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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

Quando elaborar implica em "ir esquecendo": sobre a dimensão criativa do esquecimento

 

When to elaborate leads "to forget": about the creative dimension of forgetfulness

 

Quand élaborer implique en "oublier": à propos de la dimension créatrice de l'oubli

 

 

Ricardo SalztragerI*; Nilcineia Neves LongobucoI**

IUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta do artigo é analisar a dimensão criativa do esquecimento através de uma discussão sobre o conceito de elaboração psíquica. Partimos do pressuposto de que elaborar implica em "ir esquecendo" conflitos, perdas ou ressentimentos e, com isso, o sujeito consegue ressignificar sua história e se transformar de alguma maneira. O exame é feito mediante um diálogo entre a teoria de Nietzsche e os textos clínicos de Freud, com ênfase no redimensionamento que ocorreu em sua teoria a partir da formulação do conflito entre Eros e Thanatos.

Palavras-chave: esquecimento, elaboração, Freud, Nietzsche, Thanatos.


ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the creative dimension of forgetfulness through a discussion about the concept of psychic elaboration. We start from the assumption that to elaborate implies "to forget" conflicts, losses or resentments and, with this, the subject resignifies its history and is transformed. The examination is done through a dialogue between Nietzsche's theory and Freud's clinical texts, emphasing on the change that occurred in his theory from the formulation of the conflict between Eros and Thanatos.

Keywords: forgetfulness, elaboration, Freud, Nietzsche, Thanatos.


RÉSUMÉ

Le but de cet article est d'analyser la dimension créatrice de l'oubli à travers d'une discussion sur le concept d'élaboration psychique. Nous partons de l'hypothèse que l'élaboration implique "d'oublier" les conflits, les pertes ou les ressentiments et que, de ce fait, le sujet parvient à résinifier son histoire et à se transformer. L'examen se fait par le biais d'un dialogue entre la théorie de Nietzsche et les textes cliniques de Freud, l'accent étant mis sur le changement intervenu dans sa théorie depuis la formulation du conflit entre Eros et Thanatos.

Mots-clés: oubli, élaboration, Freud, Nietzsche, Thanatos.


 

 

Ao longo do pensamento freudiano, o fenômeno do esquecimento foi preferencialmente enfatizado em sua dimensão defensiva. Ou seja, tido como o efeito mais direto do processo de recalque, Freud jamais deixou de marcar que esquecer significava basicamente defender-se. Assim, quando uma criança durante a latência se esquece de todas as manifestações sexuais da infância remota, ela está propriamente se defendendo. O mesmo vale para o neurótico em relação a seus desejos, para o sujeito em relação aos seus sonhos tão logo se dê o despertar, dentre tantos outros exemplos que podem ser aqui elencados.

No entanto, podemos dizer que ao mesmo tempo que Freud privilegiava essa dimensão defensiva do esquecimento, jamais deixou de demonstrar que este também possui uma vertente propriamente criativa. Isso pode ser atestado através de seus mais variados escritos, dos iniciais aos mais tardios, todos evidenciando a transformação subjetiva que advém a partir de um ato de esquecimento. Enfim, tudo concorre para a afirmação de que ao esquecer o sujeito se defende, mas também se transforma, deixando para trás parte de sua história e assumindo uma nova posição frente ao mundo.

Nas "Lembranças encobridoras", por exemplo, Freud (1899/1996) destaca que a própria constituição da memória pressupõe o esquecimento daquilo que realmente se passou. Em outros termos, a infância que construímos e que se torna tão efetiva para o restante das nossas vidas se funda a partir de um esquecimento primordial, esquecimento este marcadamente defensivo. Todavia, com esse esquecimento, uma história encontra a possibilidade de ser contada e uma existência começa a se delinear. Com efeito, uma série de processos eminentemente criativos entra em cena e aí adquire seus devidos espaços.

Nessa mesma esteira, podemos colocar que o trabalho de constituição do "eu" (Freud, 1914/1996) igualmente pressupõe em suas bases um ato de esquecimento, na medida em que, ao longo dele, o sujeito passa a excluir de sua consciência tudo o que não corresponde à concepção narcísica de si. Do mesmo modo, acaba por projetar no outro aquilo que não reconhece em si mesmo, o que igualmente conduz a um ato de esquecimento. Trata-se obviamente de mecanismos eminentemente defensivos, mas que não deixam de ser igualmente criativos na medida em que promovem o advento não apenas do "eu", mas também do outro e, com isso, uma série de conflitos, alianças, paixões e tantas outras coisas vai sendo instituída.

Prosseguindo com nosso raciocínio, o mecanismo de inserção e filiação do sujeito à cultura também conduz necessariamente ao esquecimento e à negação de uma parte de si. Com efeito, para viver em sociedade, é imprescindível que o sujeito reconheça a "moral sexual civilizada" (Freud, 1909a/1996) e, assim, se empenhe em uma luta constante para manter afastados da consciência seus mais incisivos desejos sexuais e hostis. Temos novamente um mecanismo ao mesmo tempo defensivo e criativo, pois é ele que promove, por exemplo, todo o sofrimento neurótico, mas também a própria possibilidade de sublimação.

