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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.51 no.1 Rio de Janeiro enero/jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Moisés e a máquina do tempo de Freud

 

Moses and a time machine of Freud

 

Moïse et une machine à remonter le temps de Freud

 

 

Estevan de Negreiros Ketzer*

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS - Brasil
Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio compreende alguns achados acerca do texto "Moisés e o monoteísmo" de Sigmund Freud a partir de sua relação com a judeidade. Para tanto pensadores como Jacques Derrida, Yosef Yerushalmi e Edward Said participam dessa discussão, uma vez que enxergam no texto de Freud outras referências que apontam para elementos dispersos de uma religiosidade que não está baseada em um culto ortodoxo, mas é portadora de uma descrença nascida com a pergunta: será Moisés um egípcio? Essa reflexão justamente coloca em movimento os processos psíquicos mais arcaicos, recaindo sobre a questão da origem do inconsciente.

Palavras-chave: judeidade, religião, Moisés, Freud.


ABSTRACT

This essay comprises some findings on the text Moses and the monotheism of Sigmund Freud from its relation with a Jewishness. For such thinkers as Jacques Derrida, Yosef Yerushalmi and Edward Said are part of a discussion, since they see without Freud's text other references that point to a discipline of a religion that is not available in an orthodox cult, but carries a disbelief born with the question: will Moses be an Egyptian? This reflection is precisely move on with more archaic psychic processes, dealing on the question of the origin of the unconscious.

Keywords: Jewishness, religion, Moses, Freud.


RÉSUMÉ / RESUMEN

Cet essai comprend quelques conclusions sur le texte Moïse et le monothéisme de Sigmund Freud à partir de sa relation avec une judéité. Pour des penseurs tels que Jacques Derrida, Yosef Yerushalmi et Edward Said font partie d'une discussion, puisqu'ils voient sans le texte de Freud d'autres références qui pointent vers une discipline d'une religion qui n'est pas disponible dans un culte orthodoxe, mais qui porte un incrédulité né avec la question: Moïse sera-t-il un Egyptien? Cette réflexion est précisément mise en mouvement avec des processus psychiques plus archaïques, tombant sur la question de l'origine de l'inconscient.

Mots-clés / Palabras clave: judéité, religion, Moïse, Freud.


 

 

Para Israel Abrahão Tvorecki

[...] o judeu opera [sobre] ele mesmo um simulacro de castração para marcar a si
próprio, sua propriedade, seu nome, fundar a lei que ele sofrerá para o impor aos
outros e se constituir em escravo infinito da vontade infinita. Começando a
consumir sua glande, ele se defende do avanço contra a ameaça infinita, castra à
sua vez o inimigo, elabora um tipo de defesa sem medida. Ele exibe sua castração
como uma eleição que colocou o outro diante do desafio.

Jacques Derrida, em Glas

O judeu faz face ao judeu, como a página do Livro à página do Livro.
Edmond Jabès, em Désir d'un commencement

Nosso ponto de vista é que a repetida afirmação de Freud
de sua identidade judaica teve maior significado para o
desenvolvimento da psicanálise do que é geralmente reconhecido.

David Bakan, em Sigmund Freud and the Jewish mystical tradition

 

Introdução: a casa dos vivos

Como é tenso o passo da vida em direção à morte... O que vamos deixar para os que ficarão vivos? O que será o futuro sem nós? Alguém vai se lembrar de nós? Tantos nós diante de um eu que se despede. Nessa hora procura-se um sinal de que algo precisa ficar, um morto pode permanecer vivo na memória, se os outros o invocarem bem de perto. Esse fato nos conduz a um lugar muito singular na vida comunitária judaica, beit chaim, uma casa dos vivos na qual os moradores estão mortos. Chamamos esse lugar como parte da tradição, massoret em hebraico, que indica para onde devemos ir. Alguns de nós mesmos, os vivos, tocaremos nos mortos, a chevra kadisha, a santa irmandade, cerimônia de despedida adequada dada pela comunidade. Aqui a memória se forma no momento em que a vida desaparece. A vida vai continuar, assim como a herança, morashá, que teremos de levar até o fim. Ser merecedor dessa herança por uma conquista pessoal.

Aqui nos indagamos diante de toda essa perda repetida inúmeras vezes ao longo de 5779 anos. Mas talvez mais tenso que o luto pela morte seja estar morto sem a possibilidade de luto. Essa é outra história muito importante sobre a prisão de todas as almas em um exílio distante. Recitamos em uma refeição, a mais importante do nosso calendário, capaz de nos lembrar do exílio forçado, galut. Novamente um ritual, inclusive à memória, tal como as leis determinam o Seder de Pessach em seus detalhes, no momento em que a toda hora a recordação do exílio no deserto faz irromper um milagre que aplaca todo o desespero. Não seria menor essa sensação quando despertamos do sonho, somos atirados para as metas diurnas: metapsicologia, metafísica, metalinguagem, outras metas em tentativas de explicarem o que exalta sopro vivo em uma verdadeira emoção. E lá ela vive na memória da Hagadá de Pessach, um acontecimento longo de uma vida curta. E isso nos soa completamente contraditório com o modo em que vivemos. Enquanto sobrevivemos, será a gota de orvalho, o maná, a cair e dela nos nutrirmos com boas intenções, pois assim se diz que o homem precisava de um milagre, o maná, para sobreviver ao deserto. Será essa narrativa o suficiente para responder nossas dúvidas?

Por essa mesma razão, por esperarmos uma descoberta autoral, um suplício, um sentimento de eu verdadeiro, é que podemos perguntar acerca das condições de autoria de um texto. Perguntamos sobre um coletivo de pessoas e encontramos um ou outro nome mais relevante. Da saída do Egito, lemos na escritura: Moisés (Moshe). A escrita da Torá nasce no deserto, do homem que guia a tribo dos hebreus para a liberdade. Ser livre é tomar uma decisão difícil. Moisés é o líder de uma revolução que tem a Torá como libelo no século XIV antes da era comum. Escrever a Torá é receber, lekabel, as letras, elas são uma herança. Um povo nasce de coisas sem nome e então passa a investir esse recebimento, kabalá, em direção ao desconhecido maior de todos nós. Escrever o que não tem nome é um desafio, pois passa a ser nomeado, ganha uma nova forma e aprisiona o estabelecimento do sentido, nos exige viver a posteriori, na descoberta que virá a partir do que já foi feito.

Isso porque a escrita já existia muito antes de Moisés. Já havia escrita cuneiforme, hieróglifos e já havia desenhos na caverna de Lascaux na França. Moisés escreve então muito depois de todos e ao mesmo tempo é o primeiro a escrever em uma forma alfabética que permanece ainda hoje em uso. O que ele recebe traz na forma do alfabeto uma destreza sobre a motricidade fina. O alfabeto é novo para essa tribo perdida, acossada em meio ao Império Egípcio e seu Faraó1.

