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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2018

 

DOSSIÊ

 

A dupla potencialidade do irrepresentável e a negatividade necessária: trauma e pulsão de morte

 

The double potentiality of the irrepresentable and the necessary negativity: trauma and death instinct

 

La doble potencialidad del irrepresentable y la negatividad necesaria: trauma y pulsión de muerte

 

 

Monah Winograd*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo analisa, a partir de revisão da literatura e articulações teóricas, a dupla potencialidade do não representado, da negatividade e do vazio psíquico, os quais, ao mesmo tempo que apontam para um limite do aparelho psíquico, o lançam para o trabalho, contribuindo para a constituição e diferenciação da subjetividade. Entendemos que o que é tomado pelo psiquismo, em um primeiro momento, como um obstáculo, impassível de digestão mental, em um segundo momento, pode se tornar motor de criação que gerará um novo limite. Essa concepção pode ser deduzida do próprio modo de funcionamento do psiquismo: se, de um lado, pode haver um limite circunstancial de processamento da estimulação endógena e exógena que alcança o aparelho psíquico, de outro lado, através do mecanismo de compulsão à repetição, por exemplo, o esforço do processamento psíquico opera de forma interminável. Os diferentes modelos a partir dos quais o conceito de trauma pode ser pensado servirão de fio condutor para analisar os efeitos e os destinos psíquicos do irrepresentado, bem como para articular essas ideias com os conceitos de repetição e pulsão de morte.

Palavras-chave: irrepresentado, negatividade, repetição, pulsão de morte, trauma.


ABSTRACT

This article analyses, from a literature review and theoretical articulations, the double potentiality of the unrepresented, of negativity and of emptiness over the psyche, that at the same time points out a limit of the psychic apparatus, lances it for work, contributing for subjective constitution and differentiation. The direction chosen here favors the idea that what is taken in the first place by the psyche as an obstacle, impassible of mental digestion, at a second moment can turn out to be a motor of surpassingness that will engender a new limit. This conception can be deducted from the own way that psyche functions, because if in one hand there can be a circumstantial limit of processing endogenous and exogenous stimulation that reaches the psychic apparatus, in the other hand, through compulsion repetition mechanism, for example, the effort of psychic processing operates in an interminable way. The different models that the concept of trauma can be thought through will serve as a conducting wire to analyze the effects and psychic destinies of the unrepresented, as well as to articulate these ideas with the concepts of repetition and death instinct.

Keywords: unrepresented, negativity, repetition, death instinct, trauma.


RESUMEN

Este artículo analiza, a partir de revisión de la literatura y articulaciones teóricas, la doble potencialidad del irrepresentado, de la negatividad y del vacío psíquico, los cuales, al mismo tiempo que apuntan hacia un límite del aparato psíquico, lo lanzan para el trabajo, contribuyendo a la constitución y diferenciación de la subjetividad. Entendemos que lo que es tomado por el psiquismo, en un primer momento, como un obstáculo, impasible de digestión mental, en un segundo momento, puede convertirse en motor de creación que generará un nuevo límite. Esta concepción puede ser deducida del propio modo de funcionamiento del psiquismo: si, por un lado, puede haber un límite circunstancial de procesamiento de la estimulación endógena y exógena que alcanza el aparato psíquico, por otro lado, a través del mecanismo de compulsión a la repetición, por ejemplo, el esfuerzo del procesamiento psíquico opera de forma interminable. Los diferentes modelos a partir de los cuales el concepto de trauma puede ser pensado servirán de hilo conductor para analizar los efectos y los destinos psíquicos del irrepresentado, así como para articular esas ideas con los conceptos de repetición y pulsión de muerte.

Palabras clave: irrepresentado, negatividad, repetición, pulsión de muerte, trauma.


 

 

A partir da identificação do que chamou de traços do negativo na obra de Freud, André Green (1993) propôs o conceito de trabalho do negativo para designar, grosso modo, tudo o que, na teoria, se apresentasse como sentido latente, em oposição ao sentido manifesto, identificado à positividade. Em termos gerais, o trabalho do negativo pode se dar de diversos modos, numa série cujas extremidades indicariam, de um lado, seu êxito, permitindo o surgimento de uma ausência como presença em potencial e, de outro lado, seu fracasso, redundando na liberação de um excesso mortífero (Garcia, & Damous, 2009). Em outras palavras, o trabalho do negativo pode tanto ter efeitos patológicos e desorganizadores quanto estruturantes e potencialmente criativos. Nesse segundo caso, as rupturas por ele engendradas permitiriam e provocariam a construção de limites psíquicos saudáveis, na medida em que criariam uma espécie de vazio necessário para que o próprio psiquismo ganhasse contornos e se singularizasse. Ou seja, trata-se do que estaria nos limites da representação e que seria condição de possibilidade para a construção e a manutenção do continente psíquico através de operações responsáveis pela instalação de uma ausência necessária. Tais operações seriam alimentadas, sobretudo, pela pulsão de morte que, exercendo uma função desobjetalizante, apareceria como crucial para o estabelecimento consistente do que Green (1990) chamou de duplo limite - intrapsíquicos (entre instâncias) e intersubjetivos (eu/não-eu) -, além dos processos de simbolização. Positividade nascida da negatividade, condição de sua existência.

Partindo da definição de negativo na obra de André Green e sublinhando as diversas formas do trabalho do negativo - desde a ausência necessária que estimula a atividade simbólica até sua expressão como atividade destrutiva -, nosso objetivo principal é investigar essa dupla potencialidade da negatividade e do irrepresentado, bem como da pulsão de morte. Com isso, pretendemos repensar o conceito de compulsão à repetição como expressão da pulsão de morte e do irrepresentado: por um lado, potência de abertura e, por outro, agente de fechamento. Privilegiaremos a primeira, enfatizando o papel fundamental da negatividade na promoção de mudanças e transformações que desafiam a cristalização de um conjunto estável de representações. Noutras palavras, propomos que aquilo que aparece como impossibilidade em determinado momento pode, em um tempo seguinte, ser o motor de uma ultrapassagem a partir da qual um novo limite pode ser constituído e novas possibilidades de transformação podem ser abertas. Essa possibilidade de abertura e de transformação pode ser deduzida do próprio funcionamento psíquico, pois, se, de um lado, há um limite (circunstancial) para o processamento das excitações (endógenas e exógenas) que atingem o aparato psíquico, de outro lado, através, por exemplo, do mecanismo de compulsão à repetição, o esforço de metabolização psíquica opera de modo interminável.

A ideia de um limite do aparelho psíquico pode ser pensada através do que Scarfone (2013) chamou de infantia, enfatizando o sentido etimológico da palavra infância, qual seja, a incapacidade de falar. A infantia não é ultrapassada no momento da aquisição da linguagem, permanecendo como experiência estrutural, ou seja, a impossibilidade de compreender totalmente si mesmo ou o outro é indiscutível e vale para qualquer idade, independentemente da capacidade de comunicação do indivíduo. Justamente por isso, porque resta sempre algo que não pode ser comunicado nem compreendido, é que o trabalho de elaboração psíquica é relançado de modo infinito. Mas, se há sempre um resto ainda por elaborar, o infantil apresenta também uma face compreensível, sobretudo, quando esses restos indizíveis forem dotados do que Scarfone (2013) chamou de revestimento psíquico.

