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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.51 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Entre carência orgânica e desamparo: uma leitura do "Projeto de uma psicologia" (1895)

 

Between organic insufficiency and helplessness: a reading of the "Project of a psychology" (1895)

 

Entre l'insuffisance organique et la détresse: une lecture de l'"Esquisse d'une psychologie scientifique" (1895)

 

 

Jéssica Baêta de Azevêdo CarvalhoI*;Rodrigo Barros GewehrI**

IUniversidade Federal de Alagoas - UFAL - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho consiste em uma análise dos pressupostos teóricos desenvolvidos por Freud para fundamentar a hipótese de um aparelho neuronal, em seu Projeto de uma Psicologia, de 1895. Seu principal argumento afirma que a carência orgânica, e sobretudo suas repetições, é estruturante do funcionamento dos processos psíquicos. O psiquismo se constitui, a partir desse pressuposto, através de sua própria insuficiência, expressa na ausência de um objeto de satisfação a priori. Essa condição será posteriormente desenvolvida pela noção de desamparo. Entretanto, há desacordos e um debate possível sobre o lugar do eu nesse processo. A forma de se apropriar das noções de carência orgânica e de desamparo, bem como das distinções possíveis e das relações entre ambas, será determinante nesse debate.

Palavras-chave: carência orgânica, desamparo, constituição do eu, Projeto de uma Psicologia.


ABSTRACT

This work proposes an analysis of the theoretical presupposes developed by Freud, in his 1895 Project of a Psychology, so as to describe and ground his hypothesis of a neuronal apparatus. His main argument affirms that the organic insufficiency, and moreover their repetitions, is decisive to the structure and functioning of psychic processes. Henceforth, the psychic apparatus is moulded through its own insufficiency, expressed in the absence of an a priori object of satisfaction. This condition will be subsequently developed through the notion of helplessness. However, there are disagreements and a possible debate about the role played by the "Ego" in the process. The way one approaches these notions of organic insufficiency and helplessness, as well as their possible distinctions and relations, will be crucial to this debate.

Keywords: organic insufficiency, helplessness, Constitution of the Ego, Project of a Psychology.


RÉSUMÉ

Ce travail se propose d'analyser les bases théoriques établies par Freud dans son texte de 1895, Esquisse d'une psychologie scientifique, pour décrire et fonder son hypothèse d'un apparat neuronal. Son principal argument est que l'insuffisance organique, notamment à cause de ses répétitions, est un agent majeur dans la structuration et le fonctionnement des processus psychiques. Dès lors, l'appart psychique est compris par le biais de sa propre insuffisance, révélée dans l'absence d'un objet de satisfaction a priori. Cette condition de base sera ensuite amplifiée par la notion de détresse. Cependant, il y a des désaccords et un débat possible en ce qui concerne la place du moi dans ce dispositif. Les modes d'approche des notions d'insuffisance organique et détresse, ainsi que leurs différences et rapports, seront décisifs pour mieux appréhender l'ampleur de ce débat.

Mots-clés: insuffisance organique, détresse, constitution du moi, Esquisse d'une psychologie scientifique.


 

 

Redigido em 1895, mas publicado apenas postumamente em 1950, o "Projeto de uma Psicologia" configura um esforço, por parte de Freud, em delinear uma psicologia científico-naturalista, ou melhor, uma teoria quantitativa do funcionamento dos processos psíquicos normais e patológicos. Essa teoria se fundamenta em duas proposições fundamentais: 1) a noção de quantidade (Q); e 2) a teoria do neurônio (N), que resultam na conformação daquilo que Freud denomina de aparelho neuronal.

De acordo com Caropreso (2010, p. 60-61), a ideia de formular uma teoria psicológica em termos tão quantitativos não representava uma inovação na época em que o "Projeto..." fora escrito. Segundo a autora, "em muitos pontos, esse texto não se afasta significativamente da neurologia praticada pelos professores de Freud". Não obstante o caráter esclarecedor desse argumento, Caropreso (2010, p. 61) salienta que a expressividade e a pertinência do esquema conceitual apresentado no "Projeto..." não é por ele reduzida. Ao colocar em relevo "a importância e o significado do comportamento inconsciente determinado como indicador de um processo cientificamente acessível", esse texto demarca, do ponto de vista da teoria freudiana, uma primeira formulação de psiquismo inconsciente.

 

As duas proposições fundamentais: a noção de quantidade e a teoria do neurônio

O primeiro pilar do esquema conceitual proposto no "Projeto..." é a noção de quantidade (Q). Definida como um elemento que diferencia a atividade do repouso, e que se encontra submetido à lei geral do movimento, sua natureza não é especificada por Freud. Essa noção ganha forma e relevo a partir do princípio de inércia neuronal que, em síntese, "enuncia que las neuronas procuran aliviarse de la cantidad" (Freud, 1992/1950[1895], p. 340)1. De acordo com Freud, esse princípio "explica en primer lugar la bi-escisión arquitectónica [de las neuronas] en motoras y sensibles, como un dispositivo para cancelar la recepción de Qn mediante libramiento" (1992/1950[1895], p. 340). Por um lado, essa disposição configura o movimento reflexo como meio através do qual a descarga da quantidade se efetiva; por outro, põe em relevo o fato de que é o próprio princípio de inércia que determina a razão para a ocorrência do movimento reflexo.

Na conformação desse cenário, "Un sistema primario de neuronas se sirve de esta Qn así adquirida para librarla por conexión con los mecanismos musculares, y así se mantiene exento de estímulo. Esta descarga constituye la función primaria de los sistemas de neuronas" (Freud, 1992/1950[1895], p. 340). A função primária figuraria a tendência primordial do aparelho neuronal: anular todo e qualquer aumento quantitativo a fim de manter o nível de Q igual a zero. Segundo Caropreso (2010), esse movimento pode ser entendido como uma tendência a evitar o desprazer, dado que, nesse cenário teórico, Freud identifica o aumento da excitação com o desprazer e a sua diminuição com o prazer.

A partir dessa tendência primordial, Freud (1992/1950[1895]) situa as condições de possibilidade para o desenvolvimento de uma função secundária. De acordo com o argumento proposto, "el principio de inercia es quebrantado desde el comienzo por otra constelación. Con la complejidad de lo interno, el sistema de neuronas recibe estímulos desde el elemento corporal mismo" (Freud, 1992/1950[1895], p. 341). Trata-se aqui dos estímulos endógenos, que "dan por resultado las grandes necesidades: hambre, respiración, sexualidad" (Freud, 1992/1950[1895], p. 341) e que, do mesmo modo que os estímulos exógenos, também devem encontrar uma via de descarga.

É justamente sobre as necessidades vitais, e sua correlata excitabilidade endógena, que Freud situa o imperativo de uma modificação na tendência primordial. Embora o movimento reflexo configure um meio de descarga efetivo para a quantidade exógena, no caso da excitabilidade endógena ele não seria capaz de anular a fonte interna de estimulação ou permitir a "huida del estímulo" (Freud, 1992/1950[1895], p. 341). Ao contrário da estimulação exógena, a anulação de uma fonte interna de excitabilidade dependeria de uma ação mais complexa sobre o mundo, a exemplo da obtenção de alimento no caso da fome. Para tanto, seria necessário o que Freud (1992/1950[1895]) chama de acción especifica para que a estimulação endógena pudesse cessar. A execução dessa ação teria como condição primária certo acúmulo de quantidade no aparelho, o que consequentemente imporia uma modificação em sua tendência primordial: em vez de manter o nível de quantidade igual a zero, o aparelho esforçar-se-ia para mantê-lo constante no nível mínimo possível.

O princípio de inércia daria lugar a uma tendência à constância. Esses dois modos de funcionamento do aparelho neuronal não configuram uma relação de oposição, pois a tendência à constância atuaria em favor do princípio de inércia, possibilitando que a excitabilidade endógena fosse mais eficientemente descarregada. A estimulação de origem endógena configuraria ainda as condições de possibilidade para que os processos mais complexos pudessem se desenvolver, uma vez que, "se o aparelho tivesse que lidar apenas com quantidade exógena, ele se limitaria a produzir movimentos reflexos, os quais seriam, em princípio, adequados para descarregar a quantidade exógena e fazer cessar o seu acréscimo" (Caropreso, 2010, p. 64).

