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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

A fita branca. Psicanálise e fascismo

 

The white ribbon. Psychoanalysis and fascism

 

La cinta blanca: psicoanálisis y fascismo

 

 

Jô Gondar*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute a relação entre perversão e fascismo a partir de uma leitura psicanalítica do filme A fita branca (2009), do cineasta austríaco Michael Haneke. Não se trata de um filme sobre a gênese do nazifascismo na Alemanha, mas de um filme que pergunta: como fazer para que haja o fascismo em qualquer lugar, em qualquer situação? A partir dessa pergunta, o artigo procura pensar o fascismo incrustado em nossa vida cotidiana, assim como o fascismo que ronda o exercício da psicanálise e de suas correntes teóricas.

Palavras-chave: fascismo, perversão, resto, Michael Haneke.


ABSTRACT

The paper discusses the relationship between perversion and fascism from a psychoanalytic reading of the film The White Ribbon (2009) by Austrian filmmaker Michael Haneke. This film is not about the genesis of Nazi-fascism in Germany, but about a question: what can we do to have fascism anywhere, in any situation? Since that question, the paper tries to think on the fascism embedded in our daily life, as well as the fascism that surrounds the exercise of psychoanalysis and its theoretical currents.

Keywords: fascism, perversion, rest, Michael Haneke.


RESUMEN

El artículo discute la relación entre perversión y fascismo a partir de una lectura psicoanalítica de la película La cinta blanca (2009), del cineasta austríaco Michael Haneke. No se trata de una película sobre la génesis del nazi-fascismo en Alemania, sino de una película que pregunta: ¿cómo hacer para que haya el fascismo en cualquier lugar, en cualquier situación? A partir de esa pregunta, el artículo busca pensar el fascismo incrustado en nuestra vida cotidiana, así como el fascismo que ronda el ejercicio del psicoanálisis y de sus corrientes teóricas.

Palabras clave: fascismo, perversión, resto, Michael Haneke.


 

 

Há alguns anos apresentei, num ciclo sobre Psicanálise e Cinema1, um texto sobre perversão e fascismo. A ligação entre os dois temas foi tecida em torno de um filme de Michael Haneke, A fita branca, lançado em 2009. No momento em que o escrevi, não imaginava que o texto se tornaria, neste ano de 2018, tão atual e tão próximo. Por esse motivo eu o reapresento aqui, esperando que ele possa contribuir para uma reflexão necessária nesse momento político - a reflexão sobre o fascismo que nos ronda e que vemos cada vez mais perto de nós. Muitas vezes, também em nós.

Em 1913, numa aldeia da Alemanha, às vésperas da I a Guerra, diversas situações insólitas e violentas começam a acontecer. Alguém provoca a queda de um cavalo, uma criança é sequestrada, um celeiro é incendiado, uma empregada morre em um acidente de trabalho. Não se conhece a autoria desses atos e o desenrolar de A fita branca (2009) se faz em torno da descoberta do culpado. Nesse sentido há, no filme, algo de mistério ou de "cinema noir". Acompanhamos a ação partir da perspectiva do professor, o narrador da história, que nos convida a testemunhar suas lembranças. Contudo, não assistimos a nenhum desses eventos estranhos que se dão no vilarejo. Todos eles acontecem longe do nosso olhar. Começamos a nos dar conta do quanto esse filme de mistério é peculiar: o foco do diretor Michael Haneke não incide sobre as ações violentas e sim sobre o modo como funciona o mundo que faz essas ações surgirem. Em outros termos, sua preocupação não é tanto com a ação, mas com as relações subjetivas - individuais ou coletivas - que engendram a ação.

A fita branca tem sido associada de uma maneira rápida e fácil demais à ascensão do nazismo na Alemanha. De fato, podemos ver no filme um barão poderoso que possui empregados muito submissos, um médico autoritário e perverso, assim como um pastor excessivamente preocupado com a pureza. Se nos ativéssemos apenas a esses elementos superficiais poderíamos estabelecer uma relação mais direta com o tema da perversão na psicanálise, e dizer: A fita branca mostra como os elementos perversos, que permitiriam a vitória do nazismo na Alemanha, tomaram parte na constituição subjetiva da geração que o abraçaria, vinte anos mais tarde. O filme retrataria a juventude hitlerista quando muito jovem, a infância dos futuros soldados da SS.