Seria então escrever um sinônimo de libertar-se? Libertar-se diante do mal-estar de ter sido aprisionado pelo Faraó. Seria possível constituir alguma relação com esse mesmo Faraó? Essa visão ética, cuidado, misericórdia na qual a subjetividade se revelou em um nome sagrado, lá onde a pureza de espírito determina o que se pode fazer para além das respostas prontas. Contudo não há pureza diante da história. Há elementos demais ao nosso nascimento e nem por isso podemos dizer que um fenômeno aparentemente sem explicação2 não possa existir. Talvez haja algo de nossa inteligência ainda despreparada para receber o que vem de tão longínquo e de um legado tão distante trazido pelo amontoado de gerações. Simplesmente certas coisas não fazem sentido e ainda assim continuam a estar vivas, como pedras, minerais que cumprem com sua pequena e indispensável tarefa às mais diversas formas de vida. A pedra mais uma vez de frente para nós, inquerindo no silêncio uma impossível resposta que se apresenta para cada um de nós diferentemente.

O Profeta dos profetas, Moshe, trouxe a escrita para que esta fosse uma lei justamente para aqueles que com o tempo esquecerão o que foi visto e vivenciado no dia da outorga da Torá, Shavuot. E lá de cima do monte Sinai um som foi pronunciado, uma parte da multidão fará desse momento algo a ser lembrado entre as gerações, outra parte irá esquecer com o tempo a intensidade desse som. É claro, certas palavras soam como ordens, então novo exílio no deserto, nova submissão cega, sem reflexão interna dos limites entre o íntimo e o coletivo. Esse testamento diante do som que foi pronunciado por Moisés: "Anochi" (Torá, Shemot, 20:2; Scholem, 2009, p. 41). Essa palavra que significa "Eu sou" é, estranhamente, uma palavra egípcia. Isso torna o mais espiritual dos momentos o mais mundano de todos.

Freud não interpretou essa palavra, tal como empreendemos aqui, mas fez a pergunta da origem de Moisés justamente pelo nome egípcio Mose3. "Possivelmente, a ideia de que o homem Moisés pudesse ter sido outra coisa que não um hebreu pareceu monstruosa demais" (Freud, 1939/1974, p. 21). Para o arqueólogo Breasted as origens dos mitos de criação se dão sempre com heróis filhos de pais aristocratas, sendo o sinal de que Moisés teria uma relação com a cultura egípcia. Freud parece muito à vontade nessa reconstituição arqueológica. Parece que para o pai da psicanálise Moisés é resultado de uma repetição de histórias que inclusive estão na base do conflito de seu herói grego, o famoso Édipo de Sófocles4. O herói rebela-se contra os pais que tem e contará a sua história de maneira mais crítica. O mito torna uma criança humilde em descendente da realeza. No caso de Moisés é o contrário, pois ele vai descobrir-se judeu e, portanto, descendente de escravos quando já faz parte da casa real. Rank acredita que por esse motivo Moisés é uma história judaica e não egípcia. "Moisés era um egípcio – provavelmente um aristocrata – sobre quem a lenda foi inventada para transformá-lo num judeu" (Freud, 1939/1974, p. 28). Mais do que suposições, Freud decide começar a desbravar um campo confuso e cheio de contradições, por essa razão muito razoável para o exame da psicanálise, o qual tem por excelência uma história dada como certeza absoluta que passa por um questionamento incessante da origem, suposta origem de todas as coisas e ordens naturais. A história de Moisés anima a profundidade da sabedoria dos sábios, dispõe os conhecimentos e as críticas a estes, inclusive quando os dogmas se instalam com arrogância em tempos sombrios. Sombrios tempos de Freud, sombrios são os nossos tempos. Vejamos como Freud elencou a dúvida sobre a origem de Moisés:

Com o auxílio de algumas suposições não muito remotas, poderemos, acredito, compreender os motivos que levaram Moisés ao passo fora do comum que deu, e, intimamente relacionado a isso, poderemos conseguir um domínio da possível base de uma série de características e peculiaridades das leis e da religião que ele forneceu ao povo judeu, e, ainda seremos levados a importantes considerações relativas à origem das religiões monoteístas em geral. Tais conclusões ponderáveis não podem, contudo, fundar-se apenas em probabilidades psicológicas. Mesmo que aceitemos o fato firme de que Moisés era egípcio como primeira base histórica, precisaremos dispor pelo menos de um segundo fato firme, a fim de defender a riqueza de possibilidades emergentes contra a crítica de que elas não passam de um produto da imaginação e são afastadas demais da realidade. Provas objetivas do período ao qual a vida de Moisés e, com ela, o Êxodo do Egito devem ser referidos, teriam atendido, talvez, a esse requisito. Mas elas não foram obtidas; portanto será melhor deixar sem menção quaisquer outras implicações da descoberta de que Moisés era egípcio (Freud, 1939/1974, p. 29).

Com essa resposta ambivalente e frágil dada por Freud somos provocados justamente a pensar que em parte a materialidade dos sinais dados nesse período egípcio deve ser levada mais adiante na base da especulação, pois Moisés teria saído de algum jeito beneficiado com as dúvidas a seu respeito. Mas mais do que isso, a atividade mosaica, a particularidade de elevar a palavra ao outro mundo, ao contexto do sagrado, perpassa toda uma nova possibilidade de contato que serve ao exemplo escrito, portanto, de conteúdo a ser decifrado que com o passar dos anos foi ali sedimentado. O Êxodo que conduz a fuga do povo judeu também o conduz a novas relações, novos povos, novas dimensões e disseminações trazidas pela cheia do rio Nilo.

Para além da pergunta de Freud se Moisés era egípcio, queremos ver quais são as contribuições efetivamente trazidas com a religião mosaica, o que foi revelado e o que teve de permanecer escondido por questões que hoje chamamos de antissemitismo. Essa implicação não surge como uma religião judaica no pensamento de Freud, um judaísmo, porém há uma compreensão acerca da judeidade, que iremos examinar mais detidamente neste trabalho.

 

1. O alcance da pergunta mesmo depois do esquecimento

Freud tinha realmente muito interesse pela figura de Moisés. Em 1914 ele publica "O Moisés de Michelangelo" (Freud, 1914/1974), resultado de suas observações sobre a estátua do artista italiano no momento em que Moisés se levanta para quebrar as tábuas sagradas. Freud tece muitas perguntas, busca sinais que deem conta da intenção de Michelangelo. O psicanalista austríaco nos revela que a psicanálise é devedora de um método para identificar a autenticidade em obras de arte, devido às inúmeras cópias que corriam a Europa durante o século XIX. O assim chamado método Morelli tinha como base dispor em relevo os detalhes de menor importância, uma vez que os copiadores não se detinham nisso. "Parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observações" (Freud, 1914/1974, p. 264-265). Não é nosso interesse aqui manter a descrição pormenorizada de Freud sobre os movimentos da estátua, mas temos em mira o quanto Freud sente um movimento de trepidação nas tábuas de Moisés. Elas estão prestes a cair ao chão. Num breve deslize a tradição se vê em risco, pois a idolatria corrompe todo o esforço da saída do Egito.