Conforme colocamos, todos esses exemplos dizem respeito a uma dimensão do esquecimento atrelada ao trabalho de recalque. Trata-se, portanto, do esquecimento proveniente dos mecanismos de negação, exclusão, expulsão ou mesmo interdição, processos de saída tidos por Freud como falhos já que, de certa forma, implicam na preservação e manutenção do que se almejou esquecer. Nessa perspectiva, cabe destacar que a partir da circunscrição do conceito de pulsão de morte (Freud, 1920/1996) essa vertente criativa do esquecimento será radicalizada e repensada para além de tudo o que envolve a permanência, a preservação e a manutenção do esquecido. Teríamos, com isso, o esquecimento pensado independentemente do mecanismo de recalque e agora vinculado a um plano de forças dissociado da ideia de representação psíquica.

Trata-se do esquecimento circunscrito a partir do conflito entre Eros e Thanatos, o que implica no reconhecimento da fragilidade de tudo o que um sujeito constrói para si. Em outros termos, com esse redimensionamento teórico, Freud começa a sublinhar que as coisas são por nós construídas para serem ao mesmo tempo destruídas, e isso no próprio ato de sua construção. De fato, o relevo concedido ao conflito entre Eros e Thanatos vem denunciar a própria precariedade do sujeito, bem como de suas fantasias e de tudo o que ele produz. Tudo isso leva a encarar a dimensão criativa do esquecimento como implicada no próprio ato de desconstrução de tudo o que é antigo, conduzindo o sujeito a um interminável trabalho de reinvenção de si e do mundo.

A maneira como o esquecimento é pensado na teoria freudiana pelo viés da pulsão de morte pode ser descrito nas seguintes palavras:

A partir de 1920 [...], ao propor uma nova teoria pulsional, Freud foi capaz de pensar para além do recalque, para além do conflito entre tendências que visariam a manutenção de uma imagem de si, de uma identidade e outras que a estariam ameaçando. [...] Na última parte de sua obra, Freud proporá uma modalidade de esquecimento que não se limita à representação recalcada. É quando introduz, no seio de uma memória organizada, e como fonte dessa própria organização, as forças de Thanatos, a pulsão de destruição. Destruição que também será vista como fonte do novo: para criar novas formas, será preciso destruir as antigas: a pulsão de destruição torna possível a criação" (Gondar, 2000, p. 42).

Com base em toda essa discussão, a proposta deste artigo é analisar a dimensão criativa do esquecimento pelo viés do trabalho de elaboração psíquica. Trata-se de uma noção que atravessa grande parte da produção teórica de Freud, embora pouca atenção conceitual lhe tenha sido dada.

Com efeito, o conceito de elaboração é de difícil definição, por muitas vezes impreciso e confundido com tantas outras figuras que lhes são, em parte, parecidas, como as de ressignificação e de reconstrução. Daí a ideia de nos voltarmos também a Nietzsche com o intuito de melhor compreender o que está em jogo na elaboração psíquica e como ela necessariamente traz consigo algo da ordem do esquecimento e da reinvenção subjetiva. Passemos primeiramente ao exame de como a noção de elaboração psíquica aparece na clínica e na teoria freudiana.

 

A elaboração psíquica

Conforme colocamos, Freud raras vezes concedeu atenção à noção de elaboração e, mesmo quando ela aparece no título de um de seus mais importantes escritos - "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914a/1996) - apenas os dois últimos parágrafos são dedicados ao tema. Nessas poucas linhas, salta aos olhos a imprecisão conceitual a ela atribuída, o que a torna bastante obscura do ponto de vista teórico, embora sua relevância clínica seja inegável.

E é justamente no contexto clínico que a noção de elaboração é apresentada. No texto em questão, Freud promove uma revisão de seu trabalho com as neuroses para acentuar, dentre várias outras coisas, a importância da associação livre enquanto dispositivo privilegiado para que se dê o remetimento às tendências recalcadas do sujeito. É também enfatizado que toda esta tentativa de remetimento esbarra no caminho com poderosas forças - as resistências - que lhes são contrárias. Por fim, a interpretação é evidenciada como o meio do qual o analista dispõe para identificar e contornar a força das resistências. Quando finalmente - claro que em nível ideal - elas são vencidas, o analisando consegue ressignificar seus conflitos e o sofrimento vai aos poucos cedendo.