Porém essa não é a intenção de Haneke, segundo ele próprio. Isso não significa que devamos respeitar de maneira absoluta o que diz um diretor a respeito do seu filme, pois nenhum cineasta detém o sentido de sua obra. Mas, nesse caso, a fala de Haneke pode tornar nossa análise mais acurada. Na época do lançamento de A fita branca no Brasil, em 2010, ele disse à Folha de São Paulo:

Queria mostrar que as crianças que têm o caráter formado a partir de um princípio absoluto podem se tornar inumanas. Cada ato terrorista, cada manifestação de fanatismo, seja ele político, religioso ou de outra natureza, é alimentado por essa fonte de intransigência. Qualquer ideia se torna perversa se tem, como ponto de partida, o autoritarismo. Esse é um tema universal, que não tem ligação direta com a problemática alemã. O filme não é sobre nazismo (Haneke, 2010).

Tanto o filme, quanto a nossa discussão sobre o tema da perversão, se tornam mais interessantes se pudermos expandir nossa análise, em vez de restringirmos o tema a um fato histórico determinado, ou seja, em vez de reduzirmos A fita branca a um filme sobre a gênese do nazifascismo. Patricia Rebello fez, na época, um bom comentário crítico sobre a película de Haneke: não se trata de um filme que pergunta como surgiu o nazismo, mas de um filme que nos incita a pensar sobre como fazer para que haja o nazismo ou o fascismo (Rebello, 2011).

Essa seria, a meu ver, a diferença entre A fita branca e O ovo da serpente (1977) de Ingmar Bergman, esse sim, um filme sobre a gênese do nazismo histórico na Alemanha. Bergman retrata um povo combalido, após a primeira guerra, sofrendo uma inflação colossal, vivenciando uma economia monetária e subjetiva em ruínas e tomado por um sentimento de desesperança. A questão trabalhada por O ovo da serpente seria por que os alemães desejaram o nazismo?, questão totalmente diferente daquela que aparece em A fita branca: como fazer para que haja o fascismo - em qualquer lugar, em qualquer situação?

Sugerir, como faz o filme de Haneke, que as crianças são as culpadas dos atos perversos é um passo importante no desenvolvimento da questão. Ainda que Freud tenha, desde 1905, mostrado que as crianças estão longe da pureza que costuma ser a elas atribuída e ensinado que, ao contrário, as crianças podem ser consideradas como perversas polimorfas, ainda permanece, no imaginário do senso comum, a associação entre infância e pureza. Haneke explora essa associação para perturbar o espectador e fazê-lo pensar. Insinuar a culpa das crianças é uma atitude capaz de tocar bem mais o espectador do que alocá-la em adultos sem caráter. A culpa das crianças perturba porque deixa a perversão mais perto de nós. Se o culpado fosse algum personagem já estabelecido como perverso na trama, poderíamos ter mais distância em relação à perversão ou ao fascismo, dizendo: eis aí, longe de mim, um fascista, um perverso, um Hitler, um Mussolini. Em vez disso, vemos um filme que nos faz pensar sobre o fascismo que nos ronda, não apenas na política em senso estrito, mas também em nossa vida cotidiana. Podemos, a partir disso, refletir sobre aquilo que fazemos ou podemos fazer para produzir qualquer tipo de fascismo, de direita, de esquerda, nas relações que todos nós estabelecemos.

A esse respeito, Michel Foucault escreveu um texto precioso, Uma introdução à vida não fascista (1977). Nele, o filósofo mostra que resistir ao fascismo não é apenas lutar contra um ditador e seus asseclas. Resistir é também perceber como se produz o fascismo em todos nós. Pergunta Foucault: "Como fazer para não se tornar fascista mesmo (e sobretudo) quando se acredita ser um revolucionário? Como livrar do fascismo nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres? Como desentranhar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento?" (Foucault, 1977). É a esse confronto íntimo que A fita branca nos conduz. O filme não nos faz perguntar simplesmente por que os alemães apoiaram Hitler ou por que nas Américas elegemos ditadores ou bufões que impingem um retrocesso em nossas formas de vida. Ele nos questiona sobre um fascismo mais insidioso, aquele que nos faz gostar do poder ou, nos termos de Foucault, "desejar essa coisa mesma que nos domina e nos explora".