Mas o que é a condição idolátrica que acende o furor de Moisés? De uma maneira muito interessante a psicanálise se aproxima dessa crítica aos ídolos, desvendando fraudes e falsas promessas sem a dedicação e intenção (kavaná) para entrarem em contato com o psiquismo de modo mais profundo. Freud, então um de muitos "judeus psicológicos" (Yerushalmi, 1992, p. 33), coloca em discussão a afiliação a sua tradição religiosa de um modo absolutamente diferente e a partir da nova ciência europeia chamada historiografia. A psicanálise surge da possibilidade de ser judeu e ateu ao mesmo tempo, mantendo os traços judaicos de maneira que acabam disfarçados diante das ameaças de perseguição sempre vigentes ao redor do mundo. "Intelectualismo e independência do espírito, os mais elevados padrões éticos e morais, preocupação com justiça social, tenacidade diante da perseguição" (Yerushalmi, 1992, p. 33) são as qualidades que encontramos nesse grupo disperso de autores que vão de Baruch Spinoza a Walter Benjamin, de Karl Marx a Franz Kafka. Suas ideias acabam sendo discutidas por Freud.

O psicanalista austríaco percebe com sua prática clínica que há ídolos muito mais difíceis de quebrar, entre eles os aspectos patológicos da personalidade. Esse campo de forças tão atribulado, justamente na fissura difícil de tomarmos contato, exige de nós outro movimento. Yerushalmi enxerga na figura de Moisés os problemas que conduzirão o povo hebreu ao longo dos anos, até a chegada da modernidade: "dessa busca do significado do judaísmo e da identidade judaica por meio de um reexame sem precedentes do passado judaico que é em si a consequência radical com este passado" (Yerushalmi, 1992, p. 23). Ao interrogar Moisés, todos os lugares se encontrariam, entre semitas e antissemitas, entre judeus e cristãos, judeus e muçulmanos. Ali onde Moisés fez contato com as outras tribos semitas, não só judeus, mas os madianitas, aqueles que também tinham essa figura monoteísta na forma do deus vulcão. O fundador seria então um duplo: um sacerdote egípcio tomando contato com outro sacerdote da tribo semítica Madiã. Cabe lembrar que, muito antes de Moisés, Abraham já teria feito contato com a tribo dos Habirus, conhecidos pela pobreza aviltante que os fazia serem conhecidos como uma ralé analfabeta nos escritos cuneiformes acádios da época5.

Derrida e Roudinesco (2001/2004) entendem que a questão de Freud é moderna, tal como foi para Spinoza na Holanda do século XVII. "Yerushalmi parece prestes a abandonar o judaísmo. Não por infidelidade ao judaísmo que, a seus olhos, é marcado por duas vocações fundamentais: a experiência da promessa (o futuro) e a injunção da memória (o passado)" (Derrida & Roudinesco, 2001/ 2004, p. 225). Dilema que faz parte de uma autêntica máquina do tempo: como levar a cabo o desejo de futuro se há uma enorme dificuldade em contatar o passado? Freud teria captado nesse sentido algo de judaico sem o judaísmo. Esse posicionamento é radical em certo sentido, pois tenta dar conta da dimensão de errância da proposta judaica. Não há território possível e há uma necessária proximidade com quem habita a terra desde antes. Esse contato do passado e do futuro em um tempo presente é muito singular, não falando apenas do aspecto religioso, uma vez que o que ele passa é transmitido ao domínio da cultura6. Para Yerushalmi quer apagar a necessidade da interpretação psicanalítica, suplantando-a com a figura de Moisés e a eleição divina do judaísmo, a primeira das religiões monoteístas.

Freud claramente não está preocupado e tem repúdio ao fato do termo identidade, tendo em vista seu trabalho com relação às massas, a crítica aos modelos totalitários e todo o modo como sutilmente o ser humano abandona sua própria maneira de sentir-se consigo mesmo em benefício de uma coletividade unívoca. Esse fato conduz Freud a uma atmosfera propensa à postura crítica a todas as instituições e doutrinas que apagam o sujeito, isto é, colocam em relevo a verdadeira diferença que existe em cada ser humano. "A judeidade remete ao fato e à maneira de se sentir judeu independentemente do judaísmo, em outras palavras, à maneira de continuar a se sentir e a se pensar judeu no mundo moderno mesmo sendo descrente, agnóstico, leigo ou ateu" (Derrida & Roudinesco, 2004, p. 225). Essa especificidade do sujeito fica mais evidente quando pensamos o conceito psicanalítico de identificação, que ganha força com a sua segunda elaboração do aparelho psíquico: "as instâncias da pessoa já não são descritas em termos de sistemas em que se inscrevem imagens, recordações, 'conteúdos' psíquicos, mas como resquícios em diversas modalidades das relações de objeto" (Laplanche & Pontalis, 1970, p. 297). Esse fato é justamente oposto à ideia de identidade tão presente nos primeiros historiadores do século XIX, que buscavam com a ideia de nação uma prova de pertencimento, de igualdade que hoje compreendemos como problemática uma vez que o objeto é posto no lugar de uma instância psíquica, "se substitui ao ideal de ego dos membros de um grupo" (Laplanche & Pontalis, 1970, p. 298).

Esse caminho, via da regra do sonho como a fala livre dos diferentes elementos do desejo, não é menor no sinal premonitório de Jossef na Torah (Bereshit, 37:50). O sonho que vem do futuro é sinal de um passado inquietante. Esse mesmo passado que foi paralisado e precisa ser escutado no presente para que haja uma mudança no futuro. Essa busca que se perde na escuta da identificação, do ato próprio daquele que deseja entrar em si mesmo pela primeira vez, sem fazer concessões, alardeando um mundo de conjecturas próprias de uma ética, isto é, uma relação que sai das idiossincrasias e parte para o mundo. Freud colhe do sonho de Jossef muito mais do que uma intuição premonitória, mas começa a lidar com as conexões que as imagens do sonho fazem com a vida do sonhador. Não há sonho sem sonhador, é este que guarda também o segredo de sua decifração.