O segundo pilar desse esquema conceitual é a teoria dos neurônios (N). Concebidos como a unidade material funcional do sistema nervoso, os neurônios disporiam de uma arquitetura idêntica, seriam anatomicamente independentes uns dos outros e estabeleceriam contato entre si por mediação de tecido não-neuronal (Freud, 1992/1950[1895]). De acordo com o argumento freudiano, os neurônios receberiam a excitabilidade oriunda das quantidades endógenas e exógenas através de seus prolongamentos celulares e a emitiriam por meio dos cilindros do eixo. Essa estrutura, por seu turno, "estaria de acordo com a tendência fundamental do aparelho como um todo, pois favoreceria a descarga da quantidade" (Caropreso, 2010, p. 62).

A comunicação entre o neurônio (N) e a quantidade (Q) encontraria seu fundamento a partir da premissa das barreiras de contato, que caracterizaria a existência de duas classes de neurônios. Por um lado, haveria aqueles que permitiriam a passagem de Q como se não possuíssem nenhuma barreira de contato. Essa classe de neurônios determinar-se-ia como "pasaderas [durchlássig] (que no operan ninguna resistencia y no retienen nada), que sirven a la percepción" (Freud, 1992/1950[1895], p. 344). Por outro lado, haveria os neurônios cuja passagem de Q se daria com muita dificuldade ou apenas parcialmente, e após cada decurso excitatório encontrar-se-ia em um estado diferente do anterior. Essa classe de neurônios definir-se-ia como "no pasaderas (aquejadas de resistencia y retenedoras de Qn), que son portadoras de la memoria y probablemente también de los procesos psíquicos en general" (Freud, 1992/1950[1895], p. 344).

Ao primeiro sistema de neurônios, Freud (1992/1950[1895]) denomina de φ (fi), e ao segundo de ψ (psi). Haveria ainda um terceiro denominado ω (ômega), que estaria relacionado à consciência. Juntos, esses três sistemas de neurônios comporiam o que Freud denomina de aparelho neuronal: o primeiro, o sistema fi, seria responsável pela recepção da quantidade proveniente da periferia do sistema nervoso, assim como por sua transmissão, atenuada e fracionada, ao sistema vizinho, a saber, psi. O segundo, o sistema psi, constituir-se-ia como um sistema de memória, onde se originariam as representações. O sistema ômega, por fim, consistiria no "substrato neural da consciência" (Caropreso, 2010, p. 64).

 

A caracterização dos sistemas φ (fi) e ψ (psi) e a possibilidade de formação da memória

Para Freud (1992/1950[1895]), a caracterização e distinção dos sistemas fi e psi não encontraria seu fundamento na natureza dos neurônios que os constituem, uma vez que estes apresentam uma arquitetura idêntica, mas na dinâmica estabelecida pelos decursos de Q, isto é, no modo através do qual a quantidade incide sobre cada um deles (Caropreso, 2010), a partir da mediação estabelecida pelas barreiras de contato. Conforme o argumento freudiano, estas barreiras ofereceriam certo grau de resistência à passagem da excitação de um neurônio para outro. Esse modo de funcionamento teria por resultado que apenas as quantidades cuja intensidade fosse superior à resistência das barreiras de contato pudessem ser transferidas de um neurônio para outro.

Esse movimento das barreiras de contato sobre os neurônios não é uniforme. Isso porque a excitabilidade que incide sobre o sistema fi se caracteriza por uma intensidade superior à da resistência das barreiras de contato. A implicação disso é que, nesse sistema, as barreiras não seriam capazes de oferecer resistência à passagem de Q e, por isso, os neurônios fi seriam completamente permeáveis à excitabilidade. No que diz respeito ao sistema psi, esse cenário não se repete, em virtude de um aspecto fundamental: apenas nesse sistema é que as barreiras de contato conseguiriam oferecer resistência à passagem de Q. Considerando que a excitabilidade que incide sobre psi se dá através de fi, as ocupações dos neurônios psi "seriam menos intensas, uma vez que a estrutura ramificada de fi faria com que a corrente excitatória se distribuísse por diversos caminhos, incidindo sobre psi em vários pontos" (Caropreso, 2010, p. 64). Em função disso, "para conseguir passagem, uma mesma barreira teria que ser ocupada a partir de dois ou mais neurônios simultaneamente, o que faria com que se constituíssem aí caminhos diferenciados" (Caropreso, 2010, p. 65). Dessa forma, quando um grupo de neurônios se encontrasse investido por determinado nível de Q e suas barreiras de contato estivessem facilitadas entre si, dar-se-ia origem a uma representação (Caropreso, 2010).

Essas considerações poderiam nos conduzir a pensar que a memória seria, assim, "constituida por las facilitaciones existentes entre las neuronas ψ" (Freud, 1992/1950[1895], p. 344), mas a continuidade desse raciocínio nos coloca um problema. "Supongamos que todas las barreras-contacto ψ estuvieran igualmente bien facilitadas o, lo que es lo mismo, ofrecieran la misma resistencia; entonces es evidente que no resultarían los caracteres de la memoria" (Freud, 1992/1950[1895], p. 344). Essa compreensão coloca em relevo o fato de que, em relação ao curso excitatório, a memória é "uno de los poderes comandantes, que señalan el camino, y con una facilitación igual en todas partes no se inteligiría la predilección por un camino". Seria, pois, mais assertivo dizer que "La memoria está constituida por losdistingos dentro de las facilitaciones entre las neuronas ψ " (Freud, 1950[1895], p. 344-345).

 

O sistema ω (ômega) e o problema da consciência

Para além dos sistemas fi e psi, haveria ainda um terceiro, o siste­ma ômega. Mais que uma outra classe de neurônios, o siste­ma ômega introduz o problema da consciência na construção das teses alinhavadas no "Projeto..."; que até a seção 7, que trata do problema da qualidade, ainda não havia sido mencionada (Freud, 1992/1950[1895]). Freud coloca em relevo um esforço significativo de, na impossibilidade de inseri-la por completo, ao menos adequar a consciência ao cenário discursivo da psicologia quantitativa. Ainda que, conforme o argumento de Simanke (2002, p. 81), esse esforço resulte apenas "no estabelecimento das condições de possiblidade da consciência, mas não na elucidação do mecanismo ou da natureza da consciência ela mesma".

Na conjugação dessa dificuldade, Freud propõe um deslocamento do problema da consciência para seu complementar no campo psíquico, isto é, o problema do inconsciente (Simanke, 2002); aqui identificado aos processos neuronais que ocorrem no sistema psi. O raciocínio desenvolvido ganharia forma e contorno com base na premissa de que "la conciencia no nos proporciona una noticia completa ni confiable de los procesos neuronales" (Freud, 1992/1950[1895], p. 352) e, em virtude disso, esses processos, "en todo su radio, tienen que ser considerados en primer término como inconcientes y, lo mismo que otras cosas naturales, deben ser inferidos (Freud, 1992/1950[1895], p. 352).

O problema do inconsciente é introduzido de modo transversal ao pressuposto da necessidade de uma abordagem da consciência em uma investigação psicológica. A conformação desse argumento coloca em relevo uma questão que alinhava ambos os domínios - o da consciência e o do inconsciente. Uma vez que a consciência transpõe em qualidades os processos quantitativos que ocorrem para além de seu alcance, tal como acontece nos sistemas fi e psi, através de quais processos essas qualidades podem derivar de fatores quantitativos? (Simanke, 2002).

De acordo com Freud (1992/1950[1895], p. 352) a qualidade caracterizaria um conjunto de "sensaciones que son algo otro [anders sind] dentro de una gran diversidade, y cuya alteridade [Anders] es distinguida según nexos con el mundo exterior". Partindo dessa caracterização, Simanke (2002, p. 84) argumenta que "fica claro que estão em questão, aqui, sobretudo, as qualidades sensoriais, aquelas que se produzem quando da percepção de estímulos externos". Essas considerações colocam algumas dificuldades no caminho de Freud. Por um lado, faz-se necessário responder "dónde se generan las cualidades", e por outro, "¿cómo se generan las cualidades" (Freud, 1992/1950[1895], p. 352). Na tentativa de responder aos dois segmentos dessa questão Freud introduz a hipótese do período e a ideia dos neurônios ômega, respectivamente.

