SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52 issue1The exercise of the Maternal Function and the woman semblant on Lacan's sexuation table author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2020

 

ARTIGOS

 

Para além da fantasia - Contribuições psicanalíticas para o tratamento possível das psicoses no hospital-dia

 

Beyond the phantasy - Psychoanalytical contributions to the possible treatment on psychoses in a Day Hospital

 

Más allá de la fantasía - Contribuciones del Psicoanálisis al tratamiento posible de psicosis en el Hospital-de-Día

 

 

Luiz Octávio Martins StaudtI*; Marta Regina de Leão D'AgordI**

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pode-se afirmar que, ao longo de uma considerável parte da história da Psicanálise, a operacionalidade da transferência na psicose esteve questionada. Em sua época, Freud considerou que com a Psicanálise se podia entender muito melhor as psicoses, mas que não haveria como tratá-las. Ainda que Lacan, a partir de seu ensino, tenha legado operadores que permitem que o psicanalista possa melhor se situar nas especificidades dessa clínica tão delicada, resta perceptível que a questão da transferência na psicose se afigura ainda hoje como problemática em termos teóricos, ensejando discordâncias e questionamentos.

Nesse contexto, os autores consideraram indispensável uma investigação que pudesse delimitar as especificidades da transferência em sujeitos estruturados pela via da psicose, delineando certos aspectos da posição do analista em relação ao sujeito psicótico e às possibilidades de intervenção desde o lugar a ele destinado.

Assim, partindo da experiência de um dos autores em um hospital-dia, cujos dispositivos estão pensados para a facilitação do estabelecimento das condições de escuta para os sujeitos psicóticos, busca-se consolidar a sustentação teórica de tal práxis com base na contribuição de psicanalistas como José Zuberman e Jean Oury sobre o tema, problematizando as tensões entre o singular e o coletivo inerentes a uma clínica diferencial tendente à inclusão da instituição e à inclusão de "pequenos outros" no delineamento dos respectivos tratamentos possíveis.

Palavras-chave: transferência, psicose, hospital-dia, instituição.


ABSTRACT

One can affirm that, over a substantial part of Psychoanalysis History, the functionality of the transference on psychoses has been questioned. In his days, Freud has considered that by means of Psychoanalysis one could better understand the psychoses, but there was no possible treating. Although Lacan, through his teaching, had bequeathed operators that allow the psychoanalyst to better locate on the particularities of a such challenging clinics, it's still evident that the matter concerning the transference on psychoses remains, even today, as a problematic issue in theorical terms, entailing disagreements and questionings.

In this context, the authors have considered imperative an investigation capable of delimiting the specificities of the transference on subjects structured by psychoses, delineating certain aspects on the analists' position regarding to the psychotic subject and the possibilities of intervention from his fated place.

Thereby, from the experience of one of the authors in a Day Hospital, whose devices are conceived to facilitate the setting up of listening conditions to psychotic subjects, it's intended to consolidate the theorical basis of such practice taking into consideration the contribution of psychoanalysts, such as José Zuberman and Jean Oury about the matter, looking over the tensions between the singular and the collective inherent in a differential clinics inclined to the inclusion of the institution and to the inclusion of "others" on the delineation of the respective possible treatments.

Keywords: transference, psychosis, day hospital, institution.


RESUMEN

Se puede afirmar que a lo largo de una considerable parte de la historia del Psicoanálisis, la operacionalidad de la transferencia en la psicosis estuvo cuestionada. En su época, Freud ha considerado que con el Psicoanálisis uno podría entender mucho mejor las psicosis, pero no habría manera de tratarlas. Aunque Lacan, desde su enseñanza, haya legado operadores que permiten al psicoanalista mejor ubicarse respecto de las especificidades de esta clínica tan delicada, sigue notable que la cuestión de la transferencia en la psicosis aun hoy es considerada problemática en términos teóricos, dando lugar a desacuerdos y cuestionamientos.

En este contexto, los autores consideran indispensable una investigación que pueda delimitar las especificidades de la transferencia en sujetos estructurados por la vía de la psicosis, contornando ciertos aspectos de la posición del analista respecto del sujeto psicótico y las posibilidades de intervención desde el lugar a él determinado.

Entonces, desde la experiencia de uno de los autores en un hospital-de-día, cuyos dispositivos están hechos para facilitar el establecimiento de las condiciones de escucha hacia los sujetos psicóticos, se busca consolidar la sustentación teórica de esta práctica a partir de la contribución de psicoanalistas como José Zuberman y Jean Oury respecto de la materia, problematizando las tensiones entre singular y colectivo inherentes a una clínica diferencial que tiene una tendencia a la inclusión de la institución y a la inclusión de "pequeños otros" en el establecimiento de los respectivos tratamientos posibles.

Palabras clave: transferencia, psicosis, hospital-de-día, institución.


 

 

Introdução

Desde os primórdios da Psicanálise, o tratamento de pacientes psicóticos tem se afigurado desafiante para os analistas que a ele se dispõem, tendo havido número considerável de autores que teceram diferentes concepções a respeito das possíveis abordagens terapêuticas em relação à estrutura psicótica. Ainda que não possamos afirmar que a transferência de sujeitos assim estruturados tenha tido em algum momento o estatuto de uma inexistência, a operacionalidade da transferência na psicose esteve seriamente questionada, inclusive pelo pai da Psicanálise ao longo de sua trajetória.

Em "Psiquiatria e psicanálise" (1916-1917/2006), Freud diz que com a Psicanálise podemos entender muito melhor a psicose, mas não podemos tratá-la. Segundo Freud, na psicose a representação de palavra funciona com a fixidez da representação de coisa, e diante da fixidez da representação de coisa seria impossível interpretar (1915/ 2006b). Ao amarem o delírio como a si mesmos (Freud, 1950/2006), os psicóticos dizem só o que querem dizer, à medida que "não podem ser compelidos a superar suas resistências internas" (1911/2006).

No livro Psicosis y psicoanálisis (1982/1985), Jacques-Alain Miller destacará a reticência com que Paul Federn publicou seus escritos, justamente por estar em desacordo com Freud, o que inibiu sua produção. Dirá Miller (1982/1985, p. 21) que "enquanto este (Freud) considerava que a libido refluía sobre o eu na paranoia, a tese de Federn, pelo contrário, era que o eu na esquizofrenia e nas psicoses se empobrecia de libido".

Freud (1912/2006) desvelou, nos fenômenos da transferência, a função de tornar manifestos os impulsos eróticos ocultos do paciente. Lacan (1955-1956/1985, p. 142) relê o fenômeno da transferência como "a atualização da realidade do inconsciente" e propõe um passo lógico para o conceito de transferência: por trás do amor de transferência estaria a afirmação do liame do desejo do analista ao desejo do paciente. Para Lacan, a transferência requer ser situada como o desejo do paciente no seu encontro com o desejo do analista (Lacan, 1955-1956/1985, p. 240). Tomando essa consideração ao liame, pensamos as intervenções não apenas com os pacientes, mas o trabalho de reunião de equipe e supervisões coletivas como fundamental para trabalhar esse liame, e mais adiante relacionaremos com o que Oury (2009) chamou de constelações.