 

2. Sinais da cultura e do tempo

Temos em conta o quanto a tradição judaica teve de se submeter, ser assimilada, pelo pensamento filosófico helênico e mais tarde pelo domínio romano até chegar à Europa do século XVIII. A Europa dos movimentos nacionalistas, da tecnologia industrial e das cidades. Sair do gueto7 e das tradições parece ser a única possibilidade para sobrevivência. Esse embate vem desde o trabalho de Moisés Mendelsson, em suas considerações sobre esse período do iluminismo racionalista judaico, considerado de crucial importância para a decisão sobre o que se tornariam as comunidades judaicas europeias com o advento do Estado Moderno. Foi assim chamado de haskalá o iluminismo judaico (Guttman, 2003). As considerações de Mendelsson influenciarão cada vez mais a decisão paulatina para a criação do Estado judeu na Palestina, já em fins do século XIX. Surgem nesse período ondas de antissemitismo, fato este que evidencia mais ainda o problema da Kultur alemã na convivência com as comunidades judaicas8. Nasce um fenômeno de interesse pelas origens, busca das raízes judaicas e dos comportamentos anteriormente esquecidos. O judeu se descobre não mais pela manutenção dos seus ritos, mas por uma dimensão psicológica9. A ética é mantida e a busca por uma liberdade intelectual passa a ser priorizada por uma pequena elite muito atenta ao espírito da época (Zeitgeist).

E aqui novamente o profeta Moisés traz do futuro algo para além da tradição ocidental. Ele funda a escrita na pedra, a partícula elementar dos minérios livres na natureza. Nesse momento habita um dizer sem o dito outorgado da religião, instituindo as palavras como a tradição a ser vivenciada. Como poderia então o fundador de uma tradição estar completamente fora dela, se mesmo Freud (1900/1974), em "A interpretação dos sonhos", reconhece que os hieróglifos são a base para um modelo de impressões, em vias de um deslocamento do representado? Em trabalho posterior, Freud explicita o interesse dos sonhos quando comparados às ciências filológicas: "Na realidade a interpretação dos sonhos é totalmente análoga ao deciframento de uma antiga escrita pictórica, como os hieróglifos egípcios" (Freud, 1913/1974, p. 212). Ele coloca na via do sonho esse mesmo princípio modelador da atividade psíquica inconsciente. Freud traz do passado mais longínquo a interpretação que vem de um material a ser elaborado e transmitido para o outro, ainda que esse registro tenha de ser decifrado.

Derrida, importante intérprete de Freud, esclarece a decifração de modo semelhante ao hieróglifo em seu artigo "Freud e a cena da escritura":

Mas a escritura psíquica, uma produção tão original que a escritura tal como julgamos poder ouvi-la em seu sentido próprio, escritura codada e visível "no mundo" não passaria de uma metáfora. [...] É certo que trabalha com uma massa de elementos codificados no decorrer de uma história individual ou coletiva. Mas nas suas operações, no seu léxico e na sua sintaxe, um resíduo puramente idiomático e irredutível, o qual deve carregar todo o peso da interpretação, na comunicação entre os inconscientes. O sonhador inventa a sua própria gramática (Derrida, 2009, p. 307).

A máquina começa a corromper seu sistema aparentemente normal. Deveríamos nos lembrar, mas acabamos por esquecer. Por quê? Quem se julga tão sábio a ponto de reduzir todo o conhecimento em uma simples fórmula? Se os elementos da fórmula não puderem ser vivenciados ela se torna completamente inútil para nós. Uma cultura como uma fórmula pode ser decorada, mas pode não ser nunca vivenciada. Atrever-se a desmontar a cultura é entrar na caixa preta, lá onde os mortos estão enterrados. Guenizá, o túmulo com os documentos religiosos sem serventia e sem proprietários vivos. Não podem ser jogados fora ou incinerados, mas devem ser guardados para que o tempo ali possa agir. Não seria então o tempo o elemento de ação que Freud evoca em seu método? Respeitar o tempo do outro e ao mesmo tempo despertar com palavras o que está morto e sepultado para sempre. Ressuscitar os mortos com um toque de incompreensão, por dentro das ligações químicas dos minerais aparentemente sem vida. A palavra escrita do cérebro foi um dia escrita sobre uma superfície, base da sensação profunda que guardamos dentro de nós, ainda que não a conheçamos. Quem somos sem uma marca identitária? E é ainda mais contundente não podermos abandonar essa identidade quando seu peso é para nós sinal de colapso ao invés de redenção. Às vezes nos faltam os meios para continuar a busca pelo desconhecido que nos habita e por isso a análise se faz necessária, mais ainda que os conhecimentos a serem estudados, tal como encontramos no artigo "Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico" (Freud, 1912/2017).

Esquecemos que o im-possível está em cada um, exigindo permanecer vivo mesmo em condições adversas. A chegada da esperança, lá onde Moisés toma as tábuas com os 613 mandamentos (mitzvot) reduzidos em número de 17 versículos (Shemot, 20:1-17), cifrados em 17 camadas acerca da ética (mussar). Uma escrita como evitação das consequências mais graves devido à inevitável destruição do homem pelo homem que atravessa a história. Contudo, os 613 mandamentos interpelam, questionam profundamente, dividem o humano e a divindade. São a di-visão do futuro. Entre o desejo de realização e a dura pena da dúvida, cujo dever ético se dá com os outros. Essa resposta exigente de um tipo de tempo postergado, tempo do necessário reencontro com o desconhecido apresentando-se como o reino de uma materialidade muito afeita ao culto do si mesmo, tão explorado pelos gregos.

E na palavra aguardada, sua dita evolução com o nascimento de um sistema fonético completo e amplamente comunicativo, endereçado ao fim das dúvidas no percurso da incipiente história do Ocidente. História na qual todos estavam à espera de uma realização completa na linguagem. Esse estranho dilema, que assola a ocidentalidade, envia uma série de duplicações do pensamento, cisões, conexões, rupturas e reparações, ali habita a impressão de que entendemos o que falamos, entendemos com certezas os diferentes canais da recepção da natureza. A origem mesma nos foi interdita conhecer, por mais razões que nosso desejo assim o queira: "Esta impossibilidade de reanimar absolutamente a evidência de uma presença originária remete-nos, pois, a um passado absoluto. É isto que nos autorizou a denominar rastro o que não se deixa resumir na simplicidade de um presente" (Derrida, 2006, p. 81).

Por essa razão o tempo é tão complexo, pois nos autorizamos a dizê-lo como eternidade criada e não qualidade transformativa das coisas. Não sabemos do tempo a não ser que ele passa por nós, deixando uma nova impressão psíquica. Estipular a presença pela imaginação é talvez um dos primeiros erros que Freud observou nos filósofos de seu tempo, que falavam do inconsciente sem terem feito o contato primordial com seus afetos.