Claro que todos esses postulados já tinham sido formulados há pelo menos dez anos, o que é comprovado pela leitura de textos como "Sobre a psicoterapia" (Freud, 1904/1996) e "O método psicanalítico de Freud" (Freud, 1906/1996). O que há de novo aqui é uma ampliação do debate na medida em que Freud chama atenção para que, na imensa maioria dos casos, mesmo o reconhecimento das resistências por parte do paciente não o faz obter melhora alguma. Em outros termos, destaca-se ser comum que nenhuma mudança acontece no sujeito mesmo quando o trabalho analítico aponta suas resistências, tornando-as familiares. Muitas vezes, inclusive, as resistências se tornam ainda mais fortes e a situação analítica mais obscura.

No entanto, Freud aponta que, mesmo nesses casos, o tratamento, ainda assim, progride - e muito satisfatoriamente. Ora, jamais alguém poderia esperar que o reconhecimento da resistência por parte do paciente implicaria na cessação imediata de seu sofrimento. Com efeito, o sujeito necessariamente precisa de certo tempo - às vezes muito até - para se familiarizar com as resistências e enquanto não se efetiva esse processo de elaboração - o termo empregado é este - poucas melhoras são observadas.

Portanto, fica claro que, durante todo esse período de aparente estagnação, um importante trabalho está sendo empreendido pelo paciente. Desse modo, resta ao analista esperar e deixar a elaboração seguir seu curso - ficando marcado que tal espera não implica na assunção de uma posição passiva, mas apenas na recomendação para que o analista não se angustie diante da aparente inércia no tratamento. Por fim, conclui-se que o trabalho de elaboração consiste em "uma tarefa árdua para o sujeito em análise e uma prova de paciência para o analista" (Freud, 1914a/1996, p. 171).

Enfim, são esses os únicos apontamentos de Freud a respeito da elaboração psíquica. Deles podemos depreender algumas de suas mais importantes características. A principal remete ao fato de que é através dela que o analisando, de fato, produz algo durante o tratamento. Trata-se de justamente destacar que esse trabalho o conduzirá a um novo reposicionamento frente ao mundo e à ressignificação de parte da sua história. A elaboração, assim, lhe permite mais do que a aceitação meramente intelectual daquilo com o qual se defronta, sendo-lhe também possível a própria integração das tendências inconscientes à sua experiência. A partir da elaboração, o analisando consegue construir algo, de certo modo, livrando-se de seus curtos-circuitos sintomáticos e repetitivos e fundando os devidos alicerces para a tão almejada mudança subjetiva.

Com base nesses pressupostos, podemos até mesmo colocar que a elaboração não incide apenas sobre as resistências do paciente. Pelo contrário, ela merece ser conceituada como um trabalho bem mais geral e amplo, uma constante durante o tratamento e que não cessa de se fazer presente. Nessa medida, algumas passagens dos casos clínicos de Elisabeth (Breuer, & Freud, 1895/1996) e do Pequeno Hans (Freud, 1909b/1996) permitem compreender melhor o que está em jogo no trabalho de elaboração, além de evidenciar como a dimensão criativa do esquecimento se faz aí presente.

Sabe-se que Elisabeth foi uma jovem que foi procurar análise em virtude de fortes dores nas pernas que, ao longo do trabalho clínico, foram associadas à sua dificuldade em "dar um passo à frente" na busca por felicidade. No decorrer das sessões, foi ficando claro que a tão almejada felicidade remetia ao desejo de um casamento com o cunhado, homem que a jovem desejava, embora sem exatamente o saber. Fato é que, quando finalmente Elisabeth se defronta com tal desejo, o efeito é devastador. A jovem logo tratou de acusar Freud de tê-la induzido a dizer que amava o cunhado e passou a resistir bravamente à análise, abandonando-a por breve período. Quando retorna, a jovem vai, aos poucos, reconhecendo com certa naturalidade seus desejos proibidos e as dores, consequentemente, vão melhorando. O desfecho da análise é relativamente feliz, com Elisabeth deixando de lado seu amor proibido e, algum tempo depois, se casando com outro rapaz com quem Freud garantiu ter sido feliz.

Claro que a história de Elisabeth está sendo contada de forma breve e sem os tantos pormenores que fazem de seu caso um dos mais belos relatos clínicos de Freud. Aqui, ele serve como um exemplo da eficácia do trabalho de elaboração. Ou seja, após uma relativa superação das resistências, a jovem conseguiu retirar o peso de seu desejo outrora tão acalentado e aceitá-lo com naturalidade. Com isso, o conflito foi se esvaindo e a jovem simplesmente se esqueceu do amor proibido, podendo viver algo novo. Com Elisabeth, fica marcado que o trabalho de elaboração pode conduzir a um esquecimento - esquecimento não apenas defensivo, mas também criativo - que lhe possibilitou deixar de lado uma parte conflitiva de sua história e construir coisas diferentes.