Para Jean Allouch (1986), é no próprio desenvolvimento freudiano do conceito de transferência, e em simultaneidade com a elaboração do complexo de Édipo, que se exclui, por uma questão teórica, a existência de uma transferência psicótica:

Desde 1906 Freud afirma que não há na paranoia esta parte flutuante da libido da qual o psicanalista se utiliza para o tratamento da neurose. No caso da paranoia, devido à regressão ao auto-erotismo, não se encontra disponível: e então, pela falta desta transferência, a paranoia é psicanaliticamente incurável (Allouch, 1986, par. 10).

Não passou despercebido o caráter "altamente teórico" da afirmação freudiana a respeito da transferência (ou de sua inexistência) na psicose, motivo pelo qual Allouch (1986, par. 11) nos exorta à indagação: "Não seria esse para nós o reconhecimento mais palpável de sua especificidade?".

Freud teria dado o ensejo para o estabelecimento do estudo das neuroses como condição sine qua non para a compreensão das psicoses, ao dizer, segundo Allouch (1986, par. 12), que "se começa a compreender - sobretudo nos Estados Unidos - que somente o estudo psicanalítico das neuroses pode brindar a preparação para entender as psicoses, e que a psicanálise está convocada a possibilitar uma psiquiatria científica futura". Tal posicionamento freudiano, do ponto de vista de Allouch (1986, par. 14), teve por consequência que, "desde seus primeiros passos, a abordagem psicanalítica das psicoses esteve amplamente hipotecada".

Abordar as psicoses com os resultados obtidos do estudo analítico das neuroses seria como propor sua conquista armado de um certo número de considerações cuja questão operava em seu seio uma discriminação - algumas deverão ser revisadas, inclusive invalidadas, enquanto que se poderia apelar a outras para confirmar, sobre este novo terreno, seu alcance heurístico. Ainda assim, não se pode dizer que estas discriminações sempre tenham sido efetuadas (Allouch, 1986, par. 14).

As críticas afiadas de Jean Allouch em relação aos posicionamentos freudianos nos parecem válidas, à medida que concorrem para explicar o estatuto que o tratamento de sujeitos psicóticos teve ao longo da história da psicanálise, principalmente no pós-freudismo. No entanto, uma tal crítica parece desconsiderar que, se é verdade que Freud, a partir de suas asserções, não fechou as portas para uma possível apreensão deficitária, e em última instância mesmo preconceituosa em relação às psicoses que pudessem vir a se instalar, o investimento de Freud na compreensão dos fenômenos próprios à psicose, e mesmo num tratamento possível que aparentemente não teve as condições, à época, de se estabelecer, são visíveis ao longo de toda sua obra.

O "não analisável da psicose" não privou o analista, em sua ética, de investigá-la. Em suas pontuações sobre o caso Schreber (Freud, 1911/2006, p. 85), Freud situa o sujeito psicótico em relação ao saber e o escuta desde um lugar de "avalista" da teoria psicanalítica, pois afirma que poucas coisas se assemelham mais à sua teoria da libido do que as descrições de Schreber sobre os "raios de Deus". Para Freud, a indagação psicanalítica da paranoia seria impossível caso os doentes não possuíssem a peculiaridade de revelar, "ainda que de forma distorcida, é verdade" (Freud. 1911/2006, p. 21), justamente aquilo que os outros neuróticos escondem como segredo. Não podemos deixar de perceber que, por mais que Freud tenha afirmado a não instauração da transferência na psicose, a análise que ele faz do caso Schreber se faz desde o eixo transferencial, ao considerar a relação de Schreber com Flechsig.

 

A aposta dos kleinianos no tratamento das psicoses

Para Zuberman (2014), os kleinianos têm o mérito de terem sido os primeiros analistas que se dispuseram a formular uma clínica para as psicoses, tendo sido os pioneiros na sustentação de um trabalho psicanalítico em relação aos psicóticos. Alguns pacientes eram analisados, às vezes até mesmo seis vezes por semana, na tentativa de fazê-los ultrapassar a posição esquizo-paranoide para atingirem a posição depressiva básica, mas isso acabava por não ocorrer. Faziam isso justamente interpretando os pacientes, como se fosse possível passar a estruturá-los como neuróticos. No entanto, partiam de uma proposta de analisá-los como se fossem neuróticos, interpretando-os onde não se podia interpretar.

Em relação a essa questão, Lacan nos adverte em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses" (1966/1987), que não devemos gastar os pulmões remando na areia, à medida que com a psicose a interpretação não teria nenhum efeito. De fato, em relação aos sujeitos psicóticos, a interpretação muitas vezes se afigura como excesso, pois o psicótico é aquele que em sua tentativa de cura, ao menos na esquizofrenia, muitas vezes realizou o sobreinvestimento da representação de palavra para tentar lidar com uma "realidade" cada vez mais destituída da relação de objetos, sendo assim capaz de dizer claramente o que lhe ocorre, ainda que isso não o habilite no terreno simbólico, nem o inclua no discurso. Apesar disso, Zuberman (2014) reconhece que os kleinianos têm o mérito de terem sido os primeiros que se dispuseram a formular uma clínica para as psicoses.

 

O ensino de Lacan e o tratamento possível

Em relação ao campo das psicoses e à questão transferencial, Zuberman (2014) divide o ensino de Lacan em dois momentos. No primeiro momento, no qual dá toda a primazia ao Simbólico, Lacan (1995-1956/1992), toma o conceito freudiano de Verwerfung e o traduz por foraclusão, que é um termo jurídico que dá conta de algo que não pode nem ser mencionado devido à sua não inscrição na lei. Quando Lacan diferencia a Verwerfung da Verdrängung, delimita este corte como partindo de uma relação biunívoca entre estrutura e mecanismo de defesa. Lacan, assim, situa a Verwerfung pela ausência da inscrição do Nome-do-Pai, significante que ordena toda a cadeia significante. O sujeito assim estruturado seria incapaz de estabelecer transferência simbólica, o que significa que não haveria "Sujeito suposto Saber" na psicose. Não havendo a inscrição, isso retorna desde o Real: o excluído do Simbólico retorna no Real. Nesse primeiro momento, o ensino de Lacan, portanto, segue dando ensejo a uma apreensão deficitária dos sujeitos estruturados pela via da psicose.