Para responder a primeira questão, Freud apresenta três possibilidades: o mundo externo, o sistema fi e o sistema psi. A primeira possibilidade é descartada com base no argumento de que "según la intuición que nos ofrece nuestra ciência natural, a la que en este punto ciertamente la psicología debe estar sometida, afuera sólo existen masas en movimiento, y nada más" (Freud, 1992/1950[1895], p. 352-353). Subjaz ao argumento freudiano a premissa de que a relação entre o mundo externo e o aparelho neuronal é apenas quantitativa; o primeiro se caracteriza como fonte de uma parte das quantidades com as quais o segundo tem de lidar (Simanke, 2002). "¿Quizás en el sistema φ? " (Freud, 1992/1950[1895], p. 353). Há um argumento a favor e outro contra para essa possibilidade. Se por um lado a relação do sistema fi com a percepção é favorável a essa possiblidade, por outro sua correspondência direta com o mundo externo, bem como com o "nível mais primitivo de operação do sistema, restrito às respostas reflexas mecânicas e automáticas" (Simanke, 2002, p. 86), apresenta-se como elementos que, mais que desfavoráveis ao sistema fi, o desqualificam como possibilidade. Parte-se da premissa de que a consciência é correlata aos níveis mais elevados de operação do sistema nervoso, pressupondo uma organização muito mais complexa dos processos do que a que se encontra no sistema fi. "Entonces, en el sistema ψ". Pero contra esto hay una importante objeción (Freud, 1992/1950[1895], p. 353), dado que o sistema psi é, primordialmente, um sistema de memória, encarregado pela rememoração ou recordação. Esse problema coloca em relevo o fato de que "el reproducir o recordar [...] carece de cualidad ", uma vez que "El recuerdo no produce, de norma, nada que posea la naturaleza particular de la cualidad-percepción" (Freud, 1992/1950[1895], p. 353). Dessa forma, o sistema psi também se encontra impossibilitado de ser o lugar onde a qualidade se origina, uma vez que, para isso, a rememoração necessitaria, impreterivelmente, revestir-se das mesmas propriedades qualitativas que distinguem a percepção (Simanke, 2002).

É como resultado dessa tripla recusa que Freud propõe o sistema ômega, "que es excitado juntamente a raíz de la percepción, pero no a raíz de la reproducción, y cuyos estados de excitación darían por resultado las diferentes cualidades; vale decir, serían sensaciones concientes" (Freud, 1992/1950[1985], p. 353). É pertinente observar que a hipótese desse sistema não é colocada nos mesmos termos que os demais. Diferentemente dos sistemas fi e psi, " em que neurônios idênticos adquirem características funcionais divergentes em decorrência de suas próprias condições de operação" (Simanke, 2002, p. 86), o sistema ômega não decorre dessas noções e tampouco pode ser deduzido delas.

Respondida a primeira questão, é tempo de nos ocuparmos da segunda: "¿cómo se generan las cualidades?" (Freud, 1992/1950[1895], p. 352). O argumento utilizado por Freud para responder a essa questão tem como ponto de partida um princípio fundamental: quantidade e qualidade se excluem ou, mais precisamente, o surgimento da qualidade e da consciência pressupõe diminuição máxima na intensidade dos processos" (Simanke, 2002, p. 89). Embora a emergência da qualidade e da consciência se encontre em acordo com a tendência primordial do aparelho, Freud (1992/1950[1895], p. 353-354 ) salienta que a exclusão da quantidade não pode ser absoluta, dado que "también a las neuronas ω tenemos que pensarlas investidas con Qn y aspirando a la descarga". Caso o nível quantitativo fosse equivalente a zero, o aparelho se encontraria inerte e em virtude disso não teria condições para executar as operações psíquicas. Apesar da pertinência dessa ressalva, a ocupação ainda assim terá de ser mínima e não será a magnitude da excitabilidade o elemento determinante na produção das qualidades, pois, se assim fosse, não poderíamos "compreender por que o surgimento da qualidade requer essa dissipação máxima da quantidade que acompanha o percurso dos processos da periferia para o interior do aparelho" (Simanke, 2002, p. 90).

A continuidade desse raciocínio coloca para Freud o seguinte problema: imerso na interioridade do aparelho, o sistema ômega configura-se como ainda mais afastado das quantidades que psi e, por conseguinte, quase que imune à ação niveladora que elas exercem sobre as barreiras de contato. Ainda assim, as características fenomênicas da consciência - "cambio de vía [Wechsel] del contenido, con la fugacidad de la conciencia, con el fácil enlace de cualidades percibidas simultaneamente" (Freud, 1992/1950[1895], p. 354) - demandam os mesmos elementos exigidos pela recepção de estímulos atribuída ao sistema fi, a saber, a permeabilidade e o retorno à condição anterior sem alterações, resultando no fato de que os neurônios ômega se portariam como órgãos de percepção, assim como manifestariam a análoga incompatibilidade para com a memória. Mas como isso seria possível? A impossibilidade de explicar esses elementos a partir dos níveis de quantidade que chegam a ômega, faz com que Freud precise revisar o pressuposto fundamental sobre o curso de Q: "Hasta ahora sólo he considerado este último como transferencia de Qn de una neurona a otra. Pero además es preciso que posea un carácter: naturaleza temporal [...]. En aras de la brevedad, la llamo el período" (Freud, 1992/1950[1895], p. 354).

Nessa senda, em vez da quantidade os neurônios ômega seriam permeáveis ao período, e nisso consistiriam tanto a permeabilidade quanto a abertura permanente a novas percepções que caracteriza a consciência (Caropreso, 2010). Nos termos de Freud (1992/1950[1895], p. 354), "las neuronas ω son incapazes de recibir Qn, a cambio de lo cual se aproprian del período de la excitación; y este su estado de afección por el período, dado un mínimo llenado con Qn es el fundamento de la consciencia". Ao responder de que forma os processos quantitativos oriundos do mundo externo podem originar as qualidades sensoriais, Freud deixa em aberto uma outra interrogação: o que é o período? Simanke (2002) argumenta que, aparentemente, o raciocínio freudiano estaria fazendo referência ao ritmo ou à frequência - no sentido físico do termo - da excitabilidade externa que, de alguma forma, propagar-se-ia sobre os processos excitatórios a que esta dá origem nos demais sistemas de neurônios. Dessa forma, os processos ômega consistiriam praticamente na propagação do período, "cujas variações seriam, então, decodificadas nas diferenças qualitativas capazes de serem percebidas pela consciência" (Simanke, 2002, p. 92), compreendida como o lado subjetivo dos processos ômega, cuja ausência "no deja inalterado al acontecer psíquico, sino que incluye la ausência de la contribuición del sistema ω" (Freud, 1992/1950[1895], p. 355-356).

Ao período caberia apenas o surgimento das qualidades sensoriais. As sensações de prazer e desprazer que, juntamente com as qualidades sensoriais, formariam a classe das sensações conscientes, seriam resultado direto da ocupação de ômega por quantidade (Simanke, & Caropreso, 2005). Considerando que "el sistema ω debe ser llenado por ψ, resultaría el supuesto de que con un nivel ψ más elevado aumentaría la investidura en ω, y en cambio un nivel decreciente la disminuiría" (Freud, 1992/1950[1895]), p. 356). Na conformação desse cenário, o "displacer se coordinaría con una elevación del nivel de Qn [...]; sería la sensación ω frente a un acrecentamiento de Qn en ψ ", ao passo que o "placer sería la sensación de descarga" (Freud, 1992/1950[1895]), p. 356). Essas sensações configurariam o resultado de um investimento no nível do próprio sistema ômega, que, em virtude de sua proximidade disposicional em relação a psi, constituiria, juntamente com este último, um canal de comunicação.