Algo parecido aconteceu com Hans, o que pode ser comprovado por seu encontro com Freud treze anos depois, quando o analista vê, surpreso, a sua frente um jovem de dezenove anos dizendo ser o menino do relato clínico. Nesse reencontro emocionante, Hans disse estar perfeitamente bem e sem problemas ou inibições de qualquer ordem. O jovem sequer se lembrava de sua fobia infantil, bem como de seus sentimentos ambivalentes, angústias e amores edipianos, declarando inclusive que não se reconheceu durante a maior parte da leitura. Ele apenas desconfiou que se tratava de si próprio quando passou os olhos sobre algo insignificante a respeito de uma viagem a Gmunden.

De fato, Hans não se lembrava de nada, mas estava bem. Houve também aqui, ao longo de tantos anos, um trabalho de elaboração de seus conflitos infantis, o que conduziu a um necessário esquecimento do passado. Tal como ocorreu com Elisabeth, o jovem também deixou para trás uma parte de sua história e reapareceu irreconhecível diante de Freud. Vale marcar que o Hans criança era um completo desconhecido do Hans jovem que não mais tanto sofria ou se angustiava, desconhecimento este causado e motivado pelo trabalho de elaboração que se sucedera. Hans de tudo se esquecera: dos ciúmes da irmã, dos amigos de infância, do acolhimento que a mãe lhe dava, do medo que o pai despertava e, sobretudo, de que fizera uma espécie de análise com Freud. O relato termina da seguinte maneira:

A análise não tinha preservado os acontecimentos da amnésia, mas tinha sido superada pela própria amnésia. Qualquer um que esteja familiarizado com a psicanálise pode experimentar ocasionalmente algo semelhante no sono. Será acordado por um sonho e decidirá analisá-lo imediatamente; então voltará a dormir sentindo-se bastante satisfeito com o resultado de seus esforços; na manhã seguinte o sonho e a análise terão igualmente sido esquecidos (Freud, 1909/1996, p. 133).

Ora, talvez essa seja a passagem que melhor explicita o que efetivamente ocorre na elaboração psíquica. Talvez elaborar implique em "ir esquecendo" daquilo que tanto assolara no passado. Por esse viés, o esquecimento é enfatizado em sua vertente propriamente criativa e situado no amplo processo de reinvenção subjetiva que se instaura com a elaboração dos conflitos e sofrimentos passados.

Vale destacar que o mesmo pode ser depreendido do pensamento de Nietzsche.

 

Memória e esquecimento em Nietzsche

Em Nietzsche, o esquecimento é também positivado enquanto propiciador de mudanças não apenas no nível subjetivo, mas também social. Isso implica em que, segundo o seu entender, indivíduos ou grupos excessivamente memoriosos teriam seus olhos e atenções inteiramente voltados ao passado, o que os impossibilitaria de enxergar adiante e, consequentemente, esquecer-se do que passou. Nessa perspectiva, o excessivamente memorioso seria aquele apegado à tradição e preocupado com a manutenção de certo estado de coisas. De forma inversa, o esquecido é desapegado e constantemente levado à ação e à produção de coisas novas.

Para entender melhor sua concepção, é necessário partirmos do pressuposto de que, para Nietzsche, a vida é um constante processo de criação: o homem, enquanto criador, produz novas formas de vida, destruindo antigas vivências e construindo novas. Nesse mesmo contexto, o filósofo considera a arte um grande estimulante, sendo que a atividade artística não visaria a nada fora dela própria, ou seja, nunca apontando para um fim a ser alcançado. Desse modo, a vida entendida como obra de arte (Dias, 2011) seria constante experimentação, atividade ininterrupta cujo sentido é sempre criar.

Com efeito, a atividade criadora jamais almeja à conservação e à cristalização de um único modo de viver. Pelo contrário, ela resulta em uma pluralidade de perspectivas. Tal ação criadora se opõe ao estável e ao permanente e, nesse sentido, o criar envolve não somente construção, mas também destruição: estamos submetidos à lei do crescimento, assim como à lei da morte e, dessa forma, o destruir também gera o futuro. Assim, não haveria começo ou ponto final no processo criativo, estando tudo ainda por fazer. O que há é um constante recomeçar, pois sem destruição não haveria processo criador.

Nessa medida, em sua crítica à cultura moderna, o filósofo se empenha em destacar o quanto ela se distancia de uma vida artística (Dias, 2011), em outros termos, de uma perspectiva criativa do viver. De fato, ele reconhece na cultura de sua época um espaço homogeneizante que perpetua a ideia de igualdade e, consequentemente, promove a aniquilação das diferenças individuais. Para Nietzsche, tal modelo de cultura tenderia a engessar as ações e a impedir o avanço do processo cultural, pois o homem moderno acaba se tornando um simples repetidor de valores ao invés de um criador, mantendo-se apenas como conservador das noções disseminadas na sociedade. Claro está que o processo criativo de renovação cultural ficaria danificado pelo grande apego ao passado e o acumular fatos, conhecimentos e lembranças evidenciaria as características de uma época na qual criar diferentes formas de vida não é exatamente o objetivo principal.