Em um segundo momento, Zuberman (2014) destaca a novidade da operatória a partir do nó borromeu, quando Lacan passa a dar valor igual aos três registros - Real, Simbólico e Imaginário -, o que possibilita reposicionar a questão da transferência no campo psicanalítico. Ou seja, que terapeutas e pacientes estão, cada um a sua maneira, situados no entre Real, Simbólico e Imaginário. É a partir daí que se possibilitará pensar um tratamento possível das psicoses no hospital-dia, valorizando também a escuta dos diversos analistas de uma equipe a partir do que ressoa, neles, de seus encontros com determinado sujeito. O que está acontecendo com um determinado paciente é um insabido para a equipe. Assim a interpretação se fará presente nas reuniões de equipe. É preciso uma leitura mínima daquilo que não faz sentido (Real) para que se possibilite, na equipe, espaços de tolerância em relação ao insabido. Tais espaços deverão ser sustentados coletivamente, pelo que lançaremos mão de intervenções cuja materialidade se aproxima daquela dos signos. Pois estes permitem uma leitura coletiva, limitando o eu de cada participante e favorecendo uma matriz simbólica compartilhada, cujo objetivo é prevenir as precipitações imaginárias dos diferentes membros da equipe para com o paciente. Essa é a mediação simbólica que equivaleria às reiteradas substituições do eu ideal pelo ideal do eu.

Para Zanchettin (2014), já a partir do Seminário 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959/2016), no qual Lacan formula que "não há Outro do Outro", deveríamos pensar retroativamente a concepção de Nome-do-Pai, pois Lacan passa de um enquadre teórico desde o qual situa uma falta contingente na estrutura (a falta do significante Nome-do-Pai) a uma concepção da estrutura em que a falta não é contingente, mas estrutural: não pode não ocorrer. De acordo com essa nova perspectiva teórica, não há estrutura, como estrutura do sujeito, sem essa falta. A autora defende que "é a definição mesma do sujeito em relação com o Outro que habilita a transferência, reservadas as particularidades de cada configuração psíquica" (Zanchettin, 2014, p. 237). Considera, portanto, a transferência como transclínica, assim como alguns outros conceitos psicanalíticos, pontuando como fundamental o desenvolvimento lacaniano da transferência em termos de disparidade subjetiva.

Tal teorização encontra guarida nas teorizações de Jean Allouch (1986/2015), se formos considerar a afirmação de que "há uma homologia entre a posição do analista e a posição do psicótico em relação à sustentação de um lugar do saber" (par. 98). É claro que, diante dos aspectos estruturais, temos que considerar que o analista sustentará o lugar de saber ao sustentar o semblante do discurso, enquanto que o psicótico estará completamente "identificado" a este lugar.

Lembremos o diálogo entre Lacan e Jacques-Alain Miller em "Abertura da seção clínica" (1977/1992):

vJ. L. - La paranoia, quiero decir la psicosis, es para Freud absolutamente fundamental. La psicosis, es aquello delante lo cual un analista, no debe recular en ningún caso.
J.-A. M. - ¿Es que acaso en la paranoia, el significante representa al sujeto para otro significante?
J. L. - En la paranoia, el significante representa un sujeto para otro significante.
J.-A. M. - ¿Y usted puede situar allí "fading", objeto a...?
J. L. - Exactamente. (Lacan, 1977/1992, p. 20).

Esse diálogo indica que foi o próprio Lacan quem sustentou o caráter transclínico de diversos conceitos psicanalíticos, ainda que tal termo nunca tenha sido utilizado por ele. Como afirma Jean Oury (2009), não se pode falar de transferência sem se falar de objeto "a", sem o qual estamos falando somente de inter-relações. Assim, a afirmação de Lacan nos permitirá pensar a transferência na psicose e suas especificidades.

 

Contribuições de Zuberman na consolidação do hospital-dia

Como já demonstrado, consideramos o tema da transferência como fundamental para embasar nossas reflexões, posto que é justamente a instauração da transferência, ou transferências - se as considerarmos no âmbito da equipe - que definirá que um tratamento possível está se dando também a partir da Psicanálise, e não somente a partir de outras apreensões teóricas que constituem o trabalho interdisciplinar a que a estrutura psicótica convoca.

Assim, para José Zuberman (2014), quando há Sujeito suposto Saber (no caso da neurose), um só corpo, um só analista pode sustentar uma análise, à medida que pode representar o pai, a mãe, a boca, a matéria fecal, qualquer coisa, pois se está no campo da representação. No entanto, onde não há Sujeito suposto Saber, quando o Nome-do-Pai está forcluído, essa função não opera. O neurótico seria aquele que teria a possibilidade de fazer da letra portada uma letra lida, situando essa leitura como "enlaçamento dos significantes singulares de um sujeito ao Real da letra". O que seria a letra portada? Dirá Zuberman (2014, p. 193) que "a letra portada é a letra que o Outro escreve em nós". O psicótico, por outro lado, seria aquele que não tem nenhuma possibilidade de ler o que o Outro escreveu nele. "Schreber não pôde interrogar-se por que Deus o transformou em mulher. No lugar onde o significante funciona com a fixidez da letra, não há pergunta" (Zuberman, 2014, p. 193).

Portanto, a partir dessas leituras, divisamos que Zuberman questiona, no caso de sujeitos estruturados por uma via psicótica, que possa haver um tratamento sustentado por um só; porém sustenta que pode haver uma equipe que possa pensar o caso, interpretá-lo analiticamente e operar no Real, sendo esse um dos desafios de nosso trabalho cotidiano, por que não dizer, de nossa pesquisa cotidiana no hospital-dia.

Isso não quer dizer que não haja um terapeuta que possa ter um lugar diferenciado para a equipe em relação a determinado paciente, e possivelmente para o próprio paciente, um terapeuta de referência, cuja responsabilidade se dará mais em relação à apuração do que vem ocorrendo na "constelação" do paciente, bem como à inclusão de outros, de dentro da equipe e de fora dela, para a promoção do tratamento, assim com facilitações do Outro social para possíveis outras inclusões.

Como exemplo dessas intervenções possíveis, Zuberman (2014, p. 169) descreve o atendimento a um rapaz que se dizia autista. Tal sujeito, questionado sobre o que isso significava, respondia tão somente: "Não sei. Disseram-me que sou autista e que viesse me tratar aqui". Ao trabalhar com o paciente "sem questioná-lo e sem interpretá-lo", percebeu que esse rapaz falava muito de carros e motores. Pelo barulho dos motores, já sabia se se tratava de um Chevrolet, ou de um Citroën. Com o tempo, Zuberman lhe propõe que ele era autista porque sabia muito de carros, saber pelo qual ele foi montando o seu lugar de autista na garagem da quadra, transformando-se naquele que guardava os carros, ganhando aos poucos um lugar de muita confiança.

