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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

 

DOSSIÊ

 

A prática do psicanalista em um centro de tratamento de anomalias craniofaciais: o ideal educativo, os impasses e a questão do belo

 

The practice of the psychoanalyst in a craniofacial anomalies treatment unit: the educational ideal, the impasses and the question of the beauty

 

La práctica del psicoanalista en un centro de tratamiento de anomalías craneofaciales: el ideal educativo, los impasses y la cuestión del bello

 

 

Lucimara Lopes RaseI*; Vinicius Anciães DarribaI**

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo parte de reflexões suscitadas pela experiência no setor de psicologia de um centro de tratamento de anomalias craniofaciais na cidade do Rio de Janeiro. O questionamento incide sobre a possibilidade do trabalho do psicanalista em uma instituição hospitalar universitária, local historicamente estruturado em torno da transmissão e reprodução de preceitos educativos na área da saúde. Nesse âmbito, a partir dos impasses clínicos experimentados, que no contexto específico evocam a questão do belo, procura-se ressaltar os efeitos da dimensão ética que orienta a psicanálise ante as demandas de cunho pedagógico que, associadas aos preceitos de eficácia e produtividade defendidos como elementos necessários ao funcionamento de um serviço de alta complexidade, estabelecem condições para a própria manutenção institucional na atualidade.

Palavras-chave: Psicanálise, hospital, pedagogia, belo.


ABSTRACT

This article is based on the experience obtained in the psychology sector of a craniofacial anomalies treatment unit in Rio de Janeiro. The questioning focuses on the possibilities of psychoanalyst work in a university hospital institution, a place historically structured around the transmission and reproduction of educational precepts in health area. In this context, based on the clinical impasses experienced, which in this case evoke the question of beauty, we try to highlight the effects of the ethics that guides psychoanalysis despite the pedagogical demands that, associated with the effectiveness and productivity precepts, defended as elements needed for a highly complexity service operation, establish conditions, in the present time, for the institutional maintenance itself.

Keywords: Psychoanalysis, hospital, pedagogy, beauty.


RESUMEN

El presente artículo parte de reflexiones suscitadas por la experiencia en el sector de psicología de un centro de tratamiento de anomalías craneofaciales en la ciudad de Río de Janeiro. El cuestionamiento se centra en la posibilidad del trabajo del psicoanalista en una institución hospitalaria universitaria, local históricamente estructurado en torno a la transmisión y reproducción de preceptos educativos en el área de la salud. En este ámbito, a partir de los impasses clínicos experimentados, que en el contexto específico evocan la cuestión de lo bello, se intenta resaltar los efectos de la dimensión ética que orienta el psicoanálisis ante las demandas de cuño pedagógico que, asociadas a los preceptos de eficacia y productividad defendidos como elementos necesarios para el funcionamiento de un servicio de alta complejidad, establecen condiciones para el propio mantenimiento institucional en la actualidad.

Palabras clave: psicoanálisis, hospital, pedagogía, bello.


 

 

O campo em que atuamos

Formado por uma equipe multidisciplinar de alta complexidade, o Centro de Tratamento de Anomalias Craniofaciais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CTAC-UERJ) é composto pelas disciplinas da cirurgia plástica, da cirurgia bucomaxilofacial, da odontologia, da ortodontia, da otorrinolaringologia, da pediatria, da genética, da neurologia, da clínica médica, da enfermagem, da nutrição, da fisioterapia, da fonoaudiologia, da assistência social e da psicologia. Os pacientes apresentam anomalias graves, o que resulta em um trabalho que comumente dura vários anos, e não se trabalha em regime de emergência, como nas unidades hospitalares de grande porte, conhecidas como instituições de portas abertas. Isso não só propicia o recolhimento dos efeitos do trabalho a posteriori, o que dificilmente se pode contemplar naquelas instituições onde a permanência do enfermo é, via de regra, pontual, como também inaugura um lugar possível ao tratamento, cuja regência pode comparecer sob a forma da transferência estabelecida pelo paciente com o profissional de referência.

São sujeitos de todas as faixas etárias, das mais distintas regiões do país, que são recebidos e acompanhados por uma equipe de diretriz marcadamente universitária, versada na transmissão de um saber sistematizado, cujo método busca assegurar a adaptação recíproca da técnica ao paciente, de modo a se consolidar um plano de tratamento padronizado e, portanto, passível de repetição pelo conjunto dos profissionais. Os problemas encontrados na aplicação protocolar dos procedimentos podem ser identificados nos obstáculos que comparecem como entraves ao cumprimento do projeto terapêutico elaborado, momento limite onde somos convocados a atuar, frequentemente no lugar de mestres do assunto, na expectativa de que o manejo especializado da situação pela psicologia equivalha à superação da insuficiência detectada.