 

3. O sinal da diferença

O exame de Freud, nesse aspecto, nos conduz a uma implicação de outra ordem, a da formação da sexualidade. Ponto tenso, já por eliciar o contato com o mistério que envolve o comprometimento com a castração social e concomitante ao aparecimento de limites psíquicos. Algo sempre fica retido de energia sexual dentro de nós sem ter por onde escoar. Essa falha no caminho, no fluxo do rio Nilo até a acolhida pela família do Faraó, falha no sentido de ter de lidar com a possibilidade de Moisés ser mais egípcio do que judeu, por exemplo. A dúvida sagrada impele o sujeito não somente ao seu desejo, mas a um programa substituto, a uma ordem do dia, mantendo encoberto o que cada um deve ter por princípio o dever de responder.

Uma linguagem em différance, tal como Bennington (1996) nos apresenta acerca do trabalho de Derrida (1991) diante de um substitutivo a no lugar do e francês. Onde a nossa leitura erra, também errante no caminhar sensível e por vezes ignorado de um lugar esquecido. Lá onde sombras tremulam há uma letra escondida. Erram para além das medidas, para mudar as medidas e fazer na demora do tempo o experimento perdido, entrando assim nessa estranha máquina do tempo enterrada na areia. A pirâmide está perdida e invertida a partir do trabalho de Hegel, em que o estrangeiro será ali colocado e transportado para seu próprio segredo, tal como interpreta Peter Sloterdijk (2006). O Faraó escondeu a hospitalidade de todos, e o signo é um significante morto em busca de um significado vivo.

E quais outras coisas preenchem o nome religião de forma tão desconcertante como fazer comunicação com o mundo dos mortos? Quem seria capaz de fazê-lo? Com que ousadia? Para que inventar uma teoria que gera mais perguntas do que respostas ao ser humano? Uma teoria que será caçada por ser considerada judaica e pervertida. Uma religião que liga fé e saber e ainda ousa se chamar ciência psicanalítica. Por quais motivos? A ideia de religio como religar, restituir, indene, dar àquele que perdeu ou foi lesado. O que fazer com aquele que crê poder saber sobre algo? A crença como insistência e tentativa de saldar uma dívida desconhecida. Fé na salvação e saber no que se está em dívida. Dúvida da dívida. E o que de fato acontece é como se "por não crermos pensar nada de novo, nos contentássemos em nos lembrar, arquivar, classificar, tomar nota como memória do que cremos saber" (Derrida, 2000, p. 56). Situação paradoxal e necessária para ser apresentada como questão para nós.

Freud se liga nesta letra-marca perdida, na letra de uma escansão entre a matéria perceptível, inegável por um lado, mas sua estranha transformação material, isto é, o lado místico que uma coisa material assume no mundo como impossível ou inacessível à inteligibilidade humana quando a relação lógica de causa e efeito simplesmente parece não servir mais para responder à realidade. Qual é o cálculo para o incalculável? O sagrado é calculado como incalculável em nossa economia simbólica. Acerca das diferentes marcas surgidas em nosso corpo, a cultura da memória não é mais capaz de lembrar, ela também um retábulo de orações e invocações no temor da assimilação e uma garantia de felicidade impossível de ser concretizada fora de nossos ideais.

Não podemos esquecer que Freud não queria marcas do judaísmo no corpo dos filhos, talvez para preservar algo de uma "especificidade judaica" (Derrida & Roudinesco, 2004, p. 225), mantendo assim uma implicação com o indizível da judeidade. Essa experiência não sensível da linguagem, portanto não nomeada, é vivida como promessa e dívida histórica da humanidade com todas as formas de alteridade. Encontramos no judaísmo a marca física do pertencimento pela aliança da circuncisão (b'rit milá), um corte cuja raiz fundacional marca uma lei muito particular, não exclusiva aos judeus, mas a um ritual de passagem10. Uma marca presta um serviço à memória: "Como se pudéssemos, precisamente, recordar e arquivar aquilo mesmo que recalcamos, arquivá-lo recalcando-o (pois o recalque é um arquivamento), isto é, arquivar diferentemente, recalcar o arquivo arquivando o recalque" (Derrida, 2001, p. 83). A máquina também é capaz de arquivar diferentemente, arquivar criativamente, ocultando sua memória, inventando um novo jeito de surgir como uma mensagem numa garrafa muitos anos depois.

Da mesma forma Freud se interessa profundamente pelo questionamento do pertencimento de Moisés ao povo hebreu, preferindo a inversão de seu papel de líder pela via de um Moisés atrelado à classe aristocrática egípcia. Freud tem em mira inventar uma máquina do tempo, ao realçar o quanto um arquivo também irrompe como sintoma, mesmo em algo que o tempo deve precisamente atuar (Derrida, 2000). Derrida vê que Freud também se afasta da história em seu estudo, pois percebe que a base do arquivo é o desejo de assassinato e este sim já é um ato constitutivo. O ato existe nesta condição de fantasia, também como uma forma de reparar o que foi destruído, introjetado como culpa. É o psicanalista que produz parte do desejo de saber algo sobre sua história, ainda que tenha de se dar conta de que ela foi inventada, no momento de suas escavações, pelos olhos do presente. Moisés passa a ser um egípcio ao contra-assinar o antigo monoteísmo instituído por Akenaton, o Faraó que institui em seu mandato o monoteísmo e é de maneira radical riscado das estelas de Karnak. Se Moisés fosse egípcio ele então teria se convertido à causa judaica ou inconscientemente chegou a ela por retraçar sua história? Seria este o caso de uma real conversão? Qual é a relação entre o antes e o depois da conversão? Seria uma transmissão integral ou ficariam restos a serem elaborados? Estranho deslocamento mutacional, tolhido de um excesso encontrado no prepúcio.

Estranho mesmo parece ter sido Akenaton o Faraó, que trouxe o monoteísmo, muito antes de Moisés, aquele que trará a desgraça a ponto de ser assassinado. O que essa história desperta de cólera dentro das pessoas? A força de implicação exigida no exílio do povo judaico, agora no teste das eras, afirma-o como renitente de um passado não resolvido. Logo se percebe que o corte exige esforço. "Não se pode ser judeu sem encarnar de alguma maneira o Egito – ou um espectro do Egito" (Sloterdijk, 2006, p. 27). Sloterdijk tem em mira a volta ao lugar da perda. Lá onde o deserto implica aos que chegam a perda do horizonte da certeza. A escrita perdida em estado de letargia forma um imbróglio necessário para preservar as perdas, deixando o fantasma como mais uma espécie de sedimento. A memória que assombra os vivos, a escrita passa inclusive por aqueles que se articulam com o mundo dos mortos. A citação de Peter Sloterdijk nos revela o quanto um espectro de Oriente também sonda o Ocidente, repetindo sua condição de incompreensão dessa descoberta das metalinguagens textuais na pretensão humana de um saber coerente e consistente. A escrita exige esforço físico contido na mirada imagética, enquanto a fala pode se esvaziar, vulgarizando-se. Deve haver, portanto, uma escrita que fale ao homem.