Zuberman (2014) dirá, a partir desse exemplo, que foi possível preparar, para esse sujeito, um "lugar no Real", o que serviu para montar o que Lacan chamaria de seu sinthoma: um lugar no Real que lhe permite ocupar um lugar no mundo sob essa palavra. No entanto, o autor aponta os limites de tal intervenção: "Se algum dia essa garagem fechar, ele vai para um manicômio" (Zuberman, 2014, p. 188). Esse apontamento nos parece importante, à medida que a partir dele o autor demonstra as especificidades e os limites de alguns dos tratamentos com sujeitos psicóticos, que em geral têm a característica da indispensabilidade de certos suportes (a literalidade do auto na leitura de "autista") para a sustentação de uma estabilidade. Novas invenções tão estabilizadoras como essa podem ou não acontecer.

Assim, pode-se afirmar que no caso da estrutura psicótica estaria colocada uma tendência à infinitização do tratamento. Mas a angústia de encarnar para sempre uma presença terapêutica para o paciente, acontece, como observa Calligaris (1989, p. 104), quando os psicanalistas esperam que o paciente construa uma metáfora, como se o recalque estivesse operando onde uma injunção já desencadeou uma crise.

A garantia de uma perenidade inicial pela inclusão da instituição, de outros, é antes um tratamento que o próprio analista deve dar ao impacto de um tal enlace transferencial sobre si, cujas consequências, na ausência de um tal tratamento, costumam ser aquelas da precipitação de atos por parte do inconsciente do analista (Pommier, 1997, p. 37) e de uma muito provável resistência que inviabilizaria a escuta.

Retomando as contribuições de Zuberman (2014) sobre a questão da transferência na psicose, ele relata que no Hospital-Dia do "Centro de Salud Mental Nº3, Dr. Arturo Ameghino", escutou pacientes psicóticos dizerem: "Com este doutor não quero falar, mas com esta psicóloga, sim" (Zuberman, 2014, p. 177). Portanto, haveria algo que não é da ordem do Simbólico, mas que lhes permite dizer: "Este sim e este não". "A esta instituição, sim; a esta instituição, não" (Zuberman, 2014, p. 177). Como isso não está simbolizado, Zuberman (2014) dirá que em alguns momentos poderemos chegar a entender de que se trata, mas que enquanto não entendemos temos que "constatar como algo que se produz" (Zuberman, 2014, p. 177). Em um desses casos, dirá que o paciente vinha "porque o Hospital-Dia lhe dava confiança" e que, quando se refere à transferência, se refere também a algo da dimensão da confiança, mas que esse não é um assunto resolvido. Não seria simbólica a transferência, "mas algum registro de transferência há". De acordo com Zuberman, se a tomamos como imaginária, isso também não aportaria muitas coisas, visto que na psicose há uma queda do imaginário; por essa e outras, exorta o seu leitor a seguir trabalhando esse ponto.

Temos como fato clínico, que a "inclusão de outros" no tratamento possível das psicoses não tem um ponto de partida pré-determinado, podendo ser tanto uma iniciativa do analista como forma de lidar com o índice da transferência de um determinado paciente, o que é tecnicamente recomendado, quanto uma iniciativa do próprio paciente a partir de sua relação com o Outro.

No caso da "inclusão de outros" por parte do paciente, isto é, quando este, por uma especificidade do laço transferencial que convoca ou propõe - e pela já exposta impossibilidade de que um só analista possa sustentar uma análise com este tipo de sujeito - se dirigir a diferentes pessoas em diferentes dispositivos, se afigurará como indispensável ao terapeuta de referência e aos demais membros da equipe que lancem mão das facilitações disponibilizadas pelo hospital-dia.

O hospital-dia tem justamente o objetivo de possibilitar o movimento transferencial ao qual agora nos referimos, à medida que propõe a presença de diversos "analistas" em potencial para os pacientes que tendem a precisar de uma certa variedade de pessoas e de uma certa variedade de dispositivos que sirvam como suportes imaginários para possíveis enunciações.

Ao mesmo tempo, ao disponibilizar tais suportes, é indispensável que haja uma comunicação efetiva dentro da equipe, seja a partir da utilização de instâncias formais como reuniões de equipe, seja a partir de movimentos espontâneos, como a formação de comissões ad hoc entre os diferentes "analistas" que compõem aquele espaço, de modo a possibilitar uma leitura em equipe dessas distintas enunciações dos sujeitos, realizar uma interpretação que se sustente em uma apreensão coletiva, e a partir daí traçar estratégias de intervenção em equipe que tenham como efeito a inauguração, manutenção ou desimpedimento de "espaços do dizer" (Oury, 2009, p. 115). É essa comunicação que possibilitará aquilo que Zuberman (2014, p. 166) propõe como " uma equipe que possa pensar o caso, interpretá-lo analiticamente e operar no Real".

Porém o que garantirá que essa "comunicação" seja efetiva? O que possibilitará que os diferentes dispositivos, com seus distintos arcabouços imaginários, sejam eficazes no tratamento das psicoses?

Sem dúvida no hospital-dia temos uma estrutura instituída. Há um tempo e um espaço destinado a certos dispositivos que se convencionou constituir. Oficinas Terapêuticas, locais de convívio, apresentações clínicas de pacientes, atendimentos individuais, supervisões, interconsultas, eventos e festas, reuniões entre terapeutas e entre instituições. Há regras, algumas formalizadas, outras nem tanto: "Só participa do hospital-dia quem se dispõe e quem pode vir às reuniões". "Os pacientes são pacientes do hospital-dia, não de um determinado terapeuta".

Mas será esse arcabouço, essa estrutura instituída, o hospital-dia? A presença de um rigor, de uma coletividade de indivíduos com diferentes formações e trajetórias; será que isso garante alguma coisa?

Ao longo das pesquisas psicanalíticas que já pudemos realizar no âmbito do hospital-dia, mostraram-se de fundamental importância as contribuições do psicanalista francês Jean Oury no que tange ao tratamento possível das psicoses, posto que, a partir da leitura de um de seu livros, O coletivo, abriu-se para nós uma série de questões que devem ser consideradas se estivermos de fato dispostos a empreender tais tratamentos possíveis. Para que estes não sejam mera fantasia, dirá esse autor, será necessário que haja uma função que ele nomeia "coletivo" (Oury, 2009, p. 77).

 

Jean Oury e a função coletivo no hospital-dia

Enunciar meramente em termos teóricos o imperativo de que a comunicação deve ser efetiva entre os diferentes membros da equipe para que o tratamento a que nos dispomos seja eficaz seria desconsiderar o trabalho para a criação de uma "subjacência" (Oury, 2009, p. 157) que tornaria a efetividade dessas comunicações, estratégias e intervenções de fato possível. Segundo Oury (2009, p. 51), "No sentido de Lacan, pode-se dizer que a subjacência é o lugar do desejo". Seria, portanto, em nossa leitura, a manifestação de um certo clima produzido pela presença de sujeitos que não cederam de seus respectivos desejos. Um clima que, por isso mesmo, permite "que haja vida, simplesmente, e que ela não seja sufocada pelas tramas repressivas" (Oury, 2009, p. 73).

