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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.51 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

 

EDITORIAL

 

 

 

Daniela Teixeira Dutra Viola*

 

 

Nós, do campo psi, temos acompanhado de um lugar muito particular os impactos massivos das transformações discursivas da última década sobre os sujeitos e seus corpos. Os acontecimentos políticos e econômicos que marcam nosso tempo, não apenas no Brasil, mas em escala global, estão conectados a profundas mudanças no laço social, com efeitos subjetivos que se fazem notar pelo alarmante aumento nos índices de adoecimento mental. Para além dessa amplitude quantificável- pela crescente elevação nas taxas de suicídio, pelo acréscimo exponencial nas porcentagens de medicalização por psicofármacos e de inclusão em categorias diagnósticas de transtornos mentais, especialmente os depressivos e de ansiedade - há toda uma dimensão imensurável do sofrimento psíquico que encontra um lugar de tratamento na clínica psicanalítica. O mal-estar contemporâneo tem como elemento basilar a segregação, que passa ao centro dos discursos e das relações sociais, perturbadas por uma explicitação da intolerância às diferenças. Nota-se uma gradual perda das sutilezas e dos filtros sociais que operam como mediadores nos conflitos e impasses discursivos, o que se reflete na violência das rupturas, na incapacidade de dialetização na relação com o Outro, na precariedade ou mesmo falha da instância alteritária.

Nesse cenário, torna-se cada vez mais urgente o debate de ideias em torno do que não vai bem no real da contemporaneidade, daquilo que produz o sintoma social de nosso tempo. Num conhecido ensaio, Abamben (2009) aponta a impossibilidade de se posicionar como contemporâneo numa determinada época sem se aproximar de sua dimensão mais sombria e obscura. Ou seja, não é possível abordar o real de um tempo sem tocar o pathos que particulariza esse tempo. Num contexto que se apresenta como um desafio para todos que lidamos com a subjetividade da época, é oportuno retomar essa elaboração:

Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. [...] o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (p. 63-64)

O filósofo acrescenta que:

[...] o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de "citá-la" segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora. (p. 72)

Essa referência extraída da filosofia endossa a proposição de que a psicanálise é necessariamente - e desde sempre - contemporânea, na medida em que é uma práxis que surge na conjuntura moderna ocidental como resposta ao mal-estar da época, ao que não vai bem no real de uma sociedade e que retorna como face sombreada do sintoma social. Freud, como poucos, percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo. Ao não recuar diante dos desafios de seu tempo, atesta a impossibilidade de separação entre a dimensão subjetiva e o campo social. Em suas palavras, "a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social" (Freud, 1921/2011, p. 14), concepção que atravessa sua obra, não apenas nos chamados "estudos culturais", mas também nos trabalhos talhados por um notável esforço de escrever a clínica. Nestes, as narrativas clínicas são sempre perpassadas pelo social, configurando pontos de tangência entre o singular de uma história de vida e a incidência contingente do tempo em que o sujeito vive.

Numa das passagens mais lembradas de seus Escritos, Lacan (1953/1998) também demarca a função do(a) analista como indissociável do âmbito social. Ele ressalta que a dialética produzida num processo de análise que chega a seu término, levando à formação de um(a) analista, não é individual, mas equivale ao momento em que a satisfação do sujeito encontra meios de se realizar na satisfação de cada um, quer dizer, de todos com quem essa satisfação se associa numa obra humana. Trata-se de uma abertura dialética para a alteridade, que, conforme o autor, depende de uma ascese subjetiva que jamais será interrompida e que permanece inseparável do engajamento do sujeito em sua prática. Posto isso, Lacan enfatiza a impossibilidade de exercer essa prática, a psicanálise, para "quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época". (p. 322) Tal como Agamben, o autor recorre à metáfora da obscuridade e das sombras - as "trevas do mundus" ao redor do qual se enrosca a linguagem e seus equívocos - numa alusão ao pathos e à crise discursiva que o(a) psicanalista vai enfrentar em seu tempo: "Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas". (p. 322)

É com o lastro dessa orientação fundamental que avançam a prática clínica, a pesquisa e a produção bibliográfica psicanalítica de melhor qualidade ainda hoje. Imerso(a) na polis e atento(a) a suas questões, impasses e acontecimentos, e valendo-se do gesto fundador de Freud, a escuta equiflutuante da fala dos sujeitos - um gesto eminentemente político -, o(a) analista contemporâneo(a) tem como tarefa a sustentação de um lugar para as diferenças, para as contradições e dissonâncias que o imperativo de homogeneização vigente - as luzes fulgurantes do presente - tende a expelir de outros espaços.

