2016), o bebê humano não nasce apropriado de seu corpo. Nos primórdios da vida, é o agente da função materna que sustenta a instauração de um funcionamento corporal subjetivado, na medida em que interpreta qual seria a ação específica que poderia satisfazer o bebê e tirá-lo de seu estado de desamparo. As chaves de acesso ao mundo simbólico são transmitidas ao infans por um outro falante que se afeta por suas produções, que quer saber dele.

Por exemplo, para que o choro comunique, represente outra coisa que não simples barulho, é necessário que alguém o escute e codifique. O agente mate rno, em relação de identificação com a criança, poderá produzir interpretações sobre o que se passa com ela, emprestando representações e disponibilizando seu saber inconsciente para que o bebê possa chegar a constituir algum saber (Jerusalinsky, 2016). Quando essa operação é satisfatória, aos poucos o choro do bebê se torna inteligível para o social, a criança pode ser lida por outras pessoas que não os pais. Isso ocorre porque o código impresso às produções infantis não é o da mãe, ainda que seja transmitido po r ela de forma muito particular, mas o do Outro. E nvolve o coletivo.

Bem estabelecidas, as operações linguageiras primordiais possibilitam certa organização do mundo infantil, indicando que a criança, incluída no universo simbólico comum de seus semelhantes, tem acesso às referências, significados e sentidos compartilhados po r eles. Do contrário, quando a inscrição das estruturas primordiais falha, o bebê humano fica sem referências, podendo contar apenas com seus automatismos neurobiológicos (Jerusalinsky, 2012). Isso acontece porque a criança que não é tocada pela linguagem fica sem acesso ao código linguístico. Daí que certas manifestações de crianças autistas, tais como os gritos inarticulados, desencadeiem estranhamento social. Suas expressões sonoras não passam pelo trabalho de transformação do som em mensagem, fazendo com que o grito se mantenha, não cedendo lugar à palavra. Assim, quando grita, a criança não comunica, pois aquele que a escuta não conta com recursos para acessá-la. Suas manifestações subjetivas soam ininteligíveis e aleatórias.

O mesmo vale para as percepções da criança sobre o mundo. Sem a linguagem, o mundo torna-se apenas caos, um amontoado (real) de aleatório. Carecendo de nome, sentido e representação, acontecimentos cotidianos podem ser extremamente ameaçadores à criança, no sentido de uma ameaça à própria existência. Como mediadora da relação do humano com o que o cerca, a linguagem contém certo excesso (de gozo) que aproxima o sujeito da morte, do aniquilamento. Ela dá forma à realidade.

No vídeo, o silêncio e a falta de ende reçamentos à criança indicam a ausência dessa mediação significante. Em seu funcionamento, a jaqueta dispensa precisamente o trabalho humano que pe rmite produzir as inscrições que irão dar suporte ao corpo do sujeito:

É a partir dessas inscrições primordiais produzidas na relação com um Outro encarnado que se passa do afeto à sua representação, do corpo à linguagem, do gozo ao saber, produzindo entre essas instâncias de diferentes ordens uma inscrição (a inscrição da letra como rasura inconsciente no psiquismo) que articula, que faz dobradiça fundamental para a constituição psíquica e para a apropriação imaginária do corpo (Jerusalinsky, 2016, s.p.).

Ainda que possa produzir efeitos como alívio da tensão e relaxamento, a jaqueta do abraço priva o sujeito do encontro com o (corpo do) semelhante e com a linguagem, fornecendo uma solução apressada e anônima. Não há outro efetivamente implicado no processo de lida com o corpo infantil, que se consome em excitação. Desse modo, o corpo da criança permanece encerrado em si mesmo, sem uma zona possível de trocas. O design da jaqueta permite-nos visualizar essa estrutura, uma vez que a criança incorpora o objeto, o qual permanece aderido ao seu corpo.

Ace rca do que chamou intoxicação digital e de oferta excessiva de objetos tecnológicos a bebês e pequenas crianças, Jerusalinsky (2016) lembra que a questão não é propriamente a oferta desses objetos, mas quando a promessa mercadológica se faz no sentido de uma suposta economia da relação com o Outro, "poupando" os semelhantes do trabalho de se relacionar com o mal-estar e os equívocos que isso comporta, pois haveria um objeto realmente adequado à satisfação.

Nesse caso, o trabalho de humanização da criança passa por uma espécie de terceirização, sendo o cuidado delegado ao objeto. Ao invés do auxílio humano, contingente e plural, compa recem as respostas unívocas e imediatas dos objetos da ciência. No lugar do saber inconsciente transmitido por gerações, instala-se o discurso científico, que exime o sujeito de assumir as consequências e os incômodos que o falar implica (Bernardino, 2016).