É justamente nesse ponto que se abre a discussão sobre as dimensões da memória e do esquecimento em sua obra. Na Genealogia da moral, Nietzsche (1887/2009) discute as complexas circunstâncias que levaram ao surgimento da memória, procurando mostrar o devir histórico que propiciou sua irrupção. Assinala a condição singular do homem e tenta esclarecer como um ser que age de forma instintiva e automática tornou-se um animal consciente, capaz de fazer promessas, de planejar seus atos e de se comprometer com o futuro: "criar um animal que pode fazer promessas - não é essa a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é esse o verdadeiro problema do homem?" (Nietzsche, 1887/2009, p. 43, grifos do autor).

Fazer promessa é, nesse sentido, se comprometer com o futuro e tentar determinar o imprevisível. Desse modo, o advento de um animal consciente e memorioso se dá por acaso, num complexo jogo de forças, no seio das relações sociais. A interpretação nietzschiana sobre a memória demonstra que ela emerge como atividade oriunda da coerção social, objetivando regular o homem e torná-lo previsível, controlável e responsável por suas ações.

Visando combater a crueldade, foram criadas regras sociais a serem constantemente lembradas e, nessa perspectiva, o homem passa a ser aquele que deve "prometer" e jamais "esquecer" (Nietzsche, 1887/2009). Dessa forma, torturas foram implementadas para ativar a lembrança e domesticar o homem, intensos castigos foram impingidos aos "esquecidos" - aqueles que não cumpriam a promessa empenhada - e a lembrança do prometido passa a aparecer como forma de preservação e segurança. O ato de prometer aponta para uma uniformidade de ações e comportamentos: "com ajuda da moralidade de costumes e da camisa de força social, o homem foi realmente tornado confiável" (Nietzsche, 1887/2009, p. 44).

Por esse prisma, a memória passa a ser tida como a atividade que garante assumir um compromisso com o futuro, que é tornado ato quando a promessa é cumprida. O homem se torna memorioso para garantir seus benefícios sociais e, assim, a memória se destaca socialmente, sendo colocada em primeiro plano, enquanto o esquecimento passa a ser incisivamente desvalorizado.

O problema é que, de acordo com a análise nietzschiana, a reativação constante da memória gera o ressentimento, seu poderoso efeito colateral. Em si, o ressentimento é desencadeado pela força reativa que entrava a ação espontânea do indivíduo, uma vez que este se encontra atrelado a obrigações sociais. A reatividade que torna o homem um negador da vida impossibilita o agir espontâneo, inibindo qualquer força ativa. Ressentido, o homem fica preso ao passado, o que o impede de agir efetivamente no presente, se fechando para novas vivências.

Esse homem que inicialmente era espontâneo, instintivo, esquecido, torna-se calculista, previsível e memorioso. Nessa medida, é justamente por fazer frente ao excesso de memória que a dimensão do esquecimento é aqui positivada. Por seu caráter ativo, funcionaria como um reparador e harmonizador do equilíbrio psíquico: "eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento" (Nietzsche, 1887/2009, p. 43).

Desse modo, o esquecimento é, para Nietzsche, uma faculdade espontânea do homem e não uma "falha" da memória. Esta também não se configura como uma faculdade superior ao esquecimento, na medida em que passa a ser socialmente valorizada - conforme destacamos - somente por meio de uma longa série de acontecimentos sociais marcados pela violência. O esquecimento é evidenciado como uma "força inibidora ativa" (Nietzsche, 1887/2009, p. 43) que, comparada a um estado de digestão psíquica, fecha as portas da consciência, promovendo um acalentado sossego. Por outro lado, o excesso de memória entrava o processo criativo, tornando o homem refém do seu passado. Nesse sentido, o esquecimento seria a faculdade propulsora do novo, abrindo possibilidades para novas configurações subjetivas e sociais.

Trata-se, portanto, de evidenciar que o esquecimento possibilita ao homem liberar-se para o novo, afastando o ressentimento que paralisa e entrava a ação. Esquecer é uma atividade salutar, um mecanismo de proteção psíquica. O esquecimento age eliminando o desnecessário, os excessos de memória e, assim, abre espaço para a ação. Em contraposição ao "peso" da memória, ele é caracterizado pela "leveza" que favorece o ato de criar: o esquecimento transforma em algo novo aquilo que ficou na memória.

Dotado de uma força ativa, o esquecimento pode, portanto, acabar por promover a transformação do homem e da cultura. O homem do ressentimento revela-se como alguém desvitalizado, passivo e fraco e, em oposição a ele, há o tipo ativo e forte. O tipo passivo prefere se render a "modos emprestados e opiniões postiças" (Nietzsche, 1874/2009, p. 162), enquanto o ativo, por sua capacidade de criar, jamais se adéqua "a cadeias de opiniões correntes" (Nietzsche, 1874/2009, p. 162). Depreende-se daí que o homem que quer fugir da massa precisa ser criador e, nessa perspectiva, o criador é aquele capaz de superar o ressentimento e promover uma renovação. O homem que busca a constante superação passa pela experiência de reinterpretar-se e reinventar-se, recriando-se em um devir permanente.