 

4. O estrangeiro conta sua história

A mente de Freud está envolta por serpentes, obcecada pela relação entre a cultura que escraviza e a cultura escravizada. O psicanalista escreve para reconstruir o que está fora do sistema da razão simplificada, quando as palavras ainda não tinham sido colocadas nas pedras, isto é, instituídas numa tabula rasa. A proposta de Freud é escrever um romance histórico sobre Moisés, investigativo tal como vimos na análise do Moisés de Michelangelo, jogando luz na recomposição dos achados históricos, como se o psicanalista praticasse a psicanálise na religião. Será esse o testamento de Freud para a posteridade? A última fronteira da psicanálise que ele tentaria alcançar em vida? Esse fato vem acompanhado justamente de um gesto tenso provocado pela intensidade da interpretação psicanalítica. "É natural, portanto, que a qualquer interpretação da obra de Freud que tente descobrir e circunscrever certezas irretocáveis e definidas em uma linguagem denotativa corrente trai a própria tessitura profunda da composição freudiana" (Souza, 2013, p. 82). É intencional que Freud traga o paradoxo e seu resultado seja o desarranjo das formas anteriormente idealizadas. Para Freud a ciência tem de conquistar novos terrenos, amparar as reais necessidades da mente e escutar sua produção de maneira mais sensível do que as perspectivas apontadas no seu tempo. Contraria assim a ciência quem a romanceia ao passear pelos atributos da linguagem inserida no processo artístico:

Freud, que chamou seu trabalho de romance histórico não porque realmente tenha algo em comum com este gênero tal como habitualmente concebido, não porque tenha alguma agenda imaginativa além da busca de uma verdade histórica, mas apenas no sentido de que, dada a extrema pobreza de fatos históricos confiáveis referentes a Moisés. (Yerushalmi, 1992, p. 43)

Yerushalmi repara em um excesso na linguagem da religião diante de uma pobreza de fatos. O homem parece em falta com essa linguagem perdida. A religião seria um bom lugar para um trabalho psicanalítico, pois traz não só a repetição do rito, mas também a humanidade professada, a cultura, a conexão com o mistério e com a alteridade. Por ser um método isento de uma comprovação científica para a existência de Deus também a religião acaba sendo mais criativa a ponto de libertar-se da história, recria assim fatos despertados pelas questões do presente, visando um legado ao futuro de toda a humanidade. O profeta Moisés provoca a chegada do futuro com as tábuas, a ideia de uma lei a ser seguida para alcançar a salvação, como parte da teleologia. Um princípio ético a ser resgatado nas ruínas da história, tal como nos coloca Walter Benjamin (2012), em seu artigo "Sobre o conceito de história", de 1940, diante de um futuro carente de decisões bem previsíveis. O futuro de Moisés acabou sendo deteriorado e imprevisível.

Eis que Freud quer mostrar que a noção de Deus poderia não ser exclusiva do âmbito religioso. Talvez alguns religiosos tivessem mais intuitos institucionais e ideológicos do que vocação para descobertas espirituais. Se Freud se mantivesse calado diante da impossibilidade de escolha entre verdade e ficção ele não teria exposto a dúvida de maneira tão contundente como fez acerca de Moisés, utilizando a psicanálise como uma catalisadora de um conflito eminentemente humano.

Mais do que expor questões, mas ir no fulcro radiante da escuridão: a dúvida não se sustenta somente pela via religiosa, mas antes pela relação entre os povos. Como pode haver um ideal de pureza se a miscigenação é a característica mais humana por excelência? Há um interesse específico de Freud em sua época diante da eugenia imposta na Alemanha nazificada: a psicanálise como um método aberto o suficiente, a ponto de levar paz a partir da discussão integral entre os diferentes. Ela não se deixa encobrir pela faceta idolátrica, permitindo o questionamento incessante em busca de uma conexão genuína. O questionamento não é determinado por qualquer noção moral. Freud ao "denunciar a estrutura religiosa do totalitarismo antissemita que, sob o signo do ódio, fomentava uma cultura de hostilidade mortal ao outro" (Fuks, 2000, p. 88). O povo judeu, culpado pelo assassinato de Cristo, teria degenerado a um paganismo egípcio, base do antissemitismo alemão, tal como coloca Yerushalmi ( 1992).

Entretanto, a Torá foi justamente inventada por esse povo, permitindo assim o acesso a noções éticas inovadoras. Novamente a circuncisão é uma substituição da morte do primogênito por um pequeno corte do prepúcio (Bereshit, 17:11). A Torá conduz o homem justamente a uma negação de Deus para que ele possa ter a liberdade de escolha. E nesse ponto é necessário que o ser humano tenha algum desejo pela religião, desejo pela escolha que não parte de evidências claras, mas antes de sinais muito particulares de seu interior. Esse fato é muito diferente do trabalho de Nietzsche que, ao ter Deus como ponto de partida, nega-o de maneira categórica, naquilo que conhecemos como niilismo. O ocidente moraliza o homem, retira de Deus a diversidade da Criação e sua oculta participação nos seres. A opção judaica, pelo contrário, presta atenção na brecha de diferença, no homem que em relação consigo acaba percebendo a contração do Criador na criatura (tzimtzum), o que dá impressão de que a matéria está plenamente resolvida em si mesma. O diferente inaugura o desafio de uma troca com o profundo desconhecido que se insere lá para ser justamente nosso ponto de resolução no espaço em que vivemos. A tecnologia empregada pela religião contempla algo da misericórdia (chessed) indispensável à alteridade. Sem essa ética dos diferentes elementos que nos compõem, seja do nível do desejo quanto do nível de sua restrição, o particular do outro não pode ser livre para inventar a si mesmo.

Esse fato é responsável pelo respeito ao outro que comunga do mesmo espaço que nós. O intelectual palestino Edward Said vê em "O Moisés e o monoteísmo" uma abertura às contradições e a um tipo de "arranjo inteiramente secular" (Said, 2004, p. 64) que a religião mosaica traz. A noção de estrangeiridade de Moisés desencadeia justamente o que se lança para adiante da proposta religiosa, uma vez que exige do pensamento a reflexão para além da crença dogmática. Moisés é acolhido em diversas terras estrangeiras. Essa é a busca pela paz professada por Said, ele vivendo em terra estrangeira o tempo todo dominada por potências internacionais. O escritor palestino se reclina sobre o texto de Freud, também outro estrangeiro. Said observa o movimento monoteísta como uma expressão cultural coletiva não exclusiva ao povo judeu. Esse fato controverso, de que o monoteísmo tenha retornado ao Egito séculos depois, também se deu por mãos estrangeiras, sejam cristãos da Igreja Copta ou mesmo pelo Islã. Para Said, Freud buscou justamente no lado não-europeu uma resistência ao colonialismo e às formas de opressão, sobre cuja judeidade ele teria de se posicionar mais uma vez em meio ao conflito histórico da Segunda Guerra, fato este que está na base dos conflitos internacionais entre Israel e Palestina. Questão que Derrida coloca de maneira explícita ao dissertar sobre a hospitalidade: "o que perdoar do outro?" (Derrida & Douformantelle, 2003, p. 35). Mas também aqui o que perdoar dentro de si que vejo no outro?