Dentre os pacientes, nota-se a presença frequente de portadores de fenda labiopalatal, ou fissurados, como comumente eles se denominam para os profissionais e entre seus pares, pelos corredores ambulatoriais. Os fissurados são presença importante na instituição, não somente pelo montante representado - a maior parte dos casos atendidos - mas também pelos desafios que são colocados no cotidiano da prática de todos os profissionais da equipe, já que atendê-los nem sempre é tarefa das mais fáceis, pois comumente são fanhos. Contudo, foram esses mesmos sujeitos, portadores de fenda labiopalatal, que promoveram as mais frutíferas reflexões junto à equipe, a partir dos impasses que causaram; os quais ratificaram, a cada vez, a importância do setor de psicologia na unidade, sendo convocado pelos profissionais que compõem o corpo de saúde da unidade, bem como pelos próprios pacientes, que constantemente buscam atendimento pessoal.

Incontáveis vezes deparamo-nos, nas demandas endereçadas pela equipe, com um enunciado comum sobre os fissurados. Trata-se da máxima de que os pacientes teriam problemas com a imagem de si e dificuldades de inserção social. Nem sempre, no entanto, essa afirmativa se confirmou. E, quando o fez, não foram poucas as vezes em que a causa esteve em outro lugar. Como responder, portanto, às demandas de cunho educativo, voltada à melhoria da percepção da autoimagem e à aquisição de habilidades sociais, quando, nos descaminhos do sujeito, este não cessa de dizer que, quanto àquilo de que efetivamente padece, sua aparência assume valor de fachada? Qual o tratamento quando o padecimento se aproveita de uma anomalia para ratificar sua permanência, atribuindo-lhe a causa do que, em verdade, é um álibi a mais? Afinal, deparamo-nos com casos de anomalias extensas cujos pacientes dizem estar bem, contentes com seus tratamentos e felizes em suas vidas, ao passo que anomalias pequenas, por vezes imperceptíveis, são relatadas como causadoras de verdadeiras derrocadas subjetivas.

Freud (1914/1980, p.117), em suas palavras, nos diz:

Na etiologia das neuroses, a inferioridade orgânica e o desenvolvimento imperfeito desempenham papel insignificante [...]. As neuroses fazem uso de tais inferioridades como um pretexto, assim como o fazem em relação a qualquer outro fator que se preste a isso. Somos tentados a acreditar numa paciente neurótica quando ela nos diz que era inevitável adoecer, visto que, por ser feia, deformada ou carente de encantos, ninguém poderia amá-la; logo, porém, outra neurótica nos prestará melhores esclarecimentos - pois persiste em sua neurose e em sua aversão à sexualidade, embora pareça mais desejável, e seja, de fato, mais desejada, do que a mulher comum.

Eis, portanto, a abertura de indagações que dizem respeito ao plano da ética, de uma direção da ação que norteia nossa presença na unidade, e que se manifestam, sobretudo, nos momentos em que somos convocados pela equipe clínica para tratar o que se coloca como impasse desde o sujeito fissurado, quando este se mostra refratário à intervenção pretendida. Como Lacan (1959-1960/2008, p. 33) nos questiona: "como é que no sujeito os pendores dirigem-se para outro lugar? Como isso é explicável?".

 

Medicina, pedagogia e psicanálise

A força do discurso pedagógico dentro da unidade hospitalar universitária, bem como os desdobramentos disso vislumbrados nas solicitações feitas ao setor de psicologia, remonta à própria sistematização do discurso médico. Em O nascimento da clínica , Foucault (1963/2004) nos diz do movimento histórico, surgido no final do século XVIII, em que as séries hospital e medicina se entrelaçaram pela primeira vez, após séculos de existência independente. De lugar de recolhimento de doentes para abrigo, de cunho menos terapêutico que religioso, a espaço de exclusão de loucos, mendigos e leprosos, a transformação do hospital em espaço privilegiado do exercício da clínica médica, calcado na produção de saber sobre a doença e no ofício de tratar pela via da observação dos casos apresentados, só pode ser vislumbrada no momento em que a própria medicina foi convocada a organizar o seu conhecimento e regular o exercício de sua prática.

Outrora vinculada aos curandeiros, charlatães, pessoas pouco instruídas para as quais o exercício da cura associava-se à capacidade de articulação do conhecimento popular com a credibilidade alcançada perante a sociedade, a medicina organizou-se como experiência hospitalar e circunscreveu um campo de ordenação dos métodos e universalização de suas práticas a partir de sua incursão no campo da pedagogia. Desse modo, "a pedagogia como sistema das normas de formação se articulava diretamente com a teoria da representação e do encadeamento das ideias" (Foucault, 1963/2004, p. 68). A importância desse momento na história da medicina pode ser contemplada com o corte que marca o término de um período clássico e o advento da medicina moderna. O deslocamento de um lugar onde a arte médica se exercia na incerteza do conhecimento, "onde os elementos (eram) demasiados sutis e numerosos para [...] a evidência e a certeza que caracterizam as ciências físicas e matemáticas" (Foucault, 1963/2004, p. 105).