Ora, o homem que nada consegue esquecer se torna um dispéptico (Nietzsche, 1887/2009) - aquele que nada digere: a memória incorpora e o esquecimento elimina. Por esse viés, fica claro que entre memória e esquecimento não há exatamente uma oposição conflitiva ou binarista. Pelo contrário, memória e esquecimento atuam em conjunto, um agindo em prol da conservação e manutenção das coisas e outro em prol de sua destruição, porém em um mesmo dinamismo. Assim, depreendemos que esse constante dinamismo entre a incorporação e a eliminação, assim como ocorre em um processo de digestão, serve à manutenção da ordem psíquica.

Nessa medida, o jogo entre os campos da memória e do esquecimento é caracterizado por Nietzsche (1874/2003) como uma "força plástica". Essa força, segundo o filósofo, é definida como uma constante que harmoniza a forma de lidar com o passado e com o presente. Isso impediria que o homem privilegiasse em demasia a memória - em detrimento do esquecimento -, sendo tal força plástica imprescindível ao homem, uma vez que, por ser capaz de incorporar as lembranças necessárias ao viver e eliminar aquelas que sobrecarregam a consciência, garante um movimento sempre ativo. Essa plasticidade entre lembranças e esquecimentos sugere uma dinâmica diferente do re-sentir: a força plástica configura um movimento que combate o ressentimento, uma vez que o esquecimento é visto como um moderador ao liberar o peso do excesso de memória.

Por outro lado, esse dinamismo também faz com que seja impossível um esquecimento excessivo ou pleno. Em outros termos, trata-se de destacar que o ato de esquecer jamais implicará na ideia de que tudo pode ser destruído. Pelo contrário, no constante dinamismo entre as ordens da criação e da destruição, algo permanece e algo é eliminado: "dizer que tudo está em devir é dizer que tudo está sujeito às leis da destruição e que algo permanece apesar da destruição" (Dias, 2011, p. 72) e, por este viés, o ato de esquecer não implicaria necessariamente na ideia de que tudo será destruído.

Trata-se, aqui, de uma série de pressupostos que viabilizam o diálogo entre os pensamentos de Nietzsche e Freud, principalmente, se tivermos em mente as transformações que se fizeram neste último a partir da famosa virada de 1920. É para esse diálogo que agora nos voltaremos, retomando, é claro, a noção de elaboração psíquica.

 

O ressentido e o enlutado

Com efeito, esse mesmo dinamismo entre uma tendência conservadora e outra disruptiva é depreendido da obra de Freud a partir da formulação dos conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte. Com eles, passa a se encontrar presente a concepção de que, subjacente a tudo o que produzimos, há um incessante dinamismo entre Eros e Thanatos, o primeiro ligado à vida e à manutenção de um mesmo estado de coisas e o segundo atrelado à morte e à destruição. Ora, segundo o diálogo que estamos estabelecendo entre Nietzsche e Freud, nada nos impede de relacionar a vida à memória e a morte ao esquecimento e, por esse viés, vida e memória seriam privilegiadas em suas dimensões conservadoras e morte e esquecimento em suas vertentes disruptivas.

Da morte o homem moderno talvez nada queira saber. Este é justamente aquele que, segundo Freud (1930/1996), trocou um quinhão de liberdade por um quinhão de segurança e, por isso, valoriza muito mais o domínio de Eros do que de Thanatos. O homem moderno quer apenas saber de unir, criar laços cada vez mais duradouros e estanques, além de construir coisas e estruturas cada vez maiores, tomando verdadeiro horror a tudo o que possa atuar em sentido contrário. Nega-se a morte, nega-se a violência, nega-se a destruição e, enfim, nega-se também o esquecimento. Em virtude de tanta negação, ele se esquece, sobretudo, do potencial libertador que envolve o ato de esquecer. Tal é o caso, dentre tantos outros que poderiam ser mencionados, do ressentido e do enlutado, dois exemplos daqueles que recusam, a todo custo, esquecer o passado.

Tomemos primeiramente o caso do ressentido. Conforme destacamos, o ressentido é um dos personagens centrais do pensamento nietzschiano e também muito presente na clínica psicanalítica, embora Freud jamais o tenha nomeado enquanto tal. Em linhas gerais, ele é por Kehl (2015) definido como o sujeito que se recusa a esquecer um agravo passado ou mal que lhe foi causado, jamais desejando superar o que o vitimou e perdoar os que o prejudicaram. Ressentido, o sujeito se recolhe em rancores, fantasias imaginárias de vingança, raivas, maldades, ciúmes, invejas e malícias, o que o conduz à tomada de uma posição passiva e queixosa frente ao mundo e à ocupação com ruminações acusatórias a quem tanto odeia.