 

Fascismo e perversão

Estou, propositalmente, estabelecendo uma relação muito próxima entre fascismo e perversão. Na verdade, estou afirmando que o fascismo é uma forma de perversão. É importante deixar claro, de saída, o que estou chamando de fascismo e em que medida ele pode, para a psicanálise, colocar-se na mesma linha da perversão.

O historiador italiano Emilio Gentile, especialista na cultura do fascismo, fornece a seguinte definição:

O Fascismo é uma concepção totalitária do primado da política, concebida como uma experiência de integração para realizar a fusão do indivíduo e das massas na unidade orgânica e mística da nação como uma comunidade étnica e moral […]. Implica a adoção de medidas de discriminação e perseguição contra aqueles considerados fora desta comunidade, quer como inimigos do regime ou membros de raças consideradas inferiores ou perigosas para a integridade da nação (Gentile, 2002, s.p.).

Em outras palavras, o fascismo seria uma tentativa de estabelecer uma realidade unitária e totalizante, eliminando-se qualquer diferença, sobra ou resto que atrapalhe a realização dessa experiência. É por essa razão que o fascismo costuma ser apontado como um movimento que não admite a diferença ou o resto, pois o resto é justamente o que impede a consecução de uma unidade perfeita.

Ora, a recusa a admitir o resto seria uma forma possível de se definir a perversão. Diante da diferença sexual, o perverso é tomado de horror, fazendo o possível para eliminá-la. Mas não é necessário circunscrever a perversão ao plano da sexualidade. Para os teóricos das relações de objeto, ela é também um modo de relação no qual se busca uma totalização subjetiva: o perverso seria incapaz de tratar os outros como outros, considerando-os apenas como um meio para atingir um fim. De qualquer modo, existe um movimento de repelir, no outro e no próprio sujeito, tudo aquilo que emperra a realização sexual e subjetiva de uma totalidade. É isso que nos permite dizer que há, na perversão, uma recusa do resto e, nesse sentido, poderíamos afirmar que fascismo e perversão caminham juntos. Sem dúvida, a tentativa de eliminar o resto não se restringe à perversão, já que o neurótico também gostaria de fazê-lo. Também ele sonha com a totalização. E esse é o caso: ele apenas sonha. Na neurose existem fantasias perversas, no sentido mais rigoroso proposto por Freud: a neurose seria o negativo da perversão, já que o perverso age onde o neurótico fantasia (Freud, 1905/1977).

Uma tal articulação entre perversão e fascismo não seria estranha ao filme de Haneke, que a promove desde o título. A fita branca, que o filho do pastor leva durante quase todo o filme amarrada no braço, deve lembrar ao sujeito o ideal de pureza que ele deve perseguir, mas do qual ele se afasta. A fita apresenta, portanto, um caráter paradoxal: ao mesmo tempo que simboliza um ideal, indica a impossibilidade de esse ideal ser alcançado. Se é preciso usar uma fita atada ao braço ou presa no cabelo para lembrar-se da pureza, o que fica é a profunda distância entre aquilo que se deveria ser e aquilo que se é, como comenta Rebello (2011). Nesse sentido, a fita branca é o próprio resto, isto é, aquilo que impede que o que se é seja idêntico ao que se deveria ser. Existe sempre uma sujeira, um resto que entrava a realização de uma totalidade plena. No filme, a fita branca indica a importância dessa dimensão subjetiva do fascismo, sempre atual e presente em cada um de nós. Essa é questão principal denunciada por Haneke, com muito mais força do que o nazismo histórico.

 

Haneke: por uma estética não fascista

Michael Haneke é um cineasta polêmico. Tem sido, muitas vezes, acusado de cínico, cruel, frio e, até mesmo, de um diretor que aprecia a exploração da violência. Alguns críticos o definem como participante de um cinema da crueldade, sendo nesse sentido situado ao lado de um Tarantino, por exemplo (cf. Gallego, 2013). Ora, uma crítica nesses moldes supõe que a própria forma estética dos filmes de Haneke é perversa. O cineasta austríaco seria então considerado mais perverso do que corajoso, devido à própria escolha que faz de temas inabituais e de situações que basculam a linha da moralidade. Recorto, aqui, algumas das críticas que lhe foram feitas nessa direção: "fascinação pela perversão", "autor que se compraz na exploração de situações de perversão sexual sadomasoquista" etc.