Sem dúvida, os diversos dispositivos do hospital-dia estarem constituídos da forma como se encontram hoje, o que será apresentado na próxima parte do artigo, é o legado do trabalho de inúmeros sujeitos que, ao tomarem para si a herança de Freud e Lacan, se dispuseram a não retroceder diante da "loucura", animados por uma ética que põe em questão o desejo. Ao considerarmos as contribuições de Jean Oury, este nos advertirá da sempre necessária delicadeza relativa ao trabalho a que nos dispomos, lembrando-nos da fragilidade das dimensões com as quais trabalhamos. Assim, ao levarmos em consideração o tema da "subjacência", destacamos que uma das principais ameaças destacadas por esse autor em relação à possibilidade de que algo de um discurso possa se manifestar é a ideologia (Oury, 2009, p. 116).

Mas como a ideologia ameaça o tratamento possível das psicoses? No Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan (1959-1960/2008) postula que Freud inaugura um campo ético, do qual sua clínica é testemunho, à medida que a realidade dos sintomas a ele se impôs. Não se haver furtado a trabalhar a partir disso, e a partir do que mais foi se revelando, eis o horizonte ético de Freud. Assim, diz Lacan, a diferença entre a ética tradicional, da qual Lacan cita Aristóteles, Kant e Sade como representantes (Lacan, 1959-1960/2008, p. 305), e a ética da psicanálise, inaugurada por Freud, é que a primeira, a ética tradicional, seria voltada ao ideal, enquanto que a segunda admitiria o Real. Cabe, assim, retomarmos a noção lacaniana de Real como aquilo que não cessa de não se inscrever. A ética psicanalitica, por admitir a suspensão dos sentidos e significações correntes, acolhe novas possibilidades de enunciação aos sujeitos. E é exatamente essa atitude, baseada numa ética que sustenta uma abertura ao incontrolável e imprevisível (Real), que, sustentada coletivamente por uma equipe, produzirá uma subjacência de abertura ao dizer que fará função.

Tais considerações de Lacan, ao traçar uma diferença fundamental entre a ética da psicanálise e as éticas que ele chama de tradicionais, voltadas ao ideal, serão indispensáveis para vislumbrarmos a direção apontada por Jean Oury ao colocar a ideologia como a principal ameaça ao trabalho a que nos dispomos. A seguir, veremos que todas as demais "ameaças" ao nosso trabalho têm origem solidária com a ideologia, os ideais e a idealização. Assim, poderemos perceber que todas as funções que a "máquina de tratar a alienação" - que Oury (2009, p. 39) chamou de "coletivo" - deverá ser capaz de operar dirão respeito também a uma capacidade mais ou menos efetiva de recolocar em questão o desejo, reinaugurando uma ética que admite o Real, no sentido de que há algo impossível de ser dito, mas cuja enunciação pode ser interpretada. Para Oury (2009, p. 31), "O coletivo deve ser algo que seja capaz de levar em conta e de não esmagar as dimensões da transferência, dimensões frágeis, mas de extrema importância".

Ainda no Seminário 7, Lacan (1959-1960/2008) esclarece que não há abstinência, mas sim um desejo trabalhado que se sobrepõe aos outros por sua força, que Lacan chamou de desejo do analista. É a partir desse seminário que Oury, ao lançar luz sobre algumas das questões imaginárias imanentes à organização social hierárquica do mundo do trabalho, os territorialismos, as vantagens, questões financeiras, salariais e titulações acadêmicas, será muito claro ao colocar que tais questões precisam ser agenciadas, mas que não são passíveis de serem suplantadas. Como ele mesmo diz, o Simbólico está aí para canalizar, pôr em prática, estruturar o Imaginário, que tende a resistir, enquistar-se e defender-se da ingerência do Simbólico (Oury, 2009, p. 215). Assim, não se trata aqui de suplantar o Imaginário, como não se trata lá de suplantar os ideais, à medida que estão estruturalmente colocados. Trata-se, sim, de que o desejo do analista seja forte o suficiente para ultrapassar os ideais e as vantagens imaginárias.

A instauração de uma "subjacência" propícia dependerá de uma liberdade de circulação que, para se tornar possível, por sua vez, necessita de uma transformação radical de tudo, de todas as relações, da hierarquia, da distribuição das tarefas, das funções, etc, o que pode provocar choques e conflitos no sentido do instituído, instituído no qual é função do "Coletivo" perceber sua implicação. Essa implicação, Oury a conceituará como "reversão", movimento que poderá evitar a projeção típica das paranoias institucionais, que têm sua raiz na assunção de incumbências ideais e, como consequência, um ceder do próprio desejo.

Mas como podemos conceituar de uma maneira suficientemente clara o que é o "coletivo" proposto por Jean Oury? Estivemos até o momento demonstrando a importância da "clínica entre vários" ou "prática clínica entre muitos" no tratamento possível das psicoses.

Jean Oury coincidirá com José Zuberman ao considerar que para tratar o paciente psicótico não seria a abordagem direta a mais eficaz, estando muito mais em questão para a adequada condução do tratamento o que se passa no plano da constelação de um determinado paciente. Por constelação o autor entende as pessoas que estão em relação com o paciente, como funcionários da instituição que ele frequenta, amigos e familiares, fazendo-os falar entre eles para que se possa escutar algo que diz do funcionamento psicótico no paciente. Oury se refere ao investimento da equipe nos dispositivos de tratamento instituídos, no nosso caso, as oficinas. Para Oury (2009, p. 74),

O que importa não é estabelecer relações diretas com um ou outro paciente, mas relações indiretas, levando em conta a estrutura coletiva e sistemas de 'mediação'. O clube, de modo geral e no detalhe, é uma estrutura de mediação na vida cotidiana; os investimentos que se fazem nos elementos do clube, na biblioteca, no bar, nas saídas, nas viagens, etc., esses investimentos parciais têm ainda mais eficácia se existe um circuito de troca constituído. No fim das contas, mesmo os doentes delirantes, reticentes, conseguem investir-se parcialmente, de um jeito mais ou menos neutro nos sistemas instaurados, os quais servem de suporte transferencial. O que permite decifrar e se orientar de um jeito mais rigoroso.

Tal posicionamento não leva em conta apenas o caráter múltiplo das transferências estabelecidas por um determinado paciente, no sentido estabelecido por Zuberman, mas também a tendência a transferências que designamos como maciças (Hermann, 2010), e produtoras de fenômenos como a folie à deux, a respeito do qual devemos estar devidamente advertidos. A multiplicidade e a heterogeneidade dos dispositivos e pessoas no âmbito do hospital-dia têm se demonstrado eficazes para a prevenção de tais situações. Todo o problema do Coletivo residirá, então, em quem pode ser a garantia para que esse "espaço do dizer" ou essa "passagem" sejam sempre possíveis, posto que não há "um" fiador. "Coletivamente, há um conjunto de pessoas que compartilham algo que é preciso definir, que permite o acesso a esta problemática do objeto 'a'. Uma lei, no entanto, é sempre necessária, a lei enquanto interstício. É ter acesso a uma certeza de ação em correlação com seu próprio desejo" (Oury, 2009, p. 119).