Abandonando o que antes fora denominado "empirismo homicida" (Foucault, 1963/2004, p. 75), a medicina moderna "manifestará o ponto de contato pelo qual a arte de curar entra na ordem civil" (Foucault, 1963/2004, p. 78). Dessa feita, temos dois movimentos consecutivos: sob o aporte da pedagogia, o saber médico adentra o hospital para, em seguida, reabrir suas portas, sobrelevando-se ao corpo social pela via de um projeto moral. Ordem médica que faz dos cidadãos pacientes em potencial; série de doentes para uma verdade seriada. Os próprios alunos da escola de medicina são extraídos a partir de um rigoroso processo de seleção cujo critério estará, segundo registros da época, fundamentalmente baseado na "boa conduta, costumes puros" (Foucault, 1963/2004, p. 78). Assim, à medicina é concedido o direito de ditar os modos de vida, regular seus fluxos e influxos, agenciar os costumes; ao médico, o lugar de representá-la. Um saber que será construído sobre o corpo do doente, que equivalerá à revelação de uma verdade que o próprio paciente desconhecia. Verdade nua, jamais habitada pelo enfermo. Verdade douta: "O intelectual dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la: consciência e eloquência" (Foucault, 1963/2004, p. 42).

É nesse ambiente, e, mais especificamente, com o impacto da entrada da medicina na vida social, que, um século depois, iniciaram-se as primeiras produções psicanalíticas. Freud, médico vienense, viu-se convocado a responder aos quadros clínicos que, ainda que tangíveis ao olhar, apresentavam-se como enigmas à medicina de sua época. Manifestações que colocavam em xeque a correspondência cristalina até então propalada entre o olhar e o dizer médicos. São cidadãos comuns, moças jovens, donas de casa, proletária de fábrica, filha de comerciante, oficial das forças armadas, toda uma gama variada de pacientes que não se encaixavam no critério de verdade proposto pelo saber arquitetado da época, quiçá porque o sujeito, naquilo que lhe é singular, encontrara, na incógnita do sintoma, a expressão de sua verdade.

Insisto no fato de que Freud avançava numa pesquisa que não é marcada pelo mesmo estilo que as outras pesquisas científicas. O seu domínio é o da verdade do sujeito. A pesquisa da verdade não é inteiramente redutível à pesquisa objetiva, e mesmo objetivante, do método científico comum. Trata-se da realização da verdade do sujeito, como de uma dimensão própria que deve ser destacada na sua originalidade em relação à noção mesma da realidade (Lacan, 1953-54/1986, p. 31).

Se Freud não recua, também não se volta ao misticismo no qual a medicina clássica vivera por muito tempo; ainda que, recorrendo aos sonhos, pudesse evocá-lo. Como diferencia Lacan (1958/2003, p.179), esses sonhos "não são articuláveis em termos de adaptação à realidade", já que "o desejo inconsciente, indicado na metáfora onírica, não tem objeto senão metonímico". Trata-se, desse modo, não da adaptação à realidade, mas da busca da verdade que emerge do lado do sujeito a cada vez. Sem misticismo, sem pedagogia.

Dentre os efeitos ocasionados pela sistematização do saber médico, com seu caráter pedagógico, destaca-se a mudança na concepção da infância. Outrora retratada como um adulto incipiente, a criança será elevada a protótipo investigativo dos processos orgânicos em estado inicial. Tal perspectiva estabelecerá um parentesco entre tal incursão e a busca pela verdade em estado genuíno. Para uma medicina que dá seus primeiros passos, a criança será o adulto em condição autêntica, o ponto fulcral da sustentação de um discurso sobre a verdade dessa ciência.

A infância, a juventude das coisas e dos homens estavam carregadas de um poder ambíguo: dizer o nascimento da verdade; mas também colocar à prova a verdade tardia dos homens, retificá-la, aproximá-la de sua nudez. A criança se torna o senhor imediato do adulto, na medida em que a verdadeira formação se identifica com a própria gênese do verdadeiro (Foucault, 1963/2004, p. 68).

Por conseguinte, a psicanálise, nascida com Freud, foi convocada à lida com aspectos da vida infantil. Em julho de 1925, por exemplo, atendendo à solicitação do educador August Aichhorn, Freud (1925/1980) escreveu um prefácio à obra intitulada Juventude Desorientada (Aichhorn, 1925/1956). Aichhorn, que havia atuado por longa data como funcionário em instituições de amparo cujos jovens se encontravam em situação de conflito com a lei, familiarizara-se com a psicanálise de modo a almejar nela algumas orientações técnicas para sua prática educacional. Nesse contexto, e evocando seu próprio percurso, Freud lhe responde, sob a forma de prólogo, frente à demanda técnica de cunho educativo, com duas recomendações, uma conjugada à outra: a primeira delas era a da formação psicanalítica daqueles que por ela manifestavam interesse; a segunda, que poderia aqui ser entendida como um desdobramento da primeira, ou ainda a condição para que a ela se acedesse, dizia respeito ao processo analítico do próprio interessado. Formação e análise constituiriam - se assim quisermos denominá-los - um palíndromo desse percurso.