Creio que isso é não entender o que Haneke põe em jogo. Trata-se de um diretor que problematiza a violência e, para isso, precisa tratar dela. Ele nos traz desconforto porque nos obriga a pensar sobre ela e a reconhecê-la em nós. Mas jamais a explora. Não utiliza imagens gratuitas de violência nem mesmo no filme que, no Brasil, foi intitulado desse modo (Funny Games, filme de 1997, refilmado em 2005, recebeu aqui o nome de Violência gratuita). A esse respeito, afirma Haneke:

O que tentei com Funny Games [Violência gratuita] foi dar um tapa na cara dos cineastas que nos forçam a consumir violência, mas sem se preocupar com isso. Eu queria sacudir os espectadores. O espectador muitas vezes aceita ser violentado por filmes que acha inofensivos, mas que acabam por fazê-lo esquecer o que é a verdadeira violência (Haneke, 2013).

Essa estratégia tornou-se ainda mais sofisticada em A fita branca. Se o filme aborda a violência, ela em nenhum momento é mostrada ao espectador. Todas as cenas em que estaria acontecendo algo excessivo - situações de morte, incesto ou tortura - se passam fora do nosso olhar. Mesmo a cena em que presumimos que o médico da cidade violenta sua própria filha está sutilmente subentendida, pois em nenhum momento a informação nos é dada através da imagem. O espectador está sempre num outro plano que não aquele onde a violência acontece. Mattias Frey, pesquisador da área do cinema, afirma que Haneke "tematiza a representação da violência na maneira como nega ao espectador um acesso visual previsível a violência" (Frey, 2010). Não existe em Haneke, como existe em Tarantino, um excesso espetacularizado.

Para Haneke, a verdadeira violência residiria num uso perverso da imagem, que é hoje corriqueiro no cinema. Ele consiste em impedir o espectador de pensar, em impor imagens previamente interpretadas, mesmo que o filme pareça suave. Perversa é a imagem que tudo abarca, a imagem sem penumbra e sem resto, não dando lugar a nenhuma reflexão além da interpretação que ela pretende impor. Assim, filmes ternos e "edificantes" que disseminam valores politicamente corretos podem ser perversos na medida em que conduzem o espectador a um estado progressivo de submissão às interpretações totalizantes que lhe chegam. Heneke, ao contrário, valoriza a participação intelectual do espectador através do mínimo de informação imposta pelas imagens, e utiliza a violência para despertar seu pensamento. "Acredito na inteligência do espectador e tento dar a ele liberdade de compreensão" (Haneke, 2013), afirma ele. Pretende usar a violência para aguçar nossa sensibilidade, isto é, a violência contra a violência. Daí, provavelmente, a polêmica construída em torno de seus filmes.

Nesse sentido, Haneke estaria mais próximo de um cinema da sobriedade, apesar de lidar - criticamente - com a questão da violência. Isso aparece na composição estética de seus filmes e, particularmente, em A fita branca. Haneke trabalha com a subtração de estímulos. Prefere os planos longos à sucessão brusca de imagens, a câmera fixa à impressão de movimento, valoriza os silêncios e a duração mais longa das cenas. Não há excessos na forma: em A fita branca não há trilha sonora, não há rapidez nos cortes, não há enxurrada de informação, não há hiperrealismo, não há espetáculo. É um cinema da sobriedade que, paradoxalmente, trata o tempo todo do excessivo, sempre de maneira tensa, sem furtar-se a ele.