Nesse ponto surge uma necessária ruptura com o estabelecido nas relações conflituosas entre diferentes que não são capazes de dialogar, circuncisão de nossos atos de fala. Eis o difícil ato de escutar a história do outro. Escuta da marca primordial. Uma marca para além de uma diferença religiosa ou mesmo territorial, diferença que acaba se tornando uma identidade. Uma diferença é, nesse sentido, autêntica o suficiente para se rebelar contra uma identidade totalitária: uma identidade pode se formar facilmente como um gesto de imitação. Entretanto, a diferença exige escolhas que conduzem à disponibilidade de dar vida às questões mais profundas de nossa constituição, dando mostras das identificações que se sincronizam com nossos desejos.

A identidade, colocada como forma retórica, perde a força de discutir o problema se ela está plenamente satisfeita com seu desempenho rebelde contra inclusive o sujeito em sua particularidade. Não há pares que se apresentem como certos ou errados se tratamos da ética. Essa marca indelével toma a presença de Freud no instante de sua reflexão mais arguta e pessoal sobre Moisés. A nota de rodapé de Freud aparece aqui como sutil intromissão pessoal no jogo atribulado da investigação empreendida:

Dou-me muito bem conta de que, ao lidar tão autocrática e arbitrariamente com a tradição bíblica – trazendo-a para confirmar minhas opiniões quando ela me serve e rejeitando-a sem hesitações quando me contradiz –, estou expondo-me a uma séria crítica metodológica e debilitando a força convincente de meus argumentos. Mas essa é a única maneira pela qual se pode tratar um material de que se sabe definitivamente que sua fidedignidade foi gravemente prejudicada pela influência deformante de intuitos tendenciosos. É de esperar que eu encontre um certo grau justificado mais adiante, quando me deparar com o rastro desses motivos secretos. A certeza é, de qualquer modo, inatingível e, além disso, pode-se dizer que todos os outros que escreveram sobre o assunto adotaram o mesmo procedimento (Freud, 1939/ 1974, p. 41).

A dúvida interpela esse gesto criptojudaico. Ser criticado pela sua contradição e ser ainda fiel a mais de um ponto de vista, pois essa fidelidade a mais de um torna rico o campo que se está estudando. Trazer assim no corpo finito do judeu a alma infinita da judeidade, como os resultados da análise se mostram sempre para a vida toda, tal como Freud pensou em seu "Análise terminável e interminável" (Freud, 1937/1974). Num esforço débil, argumentos imprecisos, em uma falta de história factível, ainda assim Freud tem esperança de fazer uma narrativa – talvez daquilo que em um grau ainda a ser analisado o método mesmo não poderia contar com tanta fidelidade a um princípio redutor, mas inventado para colocar nossa capacidade de elaboração em jogo com a tradição e sua rigidez aparente aos olhos de fora. Isso também torna o passado questionado pelos olhos do presente, tal como o objeto recalcado é visto, renascido do que não se tem acesso diretamente aos sentidos, mas ao sentir. Essa é uma maneira de colocar também os procedimentos em dúvida e de que a dúvida possa ser herdada para os próximos que por ali forem indagar. Antes de ir aos céus é necessário olhar as profundezas de si mesmo. Diz-se sobre o judaísmo só possuir dúvidas. Terá Freud contraído sua herança de forma a continuar as questões perpetradas para um novo futuro? Freud realiza a ruptura temporal ainda que sua máquina do tempo seja muito exclusiva de cada um que se beneficia com a análise ao recontar sua própria história.

 

Conclusão: tempo por vir

A transmissão de um conhecimento não pode ser reduzida à força de uma fórmula, isso emperra por completo o conhecimento, tornando-o estéril e automático. Quem é o outro que compõe em paralelo o conhecimento? Até que ponto a formulação é necessária para uma transmissão da tradição? Nesse momento o grau de verdade de um sistema numérico, datável, escolhido a dedo para dar a prova basilar de cientificidade, também estremecerá. A razão apresenta em seguida um novo bom argumento para quebrar a lei ou o fundamento de qualquer prática que perpassa o tempo. Talvez mais do que a verdade científica enfrentamos hoje uma verdade biopolítica exercida pelo domínio econômico internacional. Aqui o diagnóstico de Giorgio Agamben (2011) estaria muito certo ao afirmar que a estrutura religiosa ocidental é transmitida de modo profano pelas mãos da economia, um domínio por excelência humano de gerar riqueza e, em teoria, atingir a felicidade. Em seu exemplo a religião afirma-se como estrutura mais antiga do que nossa mentalidade moderna pode conceber como transgressão dos meios de vida. Freud também teria realizado algo nessa proximidade sem referência explícita.

Freud cria a psicanálise não como um método infalível, mas como a alternativa às coisas empedradas e inquestionáveis presentes na história da humanidade. Por que não fazer a pergunta? Contudo, como fazer a pergunta? Ao que ou a quem interessa que não se pergunte? Para perguntar será necessário ir mais longe, fazer o questionamento, sair da simplicidade lógica binária para encontrar sua absurdidade. Assim era o aprendizado nas ieshivot (escolas rabínicas) e o extenuante método de interpretação chamado pilpul (apimentado). Freud não teve contato direto com esse aprendizado, mas bebeu dele de muitas formas indiretas, como atesta Roudinesco (2016) acerca do importante filólogo ligado à ortodoxia judaica, Jacob Bernays, tio de sua esposa, Martha Bernays. Desse pensador Freud tira a catarse com finalidades medicinais.

Os filósofos de todos os tempos, sejam os decifradores de hieróglifos, os apátridas desenhados em ânforas de barro ou aqueles que recebem letras do futuro, se permitem a dúvida e a fazem passar pelos diferentes caminhos nos quais o homem não consegue conceber facilmente essa máquina do tempo: ele terá de se perguntar por dentro, quando essa pergunta exige ser tomada por uma sensibilidade sem consubstanciação material, sem planos, sem acesso direto aos sentidos. O descontentamento com o estabelecido, com a banalidade das relações, com o lugar comum que impede o acesso, a busca do que é necessário e a manutenção do que é indispensável também estão na direção do campo religioso para além do dogma e da ritualística. Também os antigos tiveram que se deter sobre problemas muito modernos que envolviam sua continuidade enquanto povos.