Ao atribuir ao período de um processo excitatório ω a responsabilidade pela formação das qualidades, Freud confecciona dois problemas fundamentais: I. "Se a afecção dos neurônios pelo período consiste na base material da produção de qualidades sensoriais, por que apenas em ω esta surgiria? "; e II. "Se o período é uma propriedade da quantidade e se esta antes de chegar a ω deve passar necessariamente por φ e por ψ, por que as sensações conscientes não se originam a partir da ocupação destes sistemas?" (Simanke, & Caropreso, 2005, p. 95). À primeira vista, talvez esses impasses pudessem encontrar solução na ideia de que ômega seria o único sistema sensível ao período dos demais processos que ocorrem nas diferentes regiões do aparelho neuronal. Tratar-se-ia, mais especificamente, de supor que a frequência com a qual esses processos oscilam ecoaria nesse sistema. Essa hipótese, no entanto, contradiz a afirmação freudiana de que é do período dos processos excitatórios que ocorrem em ômega que emergem as qualidades sensoriais (Simanke, 2002). Ainda que "también las neuronas ψ tienen desde luego su período, [...] este carece de cualidad; mejor dicho: es monótono" (Freud, 1992/1950[1895], p. 354). Uma vez que são as diferenças, em vez do período em si mesmo, que conferem a possibilidade da qualidade ou da consciência, o período dos processos psi não a permitiria. Do contrário, implicitamente estaríamos dizendo que todos os processos são passíveis de consciência (Simanke, 2002), o que implicaria em negligenciar o fato de que, do ponto de vista da teoria freudiana, as teses alinhavadas ao longo do "Projeto..." demarcam uma primeira formulação de psiquismo inconsciente (Caropreso, 2010).

"¿A qué se deben las diferencias del período? Todo apunta a los órganos de los sentidos, cuyas cualidades deben de estar constituidas justamente por períodos diferentes de movimiento neuronal" (Freud, 1992/1950[1895], p. 354-355). Essa inferência resulta numa pequena torção sobre o que dissemos acima: "o período em ψ não é necessária e invariavelmente monótono", caso fosse, "não haveria como as diferenças de período chegarem a ω, [...], uma vez que a sequência dos sistemas está estabelecida como φ - ψ - ω, ou seja, nada chega a ω sem passar antes por ψ" (Simanke, 2002, p. 94). Subjaz a essas considerações uma distinção bastante significativa, qual seja, a de que a produção de qualidades sensoriais não é equivalente à percepção consciente dessas mesmas qualidades. De acordo com Simanke e Caropreso (2005, p. 96), "Para que elas fossem percebidas [...], não bastaria o seu surgimento, pois só quando o eu ocupasse os 'signos de qualidade' fornecidos por ω a ψ, uma representação seria percebida". Mas o que são os signos de qualidade? Trata-se da tentativa de explicar a diferença entre percepção e rememoração. Freud (1992/1950[1895], p. 370) argumenta que "al principio ψ no es capaz de estabelecer esse distingo, pues sólo puede trabajar seguiendo la secuencia de estados análogos entre sus neuronas. Por eso precisa un criterio que provenga de otra parte" (Freud (1992/1950[1895], p. 370); nesse caso, do sistema ômega. É precisamente sobre os signos de qualidade que Freud atribui esse critério que, por um lado, caracterizaria a ocupação de uma representação em psi por quantidade de origem endógena como uma rememoração, e por outro, a ocupação de uma representação em ψ por quantidade exógena como uma percepção (Simanke, & Caropreso, 2005).

Mais que explicar essa distinção, os signos de qualidade esclarecem a miscelânea que se dá entre esses processos, dado que é o problema colocado pela alucinação que está em jogo na conformação desse cenário. De acordo com Freud (1992/1950[1895], p. 371), se um objeto "es investido vastamente, y así es animado por vía alucinatoria, este signo de descarga o de realidad se produce lo mismo que a raíz de una percepción exterior. Para este caso, el criterio fracasa". A emergência da alucinação seria, portanto, produto de uma "ocupação retroativa de φ a partir de ψ devido à ocorrência de um processo excitatório muito intenso nesse segundo sistema. A intensidade da ocupação de φ levaria ω a fornecer signos de qualidade e, então, as representações seriam tomadas como percepções reais" (Caropreso, 2010, p. 80). Essas considerações colocam-nos um verdadeiro impasse. Do modo como esse cenário se encontra disposto, faz-se necessário reconhecer que a distinção entre percepção e rememoração se encontra alicerçada em outro elemento que não os signos de qualidade. Na tentativa de resolvê-lo, Freud (1992/1950[1895]) formula a hipótese de que é o condicionamento do eu pela defesa primária, que diz respeito à inibição de quaisquer processos que possam resultar em uma experiência de dor ou frustração, que permite essa distinção. No entanto, falar do que está em jogo nos signos de qualidade não implica no esclarecimento de sua definição. Freud (1992/1950[1895]) parte da premissa de que toda percepção provoca excitação em ω, e, ao fazer isso, libera determinados signos de qualidade. Mais que incitar a consciência, para Freud (1992/1950[1895], p. 408), tratar-se-ia do despertar da "conciencia de una cualidad", cuja descarga da excitação provocada em ômega, "como cualquier descarga, brindará una notícia hacia ψ, que es justamente el signo de cualidad" ou seja, as notícias da eliminação da excitação do sistema ω originadas em ψ definem o que seriam os signos de qualidade (Caropreso, 2010; Simanke, & Caropreso, 2005).

Freud reconhece que as ideias formuladas para explicar a base material da consciência apresentam um caráter bastante problemático, ao admitir que " sólo mediante tales supuestos complicados y poco intuibles he conseguido hasta ahora incluir los fenómenos de la conciencia en el edificio de la psicología cuantitativa" (Freud, 1992/1950[1895], p. 355). Apesar disso, ele defende que essa série de dificuldades correlatas à suposição de um terceiro sistema de neurônios não constitui um impedimento real para que a teoria continue sendo elaborada. Não obstante todas essas adversidades, a atividade consciente, ainda que restrita em relação à dimensão total do psiquismo, não exerce função diminuta na vida psíquica; pelo contrário, "la ausencia de la conciencia no deja alterado al acontecer psíquico, sino que incluye la ausencia de la contribuición del sistema ω" (Freud, 1992/1950[1895], p. 355-356). É justamente o papel exercido pelas sensações conscientes, fornecidas pelos signos de qualidade, que torna possível, por um lado, o acesso aos objetos indispensáveis à satisfação das necessidades vitais e, por outro, a fuga dos objetos que geram desprazer. Essas sensações, mais que regular os processos psíquicos, possibilitam "a sobrevivência do indivíduo e, por isso, a consciência seria uma função imprescindível" (Caropreso, 2010, p. 82).

 

O sistema ψ e o problema das quantidades endógenas

Após discorrer sobre o problema da introdução da consciência na psicologia quantitativa e caracterizar os aspectos funcionais do sistema ômega, Freud retoma o debate a respeito dos neurônios psi. Conforme o raciocínio freudiano, esse sistema não seria investido apenas a partir dos estímulos externos comunicados através de fi, mas também a partir da excitabilidade oriunda dos estímulos internos comunicados pelas necessidades do próprio organismo; posto que o sistema psi se encontraria diretamente ligado a ele. Essa caracterização conduz Freud (1992/1950[1895], p. 360) a "dividir las neuronas ψ en dos grupos: las neuronas del manto, que son investidas desde φ, y las neuronas del núcleo, que son investidas desde las conducciones endógenas". Em virtude de estas conduções serem originadas diretamente do interior do organismo, os neurônios psi do núcleo configurariam "o local onde se daria a conversão do somático em psíquico" (Caropreso, 2010, p. 66).

Ao contrário das quantidades exógenas, as de caráter endógeno determinar-se-iam como muito pouco intensas. Apesar de a produção dessas quantidades ser contínua, a baixa excitabilidade provocada implicaria no fato de que sua conversão em estímulos psíquicos seria apenas periódica (Freud, 1992/1950[1895]). Para conseguirem facilitar as barreiras de contato que separam o núcleo do sistema psi do interior do organismo, e assim adquirir expressão psíquica, ou seja, dar origem a representações, as conduções dessas quantidades teriam que passar por um processo chamado "sumación " (Freud, 1992/1950[1895], p. 361), que se daria justamente em função da pequenez do estímulo das quantidades endógenas. Somente quando conseguissem, por meio do processo de somação, intensidade suficiente para facilitar as barreiras de contato do núcleo do sistema psi, é que as quantidades endógenas se converteriam em estímulos psíquicos, constituindo representações. Ao final desse processo, teríamos por resultado o fato de que, ao passo que o manto de psi conteria apenas representações concebidas a partir de quantidades exógenas, as representações do núcleo de psi seriam geradas a partir de fontes internas de estimulação (Caropreso, 2010).