Freud (1925/1980, p. 341) também nos fala nesse texto que, ao longo do tempo, "as crianças se tornaram o tema principal da pesquisa psicanalítica e substituíram, assim, em importância, os neuróticos com os quais ela iniciou seus estudos". A passagem do interesse do neurótico para a criança é recebida por Freud (apud Aichorn, p. 13; tradução nossa) sem assombro, não somente porque "a análise demonstrou que a criança sobrevive, quase inalterada tanto no homem doente como no sonhador"1, como também porque as forças motivadoras e tendências percebidas na infância se mostram presentes na vida do neurótico. É nessa conjuntura que o prefácio de Freud ao livro de Aichhorn impõe ressalvas quanto ao intuito de que a ação educativa pudesse recolher contribuições da psicanálise, sobretudo face a sujeitos que o autor denominava de "'crianças-problema' e outros que sofrem de sintomas neuróticos" (Aichhorn, 1925/1956, p. 32; tradução nossa)2. A própria dimensão subjetiva aí situada assinala, nos termos da psicanálise, um limite ao procedimento de cunho educativo.

Passados cerca de três séculos do advento da estrutura de transmissão do saber médico, a mesma permanece praticamente inalterada. Muitas inovações surgiram no campo dos tratamentos, a tecnologia transformou a relação da ciência com o corpo humano, mas os pilares da cátedra médica se mantiveram nos hospitais universitários como instrumentos de formação. Se podemos diariamente perceber a vivacidade com a qual a difusão pedagógica da práxis médica é levada adiante, igualmente constatamos a insistência do que extrapola o enquadre imposto a ela. Nos termos do que enseja as demandas ao serviço de psicologia pela equipe de saúde, interrogaremos a possibilidade de inserção do psicanalista no âmbito hospitalar universitário, considerando seu não alinhamento a uma proposta educativa.

 

O ideal educativo. Demanda e desejo

Lacan (1974/2005, p. 58) nos diz que "as pessoas não percebem muito bem o que querem fazer quando educam". Prossegue afirmando que o ato de educar pode vir a ser um dos meios de que o sujeito se vale para aplacar sua própria angústia frente a algo que os analistas conhecem bem e que é da ordem de um inominável; ao que acrescenta que, "contra a angústia, há um monte de remédios, em particular certo número de 'concepções do homem', do que seja o homem" (Lacan, 1974/2005, p. 58). Tempos antes, já advertira que esse tipo de discurso trabalha com a submissão do sujeito a uma ordem que é perpetuamente retomada e colocada no interior de uma lógica, de modo que "o discurso reto, o discurso conforme, já é, portanto, introduzido pelo próprio fato de a questão ética ser colocada" (Lacan, 1959/2008, p. 33). Vale lembrar, nesse sentido, ter Freud (1912/1980, p. 158) observado, nas "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise", que "a ambição educativa é de tão pouca utilidade quanto a ambição terapêutica". Assim, as "atividades mentais, tais como refletir sobre algo ou concentrar a atenção, não solucionam nenhum dos enigmas de uma neurose" (Freud, 1912/1980, p. 158).

Essa indicação não impediu que, segundo a crítica de Lacan (1958/2003, p. 173), tal divisa tenha sido por muitos negligenciada, fomentando a busca de métodos estrangeiros à psicanálise como justificativa para sua prática, o que, nas palavras do autor, só ocorreu "ao preço de substantificações míticas e álibis falaciosos". É por essa via que ele afirma ter se dado um tipo de leitura da obra freudiana que a toma meramente como "pretexto para a introdução de uma certa ortopedia psíquica que se aferra [...]) a um reforço do eu", de maneira a buscar, na teoria, uma justificativa à pressuposição de uma "harmonia preestabelecida da maturação dos instintos na moral" (Lacan, 1958/2003, p. 176). Nesses moldes, a psicanálise poderia figurar mais facilmente como um incremento ao tratamento médico, um a mais para um sujeito a menos, donde a advertência lacaniana nos parece fundamental para que não caiamos na armadilha de responder ao ideal coletivo de cura com um ideal de sujeito, naquilo que, regidos por uma ética benfazeja, se desacoplaria da relação com a verdade.

Em "O lugar da psicanálise na medicina", Lacan (1966/2001, p. 10) nos dirá da importância de se admitir a falha existente entre o que se demanda e o que efetivamente se quer, já que "responder que o doente lhes demanda a cura não é responder absolutamente nada".

Quando o doente é enviado ao médico ou quando o aborda, não digam que ele espera pura e simplesmente a cura [...]. Ele vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente. Em muitos outros casos, ele vem pedir, de modo mais manifesto, que vocês o preservem em sua doença, que o tratem de maneira que lhe convém, ou seja, aquela que lhe permitirá continuar a ser um doente bem instalado em sua doença (Lacan, 1966/2001, p . 10).