Nessa perspectiva, o novo número da revista Tempo Psicanalítico - publicação que carrega em seu nome o caráter radicalmente contemporâneo da psicanálise - demonstra a importância dessa orientação na pesquisa em psicanálise, por meio de trabalhos que abordam variados temas e problemas sem perder de vista a subjetividade da época e a especificidade da dimensão temporal em nosso campo. Apresentamos, a seguir, os artigos que compõem esta edição.

Num momento histórico em que o discurso da ciência, em sua estreita conexão com o discurso do capitalista, passa por uma crise inédita, transfigurada na lógica da pós-verdade - um dos elementos discursivos mais marcantes da contemporaneidade -, a relação entre psicanálise e ciência é um tema de grande atualidade. Diversos artigos desta edição são construídos em torno dessa relação, ou de temas conexos, como a questão do conhecimento, da transmissão e do método. São eles: "Perspectivas da relação entre psicanálise e ciência em Lacan", de Vinicius Anciães Darriba, "A filosofia da ciência de Émile Meyerson nas primeiras teorizações de Jacques Lacan", de Hugo Tannous Jorge e Richard Theisen Simanke, "Freud e a ciência da literatura- psicanálise, ciência e poesia", de Ingrid de Mello Vorsatz, "Moisés e a máquina do tempo de Freud", de Estevan Ketzer, "El psicoanálisis y su objeto de investigación", de Juan Pablo Sánchez Domínguez, e "Cultura contemporánea: ciencia y capitalismo, la cuestión de la subjetividad", de Samir Ahmed Dasuky e Lina Maria López Vélez.

A interface entre psicanálise e política ganha relevo na abordagem da complexidade de temas contemporâneos, tais como as mutações no laço social, gênero e sexualidade, as novas configurações familiares, os diagnósticos psiquiátricos, os impasses da adolescência e da juventude no mundo de hoje. Alguns dos artigos do número propõem atualizações importantes em torno dessas questões: "Pode a transexualidade operar como amarração nodal do sujeito?", de Vinícius Moreira Lima e Ângela Maria Resende Vorcaro, "Ter Duas Mães: Dinâmica da Triangulação em Filhos de Casais de Lésbicas", de Francis Anne Carneiro e Ângela Vila-Real, "Desenraizamento e radicalização na juventude contemporânea", de Lucíola Freitas de Macêdo e Ilka Franco Ferrari, "Um mundo sem adultos: efeitos subjetivos dos adolescentes à deriva", de Patricia da Silva Gomes e Nádia Laguárdia de Lima, "Psicanálise e pedopsiquiatria: entre interlocuções e querelas", de Mirka Mesquita, e "Sustitución de nombre, uso cínico del lenguaje y constitución de subjetividad en adolescentes Hip Hop", de Diego Fernando Bolaños e Marcelo Ricardo Pereira.

Boa leitura!

 

 

Referências

Agamben, G. (2009). O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. (V. N. Honesko, trad.) Chapecó, SC: Argos, 2009.         [ Links ]

Freud, S. (1921/2011). Psicologia das massas e análise do eu. S. Freud. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. (P. C. de Souza, trad., vol. 15). São Paulo: Companhia das Letras. pp. 13-113.         [ Links ]

Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. J. Lacan. Escritos. (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. pp. 238-324.         [ Links ]

 

*Editora adjunta e psicanalista. Doutora em Psicologia (área de concentração Estudos Psicanalíticos) pela UFMG, com estágio doutoral na Université Paris 8 e pós-doutorado na PUC-Minas. Professora na UEMG.

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