Uma cena é particularmente ilustrativa a esse respeito. Logo no início do filme, o filho do pastor se prepara para receber uma surra de vara de seu pai. Mas, ao invés de vermos uma criança sendo espancada, a imagem mostra a porta fechada do quarto onde a surra acontece. Desse modo, não assistimos à cena sadomasoquista, mas ouvimos os sons da vara na carne e ouvimos os gritos do menino. A violência não é dada a nós, mas somos obrigados a imaginá-la. Isso nos faz ter mais distância da cena, e, por isso mesmo, senti-la mais profundamente, já que não somos entorpecidos pelo excesso de proximidade e por uma imagem totalizante. Nessa mesma lógica, podemos marcar o fato de o filme ser em preto e branco. Originalmente, A fita branca foi filmado em cores e alta definição e, somente depois, convertido em preto e branco. Esse processo foi cuidadosamente construído para criar mais distância com o espectador, para que a imagem não o invada e não o totalize, permitindo que ele pense e sinta com mais sutileza. É o que o próprio Haneke explica sobre sua obra:

Meus filmes se insurgem contra o cinema fast-food norte-americano e sua dis-capacitação do espectador. Eles são um apelo para um cinema de perguntas insistentes em vez de respostas falsas (falsas por serem rápidas demais), um apelo por um cinema que clarifica a distância ao invés de violar a proximidade, por um cinema da provocação e do diálogo ao invés do consumo e do consenso (Haneke, 2013).

Em vez de um cinema que anestesia, ele propõe um cinema que aguça a sensibilidade. Em vez de um cinema que entorpece, um cinema que desperta. Para Mattias Frey, Haneke pretende "impelir o espectador a pensar com e a sentir com o filme, ao invés de simplesmente consumi-lo" (Frey, 2010). Haneke nos lança em um plano para além daquilo que é espetacularizado pela mídia, preocupando-se em problematizar a violência e os perigos de sua banalização perversa na nossa vida diária.

 

Psicanálise, fascismo e o resto

Seria possível dizer que os filmes de Haneke nos provocam desconforto porque nos convocam a lidar com o resto. E nós buscamos, de maneiras muito variadas, fugir do resto. Existem muitas formas pelas quais tentamos eliminar o resto que faz parte de nossa vida, formas que nos circundam de maneira mais ampla, mas também formas pequenas, que terminam por tiranizar o nosso cotidiano. Gostaria, agora, de tratar delas para indicar o quanto o fascismo nos ronda. Seguem algumas notas a respeito:

1) É fácil enxergar o fascismo em toda forma de pretensão unitária e totalizante, já que só pode haver unidade se eliminarmos o resto.

2) Porém, dividir o mundo em duas partes também é uma tentativa de eliminar o resto: bom e mau, preto e branco, masculino e feminino, vândalos e manifestantes. Quando alocamos tudo o que existe em dois blocos, não sobra resto. Ou melhor dizendo: conferir um lugar pré-determinado ao resto é sempre uma tentativa de eliminar o resto. Nesse sentido, a desconstrução de Derrida não passa de uma estratégia para desmascarar os restos que todas as formas de divisão binária tentam esconder. Na forma de pensar binária, escreve Derrida, se elege e se fixa como fundante ou como central uma ideia, uma entidade ou um sujeito e se determina, a partir deste lugar, a posição do outro, o seu oposto subordinado. Ou seja, toda lógica binária, embora aparentemente neutra e paritária, é na verdade vertical e autoritária: cultura/natureza, essência/aparência, homem/mulher, branco/negro, ocidental/oriental, heterossexual/homossexual - há sempre um termo que é compreendido como superior, enquanto que o outro é o seu derivado, inferior. Derrida afirma que essa lógica pode ser abalada por um processo desconstrutivo, capaz de reverter, desestabilizar e desordenar esses pares. Para ele, desconstruir um discurso é perturbar e subverter os termos sobre os quais o próprio discurso se afirma. Mas desconstruir não significa destruir. Como diz Barbara Johnson, desconstruir está muito mais perto do significado original da palavra análise, que, etimologicamente, significa desfazer (Johnson, 1980).

3) Também tentamos suprimir o resto quando dividimos o mundo em muitas partes. Não é por acaso que as categorias diagnósticas classificadas pela Associação Psiquiátrica Americana (apresentadas nos diversos DSM: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) não param de se multiplicar, a cada vez. Da DSM I, para a IV e agora para a V, tivemos um aumento considerável do número de categorias. Na DSM I, publicada em 1942, tínhamos 106 categorias diagnósticas distribuídas em 130 páginas. A DSM IV, de 1994, já apresentava 297 transtornos listados em 886 páginas. A DSM V, publicada em 2013, propõe mais de 300 categorias diagnósticas em 942 páginas. A cada DSM, há sempre a pretensão de tudo controlar, de tudo englobar. Mas, por mais que se classifique, sempre vão sobrar restos que não foram incluídos no manual. Por esse motivo, o trabalho da associação psiquiátrica americana é interminável.