Diferentemente do que ocorre em relação à excitabilidade exógena, a de origem endógena atuaria diretamente sobre o sistema psi, de forma que não haveria nenhum aparato que pudesse exercer a função de obstruir ou fragmentar os estímulos endógenos, tal como fazem as terminações sensoriais nervosas e o sistema fi, no que diz respeito às quantidades exógenas (Caropreso, 2010). O mesmo se aplica ao movimento reflexo, que, apesar de configurar um meio de descarga efetivo para a quantidade exógena, não é capaz de anular a fonte interna de estimulação. Na conformação desse cenário, o fato é que o núcleo de psi "está a merced de Q, y con ello se genera en el interior del sistema la impulsión que sustenta toda la actividad psíquica" (Freud, 1992/1950[1895], p. 362). É justamente na ausência de proteção do núcleo de psi às quantidades endógenas que Freud situa a necessidade de encontrar um meio de descarga eficaz para essa excitabilidade, e é essa necessidade que impulsionaria o desenvolvimento dos processos psíquicos mais complexos (Caropreso, 2010), uma vez que nela reside "el resorte pulsional del mecanismo psíquico" (Freud, 1992/1950[1895], p. 360).

Há, no entanto, algo que, à medida que esse argumento se desenvolve, provoca-nos certo incômodo. Ao que parece, para além da necessidade de encontrar meios para descarregar a excitabilidade endógena, a ausência de proteção do núcleo de psi coloca em relevo um estado ou condição de insuficiência, cuja determinação não parece encerrar-se na organicidade própria do aparelho neuronal, mas nas consequências do imperativo colocado pelas necessidades prementes da vida. Fato é que as teses apresentadas pelo "Projeto..." não asseguram que a repetição dos estímulos endógenos é o que permitiria, por si só, o desenvolvimento e constituição psíquica; e as complexidades que emergem da necessidade de encontrar uma via de descarga para essa excitabilidade parecem corroborar esse argumento. O caminho que tem de ser percorrido para que, a partir das respostas reflexas, produzam-se ações que permitam o cancelamento da fonte de estimulação endógena não está dado pela simples maturação. Na constituição desse percurso, há um salto qualitativo que se encontra atravessado pelo conjunto de experiências vivenciadas na mais tenra infância, e nisso reside o aspecto primordial do argumento desenvolvido neste trabalho: é no campo da experiência que esse percurso se determina.

De acordo com Freud (1992/1950[1895]), a totalidade das ocupações do núcleo de psi daria origem à instância do eu. O argumento freudiano parte da premissa de que "en ψ se ha formado una organización cuya presencia perturba decursos que la primera vez se consumaron de manera definida [o sea, acompañados de satisfacción o de dolor]" (Freud, 1992/1950[1895], p. 368). A essa organização Freud denomina de eu, e poderíamos caracterizá-la facilmente, ele diz, se considerarmos que "la recepción, repetida con regularidad, de Qn endógenas en neuronas definidas (del núcleo), y el efecto facilitador que de ahí parte, darán por resultado un grupo de neuronas que está constantemente investido", e que "corresponde al portador del reservorio requerido por la función secundaria" (Freud, 1992/1950[1895], p. 368). No cenário dessas considerações, a organização que dá origem ao eu é definida "como la totalidad de las respectivas investiduras ψ, en que un componente permanente se separa de uno variable" (Freud, 1992/1950[1895], p. 368). A organização do eu configuraria, assim, um reservatório para a totalidade dos investimentos do sistema psi, cuja função consistiria em direcionar os processos associativos a fim de que estes lograssem as condições necessárias para a satisfação e impedissem a produção de desprazer. Mas como isso se daria? "Mientras que el afán de este yo tiene que ser librar sus investiduras por el camino de la satisfacción, ello sólo puede acontecer influyendo él sobre la repetición de vivencias de dolor y de afectos, por el siguiente camino, que en general se define como el de la inhibición" (Freud, 1992/1950[1895], p. 368). A ação do eu sobre o direcionamento dos processos associativos através da inibição se daria conforme os princípios da defesa primária, a saber, inibir ou dificultar, o máximo possível, o investimento de quaisquer processos ou representações que possam resultar na produção de desprazer (Freud, 1992/1950[1895]).

Uma vez que a organização do eu tem acesso a todos os investimentos do sistema psi, por um lado, ele seria composto por um componente constante - as ocupações do núcleo de psi, e por outro, por um componente variável - as ocupações do manto de psi (Caropreso, 2010). Segundo Freud (1950[1895]), a quantidade utilizada na ocupação do eu se encontraria em uma condição que ele denomina de "estado ligado", caracterizada pela retenção de uma parcela da excitabilidade quando do investimento sobre os neurônios psi. Isso se daria em virtude de que, na passagem da excitação de um neurônio para outro, parte dessa excitação ficaria retida no anterior, de modo que a consequência direta da continuidade desse movimento consistiria no fato de que os neurônios se encontrariam permanentemente investidos, mesmo após a passagem da excitação (Caropreso, 2010). A possibilidade da excitação em estado ligado só passaria a existir, todavia, após a inibição da dinâmica de associação primária - ou processo primário - do aparelho neuronal, que se caracterizaria pela "investidura-deseo hasta la alucinación, el desarrollo total de displacer, que conlleva el gasto total de defensa" (Freud, 1992/1950[1895], p. 372).

De acordo com Freud (1992/1950[1895]), a organização do eu dentro de psi se defrontaria com duas dificuldades fundamentais. A primeira delas se daria quando, na emergência do estado de desejo, o eu "inviste de nuevo el objeto-recuerdo y entonces decreta la descarga, no obstante que la satisfacción por fuerza faltará, porque el objeto no tiene presencia real sino sólo en una representación-fantasía" (Freud, 1992/1950[1895], p. 370). A segunda dificuldade consistiria no fato de que " ψ necesita de un signo que le haga prestar atención a la reinvestidura de la imagen-recuerdo hostil, a fin de prevenir, [...], el desprendimiento de displacer que de aquella se seguirá" (Freud, 1992/1950[1895], p. 370). Subjacente a essas dificuldades encontra-se o problema anteriormente colocado pela distinção entre percepção e rememoração, e sua correlação com os signos de qualidade fornecidos por ômega ao sistema psi. O argumento freudiano põe em relevo o fato de que ambas as dificuldades, ao incidirem sobre o engodo da alucinação, têm por resultado uma experiência excessivamente desprazerosa em função da ausência do objeto desejado na realidade, assim como uma defesa tão intensa quanto o grau de desprazer provocado, resultando num gasto total da reserva da quantidade endereçada ao processo de defesa. Nesse panorama, a saída freudiana para tamanho infortúnio é justamente o processo de inibição realizado pelo eu, "que suministra un criterio para distinguir entre percepción y recuerdo" (Freud, 1992/1950[1895], p. 371). O ganho fundamental para o aparelho neuronal diante de todos esses fatores é a introdução da dinâmica de associação secundária - ou processo secundário, que se encontraria fundamentada na "valorización correcta de los signos de realidad objetiva, sólo posible con una inhibición por el yo" (Freud, 1992/1950[1895], p. 372).

O processo primário seria caracterizado pelo livre fluxo da excitabilidade sobre os neurônios, sem que nenhuma fração dessa excitação fosse retida na passagem de um para o outro, seguindo unicamente as vias melhor facilitadas (Caropreso, 2010). No avesso desse cenário, teríamos o processo secundário, cuja ação determinar-se-ia no fato de que "as associações seriam direcionadas de forma a permitir que a realidade fosse levada em consideração e, assim, a satisfação das necessidades se tornasse possível" (Caropreso, 2010, p. 68). Em ambos os processos, é a ação inibidora do eu que se encontra em relevo, uma vez que é justamente a interrupção do processo primário que daria origem ao modus operandi do processo secundário. Essa ação inicialmente seria condicionada pela defesa primária, e esse condicionamento se efetivaria em função do "desprazer produzido nas repetições dos estados de carência orgânica e dos esforços para alcançar o que Freud chama de vivência de satisfação", que exerceria "um papel estruturante fundamental para o modo de funcionamento normal do aparelho" (Caropreso, 2010, p. 68). Novamente, há algo que na continuidade de nosso pensamento causa incômodo. Se podemos dizer que essa vivência exerce papel estruturante sobre o funcionamento do aparelho, o inverso dessa afirmação também seria possível? Ou seja, os estados de carência orgânica também são estruturantes? A tentativa de responder a essas interrogações exige que nos debrucemos sobre o que seria a vivência de satisfação.