Em Nietzsche, o ressentido é propriamente um fraco, afirmação com a qual Freud poderia muito bem concordar. Para os dois autores, tendo o homem moderno escolhido por fazer severas renúncias pulsionais para viver em sociedade - renúncias sexuais e agressivas -, a emergência do ressentimento seria uma espécie de efeito colateral dessa escolha, conforme destacamos. Com efeito, somos impedidos de exercer nossa agressividade, bem como todas as nossas tendências destrutivas e, diante dessa impossibilidade, tais impulsos violentos, ao invés de dirigidos aos outros, passam a ser direcionados a nós mesmos. Nessa medida, o ressentido é um grande masoquista, aquele que se autoflagela em intermináveis fantasias de vingança que nunca se realizarão, em rancores que jamais serão remediados e em invejas e ciúmes daqueles que são mais fortes.

Quanto a isso, Nietzsche (1887/2009) opõe muito bem os fortes aos fracos - lembrando que o uso da força é sempre violento - para demonstrar como ao longo da história os fortes passaram a ser tidos como maus e os fracos como bons. Ou seja, de acordo com tais preceitos morais, o sujeito forte que luta pelo que deseja e por isso consegue conquistar uma série infindável de coisas é classificado como mau. Em contrapartida, o bom é aquele humilde que opta por abrir mão da luta, que desiste de realizar seus desejos e a todos se submete. Ora, tamanha passividade do fraco frente ao mundo não poderia deixar de gerar ressentimento: o ressentido é o homem bom, moralmente intocável e incessantemente prejudicado pelos fortes e maus. Estes o oprimem e frente a eles o ressentido se vitimiza, se pondo a exigir que os fortes não sejam tão fortes, já que ele mesmo optou por ser tão fraco. Diante de tamanha força e maldade do outro, o ressentido fica se autoenvenenando em um sofrimento interminável (Kehl, 2015).

Em suma: o ressentido sofre por um excesso de memória. Ele se impede de esquecer o dano passado e o quanto foi prejudicado por outro. De fato, ele ainda vive aquela data como se fosse hoje, dia após dia, sem jamais conseguir - ou desejar - esquecê-la. E por que tamanha recusa em esquecer? Justamente pelos ganhos narcísicos que o ressentido obtém: por não ter lutado ou nem pensado em lutar, sua pureza permanece intacta; pela recusa em implicar-se como sujeito do desejo, sua moralidade e completude imaginária persistem inabaladas; e culpando incessantemente o outro pelo dano causado, ele também se esquece de todas as fraquezas que o levaram à derrota.

Desse modo, não é exagerado pressupor a dificuldade em se analisar o ressentido. Trata-se, aqui, de assinalar o quanto sua fala sempre retorna à situação do agravo obstacularizando o processo de livre associação, bem como sua constante culpabilização do outro impede sua própria implicação na história que viveu. Moralizado ao extremo, o ressentido se apresenta como "coberto de razões" (Kehl, 2015, p. 45), com um sofrimento plenamente justificado que pode acabar transformando o processo analítico em um beco sem saída.

Por isso, a elaboração do ressentimento deve necessariamente passar por um trabalho de retificação subjetiva capaz de retirá-lo da posição de vítima - ainda que tal vitimização seja justificada - fazendo com que ele questione sobre sua participação na situação da qual tanto se queixa (Kehl, 2015). Dessa forma, a partir da reelaboração de seu sofrimento, sua história poderá ser contada de outra maneira e, consequentemente, ele passará a se enxergar com outros olhos, o que necessariamente vai conduzi-lo a um processo de reinvenção subjetiva. Mediante esse trabalho de ressignificação, o ressentido fica apto para, aos poucos, ir se esquecendo do agravo, ficando claro que um esquecimento pleno é totalmente impossível e que algo sempre persistirá em sua memória.

Ao longo desse processo de elaboração, talvez não seja demais supor que toda a agressividade que ele dirige a si próprio seja deslocada e direcionada à própria lembrança do mal, visando efetivamente destroçá-la e fragmentá-la. Com isso lhe será viável, em parte, ir esquecendo o passado, esquecimento que vai ganhando terreno à medida que a elaboração vai se fazendo. A memória do dano vai deixando de ser tão presente e seus investimentos finalmente poderão se dirigir para outras coisas. Ao se posicionar como ativo em sua história, pode-lhe ser também viável dirigir sua agressividade para o mundo, implicando-se na medida do possível com seu desejo e conquistando coisas para si ao invés de persistir na queixa contra aqueles que assim o fazem.

No entanto, vale lembrar o quanto esse trabalho de elaboração é marcado por volteios. Ou seja, é comum que o ressentido ora deseje esquecer o passado, ora lute arduamente para mantê-lo vivo. Trata-se, aqui, do conflito entre as tendências conservadoras e as disruptivas que estão na base de tudo o que o sujeito produz. Esse vai e vem marca incisivamente todo e qualquer trabalho de elaboração psíquica, fazendo o sujeito em análise oscilar entre conservar algo ou destruí-lo ferozmente.