No " Projeto para uma psicologia científica", Freud (1895) apresentou a ideia de que o complexo perceptivo pode ser dividido em duas partes: a coisa (das Ding), parte incompreensível e inassimilável, e um outro componente que pode ser compreendido, denominado de predicado ou atributo. Haveria, portanto, uma coisa sobre a qual não se sabe nada mas que, ao ser dotada de atributos ou predicados, receberia um revestimento psíquico e apresentaria, a partir dessa operação, um aspecto compreensível e analisável. Se chamarmos esses atributos ou predicados de representações e mantivermos a coisa no registro do irrepresentável, perceberemos o que essa formulação freudiana revela: por mais que se proceda ao revestimento psíquico da coisa, sempre restará algo além ou aquém do que foi representado, um núcleo inassimilado. Em função de seu caráter insuportável, esse resto ou núcleo inassimilado e ainda sem sentido participa de e engendra toda e qualquer elaboração psíquica, sendo mesmo a condição de possibilidade da produção de diferenças. Dito de outro modo, a ausência de representação é difícil de ser tolerada por um psiquismo em bom estado, daí o esforço imediato de construir representações que permitam, ao menos, um esboço de sentido. Porém, caso a intensidade da excitação ou o despreparo do psiquismo impeçam a elaboração, o aparato psíquico se deteriora gradativamente e não encontra outra via de alívio a não ser a descarga para o exterior (pela ação) ou para o interior do corpo (a somatização), segundo a lógica da compulsão à repetição (Scarfone, 2013).

Nesse trabalho de revestimento, a atividade do Eu é fundamental, sendo sua a função de inibir a ausência de sentido através da ligação, ou seja, da inscrição das intensidades na rede representacional. Ocorre que, embora esse trabalho seja necessário para ordenar o caos e permitir um movimento psíquico que não seja cego, ele também aparece como tendência de retorno ao mesmo e de busca do familiar ao encobrir e revestir qualquer sinal de estranheza. Uma vez que o novo ou o desconhecido é experimentado como ameaça potencial à permanência estrutural do Eu, ele será acolhido e integrado se puder tornar-se semelhante ao que já é conhecido, ligando-se desse modo ao universo representacional do Eu.

Em contrapartida, ao mesmo tempo que essas ligações devem ser efetuadas para que o aparato psíquico não se deteriore, também o devem ser os processos de desligamentos alimentados pela pulsão de morte. Caso contrário, não há integração nem modificação do Eu possíveis, mas apenas um eterno re-conhecimento. Ou seja, o trabalho da pulsão de morte força o Eu a sair do regime do mesmo, na medida em que o confronta com a ausência de representação, obrigando-o a trabalhar na direção da cobertura do irrepresentável através da produção de novas representações e das consequentes modificações daquelas que já estão dadas. Quando essa energética sem representação própria da pulsão de morte se fizer excessiva ou quando o aparato psíquico for atingido por uma intensidade exógena superior à sua capacidade momentânea de metabolização, surpreendendo o Eu, ele sofrerá a incidência do traumático e o dispositivo da compulsão à repetição será posto em operação em um esforço incessante de subjetivação e de inscrição psíquica.

Ao investigar o estatuto do trabalho de revestimento psíquico, Knobloch (1998) propôs duas questões norteadoras: (1) aquilo da ordem do traumático que rompeu com os sistemas de representação poderia vir a se inscrever? e (2) ou haveria outras formas de elaboração do traumático, diversas da representacional? Também em torno a essas questões, Duparc (2001) estabeleceu uma distinção suave entre as ideias de irrepresentável e de irrepresentado, sublinhando que parte do que chamamos de irrepresentável diz respeito a um irrepresentado, ou seja, ao que ainda não encontrou o caminho da representação. Mas o que chama a atenção nessa distinção é a ênfase impressa por cada um desses termos: se o irrepresentável aponta para o que seria impossível de simbolizar e refratário a qualquer possibilidade de representação, o irrepresentado, por sua vez, remete ao que ainda pode ser representado, portanto a uma potencialidade representacional considerável. Nesse sentido, se o irrepresentável enfatiza a ideia de um limite insuperável, o irrepresentado acentua a noção de um limite que permite uma reconfiguração. Contudo, isso não significa necessariamente que o irrepresentável não possa também ser tomado como portador de uma potência de transformação, na medida em que obriga o psiquismo a um trabalho de cobertura interminável dessa dimensão para sempre inapreensível. Assim, o interesse maior na distinção entre esses dois termos não se faz apenas por conta de uma positividade mais acessível que o termo irrepresentado comportaria em princípio, mas sobretudo pelo fato de que, ainda que o limite da representação esteja posto para todos, ele é absolutamente singular e próprio a cada um (Duparc, 2001). E mais: quando Knobloch (1998) perguntou se a questão deveria ser abordada pela via da inscrição do irrepresentável no universo representacional ou se haveria outras formas de elaboração possíveis, ela pareceu apontar para o fato de que há trabalho psíquico para além do representacional, sugerindo a necessidade de rompimento com a ideia de que a inscrição representacional seria o único modo de trabalho psíquico.

Nosso fio condutor para pensar os efeitos e destinos psíquicos do irrepresentável será o conceito de trauma abordado em sua tripla face, tal como propôs Bokanowski (2002, 2005): a face a posteriori, a face econômica e a face narcísica. A partir da explanação desses modelos do traumático, articularemos os conceitos de irrepresentado ou irrepresentável, (trabalho do) negativo, de compulsão à repetição e de pulsão de morte com a intenção de aprofundar um campo explorado por poucos na psicanálise brasileira, qual seja, o quanto a consideração desses conceitos em conjunto, mais do que predominantemente permitirem a compreensão dos movimentos psíquicos deletérios, exigem o entendimento das potências de abertura e das expressões de esforços de subjetivação e de inscrição psíquica.

Embora esse aspecto específico não tenha passado despercebido dos autores expressivos da literatura psicanalítica brasileira, a maioria tem se debruçado sobre um ou outro dos conceitos que pretendemos conectar neste artigo. Destacamos alguns desses autores, não necessariamente inseridos na mesma linhagem teórica, por terem se tornado referência obrigatória nos estudos brasileiros sobre essa temática. Se Garcia-Roza (1986) foi pioneiro ao destacar o quanto, na obra freudiana, o trabalho da pulsão de morte foi considerado fundamental para a constituição do psiquismo, devendo ser entendido em sua positividade radical - o que abriu, historicamente no Brasil, toda uma via de estudo e pesquisa sobre o tema -, ele não tinha como foco sua articulação explicita nem ao traumático ou ao irrepresentado, nem ao trabalho do negativo. Do mesmo modo, quando Knobloch (1998) - inserida sobretudo em uma linhagem ferencziana - aprofundou a questão dos tempos do traumático, sublinhando, como vimos há pouco, a possibilidade de um trabalho psíquico para além do representacional, sua preocupação não era demonstrar o papel da pulsão de morte ou da negatividade nesse processo e nem na constituição subjetiva.

Já Dunker (2006), com efeito, a partir da teoria lacaniana, destacou a função terapêutica do traumático, entendido como encontro com o Real. Em sua leitura, ele apontou para a possibilidade, sob determinadas circunstâncias fantasmáticas, de o trauma ser capaz de provocar a reorganização das coordenadas simbólicas do sujeito em decorrência da fixação e da compulsão à repetição. Contudo, sua perspectiva parece mais centrada no conceito de repetição de 1914 (o qual envolve a fantasia) e menos no de compulsão à repetição de 1920. Portanto, embora os efeitos positivos do trauma sejam destacados, sua abordagem não toca na questão da pulsão de morte.

Por sua vez, centrada na obra de Freud, Lejarraga (1996) diferenciou traumas estruturantes e desestruturantes, propondo que o aspecto estruturante corresponda à potencialidade fantasmática e o aspecto desestruturante ao desligamento e à clivagem egoica. Mas, se aborda a problemática da compulsão à repetição e da pulsão de morte para demonstrar seu argumento, ela não aborda a problemática do negativo e nem descreve como ambas participam de modo fundamental e positivo na constituição subjetiva em geral.