Sabemos que a psicanálise se coloca como um movimento antifascista, na medida em que nos situamos na contracorrente das tentativas de eliminação do resto. É possível dizer que, em suas diversas correntes, a psicanálise é uma prática de confronto com o resto. O resto é problematizado sob formas diferentes em cada uma dessas tendências, mas sempre temos que nos haver com ele. Por exemplo: Lacan e o objeto a, cuja definição é precisamente a de resto; Ferenczi e a valorização dos fragmentos, produtos de catástrofes (não só os sonhos se produzem a partir dos restos da vida, mas toda criação, em Ferenczi, se faz a partir dos restos de uma catástrofe, ou seja, todo processo de construção se faz a partir dos restos de uma desconstrução anterior). Em Winnicott, vamos encontrar essa noção paradoxal, riquíssima, que é o espaço potencial, justamente o oposto de um espaço puro e limpo. O espaço potencial é a área do resto, resto aqui entendido como o domínio do informe, do indeterminado, do não classificável, do que não pode se localizar em nenhum dos lados de uma relação binária. Em vez de uma divisão entre natureza e cultura, sujeito e objeto, um e outro, temos um espaço sujo, misturado, informe, potencial, lugar impreciso do que se encontra em um limiar. Não se trata de uma dimensão para além e sim do espaço do ainda não.

Embora a psicanálise se coloque, por definição, como um movimento antifascista, não podemos nos acomodar nisso. O fascismo também nos ronda, também está perto de nós. Melhor dizendo: também está em nós. Cito alguns dessas situações onde nos colocamos nele ou, ao menos, perigosamente perto:

- Quando nos arrogamos a condição de ascetas da teoria, isto é, daqueles que querem preservar a ordem pura da teoria e da prática psicanalítica. Isso acontece todas as vezes em que pretendemos uma pureza, como em nossas tentativas de definir uma psicanálise pura, ou de distinguir a verdadeira psicanálise de uma outra que não o seria.
- Quando nos arrogamos a condição de verdadeiros pretendentes, isso é, quando damos à teoria ou à prática na qual nos engajamos o valor de verdade, enquanto desacreditamos todas as outras;
- Quando, no exercício da clínica, submetemo-nos a uma escola e simplesmente repetimos aquilo que nos foi ensinado, exercendo o que Ferenczi (1932/1990) chamou de hipocrisia profissional: aferramo-nos a uma teoria ou a um tipo de técnica para nos proteger de um confronto com algo que, em nossos pacientes, não se encaixa bastante bem nas teorias ou técnicas conhecidas. O medo do resto aparece, aqui, como medo de lidar com as singularidades que nossos pacientes nos apresentam e ainda não foram pensadas;
- Quando usamos nossos pacientes como meios para provar a excelência de nossas teorias, a correção de nossas interpretações ou, simplesmente, nossa inteligência e perspicácia.

Alguns filmes, como A fita branca, nos fazem perceber, com mais acuidade, os grandes e pequenos fascismos em torno e dentro de nós e nos convocam a sentir e a pensar por nós mesmos. Essa seria, na perspectiva de Walter Benjamin, a função terapêutica do cinema, não muito distante daquela que a psicanálise propõe:

Através de seus grandes planos, de sua ênfase nos pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e de sua investigação dos ambientes mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que dominam nossa existência, e por outro assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade. (Benjamin, 1936/1985, p. 189)

 

 

Referências

Benjamin, W. (1985). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In Benjamin, W. [Autor], Obras escolhidas, v. 1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. (Original publicado em 1936)        [ Links ]

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Artigo recebido em: 20/09/2018
Aprovado para publicação em: 20/10/2018

Endereço para correspondência
Jô Gondar
E-mail: jogondar@uol.com.br

 

 

*Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, doutora em Psicologia Clínica, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO.
1Ciclo promovido pela SPCRJ e CPRJ em 2014.

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