Para o coletivo operar é importante que alguns indivíduos compartilhem entre si algo de uma "evidência cognitiva" que possa fazê-los afirmar, ou decidir que algo "não é óbvio" (Oury, 2009, p. 96). Esse estatuto do "não óbvio", como veremos em seguida, é fundamental na conceituação do coletivo enquanto função, pois representará a capacidade de uma determinada coletividade em suspender as certezas imaginarizadas legadas por diferentes tecnocracias. Tal capacidade possibilitará romper, a partir dos respectivos desejos dos que formam um "coletivo", com a letra morta das recomendações tecnocráticas que pré-determinam, por exemplo, que não há nada a fazer por determinados sujeitos.

Fica claro, assim, que o coletivo é uma função a ser desempenhada por uma certa quantidade de indivíduos, não se devendo jamais confundi-lo com um grupo específico, "sempre os mesmos", pois, para Oury (2009, p. 143), "isso seria um 'microfascismo'".

Para Oury, se formos considerar a função que o coletivo deve ter em uma instituição, o perigo extremo está em que as pessoas deixem de se perguntar sobre os motivos de certos acontecimentos, de certos eventos institucionais, pois claramente a instalação de uma pergunta assim aponta na direção de uma tentativa de compreensão que rompe com o imediatismo das interpretações excessivamente imaginárias.

A função do Coletivo estaria na ordem de uma passagem do registro Imaginário ao registro Simbólico, o que exigirá uma estratégia e será feito por "reversão", e não por "transgressão". É aí que a função do falo simbólico, que se manifesta pelo processo de castração, pode ser posta (Oury, 2009, p. 107).

Para modificar um meio é necessária uma estrutura rigorosa, e é quando se põe em funcionamento tal rigor que se desencadeia o que Oury (2009, p. 102) destaca como "calúnia", tomando o ressentimento, esse "gozo extraordinário", como tentação base da paranoia institucional naqueles que acabam aderindo ao "isso é óbvio". Assim, tal "calúnia" não deveria ser tomada no sentido moral, mas como um fator protetivo para determinado grupo. Um grupo inventaria algo para "imaginarizar" (Oury, 2009, p. 103), num mecanismo de fobia, lançando mão da dialética do bode expiatório numa tentativa de proteger a entropia do grupo que se isolou e se homogeneizou. É claro que, de acordo com o que viemos trabalhando, tal situação de cisão dentro de uma determinada equipe poderia jogar por terra toda a possibilidade de empreendermos quaisquer atividades terapêuticas com pacientes psicóticos.

Até agora pudemos divisar a base das concepções de Jean Oury a respeito da função principal do coletivo: nada mais do que a domação e a passagem pelo crivo simbólico das tendências à entropia, ao enquistamento, ao isolamento, à homogeneização, etc, próprias ao registro imaginário. Ao longo de seu livro, O coletivo, Jean Oury vai nomeando uma série de outras funções a serem desempenhadas pelo "coletivo", todas, em nossa opinião, desdobramentos da função diacrítica possibilitada pela presença de um coletivo que se encontre minimamente funcional. Uma dessas funções, que consideramos como fundamental, é a função da decisão.

 

A decisão

Segundo Oury (2009, p. 32), a decisão de que é possível fazer algo por um determinado paciente, por parte da equipe, e desde que sustentada por um "coletivo", será o fator preponderante no tratamento possível. A sustentação desta decisão por um coletivo é importante à medida que Oury (2009, p. 96), ao refletir sobre as questões institucionais, dirá que "se alguém se aventura a definir sozinho que 'isso não é óbvio', rapidamente todos caem em cima dele".

Com base nessa função, Oury teorizará, por exemplo, sobre aquilo que ele chama inicialmente de "traições" ao tratamento, que podem ser resumidas como o uso de um certo corpo teórico (sempre ideológico) para sustentar a ideia de que não há nada que possa ser feito para determinados sujeitos. É daí que Oury (2009, p. 95) construirá ou exporá essa oposição, dentro das equipes, entre esses dois tipos de "trabalhadores". Os ça-va-de-soi e os ça-va-pas-de-soi, expressões francesas que podem ser traduzidas, respectivamente, como "isso é óbvio" e "isso não é óbvio". Oury se alongará na diferenciação entre esses dois tipos de personalidade. A título introdutório, nos bastará determinar que os primeiros são associados por esse autor à tecnocracia, no sentido de que "os tecnocratas são aqueles que vêm para verificar que não há" (Oury, 2009, p. 32). São aqueles que desejam meramente corroborar ou confirmar uma afirmação teórica à qual estejam filiados. Como já pudemos estabelecer ao longo do artigo, em relação às psicoses esse "não há" já foi bastante predominante, a partir de apreensões teóricas, inclusive no meio psicanalítico, que podemos considerar como deficitárias e que afirmam que "não há transferência, não há objeto 'a', não há desejo, não há sujeito".

Os ça-va-pas-de-soi, por outro lado, serão aqueles que, por seu desejo, serão capazes de, a partir de uma decisão - que sempre incluirá a suspensão de significações pela consideração da importância do tempo para compreender (Lacan, 1966/1978) - colocar em exercício algo de uma função diacrítica compartilhada para definir que algum acontecimento se destaca da monotonia habitual (Oury, 2009, p. 32), podendo ser considerado índice de subjetividade nesses pacientes, para além de quaisquer ideais de normalidade, saúde, etc.

Essa qualidade inerente aos ça-va-pas-de-soi, sujeitos que não cederam de seus desejos, cremos que a podemos sintetizar a partir de uma consideração de Jean Allouch, que, tomando as duas posições típicas da transferência na neurose descritas por Lacan em seu Seminário 8, A transferência (1960-1961/1992b) - as posições de eromenós (amado), e de erastés (amante) - dirá que o compromisso com a análise de um sujeito psicótico se dá "porque não excluímos a priori que ali se produza esta báscula pela qual o eromenós vira erastés" (Allouch, 1986/2015, par. 56).

 

Demais funções do coletivo

A "subjacência" a que se refere Oury, um certo clima propiciador da dimensão do dizer, a postulamos aqui como sempre sustentada por um Coletivo, cuja função principal será a de sustentar e recolocar o discurso da psicanálise, que, segundo depreendemos da leitura dos quatro discursos de Lacan (1969-1970/1992), é o único que trata o outro como sujeito, produzindo assim os significantes-mestre. Isso somente será possível pela presença de sujeitos castrados - que, como vimos, Oury chamará de ça-va-pas-de-soi - que se disponham uma e outra vez à suspensão de significações, instaurando um tempo para compreender que possibilite passagem do imaginário por um crivo simbólico, o que será indispensável para seguir sustentando o semblante perante os sujeitos estruturados pela via da psicose.