 

Vivência de satisfação e desamparo

Tomemos como ponto de partida a experiência originada pela fome, uma das grandes necessidades derivadas da "complejidad de lo interno", capaz de produzir "estímulos desde el elemento corporal mismo, estímulos endógenos que de igual modo deben ser descargados" (Freud, 1992/1950[1895], p. 341). Consoante Freud (1992/1950[1895], p. 362), "El llenado de las neuronas del núcleo en ψ tendrá por consecuencia un afán de descarga, un esfuerzo [Drang] que se aligera hacia un camino motor". E a experiência nos ensina, ele diz, que "la vía que a raíz de ello primero se recorre es la que lleva a la alteración interior (expresión de las emociones, berreo, inervación vascular)". Desse modo, quando o bebê sentisse fome pela primeira vez, ou seja, na primeira ocupação do núcleo de psi, esse estímulo provocaria uma série de reações reflexas - a exemplo do grito, do choro e da agitação motora - que, dentre os recursos que o bebê possui quando de seu nascimento, consistiriam nas únicas formas de eliminação de quantidade (Caropreso, 2010). Fato é que, nesse cenário, "una cancelación de estímulo sólo es posible mediante una intervención que elimine por un tiempo en el interior del cuerpo el desprendimiento (desligazón) de Qn, y ella exige una alteración en el mundo exterior" (Freud, 1992/1950[1895], p. 362). Ainda que essas reações não sejam capazes de eliminar por si mesmas o desprazer, a validade e pertinência delas não deve ser negligenciada, uma vez que possibilitariam o estabelecimento de um meio de comunicação (Verständigung) entre o bebê e o adulto, fazendo com que este último se apercebesse do estado de carência do primeiro. Nisso consistiriam as condições necessárias à realização da acción especifica, via de descarga que, de acordo com Freud (1992/1950[1895]), seria capaz de anular o estímulo endógeno fonte de desprazer.

Segundo o argumento freudiano, "el organismo humano es al comienzo incapaz de llevar a cabo la acción específica. Esta sobreviene mediante auxilio ajeno: por la descarga sobre el camino de la alteración interior, un individuo experimentado advierte el estado del niño" (Freud, 1992/1950[1895], p. 362). No momento em que o adulto realizasse a ação específica, quando a mãe oferecesse o seio ao bebê, por exemplo, este, por meio de comportamentos reflexos, realizaria os movimentos necessários para a alimentação, interrompendo a fonte de estimulação endógena (Caropreso, 2010). O que está sendo colocado em relevo por Freud é o fato de que essa via de descarga, configurada pela ação específica, encontra determinação na dinâmica de funcionamento caracterizada pelo processo secundário, no qual a consideração da realidade constitui um elemento primordial. No cenário da vivência de satisfação, é justamente a valorização da realidade que confere forma e contorno à comunicação inaugurada entre o bebê e o adulto, evidenciando "el inicial desvalimiento del ser humano" como "la fuente primordial de todos los motivos morales" (Freud, 1992/1950[1895], p. 363). Essa afirmação de Freud nos lança ao seguinte problema: ela não explica a razão pela qual estaríamos autorizados a caracterizar a condição de carência orgânica do bebê como um estado de desamparo (Hilflosigkeit ).

De acordo com Costa (2007), o desamparo (Hilflosigkeit) é utilizado por Freud em dois contextos principais. No primeiro, temos o que é proposto no cenário discursivo do "Projeto...", onde a incidência de fontes exógenas e endógenas de excitabilidade, ao afetar o aparelho neuronal, teria por resultado a necessidade de uma via de descarga (movimentos reflexos e ação específica, respectivamente). No caso de essa descarga não ser possível, "e o estímulo exceder a capacidade de resposta do organismo, surge o desamparo, que pode dar origem a defesas inadequadas" (Costa, 2007, p. 60). No segundo contexto, o desamparo encontrar-se-ia referido à ideia de prematuração do ser humano, e nela circunscrevem-se dois aspectos fundamentais: I. o peso exercido pelo mundo externo quando do nascimento; e II. a diferenciação precoce entre o eu e o isso (Costa, 2007). Conforme o argumento proposto por Costa (2007, p. 61), em ambos os contextos, "o desamparo remete à ideia de despreparo do organismo humano em face de certos estímulos do meio". No caso do primeiro uso do termo, o desamparo faz alusão a estados subjetivos cuja descrição se realiza de modo fisicalista, isto é, ele é "assimilado ao estado de necessidade reconhecido pelo organismo de forma reflexa e automática" (Costa, 2007, p. 61). No caso do segundo, introduzir-se-ia uma distinção entre o corpo e o eu, que implicaria no fato de que o desamparo do corpo não seria equivalente ao desamparo de um eu que, "em situações de perigo, apela para o objeto e cria 'a necessidade de ser amado que jamais abandonará o ser humano'" (Costa, 2007, p. 61).

Para Costa (2007, p. 61), a deficiência do primeiro uso do termo repousaria no pressuposto de que os estados de carência orgânica "possuem a mesma carga semântica dos 'estados de desamparo' psicológico. Se isso fosse verdade", argumenta o autor, "poderíamos dizer, de forma igualmente legítima, que somos desamparados porque precisamos respirar, suar, dormir, andar, deitar, excretar produtos degradados do metabolismo e assim por diante". Esse argumento evidencia a impossibilidade de atribuir "predicados psicológicos a uma entidade - o corpo biológico, em sua dimensão física - que, previamente, foi identificada como incapaz de possuí-los" (Costa, 2007, p. 61). É em função disso que "o sujeito descrito como um feixe de reflexos e automatismos não é desamparado nem amparado. Essa qualificação não se aplica àquilo que, por definição, não pode ser suporte de propriedades mentais" (Costa, 2007, p. 61). Essas considerações não se estendem ao segundo uso do termo. De acordo com Costa (2007, p. 62), é a existência do eu que autoriza a atribuição do termo desamparo, uma vez que estaríamos "diante de um ser de linguagem que pode saber o que é se sentir desamparado, antes ou depois da aquisição da habilidade linguística". Em última instância, tratar do desamparo em uma descrição psicológica dos organismos humanos justificar-se-ia pela projeção que se origina por parte de quem observa, assim como pelos efeitos sobre o eu daquele que caracterizamos como desamparado. Nos termos de Costa (2007, p. 62), "ao dizermos que o bebê é desamparado porque é prematuro, queremos dizer que, em situações similares à da prematuração, sentimos algo que chamamos de desamparo". Essas situações fariam alusão àquelas em que dependemos do outro para sobreviver, ou nas quais encontramo-nos impotentes para impedir um sofrimento iminente.

As considerações apresentadas por Costa (2007) que nos impossibilitariam de caracterizar o estado de carência orgânica do bebê, tal como descrito no "Projeto...", como desamparo (Hilflosigkeit), sustenta-se em dois argumentos principais: I. o desamparo configura um ponto de vista de quem observa; e II. para haver desamparo faz-se necessária a existência de um eu. No que diz respeito ao primeiro argumento, a ausência de proteção do núcleo de psi às quantidades endógenas e a correlata necessidade do aparelho de encontrar uma via de descarga para essa excitabilidade constitui o nosso contraponto.

Conforme o argumento freudiano, ao contrário do que ocorre em relação às fontes exógenas de excitabilidade, as de origem endógena atuam diretamente sobre o sistema psi, de forma que não haveria nenhum mecanismo que as obstruísse ou fragmentasse, como no caso das terminações sensoriais nervosas e do sistema psi; ou simplesmente as anulasse, como no caso dos movimentos reflexos. Embora a introdução da tendência à constância em detrimento do princípio de inércia tenha colocado para o aparelho a necessidade de adaptar-se a um certo acúmulo de Q, ainda assim a incidência desta sobre o aparelho deve se manter constante no nível mínimo possível. Essas considerações conduzem Freud a situar, na ausência de proteção do núcleo de psi às quantidades endógenas, a necessidade de encontrar um meio de descarga eficaz para essa excitabilidade. Se retomarmos o paradigma da experiência originada pela fome, teremos uma ilustração bastante pertinente acerca de nosso problema.