Nesses termos, o autor assinala a distância entre demanda e desejo, de modo a situá-la não somente do lado do paciente, mas também como orientação ética que perscruta o modo de resposta dada pelo próprio médico àquilo que se apresenta nos momentos em que o paciente tem acesso ao serviço de saúde. Diz assim: "É no registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica" ( Lacan, 1966/2001, p. 10). Eis o fundo do problema com que nos deparamos quando o médico, acreditando saber o que o paciente quer e, consequentemente, outorgando-se poderes de conceder-lhe ou não o que procura, encontra-o dividido, à procura de uma cura que não se restringe a um reparo no corpo, a um ajustamento às formas concebidas como padrão de normalidade de uma face, por exemplo. É assim que se apresentam os pedidos da equipe de saúde, quando o paciente desafia esse saber suposto e insiste em pedir tratamento para não sei o quê, já que ele está ótimo - como diz o médico ao solicitar intervenção.

Nesses momentos, somos por vezes convocados, comumente ante a perplexidade daqueles que, dedicados com rigor a seu ofício, não compreendem o porquê da insistência do paciente em se mostrar insatisfeito.

 

Do belo em sua relação ao desejo

Situações como essas, de insatisfação do paciente em contraposição à satisfação do médico com o resultado, fazem refletir, na clínica com fissurados, sobre a problemática do belo. Em " O mal-estar na civilização", Freud (1930[1929]/1980, p. 93) declara: "A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas".

Dentre os lenitivos dos quais o sujeito lançaria mão frente a esse encontro, o autor nos fala do belo como algo que não o impedirá de sofrer, mas poderá gratificá-lo de algum modo, ao propiciar um efeito embriagante, "tenuemente intoxicante" (Freud, (1930[1929]/1980, p. 102). Freud situa o sofrimento como uma sensação advinda da economia libidinal do sujeito, não passível, portanto, de mensuração estatística e, consequentemente, de modos padronizados de tratá-lo. É nesse mesmo sentido que o autor alinha o belo ao prazer, àquilo que faz anteparo ao mal-estar do sujeito, a partir do momento em que oferece um véu sobre o indizível das decepções e dos maus encontros que perpassam a vida de cada um. Entretanto, como Freud (1930[1929]/1980, p. 103) aponta, em alusão à frase atribuída a Frederico o Grande, "todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo". Dessa feita, o belo comportaria essa plasticidade contraditória à tentativa de captura por um imaginário único, da harmonia, da convenção de medidas e ângulos. Então, como articular os benefícios oferecidos no campo da estética facial preconizados pelo saber médico, para o qual se faz apelo, e incluir o sujeito nessa operação? Ou ainda, como sair do discurso da impotência frente ao impasse estabelecido, de modo a apostar em alguma possibilidade de trabalho dentro dos limites apresentados?

Em História da feiura, Umberto Eco (2014) nos traz uma importante contribuição para pensarmos o que aqui associamos ao tratamento dos pacientes fissurados. Segundo o autor, se para o belo é possível reconstruir uma história da estética através dos tempos e sociedades, pela abundância de materiais teóricos e pictóricos encontrados, para o feio, não há registro. Ele padece de produção literária e, nas raras vezes em que algum material é encontrado, verifica-se com facilidade a sua postulação como um elemento de oposição ao belo, sem uma inscrição própria que o defina. Entretanto, como o autor nos ensina, diferente do que se crê comumente, o belo é também uma suposição, articulando-se numa complexa junção onde comparece o observador que o contempla, o período histórico que ele atravessa e a cultura na qual ele se insere. Cita-nos uma passagem de Voltaire (apud Eco, 2014, p. 11) em seu Dicionário Filosófico, onde este teria dito:

Perguntem a um sapo o que é a beleza, o verdadeiro belo, o to kálon. Ele responderá que consiste em sua fêmea, com seus dois belos olhões redondos que se destacam na cabeça pequena, a garganta larga e chata, o ventre amarelo e o dorso escuro. [...] Interroguem o diabo: dirá que o belo é um par de chifres, quatro patas em garras e um rabo.

Do mesmo modo, recolhe a contribuição de Marx (apud Eco, 2014, p.12) sobre o assunto em Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844, de onde retira a seguinte afirmação:

O dinheiro, na medida em que possui a propriedade de comprar tudo, de apropriar-se de todos os objetos, é o objeto em sentido eminente. [...] Logo, não sou feio, na medida em que o efeito da feiura, seu poder desencorajador, é anulado pelo dinheiro. Sou, como indivíduo, manco, mas o dinheiro me dá vinte e quatro pernas; donde, não sou manco... Meu dinheiro não transforma todas as minhas deficiências em seu contrário?

