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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.51 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

 

RESENHA

 

Entre a estética do grito e a ética do cuidado

 

 

Guilherme Bernardes Petronzio

Endereço para correspondência

 

 

Resenha: Ecos do silêncio - Reverberações do traumatismo sexual. C. P. França (Org.). São Paulo, Bluchet, 2017. 248p.

 

Espera-se normalmente que uma resenha aborde desde o seu início os elementos temáticos apresentados em um livro como autoria, contexto de publicação e relevância, no entanto urgem aspectos mais essenciais. A primeira constatação a se fazer é a de que o silêncio antecede o universo do discurso. As palavras se escondem diante da primazia da concretude do livro, pois a primeira relação que estabelecemos com ele é de ordem sensual-estética, permanecendo o protocolo de leitura intermediado pelo gosto e apreciação sensorial da sua forma: quando o encontramos na estante, avaliamos suas cores, textura, tamanho, peso e fragrância.

Abrimos as páginas, chegamos a ler algumas partes, no entanto o nariz e os olhos passam pelas páginas, um buscando a velha novidade e o outro a disposição textual. Pouco importam as notícias que se façam em torno dele ou indicações quanto ao conteúdo, tais coisas nos fazem comprá-lo como objeto ou ideia, mas são insuficientes para dizer sobre sua permanência em nossas mãos ou mesmo da sua pregnância no tempo. Costuma-se dizer, por exemplo, que o bom livro começa pela capa, tomando essa verdade descrita acima. Há divergências e convergências quanto a isso no que diz respeito ao mercado editorial e o público leitor.

Sabemos de longa data que tal constatação não é segura, pois existiram capas belas para histórias terrivelmente mal escritas e existiram capas pessimamente apresentadas mas que guardaram clássicos e histórias de alto valor social e cultural. Outra categoria surge quando tratamos daqueles livros que confirmam a tese editorial e nessa categoria incluímos Ecos do silêncio - Reverberações do traumatismo sexual.

 

Uma capa ilustrada com carinho é bastante significativa

Tal livro adequa-se em coerência e coesão entre aspectos visuais-temáticos-formais, a começar pela capa que traz o título "Ecos do silêncio" centralizado e em evidência; mas o que realmente se destaca é a ilustração abaixo do mesmo, representando o conteúdo proposto. Trata-se de uma figura feminina cabisbaixa cuja vestimenta avermelhada contrasta com o azul claro do fundo. Ao que tudo indica, o vermelho aquarelado é a cor do sangue, a marca deixada pela violência, ou, por outro lado, o sangue que também é marca da vitalidade, sinal de algo que ainda corre nas veias e em que se pode vislumbrar esperança. A menina/mulher, não se sabe ao certo, segura um fio que a prende e acompanha. O objeto amarrado a esse fio só nos é revelado quando viramos o livro, ou o abrimos por inteiro sobre a mesa (Não é assim que entendemos o trauma, revelando o lado oculto?).

A representação se parece com a de um ovo quebrado, ou um balão estourado e fotografado no momento exato da implosão (o momento do evento traumático). Se se vê o ovo, imagina-se o mito da criação, a origem das coisas. Se se vê o balão, imagina-se o artigo de festas, belo por fora, "vazio" por dentro. Uma terceira interpretação possível é a do balão-ovo, como em determinada pintura de Salvador Dalí, trazendo a mensagem de uma experiência originária fragmentada e vazia que persiste ligada à figura feminina desenhada na frente do livro e que acompanha o seu caminhar melancólico, pleno de resignação, vergonha e culpa.

A vontade que temos ao vê-la é de cortarmos a linha presa a sua mão ou de juntar as partes do balão-ovo no caso da impossibilidade da primeira. Porém nos questionamos: o que fazer diante de tanto sofrimento aprisionador? Poder-se-ia tomar tais medidas por nós mesmos ou ela as fará no momento oportuno? O livro inteiro presta-se a responder tais perguntas.

 

Mas a epígrafe do livro já diz tudo...

Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas,
atapetam o ar. Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas
e mais perigosas. É assim então o teu segredo. Teu segredo é
tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei.
E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu.
(Teu segredo, Clarice Lispector)

 

A autora optou por omitir trechos da prosa de Clarice Lispector ao utilizá-la como epígrafe do livro. A utilização integral, como colocada acima, não comprometeria o sentido almejado, pelo contrário o complementaria. Mas, pela forma como já está, dando abertura ao livro, foi um achado extraordinário, com total pertinência e precisão, convidando a reflexões teóricas diversas ora kleinianas, ora laplanchianas, entre outros tantos que são convocados nesse breve período lispectoriano. O livro como um todo é a cara da expressão existencial dessa importante escritora brasileira, mulher de diferentes fases e que deu contribuições inestimáveis para a compreensão do ser humano e seu mal-estar, ainda que pelo viés da literatura, aparentemente "ficcional".