Por outro lado, outros autores brasileiros - possivelmente em função das dificuldades e dos desafios no manejo da clínica atual - tem privilegiado a metapsicologia dos efeitos destrutivos e esterilizantes do irrepresentável, da compulsão à repetição e da pulsão de morte. Em uma referência laplanchiana, Cardoso (2011) propôs uma linha de continuidade entre as neuroses traumáticas e as neuroses atuais a partir de uma releitura da dimensão da atualidade articulada com a de compulsão à repetição. Esse atual refere-se à formação de enclaves no espaço psíquico, apontando para a presença do irrepresentável como exterioridade interna radical que tende a se fazer sempre atual por sua repetição compulsiva. Em outro artigo (Maldonado, & Cardoso, 2011), encontramos um aprofundamento dessa questão através da proposição da clivagem como recurso funcional radical de sobrevivência psíquica ante uma experiência subjetiva traumática. Em ambos os textos, embora apenas mencionadas de passagem como conceitos fundamentais para o entendimento do problema, tanto a compulsão à repetição quanto a pulsão de morte parecem ser abordadas principalmente do ponto de vista de seus efeitos patogênicos: a primeira como dispositivo cego e mudo, derivado da formação de enclaves psíquicos, e a segunda como força unicamente destrutiva e desagregadora.

Finalmente, Figueiredo (1999) é quem mais se aproxima da leitura que propomos aqui quando, criticando sobretudo Melanie Klein e Jean Laplanche, vislumbrou o aspecto vitalizante da morte ao lado do caráter mortífero da vida. Nessa linha, em outro livro mais recente (Figueiredo, 2008), o autor propôs três hipóteses complementares para a compreensão multifacetada da compulsão à repetição. Segundo a primeira delas, a repetição corresponderia à manifestação da pulsão de morte como busca imperativa de descarga a partir da falta de apoio nos objetos primários para o exercício das funções básicas de ligação e separação. A segunda hipótese propõe que não se perca de vista que a repetição também é, mesmo quando reduzida à pura pulsionalidade, expressão da afirmação do mesmo à revelia do outro e, nesse sentido, esforço de constituição do próprio, para além do autoaniquilamento. Por fim, a terceira hipótese, bastante próxima do modo como entendemos, sugere que, mesmo quando há ataques à ligação nas operações da pulsão de morte e da compulsão à repetição, há também insistência da vida e esforço de subjetivação. Esse é o campo metapsicológico que pretendemos aprofundar aqui.

 

a posteriori e a repetição entre o irrepresentável e o representado

A primeira face ou o primeiro modelo da problemática do traumático em psicanálise é amplamente conhecido pela lógica do a posteriori ou do traumatismo em dois tempos. Englobando o período de elaboração freudiana de 1895 a 1920, esse modelo pode ser subdividido em dois em função de suas variações. Assim, o primeiro momento desse modelo pode ser localizado entre os anos de 1895 e 1905, tendo início quando Freud formulou sua célebre teoria da sedução e se encerrando com a entrada em cena do conceito de fantasia e de sexualidade infantil (Bokanowski, 2002, 2005). Nessa época, Freud (1896a) acreditava que a etiologia das neuroses repousava inteiramente sobre a lembrança de cenas sexuais nas quais a materialidade dos fatos cumpria papel importante. A potencialidade traumática seria instalada a partir de um atentado sexual sofrido pela criança de forma passiva e, somente a posteriori, manifestaria seus efeitos patológicos. No instante em que se desenrola a cena de sedução, quando a criança é investida sexualmente por um adulto, nenhuma excitação sexual seria deflagrada - de modo que a criança não registraria o evento como traumático, pois não disporia das representações necessárias para significá-lo. Apenas em um segundo tempo, outra cena banal e sem violência evocaria a primeira por algum traço associativo, desencadeando o efeito traumático ao possibilitar a significação, de forma retroativa, da primeira cena (Freud, 1896a). Daí a afirmação clássica de que é a lembrança que é traumática e não a materialidade do fato. Mas, se é assim, por que dar destaque à sedução como algo vivido? Eis o paradoxo desse modelo: ainda que a ênfase fosse posta nos fatos, o que provocaria o trauma não seria a vivência em si mesma, mas a lembrança do atentado sexual em momento ulterior. Logo, se a eficácia da potencialidade traumática se dá a posteriori a partir da ressignificação da lembrança, não é possível identificar um acontecimento traumático primeiro, sendo a própria lembrança, em certa medida, da ordem da fantasia (Freud, 1986a).

Essas e outras fragilidades da teoria da sedução abriram caminho para o segundo momento desse modelo, formulado entre 1905 a 1920 e cujo marco central foi justamente o abandono da primeira teorização. Se, nesta última, a fonte para a construção da fantasia e da potencialidade traumática era o fato real do atentado sexual, na teorização subsequente a fonte foi a sexualidade infantil ou, se preferirmos, a pulsionalidade. Como bem descreveram Claude Janin (2005) e Olivier Douville (2003), passou-se do sujeito vitimado ao sujeito desejante. Mas é importante sublinhar que o que foi abandonado foi tão somente a teoria da sedução em sentido estrito e não a lógica do a posteriori. Renunciou-se à materialidade do trauma sexual, mas não à ideia de que a fantasia (alimentada, agora, somente pela pulsão sexual) participaria da causação das neuroses, como testemunham os conceitos de sexualidade infantil e de complexo de Édipo. Como se, até 1905, a sexualidade fosse pensada como vinda de fora do sujeito a partir de uma experiência sexual precoce, passiva e materialmente vivida, a qual implantaria uma potencialidade traumática em um psiquismo infantil ainda incapaz de significá-la, simbolizá-la e elaborá-la. Por sua vez, a partir de 1905, com a conceitualização da sexualidade infantil, a factualidade foi deixada de lado e o caráter perverso polimorfo da pulsão sexual passou a ocupar o lugar da sedução traumática da primeira teorização.

As formulações teóricas desenhadas a partir daí propunham que, se, por um lado, o psiquismo precisa frear a desordem traumática provocada pelas moções pulsionais através de mecanismos de defesa dos quais o recalcamento é o protótipo, por outro lado a capacidade atrativa e a intensidade excessiva das forças pulsionais, ao exigirem um trabalho psíquico, engendram a vida fantasmática do sujeito e, consequentemente, os próprios processos de subjetivação e de estruturação psíquicos. Pode-se ver o que daí decorre: a pulsionalidade sexual, excessiva e traumática, é a organizadora dos processos de simbolização, do objeto interno e dos fantasmas inconscientes, sendo secundário o nível de desorganização que provoca, na medida em que, se incide sobre os processos primários da constituição psíquica, é para engendrá-los e deflagrá-los. (Bokanowski, 2002, 2005)

Para entendermos melhor como se dá esse trabalho exigido pela pulsão sexual, é preciso retomar brevemente a lógica do traumatismo em dois tempos e perguntar sobre o estatuto da vivência sexual (traumatismo), que só encontra o caminho representacional em um segundo momento, quando será recalcada. A questão, portanto, diz respeito à passagem do irrepresentado à representação. Como bem formulou Knobloch (1998), o que é preciso para que a inscrição se realize, para que a impressão se torne traço, abandonando o registro do negativo? Garcia-Roza (1993) responde que a impressão traumática terá que ser mediatizada por algo que a represente, uma lembrança qualquer que a ela se ligue e que a presentifique, transformando-a em símbolo mnêmico. Ou seja, são necessários processos de simbolização para ligar a impressão da experiência sexual vivida precocemente ao acontecimento posterior que a reatualiza e que a torna efetivamente traumática. Trata-se do trabalho psíquico de ligação das excitações corporais que permite que as impressões se inscrevam e se articulem como rede representacional (Knobloch, 1998).