Argumentávamos que, na primeira vez em que o bebê sentisse fome, o efeito desse estímulo provocaria uma série de movimentos reflexos, tais como o grito, o choro e a agitação motora; que dentre os recursos que o bebê possui quando de seu nascimento consistiriam nas únicas vias de eliminação de Q (Caropreso, 2010). Essas reações, embora não sejam capazes de eliminar por si mesmas o aumento quantitativo oriundo desse estado de carência orgânica, permitem o estabelecimento de uma comunicação (Verständigung) entre o bebê e o adulto, fazendo com que este último se aperceba do estado do primeiro. A impossibilidade, por parte do bebê de fazer cessar esse aumento quantitativo através da ação específica ressalta o fato de que essa condição de insuficiência encontra sua determinação na leitura que o "individuo experimentado" (Freud, 1992/1950[1895]) realiza sobre a descarga motora que se apresenta diante dele. Se pudermos ser um pouco mais rigorosos na análise desse cenário, o estado de carência, causa do amparo, configuraria, já nos termos do "Projeto...", um ponto de vista daquele que observa, uma vez que para o bebê há apenas um excesso quantitativo que ele não consegue fazer cessar, visto que não dispõe dos recursos para isso.

Esse encontro entre o adulto e o bebê põe em relevo o fato de que o psiquismo está condenado a constituir-se na relação com o outro, e é precisamente em função disso que esse estado de carência orgânica inicial pode ser considerado como fonte primordial da moralidade. Subjaz a essa sentença o fato de que o desamparo (Hilflosigkeit), atribuído ao estado de carência, sustenta-se no olhar do adulto sobre as condições do bebê e não nos estados de carência em si mesmos. Se observamos bem, na conformação desse cenário é a própria Hilflosigkeit que desvela o reconhecimento de que, na costura das dobras da existência, é a presença do outro que faz o alinhave, ainda que essa sentença possa nos parecer um golpe narcísico. Em última instância, o choro, o grito e a agitação motora desencadeados pelo afã da descarga, assim como o objeto de satisfação, que não apresenta uma definição a priori, determinar-se-iam na significação que o adulto sustenta sobre o bebê, e que se concretiza na realização da ação específica. Ao conferir os contornos dessa significação, inclinamo-nos a considerar que a ação específica constitui as condições de possibilidade para uma possível conformação dos circuitos pulsionais do bebê, cuja determinação repousa em uma dinâmica que só pode ser dita como de "desamparo" em virtude dos recursos simbólicos que o adulto insere no cenário da comunicação (Verständigung) estabelecida entre ele e o bebê.

Apresentado nosso contraponto ao primeiro argumento, é tempo de nos ocuparmos do segundo, que afirma ser necessário, para se pensar o desamparo, a existência de um "eu". Esse argumento, por si só, é bastante problemático, uma vez que a totalidade dos investimentos do núcleo de psi configura a organização de um "eu". Apesar das restrições teóricas colocadas pela linguagem neurofisiológica do "Projeto...", não é possível negligenciar o fato de que essa organização configura o sistema regulador dos processos associativos do aparelho neuronal, a fim de que estes possam lograr as condições necessárias para a satisfação e impedir a produção de desprazer. Isso implica na consideração de que é a própria organização do eu a responsável pela introdução do modo de associação secundário em detrimento do primário. Mas não somente! A organização do eu pode ser compreendida ainda como uma consequência direta das experiências de carência orgânica, que se encontram preservadas na memória constituída pelos neurônios psi. Sua expressão de maior magnitude situa-se no processo de inibição, quando da impossibilidade de o aparelho descarregar a excitabilidade endógena por si mesmo, sem cair no engodo da alucinação. O eu, portanto, representaria "a história das vivências ψ, ou seja, a totalidade das experiências vividas pelo ser humano" (Bertanha, 2006, p. 35).

Na conformação desse cenário, podemos pensar o funcionamento da organização do eu a partir de três níveis fundamentais: I. no nível fisiológico, sob a forma de um grupo de neurônios investidos de modo permanente que, ao manter as quantidades em estado ligado, possibilita a conformação do reservatório necessário às funções do processo secundário; II. no nível psicológico, sob a forma de um sistema regulador responsável pela primazia dos processos secundários sobre os primários; e III. no nível de índice de realidade, sob a forma de um critério que, ao distinguir percepção e rememoração, inibe a ocorrência da alucinação. Todos esses níveis de funcionamento parecem configurar a solução para um mesmo problema: a condição de insuficiência do aparelho diante do acúmulo da excitabilidade endógena. Uma vez que a somatória dos investimentos do núcleo de psi configura a organização do eu, e que os neurônios do núcleo determinam "o local onde se daria a conversão do somático em psíquico" (Caropreso, 2010, p. 66), temos a conformação da seguinte premissa: a organização do eu, apesar de não ser equivalente, não é indiferente aos processos que incidem sobre o corpo. Dado que sua função é precisamente regular a incidência desses processos, nisso consistiria o estabelecimento de uma relação entre o somático e o psíquico, caracterizada por uma fonte de excitabilidade que se origina no próprio elemento corporal, mas cuja possibilidade de adquirir uma representação implica em um processo em nível psíquico. A consequência direta desse raciocínio é que a condição de insuficiência diante da excitabilidade endógena configura um estado experimentado pelo eu, e não pelo organismo biológico em si mesmo. A introdução do processo secundário em detrimento do primário nos conduz a situar, no recurso da inibição, um indício dessa experiência por parte do eu, que coloca em relevo o fato de que a insuficiência, para além de um dado objetivo correlato aos estímulos endógenos, expressa a condição de dependência do eu em relação à ação específica. Se retomarmos a caracterização da vivência de satisfação, teremos uma ilustração bastante pertinente acerca do que acabamos de dizer.

De acordo com Freud (1992/1950[1895]), como resultado da vivência de satisfação, três coisas sucederiam no sistema psi: em primeiro lugar, "es operada una descarga duradera, y así se pone término al esfuerzo que había producido displacer en ω" (Freud, 1992/1950[1895], p. 363); em segundo, constituir-se-ia no manto de psi a representação do objeto externo (ex. o seio materno) cuja percepção se fez simultânea à experiência de satisfação; e em terceiro, formar-se-ia ainda no manto de psi uma representação do movimento reflexo executado quando da ação específica (ex. o choro do bebê). "Entonces, por la vivencia de satisfacción se genera una facilitación entre dos imágenes-recuerdo y las neuronas del núcleo" (Freud, 1992/1950[1895], p. 364), dado que a origem de ambas haveria se configurado simultaneamente à ocupação do núcleo de psi (Caropreso, 2010). Essa facilitação, uma vez constituída, definiria o curso a ser seguido pela excitabilidade quando, novamente, o estado de excitação provocado pela fome aparecesse e tornasse a incidir sobre o núcleo de psi de modo a ocupar as representações do manto anteriormente estabelecidas (Caropreso, 2010). Essa inclinação para investir tais representações configura aquilo que, no contexto do "Projeto...", Freud (1992/1950[1895]) denomina como "estados de deseo". O desejo seria uma inclinação para ocupar a representação de determinado objeto, ao passo que o investimento dessa representação consistiria na realização do desejo (Caropreso, 2010). Da próxima vez que o aparelho se encontrasse sob o efeito do estado de carência decorrente da fome, não haveria apenas a demanda para a satisfação de uma necessidade, a realização de um desejo também estaria em relevo. O estado de carência haveria se associado à representação do objeto (ex. o seio materno) que anteriormente permitiu a satisfação, e, em função disso, o processo psíquico subsequente visaria especificamente o investimento dessa representação (Simanke, & Caropreso, 2005; Caropreso, 2010). Não havendo nenhuma inibição por parte do eu, o investimento da representação do objeto de satisfação seria intenso o suficiente para produzir signos de qualidade em ômega e possibilitar a consciência dessa representação. Acrescentemos a esse cenário o fato de que uma ação reflexa (ex. a sucção) seria desencadeada, e teremos o seguinte resultado: o aparelho sucumbiu no engodo da alucinação (Caropreso, 2010). A saída para essa dificuldade, de acordo com Freud (1992/1950[1895]), consistiria na inibição do processo primário que, no lugar de produzir uma modificação sobre a realidade, resume-se a uma tentativa de alterar a experiência de desprazer pelo caminho melhor facilitado. Essa solução implicaria na introdução do processo secundário, de forma que o investimento sobre a representação subjacente ao desejo não fosse tão intenso, possibilitando ao eu as condições para distinguir uma rememoração de uma percepção. Como consequência dessa distinção, os signos de qualidade originados em ômega deixariam de ser fornecidos quando da ausência do objeto na realidade, e quando surgissem funcionariam como um aviso de que o objeto desejado está presente, e que os movimentos reflexos necessários para a obtenção da satisfação podem ser realizados com êxito (Caropreso, 2010).