Assim, constatamos a aparição do feio atrelado à figura do negativo do belo, tangenciando, por vezes, aspectos ainda mais sutis, vinculados ao discurso moral. O feio enquanto oposição ao belo, mas também como oposto ao bem, ao reto, como um erro, sinonímia do pecado. Nas palavras de Eco (2014, p. 16), tal qual encontrara em sua pesquisa sobre a feiura, aqui "o feio é o inferno do belo".

Ele nos mostra, contudo, que Rosenkrantz (apud Eco, 2014, p. 16), em sua Estética do feio, promoverá uma decantação do feio, de maneira a tomá-lo como algo muito mais complexo que a simples negação do belo, fundando uma "autonomia do feio". Nela, o feio comparece como o "abominável, vomitante, obsceno, repugnante, assustador, abjeto, deformado, desfigurado" (Eco, 2014, p. 16) - para citar algumas qualificações descritas pelo autor. Como exemplo literário, ele cita a fala da personagem de Victor Hugo (apud Eco, 2014, p. 286) em O homem que ri, duquesa Josiane, que se apaixona por Gwynplaine justamente por este retratar, em sua face, o aspecto repugnante de uma deformidade. Assim, ela se declara ao rapaz: "Amo-te não só porque és disforme, mas porque és abjeto. [...] Tu não és feio, tu és disforme. O feio é pequeno, o disforme é grande. O feio é o esgar do diabo pelas costas do belo. O disforme é o avesso do sublime".

Por conseguinte, Eco (2014, p.19) depreende, do contato com a leitura sobre o tema, duas classes para o feio: o "feio normal, ou seja, desequilíbrio na relação orgânica entre as partes e de um todo" e o "feio em si", "um excremento, uma carcaça em decomposição". Este último, por sua vez, seria tributário do encontro do sujeito com o "informe, o doloroso, o tremendo" (Eco, 2014, p. 272) e poderia ser inferido nas produções literárias encontradas a partir do século XVIII, junto à modernidade, quando passará a ser tomado nas cercanias do sublime, a partir de um redirecionamento da discussão sobre o belo. Nela, "o belo [...] se desloca da pesquisa das regras que o definem para a consideração dos efeitos que produz" (Eco, 2014, p. 272), de modo a ser destacado como "uma nova sensibilidade diante das ruínas" (Eco, 2014, p. 272). Assim, o "feio em si" enquanto manifestação do indizível também teria sua presença registrada nos relatos onde "se goza do vazio, da escuridão, da solidão, do silêncio" (Eco, 2014, p. 272). Ou ainda, nos momentos onde se tangencia o inefável, o impossível, "todas impressões que podem resultar deleitosas quando se sente horror" (Eco, 2014, p. 272).

Como exemplo de tal perspectiva, recordemos o documentário O povo brasileiro (2000), dirigido por Isa Grispum Ferraz, colaboradora do antropólogo e escritor Darcy Ribeiro, autor da obra de título homônimo ao vídeo. Nele, a formação do povo brasileiro está em pauta, no que diz respeito a sua miscigenação e ao seu sincretismo cultural. Ali, portanto, encontraremos a preciosa contribuição do escritor Ariano Suassuna, ao fazer uma comparação entre a beleza localizada na faixa litorânea do nordeste brasileiro, a Zona da Mata, cuja dominância da vegetação é dada pela Mata Atlântica, e o que pode ser contemplado no sertão, na região do agreste, marcado pela presença da caatinga e das secas no Brasil. Assim o escritor nos diz:

As pessoas que acham o sertão feio, normalmente são da Zona da Mata ou são da cidade. Então são habituadas a um tipo de beleza que é mais ligada à graça. A beleza da Zona da Mata é bonita também, mas a beleza da Zona da Mata é ligada ao gracioso. A beleza do Sertão é ligada ao grandioso. Ele é grandioso e terrível em certos momentos. O que dá à beleza dele uma conotação muito diferente, muito estranha, mas também muito fort e ( Suassuna apud Ferraz, 2000).

Lembremos, assim, que o somatório de ângulos corretos de uma face não a torna necessariamente bela; que a justaposição de olhos, lábios, narizes, queixos, testas perfeitos não produzem uma linda face, como seria de se esperar. Pelo contrário. Há programas de computador que fazem esse alinhamento, no qual, por vezes, somos tomados de desapontamento e perplexidade diante do efeito da junção dos traços que julgamos perfeitamente belos. O resultado não nos parece nem um pouco agradável. Do mesmo modo, quando um pintor, com exímia destreza, reproduz uma obra de arte de um grande artista, um especialista no assunto detecta que não se trata de uma pintura original, apenas a cópia de ângulos, cores, formas, técnicas. Há algo que se passa entre o pincel e a aquarela, cuja autoria é impossível à reprodução.