Vê-se facilmente a face estruturante do trauma como disparador, em um momento seguinte, de processos de simbolização e, portanto, de sofisticação e complexificação psíquicas. Por isso, Jacques André (2008) pode apontar para o fato do conceito de a posteriori conjugar duas dimensões antagônicas: a violência traumática e a abertura engendrada pela sua inscrição e significação posterior. Nas palavras do autor: "Só a força do trauma permite que as cartas voltem a ser embaralhadas, que a história seja reescrita. Ou até mais que isso, permite que aquilo que ainda era sem sentido tome um sentido. Não há après sem coup, o après-coup une o que somos inclinados a opor: a violência da efração traumática e a abertura de sentido" (André, 2008, p. 151).

É bem nesse sentido que se pode fazer uma outra leitura do conceito de repetição formulado em 1914: como uma figura híbrida entre o representável e o irrepresentado, pois, ao mesmo tempo que escapa à representação, é expressão do recalcado, portanto já inscrito na ordem representacional. Freud (1914) escreveu que, embora o que foi recalcado não retorne como recordação, não deixa de se expressar, ou seja, o sujeito "o reproduz, não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber o que está repetindo" (Freud, 1914, p. 165). Trata-se do agieren, do retorno do recalcado que se apresenta em ato na transferência. Garcia-Roza (1986) propôs que se chamasse esse modo da repetição de diferencial, em contraponto à repetição do mesmo, face diversa do agieren teorizada apenas em 1920 como expressão da pulsão de morte.

Diferentemente do que Freud (1914) pareceu propor, o irrepresentado expresso pelo agieren não nos parece apenas um obstáculo a ser superado, mas um momento absolutamente necessário ao processo de elaboração. Embora o agieren faça oposição ao saber consciente, ele expressa o que não pode ser dito, incluindo de algum modo o que ficara de fora e constituindo-se como condição de possibilidade da elaboração de conteúdos inconscientes e, consequentemente, abertura para a diferença. Ao pensar a transferência, Scarfone (2013) propôs que ela fosse entendida como expressão, atuação e repetição, mas não ainda como um representar. Para o autor, a possibilidade de representar corresponderia ao fim de um processo iniciado com a apresentação sensorialmente carregada, passando pela etapa do que ele chamou de (re-)(a)presentação, ou seja, apresentar de novo. Nesse ponto, não haveria ainda passagem total da apresentação à representação, passagem para a qual seria necessário todo um percurso transferencial. Portanto, a possibilidade de apresentar de novo expressa pela repetição na transferência deve ser pensada como necessária para que o sujeito possa representar-se verdadeiramente, ou seja, inserir em uma rede simbólica o que insiste em retornar como ato (Scarfone, 2013). Em outras palavras, tal como o a posteriori do traumatismo, também a repetição diferencial abre a possibilidade, em um segundo momento, do trabalho de elaboração psíquica necessário para transformar em representação o que permanecia como impressão sensível.

A " Carta 52" (Freud, 1896b) ajuda a entender essa lógica do trauma em dois tempos e da repetição diferencial. Ali, o aparelho psíquico era pensado como aparelho de memória cuja função era registrar e associar traços derivados da inscrição psíquica de impressões sensíveis chamadas de Darstellung (apresentação). O caminho do traço à representação não seria direto, pois envolveria um processo complexo e sofisticado de inscrições das impressões em traços mnêmicos, transcrições e retranscrições destes traços em diversas camadas de memória nas quais eles se associariam segundo lógicas diversas, compondo representações articuladas em rede. Nessa carta ao seu amigo Fliess, Freud (1896b) imaginou, com efeito, um processo impressionante de captação das intensidades por um aparelho de memória plástica, composto por camadas que, além de realizarem retranscrições sucessivas de tempos em tempos em função das novas intensidades capturadas, operariam também novas transcrições a cada novo acesso aos conteúdos já inscritos. Quando ocorrer o que Freud chamou de "falha na tradução" (Freud, 1986b, p. 283), ou seja, a impossibilidade de uma transcrição de uma camada psíquica à outra (recalcamento), estaria aberto o caminho para a repetição diferencial, expressão do retorno do recalcado e do que permaneceu apenas como apresentado.

Basta lembrar do que propôs Scarfone (2013): não haveria transcrição total da apresentação à representação, o que não configura necessariamente um problema. Antes, manifesta a disposição pulsante que move a elaboração psíquica, pois os restos sensoriais não processados são, como vimos a propósito da Coisa, fundamentais para a proliferação e sofisticação psíquicas, necessárias à produção de diferença ao perturbar a estabilidade e a hegemonia do mesmo. Uma perturbação dessa ordem não implicaria a extrapolação do campo de domínio do princípio de prazer, pois tratar-se-ia do irrepresentado e do irrepresentável em pequenas doses, cuja intensidade não seria suficiente para curto-circuitar o funcionamento global do aparato psíquico. Eis a dimensão de irrepresentabilidade do recalcado que retorna, em ato, em busca de tradução.

 

O problema do excesso e a compulsão à repetição

Dois anos depois do fim da primeira guerra mundial, com a multiplicação dos casos de neurose traumática ou de guerra, Freud (1920) retomou seu interesse direto pela questão do traumático, destacando agora seu aspecto econômico, ou seja, o rompimento do escudo protetor ou para-excitação do psiquismo por uma excitação excessivamente intensa. Segundo essa concepção, o excesso de excitação aumentaria o nível de tensão psíquica de tal modo que ultrapassaria a capacidade de elaboração do aparelho psíquico, impedindo-o de dar um destino qualquer à quantidade que o invadiu e levando a uma deterioração de seu funcionamento e a uma desorganização da tessitura representacional e dos limites que o compõem. Em outras palavras, o irrepresentado e o irrepresentável aparecem, aqui, explicitamente sob a forma do traumático, ou seja, da impossibilidade de representação que leva o psiquismo a um estado limite, não elaborado e desorganizado.

Mas devemos perguntar: o que caracteriza uma excitação excessiva, como definir esse limiar a partir do qual uma excitação ultrapassaria as possibilidades de domínio do aparato psíquico? Em uma resposta apressada, diríamos que uma excitação se torna excessiva porque o psiquismo não conseguiu processá-la. Se é assim, o que impediria seu processamento e sua inscrição, transcrição e retranscrição? Esta segunda pergunta nos confronta com uma espécie de dialética paralisante: se, por um lado, o excesso se configura como tal porque o Eu não pode dar conta daquela excitação, por outro lado o Eu só não deu conta porque a excitação é excessiva e porque foi pego de surpresa. Ou seja, o acento pode recair sobre o próprio excesso, tomado em si mesmo, ou sobre a capacidade de ligação do aparelho egoico, abrindo duas formas de responder à questão. Podemos tomar a intensidade como valor causal, determinante do acontecimento traumático, na qual o fator quantitativo, por si mesmo, seria responsável pelo trauma, ou podemos considerar a organização psíquica de quem sofre o traumatismo, uma vez que, do mesmo modo que uma intensidade pode induzir a uma confusão tópica ou dinâmica, desorganizando o campo representativo, uma organização psíquica frágil pode dar a qualquer quantidade o valor de efração traumática. Parece-nos que não se trata de tomar um ou outro caminho, privilegiando isoladamente a intensidade ou a organização psíquica. É a relação entre a intensidade que atinge o aparato e suas capacidades de ligação e de organização das excitações que confere à quantidade valor de efração ou valor de empuxo à produção. Por isso, Roussillon (2006) afirma que o excesso não é necessariamente problemático, mas, ao contrário, pode servir como estímulo para o trabalho psíquico.