Passemos ao enlutado que, tal como o ressentido, também sofre por um excesso de memória. De acordo com Freud (1917/1996), o luto é definido como uma reação - às vezes duradoura - à perda de um objeto querido ou de alguma abstração ou ideal ao qual o sujeito costumava se entregar. As principais características de um estado de luto são um desânimo contundente, uma relativa perda de interesse pelas coisas e a incapacidade de novamente amar. Ademais, é comum que o enlutado deixe de se dirigir a qualquer atividade que não esteja ligada ao objeto amado, preferindo ficar isolado, evocando todas as lembranças do passado que acabou por perder.

Ao longo do trabalho de luto - que é efetivamente um trabalho de elaboração - é comum, portanto, que o sujeito retire seus investimentos do mundo agora desinteressante e volte sua libido a si próprio. Ora, como Freud tantas vezes destacou, é impossível ao sujeito abandonar de bom grado um prazer do qual outrora desfrutou e, nesse sentido, o enlutado passa a se apegar a intermináveis fantasias cujo propósito é manter imaginariamente o objeto ainda vivo. Tal situação pode persistir por certo tempo, mas, conforme Freud assinala, quase sempre acaba prevalecendo a aceitação da perda e o enlutado consegue, em parte, se esquecer do amor passado. Esse esquecimento pode ser inclusive suficiente para permitir-lhe a entrega a uma nova relação.

De fato, o trabalho de luto é um trabalho de elaboração árduo e também marcado por inúmeros volteios, sendo comum que o enlutado passe a ter um sério conflito entre prolongar a existência do objeto em sua memória e finalmente esquecê-lo. Ao longo de todo esse processo de elaboração, é também comum que cada lembrança do objeto seja evocada, já que é desejável que o desligamento se faça em relação a cada uma delas. Quando a elaboração do luto chega ao fim - valendo marcar que esse jamais é um processo pleno -, o excesso de memória vai, aos poucos, se esvaindo, os sintomas cedendo e o sujeito volta a ser livre e desinibido. Suficientemente esquecido, ele pode amar novamente.

Com efeito, tanto o ressentido quanto o enlutado podem ser tomados como paradigmáticos para pensarmos o funcionamento do sujeito neurótico de uma maneira mais ampla. Isso porque todos os neuróticos possuem seus ressentimentos e também passam por inúmeras situações de luto, conseguindo ver em si próprios o quanto esses estados servem à manutenção de um excesso de memória que eles, por razões inclusive justificadas, se recusam a esquecer. Tais processos também funcionam como ilustração para nossa proposta de demonstrar que elaborar o passado necessariamente implica em "ir esquecendo" uma série de coisas e situações e de que é através desse esquecimento que o sujeito consegue se reposicionar no mundo e contar sua história de uma nova maneira.

O que talvez o ressentido e o enlutado - bem como todos os excessivamente memoriosos - não consigam enxergar é que tudo o que um sujeito constrói - seja suas relações amorosas, suas fantasias, seu passado e mesmo o "si próprio" -, ele o constrói para que esse algo seja inevitavelmente destruído. Ou melhor, trata-se mesmo de afirmar que tudo o que um sujeito constrói, ele o destrói no próprio ato de sua construção. Nessa medida, quando um sujeito constrói uma relação de amor, por exemplo, tal relação é incisivamente destruída à medida que vai sendo construída. Também quando um sujeito constrói suas fantasias, elas vão sendo desconstruídas a cada passo de suas construções. Do mesmo modo, quando ele constrói seu passado e sua história, tal passado ou história são inevitavelmente destroçados conforme vão sendo construídos. E o próprio processo de constituição subjetiva também aí se insere, já que o sujeito necessariamente se fragmenta à medida que se constitui. Daí a beleza própria ao devir que faz com que nada seja estanque e tudo possa mudar.

É a isso que o excessivamente memorioso resiste. Sua ilusão de conservação e manutenção das coisas acaba por silenciar a potência disruptiva que existe nos próprios atos de conservar e de manter. Silenciando a dimensão criativa do esquecimento, ele tenta se fechar a qualquer possibilidade de mudança, claro que sem nunca o conseguir plenamente. Em contrapartida, quando ele finalmente abre alguma brecha para que se dê uma elaboração, lhe é possível começar a pensar em ir adiante. Isso porque elaborar é conservar e ao mesmo tempo destruir, destruir para logo em seguida conservar e imediatamente após destruir novamente em um trabalho infinito que permite ao sujeito, aos poucos, ir esquecendo.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 20/10/2018
Aprovado para publicação em: 01/11/2018

Endereço para correspondência
Ricardo Salztrager
E-mail: ricosalz@uol.com.br
Nilcineia Neves Longobuco
E-mail: neiaunirio@yahoo.com.br

 

 

*Psicanalista. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO.
**Doutoranda em Memória Social pela UNIRIO.

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