Estivemos vendo que, ao tomarmos a ideologia como norte em um tratamento possível das psicoses, é certo que nada poderemos fazer. Pelo contrário. Todos os arcabouços imaginários, os dispositivos disponibilizados, por mais que estejam estruturados de acordo com os avanços teórico-clínicos possibilitados por um posicionamento ético, servirão apenas para aprofundar a alienação do sujeito.

Não bastará que estabeleçamos um espaço de convivência, que instalemos dispositivos ditos terapêuticos. O cuidado que temos que ter é com o processo de naturalização presente em qualquer instituição, a imaginarização excessiva que sempre ameaça e que, ao se sentir ameaçada pelo tratamento simbólico, tenderá a um isolamento entrópico, a um enquistamento que joga por terra toda possibilidade de emergência do dizer. Afinal, ceder sobre o desejo é justamente o que é facilitado pela organização hospitalar, bem como por toda e qualquer organização que trabalhe com a lógica do corte fechado (Oury, 2009, p. 131).

Para nós está suficientemente claro que, ao longo de seu empreendimento de conceituação do coletivo, Oury destaca algo que pode ser lido como uma antinomia entre os registros Simbólico e Imaginário, destacando, a partir desta, vários pares de oposição, desdobramentos da antinomia original, que utiliza para pensar a função do coletivo: "Isso-não-é-óbvio / Isso-é-óbvio, Ideal do eu / Eu ideal, heterogeneidade / homogeneidade, tomada de posição / resistência à mudança, etc.

O trabalho de desvelamento de tais antinomias por parte do autor tem por objetivo a instauração de um trabalho de implicação que deve estar presente em qualquer "coletivo", à medida que justamente esse trabalho, que o autor chamará de "reversão", é o que pode ser considerado como sua função princeps, tornada possível pelo mérito conceitual do "oito invertido" (Oury, 2009, p. 29).

Tal mérito conceitual advém do fato de que o "oito invertido" permitiria economizar justamente essas antinomias (como "interior - exterior", "os de dentro - os de fora"), posto que as situa em um continuum estrutural. Assim, os "coletivos" deveriam ser capazes de poder organizar algo que impeça a existência de sistemas esféricos, de corte fechado, que "passam a lança-chamas" toda possibilidade de emergência do dizer, esmagando essas dimensões frágeis que são da ordem da transferência (Oury, 2009, p. 29).

Oury (2009, p. 28) dirá que Lacan sublinhava que "a demanda obedece a uma lógica que é a lógica do corte aberto". Ao introduzir em seu livro tal questão, a utilizará para estabelecer a oposição entre o plano do dizer (corte aberto) e o plano do dito (corte fechado, esférico), pontuando que no sistema hierárquico do estabelecimento escolar e médico tradicionais há um sistema de corte fechado, o que predispõe a um ceder sobre o próprio desejo.

Ao tomarmos as contribuições de Jean Oury, estivemos trabalhando no sentido de demonstrar o que consideramos como indispensável para que se possa produzir um "enlaçamento" eficaz entre os diferentes dispositivos, diferentes oficinas, e as pessoas que as conduzem, assim como entre os diferentes terapeutas e todo o pessoal da equipe, mesmo que não façam parte da equipe formal. A importância de um tal "enlaçamento" é a prevenção de um isolamento de uma ou outra oficina, de grupos ou setores da equipe, etc, cujo funcionamento, tido como bem-sucedido, tenderá a uma entropia (Oury, 2009, p. 122), isto é, tenderá a produzir um grupo fechado sobre si, destacado e isolado dos demais espaços e dispositivos, interrompendo a possibilidade, que Oury destaca como fundamental, de propiciação da passagem de um lugar a outro, de um dispositivo a outro, e de uma pessoa a outra, tão necessário ao tratamento possível das psicoses (Oury, 2009, p. 27).

O empreendimento de uma tal tarefa se dá no sentido de uma advertência, reiterada ao longo deste escrito, da insuficiência da mera instituição de dispositivos se quisermos realizar com o mínimo de eficácia o tratamento de pacientes psicóticos. Feita a advertência, passamos a apresentar o "hospital-dia" tal como constituído atualmente.

 

Dispositivos para um tratamento possível das psicoses

Hospital-dia

O hospital-dia ao qual nos referimos situa-se no âmbito de uma Clínica-Escola de uma Universidade Federal, funcionando atualmente duas vezes por semana no período da tarde, quando a equipe, de modo geral, se coloca disponível para o trabalho com os pacientes nos diversos dispositivos ofertados.

A equipe interdisciplinar permanente é composta por psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais, psiquiatra e fonoaudiólogo, contando com uma ampla gama de colaboradores, com diferentes formações, e de diversos setores dentro da Universidade e fora dela. Isso ocorre à medida que o trabalho com pacientes psicóticos, ao longo dos anos, tem demonstrado a necessidade de interrogar os saberes já constituídos, convocando à invenção de novos dispositivos teóricos e clínicos, denunciando os limites das diferentes áreas e convocando a uma invenção. Nesse contexto, podemos citar a participação de diversos artistas na sustentação do trabalho com a Oficina Terapêutica de Cerâmica, a participação de jornalista em formação na articulação da Oficina Terapêutica de Rádio, assim como a presença de estudantes de Letras na Oficina Terapêutica de Escrita, além de diversos convênios, inclusive com instituições psicanalíticas no marco da Apresentação Psicanalítica de Pacientes.

Tomamos o "hospital-dia" do ponto de vista institucional como dispositivo alternativo à internação, idealmente como estabelecimento cuja não adesão a uma certa fixidez dos estabelecimentos hospitalares em geral possa vir a concorrer para a produção das condições de escuta, de acolhimento do testemunho dos pacientes psicóticos de algo que ocorre no lugar do Outro. Do ponto de vista da clínica psicanalítica, trata-se da permeabilidade do dispositivo em relação ao instituído, o setting psicanalítico. Isto é, viabilizar a escuta psicanalítica em outros dispositivos instituídos, como as oficinas terapêuticas, apresentação psicanalítica de pacientes, atendimento individual, etc.

Assim, o dispositivo do "hospital-dia" congregaria diversos dispositivos de promoção e de inclusão de "pequenos-outros", bem como a promoção do convívio e do vínculo social a partir de seus momentos de lanche, jogos, festas, etc. Não é o paciente que é incluído, são os "pequenos-outros" que são incluídos no tratamento (clínica entre vários) à medida que não há nenhum saber instituído que dê conta da estrutura psicótica. Segundo Rodolfo Iuorno (2004, p. 111), "há algo inerente à transferência que o psicótico provoca que dá lugar à instituição".