Evidentemente, em 1920, Freud estava preocupado em destacar os efeitos traumáticos do excesso, quais sejam, a efração, a paralisia psíquica e o desamparo, ainda que tenha considerado a capacidade de tolerância do Eu, as fixações libidinais, a história e organização do narcisismo, das relações de objeto etc. como o que aumentaria ou diminuiria o potencial de trabalho do psiquismo. Ele sublinhava particularmente o aspecto desestruturante do excesso, diferente daquele que vimos a propósito do primeiro modelo do trauma, no qual a impressão submetida à lógica e à temporalidade do a posteriori sofreria os processos de inscrição, transcrição e retranscrição ao longo do tempo, ainda que sempre sobrasse um resto não representado. Aqui, diferentemente, na medida em que o excesso não pode ser metabolizado pelo psiquismo, a lógica de funcionamento do princípio de prazer é dissolvida, disparando a compulsão à repetição em um esforço simultâneo de descarga e domínio. Sem o êxito do trabalho psíquico a posteriori, as marcas do trauma ficariam fixadas ou congeladas na forma da apresentação ou da impressão, impedidas de se articularem na rede representacional. Mas essa fixação ao traumático difere em absoluto da fixação libidinal. Se a última expressa classicamente uma aderência da libido a determinados objetos, modos de satisfação ou fases de desenvolvimento, a primeira revela um movimento regressivo, desorganizador, devido à desvinculação pulsional e, consequentemente, a uma intensificação da pulsão de morte.

Não foi por acaso que as formulações sobre essa nova face do trauma levaram à introdução do conceito de pulsão de morte e à radicalização da metapsicologia através da ideia de uma pulsão sem representação. Se, por um lado, Freud (1920) sustentava ser traumático uma efração súbita do psiquismo em função de excitações violentas derivadas de um acontecimento limite inassimilável, por outro lado também apresentava a ideia de que as excitações endógenas teriam, indiscutivelmente, preponderância econômica sobre as exógenas. De modo que, ainda que inicialmente se pudesse pensar tratar-se de uma retomada da teoria da sedução sem a sedução propriamente dita, novamente a questão da violência da pulsionalidade ocupa a cena teórica. Mas, agora, já não se trata da pulsão sexual e, sim, de uma pulsionalidade sem representação que opera desfazendo as ligações e dissolvendo o que estava composto. Ou seja, se há alguma retomada, ela se refere à problemática do irrepresentado, deixada de lado no início das elaborações freudianas em favor do par representação/recalque, que agora apresenta sua radicalidade através dos conceitos de pulsão de morte e de compulsão à repetição. O agieren de 1914 ganhou novo contorno conceitual, evidenciando o desencadeamento de um excesso traumático de pulsão de morte.

Embora o conceito de pulsão de morte não estivesse teorizado no primeiro modelo do trauma, podemos pensar retrospectivamente que o irrepresentável que lá operava servia como ativador do trabalho de Thanatos, enquanto impulso necessário à mudança. Face diversa desta de 1920, em que o irrepresentável próprio dessa pulsão se apresenta como obstáculo impenetrável, disparando a compulsão à repetição. Por sua vez, a compulsão à repetição, na medida em que não é veículo para o retorno do recalcado, mas efeito da intensificação da pulsão de morte que não encontra processamento, precisa ser pensada como diversa da repetição diferencial. Aqui, trata-se de uma face radical do agieren, ato que repete, sem máscaras, o que não pode ser inscrito e que não encontra outro modo de processamento senão a descarga. Mas, se a compulsão à repetição é um efeito psicopatológico do traumático, ela também pode ser entendida como um esforço de estruturação ao revelar, ao mesmo tempo, uma tentativa incessante e incansável, ainda que fracassada, de ligação do excesso pulsional. Ou seja, a função de domínio da compulsão à repetição pode ser vista como uma indicação de trabalho psíquico, como esforço contínuo do psiquismo em retomar uma certa homeostase garantida pelo princípio de prazer.

É nesse sentido que se deve entender o trabalho da repetição tal como formulada em 1920, ou seja, como uma tentativa de ligação fora dos moldes do princípio de prazer, que se dá engendrada pelo próprio excesso e não por um rebaixamento energético. A tentativa de ligação se faria às custas do contrainvestimento, a partir da mobilização energética de todos os sistemas psíquicos. Quando a ligação falhasse, entraria em ação a descarga. Esse é justamente o problema: porque a intensidade não chega a ser capturada plenamente, ela é sucessivamente evacuada e é justamente esse esvaziamento psíquico que prima sobre qualquer outro objetivo. Daí Green (2011) ter sublinhado o paradoxo contido na compulsão à repetição e expresso pelo fato de que essa energia necessária para o enriquecimento e a sofisticação psíquica se dissipa na descarga do próprio movimento de repetir. Mas o paradoxo também inclui a ideia de que, se a repetição do mesmo falha em processar o excesso, não falha em detonar a descarga que é outro modo de trabalho, a saber, trabalho da pulsão de morte. Pois, se não é possível elaborar, que, pelo menos, seja possível livrar-se da intensidade que inunda e ameaça a integridade egoica. Assim, se a descarga esvazia o aparelho psíquico e esgota sua energia, ela também revela o esforço de extinção da pressão pulsional e a tentativa de livrar-se da impotência que aproxima do desamparo. Noutras palavras, a intensificação da pulsão de morte, expressa na e pela compulsão à repetição, pode ser entendida, ao mesmo tempo, como o que mantém o sujeito em um movimento narcísico mortífero e como um esforço de reunir as forças necessárias para o funcionamento egoico.

 

Narcisismo primário e protesto vital da pulsão de morte

Lógica de funcionamento similar caracteriza também a face do traumático apenas esboçada em 1939 e que pode ser definida como narcísica ao identificar comprometimentos em níveis mais primários e em tempos mais precoces, quais sejam, os dos processos narcísicos primários e da constituição do Eu. Aqui, a ênfase está na incidência e nos efeitos dos traumas na primeira infância. Novamente, percebemos a presença do traumático tanto como necessário para a estruturação do psiquismo neurótico, quanto como podendo resultar em danos importantes no Eu em constituição. Nas palavras de Freud: "Denominamos traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande importância na etiologia das neuroses" (Freud, 1939, p. 87). Essa definição é complementada da seguinte maneira: "Os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo visto e ouvido, isto é, experiências ou impressões" (Freud, 1939, p. 89). Três fatores caracterizariam essas experiências: (1) o fato desses traumas se darem na primeira infância; (2) o fato de serem completamente inacessíveis à memória, uma vez que ocorreram no período de amnésia infantil, deles restando apenas resíduos mnêmicos isolados na forma de lembranças encobridoras e (3) o fato de essas experiências produzirem "danos precoces ao ego" ou "mortificações narcísicas" (Freud, 1939, p. 89). A tais mortificações narcísicas Freud chamou de fueros (Freud, 1939), zonas psíquicas mortas que se estabeleceriam como uma espécie de "estado dentro de um estado" (Freud, 1939, p. 91). Nesses casos, o mecanismo de defesa central seria a clivagem do Eu com a expulsão (split off) das partes mortificadas que não puderam se inscrever e se articular em representações passíveis de recalcamento. Trata-se da impossibilidade de integração do vivido por um Eu despreparado e cuja parte atingida pelo trauma deve ser separada e isolada, clivada e alienada do resto. Como Roussillon (1999), entendemos serem essas mortificações narcísicas partes irrepresentadas e, muito frequentemente irrepresentáveis, encapsuladas na tessitura egoica.

Anos antes dessas formulações freudianas, ao se debruçar sobre as consequências e os efeitos do que foi clivado, Ferenczi (1929, 1933) propôs que a função de escudo protetor do aparelho psíquico fosse deslocada para o ambiente, entendendo ser a relação entre a criança e seu entorno constitutiva da subjetividade. Para esse autor, era preciso entender o trauma sobretudo como uma falha ambiental, ou seja, como o resultado do desamparo da criança durante o processo de elaboração e produção de sentido, impossível de ser realizado sem a sustentação e a mediação de um adulto. Para Ferenczi (1931), desde muito cedo as crianças seriam capazes de registrar sinais conscientes e inconscientes de desamparo que continuariam presentes no psiquismo infantil, mesmo que não fossem nomeados enquanto tais. Por não serem representáveis, estes sinais - testemunhas tanto da falta quanto do excesso de resposta do objeto - seriam traumáticos e teriam na célebre confusão de línguas entre adultos e crianças sua figura paradigmática.