Numa transposição ao universo neoliberal, essa dinâmica está diretamente associada aos fenômenos de terceirização e precarização do humano, pa rticipantes na criação de um cenário de constante instabilidade para o sujeito. A ideologia do sucesso individual, do self-help, destrói o vínculo social na medida em que este repousa sobre deveres recíprocos em relação ao outro. Como manter juntos sujeitos que não devem nada a ninguém? (Dardot, & Laval, 2016). Não por coincidência, surgem cada vez mais objetos cuja função é "substituir" a presença do outro, de travesseiros que abraçam bonecas sexuais hiper-realistas.

Ainda no vídeo, a cena 2 apresenta a criança na escola. Enquanto sua imagem ganha evidência, os demais colegas são representados por silhuetas humanas pintadas de cinza, indistintas. Na cena do metrô, as pessoas também não possuem rosto e suas falas são simples ruído. Um unive rso assustador, caricato do funcionamento autista, refletido no apagamento da dimensão do outro e nos traços mortíferos de sua presença e manifestações subjetivas.

Mais uma vez recuperamos a fala de Rocha (1997):

Diante desse mundo atual - caleidoscópio apelativo de imagens recortadas, desconexas, que se sucedem como nos vídeo-clips - mundo bombardeado pelas frequências graves de filmes e propagandas, pergunto-me: será que o mundo que ora projetamos para o futuro não é exatamente esse mundo autista de singularidades, sem objeto, sem relações? Mundo em que inexiste o semelhante - povoado de rostos imóveis e inescrutáveis, sem expressão, sem afeto: con-ge-la-dos. Ou será o nosso um mundo implacável de ficção científica, primitivamente cruel, sem preocupação nem solicitude para com o outro? (Rocha, 1997, p. 109).

Para Cavalcanti e Rocha (2007), o fascínio exercido pelos autistas no imaginário contemporâneo deve-se, entre outros, à projeção feita sobre eles de alguns traços do funcionamento social. Graças a essas projeções, o mundo autista pode ser narrado como cruel, individualista e sem semelhantes. Um mundo em que a criança não pode contar com o outro, que a ameaça.

Freudianamente, essa montagem situa o autista no lugar do estranho, aquele que faz retornar ao Eu aspectos familiares e conhecidos, porém negados. É nessa via que as pessoas em cinza no vídeo-divulgação, apagadas em sua dimensão de alteridade, representam uma caricatura não apenas do autista tal como situado clinicamente, mas do desamparo do sujeito (de desejo) no mundo neoliberal. Retrato desses tempos de autismo (Bernardino, 2016) que tendem à ausência do Outro, à mesmice e ao isolamento dos sujeitos, cada vez mais presos às relações com seus objetos.

Como o familiar excluído, o autismo gera tanto fascínio quanto segregação. Não é sem importância perceber que o interesse despertado pelos chamados "autistas de alto funcionamento", em geral muito mais autônomos e adaptados socialmente, não é o mesmo do autista considerado de "baixo funcionamento", frequentemente lido em termos de déficits e inadequações.

López e Sarti (2013) conduzem uma importante discussão acerca do conceito de normalidade subjacente à assistência aos autistas no Brasil. No trabalho de pesquisa com duas instituições, sendo uma delas orientada por abordagens educativas (comportamentais) e a outra pela psicanálise, as autoras situam os esforços educativos como formas de "amenizar" as características autísticas das crianças, de modo a torná-las menos perceptíveis ao grupo social (não sabemos ao certo se as características ou as crianças).

Nesse contexto, as práticas de aprendizagem têm como referência o desenvolvimento e o comportamento tidos como normais: "parecer 'normal' torna-se a alternativa vislumbrada para evitar o incômodo causado pela diferença evidenciada pela peculiaridade da criança autista, esquisita" (López, & Sarti, p. 84; grifo nosso). A aparente normalidade e a adequação das crianças, convenientes ao discurso capitalista, estariam associadas aos objetivos da instituição de "promover uma melhor adequação possível à sociedade". Ocorre-nos perguntar: quais os benefícios dessa terapêutica para as crianças?

Como pontua Elia (2012), qualquer inclusão (no laço social) que se pretenda total visa achatar as arestas da diferença, tornar o sujeito idêntico ao Outro. É o que ocorre nas tentativas da ciência em enquadrar o autismo, adestrá-lo e reduzi-lo.

Entregue às operações da ideologia cientificista da medicina do comportamento, lastreadas pelo poder incalculável dos lucros da indústria de psicofármacos, o autismo não conhecerá outro destino senão o da segregação travestida, como convém, da mais cínica aventura repleta de proezas no desenvolvimento de "competências sociais", inclusão, benefícios sociais junto às políticas públicas de assistência [...] que não apenas mantêm intacta a posição do sujeito - como um não-sujeito, um objeto que se crê ativo e ativado pelo pragmatismo das conquistas no espaço de suas relações na pólis - como engendram incessante e performaticamente essa posição de objeto de manipulação social e política (Elias, 2012, p. 62).