Desde a remota infância Clarice foi vítima de violências que deixaram marcas profundas na sua forma de se relacionar, compreender o mundo e exercer suas atividades cotidianas de jornalista e escritora. A epígrafe certamente incorpora o espírito da experiência dessa autora, essencialmente sublime, órfã de pais judeus pobres e desgraçados pela guerra, confortavelmente exilada porém sempre estrangeira no Brasil, intelectual itinerante, refém dos ataques de ciúme do marido, mãe de um filho esquizofrênico, chamada de louca ao incendiar acidentalmente a própria casa enquanto dormia, chamada de bruxa e morta por um câncer de ovário descoberto tardiamente.

Diante da observação atenta da natureza, essa mulher, através do olhar lírico para a realidade, percebe que esta paradoxalmente aproxima a beleza da devastação, o amor, da destruição, o enigmático, da revelação entre outros tantos desígnios angustiantes e contraditórios. Flores envenenadas na jarra são nossos aspectos psíquicos preciosos e frágeis de alguma forma contaminados pela presença de um outro ainda que firmados em lugar seguro. A criança violentada no seio familiar é a flor envenenada na jarra, conteúdo em continente tóxico. Roxas azuis, ou púrpuras como o sangue venoso que carrega os dejetos do organismo seu e das trocas externas, agora internas, encobrindo o que está acima da pele, vida sufocada pelo determinismo biológico.

A casa é o hospital, residência da doença e da morte, que permite o passivo e permanente convívio com ela, convencionado socioculturalmente. A experiência sublime é fascinante porém tremenda, sabem perfeitamente os poetas e filósofos da estética, mas é a ética que emerge quando se fala do perigo. Perigo do desamor ou falso amor que circula como enigma entre os próximos, amor-paixão que machuca e destrói. Sabe bem ela o que se passa dentro de si, foi colocado, foi roubado, foi usado, à revelia dos mais fortes, é a dureza da jarra. Mas o absurdo disso tudo, mesmo na consciência, é aceitar (engolir em silêncio) o incompreensível do mundo, mundo de puro mistério. Clarice Lispector gritou enquanto pode, mas residia no silêncio introspectivo sua maior fonte criativa em meio ao desespero da existência.

 

De Clarice para Lara, Malena, Lucía, José e outras crianças

Ecos do silêncio incorporado à alma de Clarice Lispector certamente foi dedicado a essas crianças entre outros inúmeros casos clínicos em que o bloqueio da capacidade de associar livremente e a dificuldade de fantasiar podem ser evidências de uma infância devastada por traumatismos sexuais. Casos nos quais a atividade do analista é constantemente desafiada, chamando ora sua curiosidade para compreensão do movimento contratransferencial, ora provocando uma frustração e consequente desenvestimento do processo analítico.

O tratamento com essas crianças demonstrou que a catarse do momento analítico não basta, sendo necessário que se retire o excesso do estranho, reconectem-se as representações afetivas às ideativas, pois "A criança abusada é como um cartucho repleto de culpas prestes a implodir" (p. 23), e sem o cuidado ou manejo adequado pode trazer consequências devastadoras.

 

Pelo constante cuidado com as palavras

Se há uma mensagem central dada pelo livro é a de que devemos contemplar o sublime por trás da (im)possibilidade do grito ao mesmo tempo cultivar a ética do cuidado, uma ética que luta contra o desmentido sabendo que se trata da negação, descrédito ou ridicularização da realidade do abuso por parte do adulto que gera desamparo, culpa e incapacidade de simbolização da experiência de sofrimento. A solidão e a submissão são comuns nesses casos (p. 176) e a ausência do acolhimento (falta do testemunho) é tão devastadora quanto a violência sexual em si. A revelação do fato é insuficiente e a imposição de valores sociais tais como justiça e proteção são inadequados, pois a criança ainda carece de elementos para compreendê-los.

Que saibamos, assim como Clarice, cuidar das palavras e assim também cuidar das pessoas. Ela transformou o sofrimento em criatividade, as dificuldades em inspiração literária e a felicidade em beleza lírica. O psicanalista deve, da mesma forma que se presta a pintar o quadro das crianças abusadas, com a sutileza própria da expressão poética, com a mesma delicadeza simbólica da capa do livro, fazer transitar os objetos bons e, através das incertezas, navegar com as crianças no oceano do amor verdadeiro.

Endereço para correspondência
Guilherme Bernardes Petronzio
E-mail: guibernardespsi@gmail.com

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