O exame dessas questões desvela o seguinte aspecto: embora a inibição seja capaz de impedir que o aparelho incorra no engodo da alucinação, isso não quer dizer que o eu seja necessariamente capaz de anular uma fonte endógena de excitação. Fato é que ele permanece dependente da ação específica, cuja realização e objeto de satisfação determinam-se no olhar do "individuo experimentado" (Freud, 1992/1950[1895]) sobre a descarga motora que se apresenta diante dele. Logo, a condição de insuficiência orgânica experimentada pelo eu não se encontra dissociada dos efeitos da projeção realizada pelo adulto sobre o que ele supõe estar sendo demandado pelo bebê. Pelo contrário, essa experiência é atravessada pela significação que o primeiro sustenta em relação ao segundo e que se concretiza na realização da ação específica que, ao conferir os contornos da experiência de satisfação, constitui as condições de possibilidade para uma possível conformação dos circuitos pulsionais do bebê. Nesse cenário, o que nos autoriza a caracterizar essa condição de insuficiência orgânica experimentada pelo eu como um estado de desamparo são os próprios recursos simbólicos que se inserem no contexto da comunicação (Verständigung) estabelecida entre o adulto e o bebê. Não se trata de dizer que ele, o bebê, é desamparado porque se encontra privado de fontes de alimentação químicas ou físicas, mas de situar a possibilidade do desamparo na vivência de um eu que, apesar de incipiente, experimenta esse estado de insuficiência orgânica a partir daquilo que o adulto significa como desamparo.

Isso posto, talvez possamos pensar o desamparo como uma experiência que somente ao endereçar-se para uma outra pessoa assume sua forma propriamente dita, ainda que esse endereçamento padeça de algumas complexidades. Faz-se necessário considerar que a demanda em questão pode ser atendida, mas também pode não o ser; pode ser insuficientemente atendida, ou excessivamente atendida. Afinal, o que queremos com essas derivações? Situar que, na qualidade dessa resposta pode residir o elemento determinante sobre as conduções da excitabilidade endógena, quando da reincidência do estado de carência sobre o aparelho neuronal. Não obstante o caráter rústico dessas considerações, elas respondem a uma interrogação que deixamos em aberto. Queríamos saber se a experiência oriunda dos estados de carênciaambém seria um aspecto estruturante do funcionamento do aparelho psíquico. Na esteira do desamparo, ela é. Se o psiquismo está fadado a constituir-se na relação com o outro, essa experiência primária de comunicação (Verständigung) parece demarcar a forma com a qual, doravante, o aparelho psíquico irá lidar não apenas com a repetição dos estados de carência orgânica, mas também com a significação de desamparo decorrente deles.

Ao evidenciar a centralidade da relação entre imaturidade orgânica e desamparo para a constituição psíquica, essas reflexões ressaltam dois modos antagônicos de compreensão dessa relação: por um lado, pode-se pensar numa equivalência entre imaturidade orgânica e desamparo, sendo esse fato do desprovimento biológico o disparador da estruturação do eu. Por outro, o argumento seria o de uma distinção entre imaturidade orgânica e desamparo, sendo o eu uma espécie de mediador e impulsionador da transição entre imaturidade e desamparo. É precisamente o problema da vinculação entre o somático e o psíquico que se encontra em relevo, e cuja resolução gira em torno do lugar conferido ao eu nesse enlace.

O argumento em favor de uma diferença entre imaturidade orgânica e desamparo traria como pressuposto básico a ideia de que o eu funciona como um vetor de passagem entre uma condição e outra, subordinando a existência do desamparo, bem como as significações dos processos somáticos às suas experiências. Ao que parece, essa passagem compreende uma separação radical entre um estado e outro, supondo a organização do eu como precedente a ela, cujas condições de possibilidade determinar-se-iam na dependência das ações dessa organização. Do contrário, como seria possível para o bebê saber que o mal-estar da fome, que implica o enlace entre a nomeação e a necessidade, é "seu mal-estar"? E, em última instância, o que justificaria o desencadeamento de respostas reflexas como o choro, o grito e a agitação motora sem que houvesse uma integração mínima das sensações? Essa premissa nos conduziria à hipótese de um eu-corporal, ou melhor, de uma tendência do organismo humano a promover operações de síntese; no sentido de que as impressões que chegam ao bebê são consideradas como dizendo respeito a ele próprio. Para além da representação da superfície do aparelho psíquico, o eu configuraria, portanto, a projeção psíquica da superfície do corpo (Freud, 1992/1923[1922]).

Já no que diz respeito à equivalência entre imaturidade orgânica e desamparo, essa perspectiva considera que a imaturidade, que parece ser nesse caso um quase-sinônimo de desamparo, e o impulso fundamental à constituição do eu, uma espécie de disparador da dimensão relacional na qual estamos inseridos desde o nascimento. A equivalência com o desamparo, como noção elaborada de nossa indigência existencial, implica em uma distância cujo percurso requer uma análise mais apurada dos usos de Freud desse termo.

Mais do que duas formas de apresentação do estatuto do eu na regulação dos processos psíquicos, esse é um debate que coloca em relevo a própria questão de fundo do "Projeto...", qual seja, a de que o aparelho psíquico estrutura seu funcionamento no reconhecimento da própria insuficiência. Se por um lado fica-se com a impressão de que o eu é uma espécie de epifenômeno do movimento orgânico por outro temos o problema maior de se considerar um eu primitivo, uma tendência originária à síntese aperceptiva. Tanto a ideia de que a instância do eu seria precursora de processos que são possíveis apenas em virtude de suas ações, quanto a concepção de que essa instância resulta de processos que precedem à sua organização, compartilham de insuficiências que demandam, sobretudo, uma análise mais pormenorizada do uso da noção de desamparo na obra freudiana. Caracterizar-se-ia, assim, um modo de organização dos processos psíquicos que, por ser marcado pela carência de um objeto cujos contornos determinam-se na ação específica do "individuo experimentado" (Freud, 1992/1950[1895]), fere o triunfo narcísico expresso na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do eu.

 

 

Referências

Bertanha, V. B. (2006). O papel do eu no início da metapsicologia freudiana. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.         [ Links ]

Caropreso, F. (2010). Freud e a natureza do psíquico. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

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Simanke, R. T., & Caropreso, F. (2005). O conceito de consciência no P rojeto de uma Psicologia de Freud e suas implicações metapsicológicas. Trans/Form/Ação, São Paulo, 28(1), 85-108. Recuperado em 07 set. 2017 de <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732005000100005>         [ Links ].

 

Artigo recebido em: 04/05/2018
Aprovado para publicação em: 14/05/2019

Endereço para correspondência
Jéssica Baêta de Azevêdo Carvalho
E-mail: jessica_baeta2@hotmail.com
Rodrigo Barros Gewehr
E-mail: rodrigo.gewehr@ip.ufal.br

 

 

*Graduada em Psicologia e mestranda em filosofia pela Universidade Federal de Alagoas.
**Professor do Instituto de Psicologia e do mestrado em filosofia da Universidade Federal de Alagoas.
1Recentemente, a Companhia das Letras publicou, em português, uma tradução das Obras Completas de Sigmund Freud diretamente do alemão. Dentre os volumes publicados até o momento, contudo, o volume referente às Publicações pré-psicanalíticas, que contempla o texto objeto de investigação do presente artigo, ainda não se encontra disponível. Em virtude disso, priorizamos a utilização da edição em espanhol das obras de Freud publicadas pela Amorrortu Editores, em virtude de ela também ser uma tradução direta do alemão. Para maiores discussões a respeito das questões relativas à tradução das obras de Freud, remetemos aos trabalhos de Hanns (2004) e Fuks (2011).

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