Atingir essa dimensão intangível do belo se relaciona com algo singular, além do que a academia pode oferecer ao artesão, ao artista, ao cirurgião. Marcas nas quais se distingue um sujeito aqui comparecem. Entre os cirurgiões, isto se contempla, por exemplo, quando, ao atenderem os pacientes que se submeteram a algum procedimento estético anterior, cuja autoria desconhecem, detectam o traço do artista na face do paciente e, assim, adivinham quem realizou o procedimento. Dirigem-se ao fissurado e perguntam: "este lábio é do doutor X, não é?" - e sorriem após a ratificação da assertiva. Nessa face real, que escapa ao saber, assenta-se também o pedido de nossa intervenção. Para tanto, é preciso que o próprio profissional tenha levantado a questão: como pode o paciente não ver o que ele vê? O que, de outro modo, poderíamos questionar: como pode o belo somente ser reconhecido enquanto tal a partir do repertório inconsciente de cada sujeito?

Recalcati (2004, p. 95), ao propor uma reflexão sobre a estética em Lacan, menciona uma "estética do vazio" na psicanálise, passível de inferência a partir da constatação de um sujeito que carrega "uma dimensão não redutível àquela do significante" e que, "graças a essa irredutibilidade, a essa resistência, constitui-se como lugar vazio de origem de toda a representação possível". O autor propõe um giro da conceituação de uma psicanálise aplicada à arte para uma psicanálise implicada à arte, naquilo que esta pode ensinar acerca de seu próprio objeto. Nas palavras do autor: "Se, de fato, a obra de arte é uma organização textual, uma trama significante que manifesta uma particular densidade semântica própria, essa organização não é apenas uma organização dos significantes, mas uma organização significante de uma alteridade radical, extrassignificante" (Recalcati, 2004, p. 95).

Em Lacan (1959-1960/2008), a obra de arte é justamente trabalhada, em seu seminário sobre a ética da psicanálise, pela vertente do belo. Advertido da prudência freudiana sobre o tema, para quem, segundo ele, "sobre a natureza do que se manifesta de criação no belo, o analista [...] nada tem a dizer" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 283), Lacan nem por isso se isentou de trabalhar o assunto, abordando-o, entretanto, pelo viés de sua função, a partir das coordenadas sobre as quais o belo se orienta. "Para além do princípio do bem" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 283) - ele nos ensina. Lembrando que, em Freud (1930[1929]/1980, p.112), o belo será uma das exigências da cultura, em que pese o fato de ser concebido como uma "coisa não lucrativa".

O belo, fora do compromisso moral do bem e desobrigado de alimentar as engrenagens do capital, manterá "uma certa relação [...] com o desejo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 283). Por um lado, véu que "tem por efeito suspender, rebaixar, desarmar [...] o desejo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 284), o belo, insensível ao ultraje do que não se representa, faz face ao irrepresentável como limite do estético. Por outro lado, e contrariamente ao bem, o belo "nos abre os olhos e talvez nos acomode quanto ao desejo, dado que ele mesmo está ligado a uma estrutura do engodo" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 284). É porque o desejo, não sendo passível de representação, encontra menção em seus representantes. O belo, como trilhamento possível desse misterioso campo que aponta para o real, emerge como um "belo-não-toque-nisso" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 284).

 

Na encruzilhada do bem: antinomias

A vinda de certos pacientes à consulta no setor de psicologia nos mostra que, se a arte médica foi bem executada, ela não foi reconhecida como tal. Para o paciente, se houve um bem, foi sem olhar a quem; o paciente se sentindo, antes, privado desse bem. Lacan (1959-1960/2008, p. 274), contudo, nos alerta: "o importante é saber que o privador é uma função imaginária. É o pequeno outro, o semelhante, aquele que é dado nessa relação semienraizada no natural que é o estádio do espelho".

Assim, para situar o bem, Lacan (1959-1960/2008, p. 223) nos traz a história de são Martinho. Conta-se que Martinho, cavaleiro da infantaria romana, ao cavalgar pela noite, avistou um mendigo que tiritava de frio. De posse de seu manto, Martinho teria cindido com a espada o pano, dividindo-o em dois e ofertando uma das partes ao indigente. Tal passagem é tratada pelo viés do amor ao próximo, em relação ao que comportaria o aplacamento de um mal-estar que a imagem do mendigo causara, apartando-a sob o manto da bondade, medida imaginária pautada na identificação do cavaleiro com o sujeito depauperado. O bem comporta, assim, uma medida ideal, como no caso do médico que busca fazer o melhor que aprendera em seu ofício, segundo os preceitos aprendidos em sua formação.

Seguindo, Lacan (1959-1960/2008, p. 272) aponta que "o problema dos bens se coloca no interior do que é a estrutura", já que, "no início, é como significante que o que quer que seja se articula". Nesse sentido, retoma a história do pano de Martinho e nos esclarece: "o têxtil é primeiramente um texto" (Lacan (1959-1960/2008, p. 272), pois o fato de o homem se pôr a tecer um pano para encobrir, velar o corpo, é uma das finalidades dadas, dentre outras possíveis, ao que é produzido, e não a causa primeira de sua produção. É assim que se instaura, por conseguinte, o uso de seu produto como um bem. Nessa vertente, o autor pergunta: "o que bem pode haver por trás disso?" (Lacan (1959-1960/2008, p. 273). E, uma vez bem trajado, "o que bem pode dele, apesar disso [...] continuar a desejar?" (Lacan (1959-1960/2008, p. 273).