Ao sublinhar a fragilidade da criança, seu medo e sua incapacidade de protestar, ainda que em pensamento, contra a força e autoridade dos adultos, bem como o famoso desmentido, Ferenczi (1933) escreveu: "Mas, esse medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesmas, a identificar-se totalmente com o agressor" (Ferenczi, 1933, p. 117). A identificação com o agressor seria uma estratégia de sobrevivência, uma vez que a criança não teria qualquer possibilidade de reagir ao adulto idealizado, de quem dependeria totalmente. De tal modo que a única reação possível seria o rompimento consigo mesma, abrindo mão do testemunho de seus próprios sentidos. Assim, a criança repetiria a desqualificação de seus afetos, anteriormente produzida por um ambiente que não lhe deu o devido sustento. Essa modificação de si consistiria na incorporação do agressor e na identificação com sua culpa, que faria a criança se sentir culpada e inocente ao mesmo tempo: eis a confusão de línguas. O medo da criança, portanto, ao transformar a identificação em incorporação, faria com que o agressor desaparecesse da realidade externa para existir dentro do próprio psiquismo (Ferenczi, 1933).

Este processo de violação da criança através do desmentido produziria, então, uma clivagem narcísica, na qual uma parte da personalidade estaria preservada enquanto a outra estaria destruída e destituída de valor por falta de confiança nos próprios afetos. A parte preservada seria aquela que tudo sabe e nada sente - daí a figura do bebê sábio -, traduzida clinicamente por uma criança madura intelectualmente e afetivamente infantil que, para fazer frente ao trauma, precisou retirar-se da esfera psíquica para tornar-se um sábio observador do acontecimento traumático (Bokanowski, 2005; Ferenczi, 1933). Ao comentar as proposições de Ferenczi, Bokanowski (2005) observou que a confusão de línguas testemunharia algo que não aconteceu, no sentido de uma experiência vivida e integrada pelo sujeito (Winnicott, 1974), algo de excessivo relativamente às possibilidades de metabolização do sujeito que resultou na necessidade defensiva de transformar brutalmente a "(...) relação de objeto, que se tornou impossível, numa relação narcísica" (Ferenczi, 1934, p. 134). Ferenczi (1929) propôs ainda que se pensasse a relação do objeto com a pulsão, ao sustentar a hipótese de que a fusão ou desfusão da pulsão de morte e de vida dependeriam exclusivamente de como a criança fosse acolhida pelo ambiente. Noutras palavras, Ferenczi (1929) propunha uma relação clara e direta entre um trauma provocado pelo fracasso do objeto primário (ambiente) e a pulsão de morte. Assim, o mau acolhimento por parte do cuidador, tomado como da ordem do traumático, teria como consequência uma expressão mais evidente e intensa da pulsão de morte, através de um pessimismo e de uma aversão à vida, quando não de uma atração pela morte propriamente dita (Ferenczi, 1929). Se, como Ferenczi entendia, a pulsão de vida não surgiria espontaneamente, mas brotaria de um ambiente acolhedor, receber um investimento afetivo precário por parte do objeto, em momento de tamanha dependência, desregularia a dinâmica pulsional.

Vê-se como, ao tratar as mortificações narcísicas como fruto do desamparo detonado repetidamente por respostas inadequadas e desqualificantes do objeto primário, Ferenczi destacava a dimensão da alteridade, exercida pela função materna e influenciando decisivamente a estruturação do psiquismo. Na linhagem de Ferenczi e marcado pelas propostas de Winnicott, Green (1988b) também foi bastante sensível a função do objeto primário na constituição do psiquismo, sublinhando que o acolhimento ferencziano dizia sobretudo respeito às funções de amparo, contenção e ligação da descarga pulsional com a contribuição de uma ação fantasmática. Mas, a novidade trazida por Green (1988b) era a ideia de que, para cumprir plenamente sua função, o objeto também deveria se deixar apagar - a mãe suficientemente boa deve também ser suficientemente má -, uma vez que sua ausência seria fundamental para a estruturação psíquica e para o estabelecimento de novas relações com a realidade através da abertura de espaço para outros investimentos.

Ou seja, a perda do objeto primário seria absolutamente necessária para que ele pudesse ser internalizado como estrutura enquadrante do psiquismo (Green, 1988b), constituindo o espaço necessário da ausência - processo no qual o trabalho do negativo da pulsão de morte tem papel fundamental. Evidentemente, para que não se constitua como trauma desorganizador, essa perda não pode ser abrupta, devendo ser gradual o suficiente para nem se fazer sentir como tal. Para isso, a qualidade da relação com o objeto primário seria condição para que a ausência pudesse se estabelecer de forma positiva, estimulando e despertando a pulsão e, ao mesmo tempo, contendo-a, tornando-a tolerável, dando-lhe um contorno. Se o objeto está ausente ou presente demais, ele invade o sujeito e ao invés de tornar a dinâmica pulsional transigível, torna-a ainda mais intolerável (Green, 1988b).

Esse deslizamento da problemática narcísica do trauma para a importância do objeto na constituição psíquica, principalmente com relação à dinâmica pulsional e à constituição do Eu, já havia sido destacado por Benno Rosenberg (1989) quando ele afirmou que a fusão pulsional se dá por e depende do intermédio do objeto. Para o autor, o objeto constitui um terceiro terreno com relação às próprias pulsões, no qual a intrincação pulsional acontece. Isso porque, para ele, o antagonismo das pulsões só se torna conflito com contexto do objeto, ou seja, na relação do Eu com um objeto investido bipulsionalmente. E mais: para a constituição da unidade do objeto, para sua ligação, é preciso que a libido possa conservá-lo depois de constituí-lo e que a pulsão de morte possa estabelecer diferenciações internas que comporão sua riqueza. Noutras palavras, a estruturação complexa do objeto e a relação nuançada do Eu com esse objeto depende, tanto da libido que o constitui ao promover a ligação, quanto da pulsão de morte que, ao introduzir uma variedade e uma diversidade no interior do objeto, gradativamente vai permitindo uma diversificação no conjunto do mundo objetal.

Ora segundo Green (1988b), como vimos há pouco, se essa diversificação do conjunto do mundo objetal depende da ação da libido e da pulsão de morte, a ação da libido e da pulsão de morte dependem, por sua vez, do que podemos chamar de objeto primário, ou seja, aquilo que, no ambiente, exerce as funções de amparo, contenção e ligação da descarga pulsional com a contribuição de uma ação fantasmática. Quando o objeto primário falha em sua dupla função de estimular e conter a pulsão, a estrutura enquadrante igualmente fracassa e as pulsões não conseguem ser suficientemente contidas. Como resultado, o objeto se torna excessivo e intrusivo, tanto em suas funções estimulantes quanto em suas funções de continência. Mais ainda, o objeto não poderá negar e conter a força pulsional, dirigindo-a e transformando-a, ajudando em sua representação. O trabalho do negativo fracassa e, sem a possiblidade de negativização do objeto primário, ele é sempre demais, "excesso de presença pelo fato de sua falta. Recai-se, nesse momento, em uma espécie de coalescência entre o objeto e a pulsão, e o objeto, ao invés de ser o que torna a pulsão tolerável, é o que, ao contrário, a torna ainda mais intolerável" (Green, 2010, p. 302). São os traumas precoces.