A inclusão social via normalização desacredita e desampara o sujeito, produzindo novas formas de exclusão. Aceita-se a presença da criança desde que suas manifestações sejam neutralizadas ou contidas (como faz a jaqueta), de acordo com normas frequentemente não compreendidas por ela. São exemplos: a produção de intervenções educativas que tem como efeito a repetição constrangedora de frases sem sentido e contexto, totalmente alheias ao falante; a inclusão escolar de crianças autistas que são retiradas do grupo sistematicamente, ao manifestarem qualquer incômodo ou desconforto; as técnicas de treinamento envolvendo punições e recompensas, etc. Modos de lidar com o autismo que ignoram seu sujeito, impossibilitando o deslocamento da criança da posição de objeto do Outro e a assunção de qualquer traço propriamente seu. É para esse ponto que a psicanálise tem chamado a atenção.

 

A psicanálise como saída possível do discurso capitalista

Considerando que os desafios apresentados aos psicanalistas no campo do autismo são eminentemente políticos, Laurent (2014) propõe falar em "causa do autismo", um movimento público em prol da diversidade, contra a homogeneização das intervenções e a normalização dos sujeitos. A ideia de causa inscreve uma marca política na questão do autismo ao deslocá-la do âmbito privado para o público: o lugar reservado aos autistas no contemporâneo é de responsabilidade coletiva. Desse modo, não é cabível culpabilizar famílias (por exemplo, por utilizar a jaqueta do abraço para acalmar seus filhos!), pois a discussão é estrutural, atingindo os modos como tem sido sustentado o cuidado às crianças, em relações que são necessariamente atravessadas pelos ideais sociais.

Fica a questão: como a psicanálise pode operar nesse campo, sem se confundir com os discursos militantes, apaixonados, ou os discursos do bem? Lacan deixa alguns direcionamentos. Em "Televisão" (1974/1993), p ropõe uma saída possível do discurso capitalista através da psicanálise. A proposta não é romântica, não há sugestão de ruína do capitalismo ou sua reversão, mesmo porque, analistas ou não, estamos todos presos a esse discurso. Então, o que significa situar a psicanálise como saída possível?

Novamente em "Televisão", o autor diz: "o discurso analítico traz uma promessa: introduzir o novo" (Lacan, 1974/1993, p. 529). Na leitu ra de Sole r (2011), novo associa-se a desejo. Dessa forma, o que a psicanálise pode objetar do discurso capitalista está na sustentação de um desejo outro, ou desejos outros, possibilitando ao sujeito a pequena singularidade que é sua, a pequena parte do desejo que não entra no circuito do discurso. Essa seria uma forma não de barrá-lo, mas de subtrair dele alguma coisa.

Na escuta do um a um, a psicanálise faz presença em tempos de capitalismo, tempos de autismo, resgatando as dimensões da diferença e do desejo, na recusa das soluções universais, "infalíveis", e invenção de soluções particulares. Nesse sentido, ainda que discursos busquem calar o sujeito e desconhecer sua singularidade, restam os psicanalistas para lembrar o poder das palavras e de como são fundamentais na constituição subjetiva (Bernardino, 2016).

Pa ra uma saída possível do discurso capitalista, cabe aos analistas dar lugar de sujeito ao outro, recuperando sua soberania em relação aos tantos objetos disponíveis no mercado. Mesmo porque, por mais realistas e eficientes que sejam, os objetos da tecnociência jamais poderão substituir o corpo, o olhar e a voz do semelhante na transmissão do que constitui o humano.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 20/08/2017
Aprovado para publicação em: 09/05/2018

Endereço para correspondência
Natália de Andrade de Moraes
E-mail: ntdandrade@gmail.com
Cláudia Maria Perrone
E-mail: cmperrone@ig.com.br

 

 

*Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria.
**Psicóloga e Psicanalista. Membro da Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Professora Adjunta do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
1Para o sistema, não importa necessariamente que o sujeito seja bem-sucedido, uma vez que a estrutura capitalista, baseada no lucro, se estabelece em relações de desigualdade. Contudo, é importante que o sujeito tome responsabilidade pelo fracasso e trabalhe para superá-lo. Num cenário de intensa competitividade, ele não pode parar: de investir, de produzir, de consumir, mesmo que sinta desprazer e sofra. Tudo é mercado (educação, saúde, cultura, relações pessoais). Recentemente no Brasil, o slogan "Não pense em crise: trabalhe" fez eco a essa ideologia.
2Em Marx, a mais-valia é uma parte do trabalho que não é paga ao trabalhador, uma vez que é apropriada pelo dono dos meios de produção. Representando o lucro, a mais-valia é o objeto visado e apropriado pelo capitalismo.
3Importa notar que essas referências situam-se em fins dos anos 90, década em que as políticas neoliberais promoveram intensas transformações no Brasil.
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