Como viver um mundo em que não nos é dado saber o que somos? A experiência se mostra mais uma vez indispensável e necessária. Por essa razão é plenamente justificável pensarmos a psicanálise disponível para analisar a situação da religião também onde houve um desencontro entre o homem e sua ligação secreta consigo. A religião também se prepara para o que está por vir, uma era do Maschiah, o espírito do tempo no final de todos os tempos, tal como Freud se manteve a plenos pulmões ao interrogar o que aparentemente se mostrava vedado para a humanidade perguntar enquanto singularidades: o final dos tempos e o começo de um novo tempo.

Sobre como irá terminar não sabemos: estamos tomados de sinais dispersos, à espera de fazerem algum sentido. Dessa forma, a psicanálise não poderia ser reduzida à tradição mística da Kabbalah de David Bakan (1958); nem tão pouco filha legítima das jurisprudências talmúdicas, como aponta Gérard Haddad (1992). Em ambos os autores há uma busca pela raiz (makhor) da psicanálise, mas esta não se deixa antecipar pelo comum das orientações epistemológicas. Talvez seja na transferência, diante das idealizações dos sujeitos implicados em análise, que esteja o desafio da fala humana em expressar o que não possui fala, comunicando o que não se traduz facilmente na linguagem. Está muito claro que Freud se utiliza de uma função da palavra que ultrapassa sua coisificação de fato (die Sache) para vislumbrar o que escapa ao significado último (das Ding), tal como Lacan (1959-1960/1998, p. 149) enxerga tão claramente em Freud algo que une o sentido moderno ao passado judaico: "a ciência moderna, nascida de Galileu, não se pode desenvolver senão a partir da ideologia bíblica, judaica, e não da filosofia antiga e da perspectiva aristotélica". Eis o começo de uma digressão ao infinito como panorama de discussão que não enxerga na morte de Deus a salvação, mas aponta justamente, dentro da criação, o manancial de recursos esvaziados e esquecidos pelo uso irrestrito da racionalidade plenamente instrumental dos primórdios da modernidade.

Talvez por isso Freud seja um herege (cofer) em busca de algo incalculável e não totalitário no sentido de uma prática vivencial dos conhecimentos psicanalíticos. Ao se questionar sobre os fenômenos que encontrou na clínica ele teve de buscar uma origem por demais heterodoxa. Qual é a origem da histeria? Qual é a origem de nosso desejo? Freud compreende as forças invisíveis ao conceber que o sujeito é o único responsável por perceber e realizar a mudança sobre suas emoções. Esse fato dá vida ao outro (acher) escondido em cada ser singular que ao mesmo tempo se aproxima da lei (a Torah enquanto a lei de Moisés) na busca de uma reflexão sobre si.

Nesse ponto deve haver mais de uma dimensão em que os mortos também se comuniquem com os vivos, deixando muitas lembranças para que nós vivos tenhamos a ousadia e a disposição de decifrá-las. O religioso rompe a casca, pluralizando-se na experiência que cabe aos sujeitos, com suas particularidades, entrarem em contato. É no ato humano que o segredo dos segredos passa a ser soprado (ruach) de boca a ouvido para dentro de nós.

 

 

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Artigo recebido em: 27/11/2017
Aprovado para publicação em: 20/07/2018

Endereço para correspondência
Estevan Ketzer
E-mail: estevanketzer@gmail.com

 

 

*Psicólogo clínico, professor e escritor. Doutor em Letras pela PUCRS. Coordenador do comitê "Psicologia e Cultura" na Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul.
1Acredita-se pelas datações históricas que o Faraó que está sendo citado nessa passagem da Torá seja o maior de todos que já passaram pelo Egito, ou seja, Ramsés II (Torá, 2001, n. 8, p. 153). Esse Faraó foi conhecido por usar mão de obra escrava e a estela de Merneptah menciona Israel entre as várias tribos canaanitas.
2Inclusive aqui se faz necessário pensar a condição do impossível ou ao menos o não passo (aporia) das relações humanas diante de algo que contraria toda a lógica e a racionalidade adequadas para uma tomada de decisão. Não entraremos nesse tema, mas temos a noção do problema também na história de Abraham e do sacrifício do primogênito Isaac (Derrida, 1999).
3Pela leitura que Freud fez a partir do livro O alvorecer da consciência, do arqueólogo norte-americano James Henri Breasted, podemos notar que a palavra Mose (significando "criança"), tornar-se-á Moshe no hebraico. O próprio Freud surpreende-se que Breasted tenha deixado de lado esse nome tão fortemente aplicado a tantos faraós do Egito Antigo: "tais como Ahmose, Torh-Mose e Ra-mose" (Freud, 1938/1974, p. 21).
4Freud lê as contribuições de seu discípulo Otto Rank no livro O mito do nascimento do herói, de 1909. Gilgamesh, Sargão de Agade, Ciro, Rômulo, Páris, Perseu e Jesus são alguns exemplos de nomes associados a mitos fundadores.
5As Cartas de Amarna escritas para os faraós egípcios no século XIV antes da era comum tratam dos tensionamentos em Canaã anteriores à batalha de Kadesh no tempo de Tutmés I
6Não queremos com esse comentário reduzir o plano religioso ao cultural, uma vez que há uma certa busca espiritual nas mais diferentes formas religiosas. O que temos em mira é que a religião acaba acrescentando à cultura de um povo música, arte, literatura, culinária, entre outros aspectos referentes às construções de um povo. Veremos o quanto a psicanálise interroga essa posição cultural a seguir.
7Os judeus são chamados no dialeto vêneto de giudeica já em 1375. O termo G hetto indicou o nome de uma ilha na qual ficavam os espólios de artilharia. No ano 1516 os judeus de Veneza tiveram autorização para viver ali. O gueto passa então a ser o lugar de habitação e confinamento periférico para uma determinada cultura ou etnia. Ver: Ghetto, Jewish Encyclopedia.
8Esse problema se apresenta muito nitidamente nas obras de Sigmund Freud, "O futuro de uma ilusão" (1927) e "O mal-estar na civilização" (1930). Para mais detalhes ver a obra de Peter Gay (2012).
9Freud está justamente nesse contexto, tendo como herói cultural a figura de Spinoza (Yerushalmi, 1992). Também vemos a decisão de Franz Rosenzweig em se manter judeu contrariando os anseios de seu amigo Eugen Rosenstock, convertido ao cristianismo (Souza, 1999).
10É a circuncisão a marca necessária para a conversão de um não judeu (Goy) ao judaísmo, quando diante de um tribunal rabínico. A circuncisão já era presente no Egito Antigo, tal como encontrado na tumba de Ankhmabor, em Sakkara, Egito (por volta de 2400 a.C.). Ela é chamada de al-khitán, em árabe, é uma prática obrigatória no islamismo.

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