Percebe-se facilmente a estreita relação entre fracasso do objeto primário, excesso de pulsão de morte e fragilidade narcísica. Os dois últimos fatores também ficaram evidentes no traumático que incidia sobre um Eu já constituído, como a face econômica revelou. Os efeitos detonados pelo trauma de 1920 e pelo de 1939 podem ser caracterizados de modo parecido, na medida em que tratam do efeito de um excesso sem representação no psiquismo e dos recursos defensivos utilizados. A diferença fundamental entre esses dois modelos teóricos está no momento de incidência traumática, se esta se faz diante do Eu em constituição ou diante do Eu constituído. Quando tratamos de traumas precoces, precisamos pensar que o próprio processo de construção egoica se fará marcado por mutilações, gerando uma permanente fragilidade narcísica, sempre pronta a ser reativada (Bokanowski, 2005). Isso é diferente de uma fragilização subjetiva circunscrita por um golpe posterior que incide sobre o psiquismo constituído. Ainda que a reviravolta psíquica guarde estreita semelhança, a possibilidade de elaboração supostamente seria maior no segundo caso, já que o aparelho psíquico disporia de muito mais recursos.

Em ambos os casos, assistimos a uma intensificação da pulsão de morte a partir da exigência de inscrição, processamento e metabolização de impressões que, seja pela sua intensidade relativamente a um Eu já constituído, seja pelo seu caráter excessivo frente a um Eu ainda inconsistente, permaneceram irrepresentadas e ligadas a uma pulsionalidade sem contorno. Ora, vimos que, se tal intensificação da pulsão de morte produz efeitos graves, desorganizadores e desestruturantes, ela também engendra a compulsão à repetição cuja função principal é engendrar a inscrição das impressões e a articulação de seus traços. Por isso, insistimos na leitura, aparentemente paradoxal, da ação desestruturante da pulsão de morte como uma espécie de efeito colateral da reunião das forças necessárias para a neutralização dos efeitos do traumático. De tal modo que, assim como Green (1988a, 2010), Zaltzman (1994) e Rosenberg (1995), entendemos ser a pulsão de morte mais de que somente um princípio autodestrutivo inerente ao vivo, uma vez que cumpre, mais profunda e radicalmente, função fundamental para a sobrevivência psíquica diante, por exemplo, de uma inundação traumática - protesto vital. Como defendia Ferenczi (1934), é inaceitável que não haja resistência diante da comoção psíquica. Como leu Zaltzman (1994), "numa relação de forças sem saída, só uma resistência nascida das próprias fontes pulsionais de morte pode afrontar a ameaça de perigo mortal" (Zaltzman, 1994, p. 64).

Segundo Green (1988b), a partir da desfusão das pulsões e da intensificação da intensificação da pulsão de morte, ocasionadas pela impossibilidade de ligar o excesso traumático, a função objetalizante sofreria um enfraquecimento, na medida em que a dimensão de investimento objetal primário só teria trazido decepção e perigo potencial. Entretanto, ao mesmo tempo, ocorreria um movimento de retração narcísica numa tentativa de garantir minimamente a unidade psíquica ameaçada pelos fortes sentimentos de intrusão, relativos tanto aos objetos quanto às pulsões. Noutras palavras, seria necessária uma grande redução da unidade psíquica para garantir uma organização mínima em termos de ligação e de circulação energética que pudesse viabilizar a sobrevivência, pois qualquer investimento apresentaria o risco de um novo traumatismo (Ferenczi, 1932). Nas palavras de Green (1988b, p. 153), "esta narcisização será tanto mais forte quanto o objeto investido tiver decepcionado". O problema é que, se a retração narcísica tem por função a manutenção da unidade psíquica, paradoxalmente, ela acaba por incidir sobre a própria estrutura narcísica primária (Green, 1988b), desfazendo as ligações necessárias daquilo mesmo que ela visa manter, a saber, a integridade do Eu.

Nessa situação, duas saídas seriam possíveis com o objetivo de tentar reduzir o dano traumático: a compulsão à repetição e a clivagem. A primeira fracassa enquanto tentativa de domínio, mas é bem-sucedida enquanto operação de descarga, incidindo sobre o excesso de excitação e promovendo um esvaziamento do psiquismo. Como falamos antes, essa descarga exigida pela pulsão de morte, embora impeça a elaboração, livra momentaneamente o psiquismo do excesso, podendo, mais profundamente, ser entendida como uma tentativa sempre renovada de constituição posterior da estrutura enquadrante. Nesse sentido, como sublinhou Figueiredo (2008), a descarga comporta uma dimensão de conservação do que já seria próprio, na medida em que dissolveria o excesso acachapante.

A clivagem, por sua vez, sacrificaria pedaços do eu em nome de um todo cada vez mais reduzido (Ferenczi, 1933 ; Rosenberg, 1989; Roussillon, 1999; Winnicott, 1960). Assim como na descarga, a clivagem também apresentaria uma dimensão de preservação de algo de si mesmo, ainda que às custas da destruição de partes do eu. Se o eu não pode dominar a excitação, modifica-se para poder suportá-la, na medida em que o processo de fragmentação garante a economia de energia (Ferenczi, 1932). Se, por um lado, essa operação de fragmentação testemunha o fracasso do trabalho do negativo enquanto estruturador do psiquismo, por outro demonstra o sucesso de sua operacionalidade, na medida em que aciona a clivagem, um de seus mecanismos negativizantes. Devemos lembrar que estamos tratando de um mecanismo de defesa, defesa radical contra a aniquilação.

Desse modo, vê-se como os processos (auto)destrutivos envolvidos nas reações psíquicas à presença intensa e traumática do irrepresentável, alimentados pela pulsão de morte, são mais complexos que uma simples ação niilista, pois se referem a (auto)destruições cujo objetivo maior é a sobrevivência global do psiquismo (Ferenczi, 1932; Rosenberg, 1995; Zaltzman, 1994). A entrada em ação da repetição do mesmo que impede e neutraliza as diferenças somente se faz porque estas são experimentadas como ameaça de desintegração. Diante de um psiquismo lutando para sobreviver, a novidade ainda não tem lugar. Por outro lado, esse apego ao mesmo aponta para uma insistência da vida, busca incessante de um objeto primordial (Figueiredo, 2008). Quando o sofrimento é insuportável, entretanto, ele "exige uma válvula de escape. Tal possibilidade é oferecida pela autodestruição, a qual, enquanto fator que liberta da angústia, será preferida ao sofrimento mudo" (Ferenczi, 1934, p. 127). Mais uma vez, percebe-se a dimensão de protesto vital da pulsão de morte, cujo objetivo é abrir uma saída onde uma situação crítica desmorona sobre o sujeito e o destina à morte (Zalztman, 1994). Às vezes, para sobreviver, é preciso se proteger da vida, reduzindo-a ao máximo - o que é bem diferente de morrer.

Fora da conjuntura traumática, a pulsão de morte e a negatividade vigoram de modo diferente. Versando especificamente sobre a constituição do Eu, Benno Rosenberg (1982, 1995) propôs a identificação de três etapas do trabalho psíquico através da negatividade. A primeira seria uma espécie de pré-trabalho, anterior à constituição do Eu propriamente dito. Nessa etapa, haveria uma retenção da libido autoconservadora no interior do Isso como condição de possibilidade das ligações que darão lugar ao Eu e do que o autor chamou de núcleo do masoquismo erógeno primário, ou seja, da própria intrincação pulsional inaugural. Tal intrincação pulsional seria necessária para a colocação da pulsão de morte a serviço de Eros e constituiria uma defesa específica no interior do sujeito ao bloquear a ação livre da pulsão de morte e permitir o surgimento do masoquismo erógeno primário, guardião da vida que permite o nascimento do Eu arcaico.