Há uma diferença, portanto, se pensamos no belo para o paciente, calcado em uma construção particular, podendo fazer frente ao real que o angustia, e no que para o cirurgião é parametrizado pelo saber de sua especialidade, o qual igualmente identificaria o que não está bem para o paciente. A queixa do paciente configura, portanto, um elemento deslocado nessa relação. O cirurgião dispõe de uma produção como um bem para uso em prol de um montante populacional formado por pacientes cujo perfil principal será dado pela apresentação de anomalias na face, fissurados ou ex-fissurados, que lhe vêm em pedido de melhoria e reparação. Lacan (1959-1960/2008, p. 273) assim nos fala: "Nesse estádio, não há problema - o máximo de utilidade para a maioria, tal é a lei segundo a qual, nesse nível, o problema da função dos bens se organiza". Então, como o paciente não vê? Como acredita que seu médico não fez o que aprendera, que guardou para si um saber do qual não quis dispor? Ele não denunciaria os limites do utilitarismo ao proclamar, na encruzilhada, que o máximo de utilidade para todos não garante a realização do bem ou a assunção do belo para cada um?

Outrossim, sustentamos que não só o que é dado por belo para o paciente é distinto do que o médico associa à harmonização dos traços, mas também, e fundamentalmente, que ambos podem ser alocados no campo do bem. Momento propício para atualizar a pergunta feita por Lacan em palestra ao Colégio de Medicina, onde questiona: "Onde está o limite onde o médico deve agir e a quê deve ele responder?" (Lacan, 1966/2001, p. 3). Essa arguição é feita pelo autor no momento em que sustenta a perspectiva de uma mudança no registro da relação médica com a saúde, orquestrada pela difusão da ciência em escala mundial, cujo efeito pode ser visto na universalização do acesso à saúde, bem como na possibilidade adquirida por todos de solicitar atendimento a um profissional da medicina.

Pode-se perguntar, então, qual seria o limite do médico nos casos e a quê ele deveria responder, quando, com a solução dada, não se obtém o êxito esperado. Em função disso, deveria o médico, por exemplo, operar novamente o paciente, assentindo com sua fantasia? Lacan (1966/2001, p. 5) assinala que o desejo é de alguma forma o ponto de compromisso, quanto ao que esclarece: "Este é, no entanto, um ponto fantasmático, ou seja, ali intervém o registro da dimensão imaginária que faz com que o desejo seja suspenso a alguma coisa da qual não é de sua natureza verdadeiramente exigir a realização".

Então, não seria aqui o momento de se poder apostar nos efeitos da presença do analista na instituição hospitalar, no intuito de se questionar: afinal, o que quer esse sujeito? De modo a buscar o surgimento de algum ponto de articulação possível entre o que o sujeito quer e o que o cirurgião tem a oferecer com seu ofício, isto é, os limites de sua intervenção.

Pois é justamente nessa hiância, na lacuna existente entre o que o médico concebe segundo o que preconiza a literatura e o almejado pelo paciente, que podemos escutar o pedido que o médico nos endereça. E o saber fazer com tal hiância passa, em nosso caso, pela disjunção do ideal educativo. Isto é, supõe o manejo da demanda de que doutrinemos e informemos os pacientes acerca dos procedimentos clínicos e seus resultados ou de que seus argumentos forneçam insumos para a superação de suas resistências. Incluem-se aí, contudo, outras demandas, como as de que sejamos veículos para a captação de dados estatísticos relacionados a índices de satisfação, qualidade de vida, autoestima. A presença de demandas de cunho pedagógico, articuladas à busca por efeitos terapêuticos imediatos, alia-se ao clamor da eficácia e da produtividade, condições hoje prescritas para o funcionamento das próprias unidades, bem como para o repasse de verbas que implicam a sustentação desses serviços de alta complexidade. É nesse terreno que se refaz a aposta no sujeito que nos convoca, nos momentos de impasse; situemo-lo na equipe ou nos pacientes que nos procuram.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 10/08/2018
Aprovado para publicação em: 23/09/2018

Endereço para correspondência
Lucimara Lopes Rase
E-mail: lucimara.rase@gmail.com
Vinicius Anciães Darriba
E-mail: viniciusdarriba@gmail.com

 

 

*Coordenadora do Setor de Psicologia do CTAC-UERJ; Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
**Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Programa de Pós-Graduação em Psicanálise; Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
1O texto no original é: "El análisis ha demonstrado que el niño previve casi incambiado, tanto em hombre enfermo como em el soñador y em el artista".
2O texto no original é: "niños-problema y outros que sufren de síntomas neuróticos".

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