A segunda etapa corresponderia ao primeiro trabalho psíquico verdadeiro, envolvendo os processos absolutamente necessários de divisão e de separação entre o Eu e o Isso e entre o interior e o exterior, anteriores ao trabalho egoico de reunião ou de colocação em relação. Nessa etapa, notar-se-ia o quanto a negatividade seria capital através de sua profunda correspondência com os processos de divisão-separação. Aqui se poderia observar a preeminência salutar da pulsão de morte, utilizada pelo Eu para expulsá-la parcialmente de si e, assim, se defender dela.

Finalmente, a terceira etapa corresponderia a um trabalho psíquico integrador, promotor de introjeções e de ligações, no qual a negatividade estaria presente de modo implícito e no qual o papel principal estaria do lado da pulsão de vida.

Como vimos, Rosenberg (1989, 1995) propôs que todo objeto é investido bipulsionalmente e que, quando a pulsão de morte não chega a destruí-lo ou fragmentá-lo completamente, ela promove a introdução de divisões internas, respeitando sua unidade. Ou seja, segundo o autor, a divisão-separação no interior da ligação é expressão da ação da negatividade no psiquismo como absolutamente necessária para o enriquecimento do mundo psíquico. Vimos, com Green (1988b, 1993, 2010), o quanto sua ação é fundamental para garantir o apagamento do objeto primário que redunda na estrutura enquadrante, matriz do narcisismo primário. Nesse sentido, ele opera a favor da constituição narcísica, aliada do processo de individuação, caso o trabalho do negativo constitutivo do psiquismo seja levado a cabo com sucesso, o que depende em grande parte das vicissitudes do objeto. Além disso, a pulsão de morte introduz a diferença, enquanto representante de energia livre sem representação: diante de um eu constituído e fora de perigo, ela expressa o incômodo necessário para a mudança, aquilo que irrompe e desestabiliza a cultura do mesmo.

 

Considerações finais: a negatividade necessária

A esta altura, podemos afirmar que o papel fundamental da negatividade é de introduzir a diferença - negatividade necessária, portanto, sem a qual não é possível pensar. Noutras palavras, para o enriquecimento subjetivo, é necessário que o negativo se apresente para engendrar novos arranjos representacionais, ou seja, é preciso que o trabalho do negativo tenha sido cumprido de modo satisfatório na constituição do psiquismo e que ele seja retomado periodicamente pelo sujeito (Green, 2010). Isso significa que, para que os processos psíquicos não se engessem, é preciso ser acossado pela ordem do negativo, irrepresentável que impede a estabilidade das representações. É preciso, portanto, ter lugar para transformar o manifesto em latente - trabalho do negativo, mas também espaço para acolher os efeitos do negativo, limites à representação.

Assim, pudemos entender a pulsão de morte também e fundamentalmente como expressão de um protesto e de uma resistência, certamente de caráter disruptivo, frente à morte (diante da ameaça traumática). Dito de outro modo, assim como Eros, Thanatos está a serviço da vida. Enquanto o segundo forneceria a energia necessária à luta (Zaltzman, 1994), o primeiro lutaria pela manutenção das conquistas. De tal modo que nos parece extremamente simplista considerar apenas a potencialidade traumática da disruptividade e da irrepresentabilidade da pulsão de morte, pois, sem rupturas thanáticas, também há ameaça à vida. Eros em excesso intoxica e gera alienação, imobilidade e indiferenciação. É por isso que não se pode reduzir as pulsões de morte a um negativo das pulsões de vida (Zaltzman, 1994).

Do mesmo modo, o trauma e o irrepresentado do qual ela é expressão precisam ser entendidos como possibilidades de alargamento psíquico, ainda que detonem curto-circuitos capazes de reduzir as possibilidades de vida. Mesmo que o trauma seja desestruturante, se o sujeito sobreviver a ele estará em curso um processo de subjetivação. Por isso, é preciso fazer a diferença entre o trabalho de processamento psíquico, que se faz sob a égide da representabilidade, de outras formas de subjetivação. Nesse sentido, os traumas precoces não lesariam um Eu pré-existente, mas, ao contrário, seriam responsáveis por definir o que se é (Castel, 2001). Ou melhor, as feridas narcísicas produzidas pelos traumas precoces, ao afetarem o Eu em constituição, marcariam a construção da singularidade do sujeito e determinariam um certo modo de ser.

Por esse mesmo viés, apostamos na possibilidade de um destino para a repetição do mesmo - o que não significa adotar a ideia de que o intraduzível será eliminado ou incluído na malha representacional -, uma vez que entendemos que a repetição também obriga ao trabalho ao desestabilizar as bases psíquicas pela expressão do intraduzido. Daí ser abertura potencial para o novo. Basta pensar no que escreveu Freud em 1939, quando apontou para os efeitos positivos do trauma, sobre a compulsão à repetição ser responsável por atualizar o trauma através da recordação ou da experiência. Com efeito, trata-se de uma tentativa de cura, de um esforço de integração das partes clivadas do Eu (Freud, 1939).

Se Freud (1939) afirmou que os traumatismos de etiologia objetivável, passíveis de reconhecimento, têm chance de cura, enquanto os que não podem ser reconhecidos seriam inelutáveis e insuperáveis, em " Construções em análise" (1937, p. 276) ele ensinou que a tarefa preliminar do analista "é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo ". Roussillon (2006) apresentou uma hipótese complementar, implícita no texto freudiano: a ideia de que, se alguns traumas não deixaram traços representativos, deixaram outros traços não representativos, tais como certos sintomas psicossomáticos, patologias do narcisismo, processos autísticos, algumas percepções etc. Trata-se de representantes não psíquicos ou psíquicos/pré-psíquicos que devem ser tomados como pistas para um trabalho de construção do que o autor chamou de traumatismo perdido (Roussillon, 2006).

O trabalho da análise, desse modo, pode ser pensado como uma tentativa de produzir um a posteriori que, diferentemente da ressignificação, permitiria a construção de um primeiro sentido. Além disso, a dimensão do negativo exigiria a ampliação da escuta clínica através da via afetiva, na qual a função do analista consistiria em estabelecer, com o paciente, um campo transfero-contratransferencial que privilegie os afetos como ferramenta clínica. Não queremos com isso diminuir a importância da representação no trabalho analítico, mas apontar para a importância da valorização e discriminação de modos de trabalho do psiquismo que não o trabalho representacional.

Por fim, o que a negatividade introduz através dos conceitos que trabalhamos, desse modo, é a radicalidade de um campo de intensidades que se apresenta para o sujeito e com o qual este terá que se haver. Diz respeito a uma subversão de uma espécie de via reativa operada pela lógica do princípio de prazer, cuja função é evitar a dor, regulando e dominando a excitação para compor a base do mecanismo representacional. Em contrapartida, a via afirmativa, que busca a obtenção de prazer, pode ser pensada como a lógica do além do princípio de prazer, onde há lugar para algo da ordem de uma intensidade, do aumento da quantidade de excitação, que pode ser prazeroso ou desprazeroso. Trata-se de uma procura por satisfação que se faz independentemente da dor que possa ser encontrada no caminho. O que nos importa nessa maneira de pensar diz respeito ao acolhimento da dor, que por si só permite a experimentação de outras intensidades, admitindo maior mobilidade pulsional. De tal modo que o desafio de uma análise é transformar o arrebatamento pela dor em potência de subjetivação. A favor do processo analítico está o próprio psiquismo, em sua busca incessante por processamento, que se mantém pulsante ainda que encontre um limite, um resto intransponível e impossível de elaborar.

 

 

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Artigo recebido em: 01/06/2018
Aprovado para publicação em: 20/08/2018

Endereço para correspondência
Monah Winograd
E-mail: monahwinograd@icloud.com

 

 

*Psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ),professora associada do PPG em Psicologia Clínica da PUC-Rio, vice-decana de Pós-graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

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