Para Broide (2014, par. 5), "o que se mantém em todos os dispositivos é a busca do espaço vazio que se abre ao sujeito de desejo através do inconsciente e da transferência". Tais dispositivos podem ser "tanto aquele montado no consultório particular, como aqueles criados em diferentes situações e que sejam condizentes ao atendimento de diferentes demandas sociais" (Broide, 2014, par. 5).

Ancorado nas conceituações de Deleuze, Jorge Broide entenderá que cada dispositivo diferente capta uma subjetividade distinta. Diz Broide (2014, par. 11) que "nós, psicanalistas, somos especialistas no dispositivo criado por Freud, que é o consultório, mas pensamos que não é isso que caracteriza intrinsecamente a psicanálise. O que a caracteriza, a nosso ver, é uma determinada escuta do inconsciente que se dá na transferência, em um determinado dispositivo, na busca do espaço vazio de que nos diz Badiou, e que permite o surgimento do sujeito do desejo".

Passemos agora a situar brevemente os objetivos e embasamento teórico relativo a alguns dispositivos disponibilizados no hospital-dia, de modo a situar o leitor em relação ao modo como pensamos o tratamento possível das psicoses nesse âmbito.

Oficinas terapêuticas

Nas oficinas do hospital-dia consideramos cada paciente como um oficinante. Assim, consideramos que é o trajeto, o processo, o modo como cada oficinante conduz o fazer que abre possibilidades à construção de uma outra posição frente à linguagem com seus efeitos de (re)invenção de si e do mundo. São os movimentos nesse "fazer com" que pretendem possibilitar ao sujeito a experiência do deslocamento de um lugar de assujeitamento na direção da construção de uma história (Gleich, & Rickes, 2009). Se tomarmos a concepção lacaniana de quarto nó, postulada no Seminário 23, o tratamento seria a consequência de um trabalho de invenção ex nihilo do sujeito, independentemente da estrutura, não sendo de fato o patológico que está em jogo.

O sintoma aqui, matizado pelo discurso do analista, é tomado como forma de produzir-se na relação ao Outro, pensando-o desde a perspectiva da construção do estilo e não como uma manifestação do patológico. Trata-se de um dispositivo privilegiado de construção de um lugar enunciativo que, ao endereçar-se ao Outro, atualiza algo de um laço que, por vezes, mostra-se problemático para os pacientes. Dele fazem parte oficineiros que operam a partir dos limites de seu saber, que experimentam a cada encontro de trabalho.

Conforme Guerra (2004), o fundamento da oficina, o seu ponto essencial de diferenciação, é fazer com que, a partir de uma nova relação com a linguagem, se estabeleça também uma nova relação com a realidade, fazendo com que a singularidade do sujeito esteja em contato possível com a cultura de uma maneira geral.

O ponto de operacionalidade das oficinas é justamente a produção de uma "densidade simbólica diferenciada" (Guerra, 2004, p. 23), funcionando em torno da criação de um produto, que pode ser um texto, uma imagem, uma pintura, uma música, etc. O trabalho das oficinas funciona sobre uma superfície material, não sendo seu foco somente o produto em si. O sujeito assim poderia localizar, na materialidade dos suportes que toma para o trabalho, uma superfície sobre a qual opera um tipo de labor que tem sua contrapartida na elaboração psíquica. Ainda é obscuro o modo como isso se dá, e, desde Freud (1905 ou1906), já estava dito que há um passo desconhecido entre o ato de criar e o efeito disso sobre os sujeitos. "O fato é que há uma mediação nesse ato, pois ele parece contribuir para a destinação dos excessos, o que, por si só é apaziguador, embora não necessariamente estabilizador" (Freud, citado por Alencar, & Silva, 2009, p. 531). Segundo Quinet (2006, p. 61), a estabilização na psicose se daria a partir da significantização do gozo, um trabalho subjetivo que as oficinas podem favorecer.

Apresentação clínica de pacientes

A apresentação clínica de pacientes tem como base as "apresentações de enfermos" realizadas por Lacan no Hospital Saint-Anne na presença de um público. Segundo Mario Fleig, o ponto preciso é "o que Lacan denomina le trait du cas, o traço do caso" (Fleig, 2013, p. 96), para demarcar que não se trata de buscar uma descrição dos sintomas, nem de buscar fazer uma psicopatologia.

Trata-se de um recurso clínico pelo qual o paciente passa uma única vez, marcando sua história dentro e fora da instituição. O caráter de unicidade da apresentação delineia um corte, podendo situar algo de uma origem. É comum que aqueles pacientes que passaram por essa experiência passem a narrar os acontecimentos de sua vida, fazendo referência sempre ao "antes de ter conversado com os doutores no auditório" e depois de tê-lo feito. A apresentação lhes confere um lugar de visibilidade e de importância frente ao outro, conferindo valor a sua palavra, aos seus delírios e alucinações, a sua história, ao seu saber.

O terapeuta do paciente apresentado, particularmente, se beneficia com a atividade, pois ter essa experiência ajuda-o a suportar as dificuldades imanentes ao trabalho clínico da psicose, bem como possibilita uma discussão ampla do diagnóstico e da direção do tratamento na equipe. Isso acontece logo após a atividade com o paciente, quando este se retira e as pessoas que assistiram (inclusive a equipe) discutem o material produzido pelo sujeito entrevistado, o que deve seguir acontecendo nas próximas reuniões de equipe e demais espaços de discussão clínica da instituição. Além disso, o que se produz na apresentação psicanalítica de pacientes não tem efeitos apenas no tratamento do sujeito apresentado, mas também gera consequências na equipe e no modo como esta passa a trabalhar com os demais pacientes.

Atendimento individual

Como foi trabalhado ao longo do artigo, ao considerarmos as contribuições de José Zuberman e Jean Oury no tocante ao tratamento possível das psicoses no hospital-dia, vimos que os tratamentos de pacientes psicóticos não podem ser sustentados por um só. A estratégia de tratamento pensada para o hospital-dia, portanto, será que uma equipe possa pensar o caso e interpretá-lo analiticamente, inspirada na operatória do nó borromeu, possibilitando um reposicionamento da questão da transferência no campo psicanalítico?

Tais pressupostos não diminuem a importância do atendimento individual enquanto dispositivo clínico. O terapeuta aí exerceria uma função de terapeuta de referência, um "centralizador" de uma possível historicização do sujeito nas diferentes interações que ele por ventura vá realizando no hospital-dia, na família, isto é, na sua constelação.

Em termos do tratamento pensado no hospital-dia, são tidas como de grande importância intervenções no sentido de desestabilizar uma dualidade, um par imaginário que vá se formando entre terapeuta e paciente, o que pode ser feito com uma supervisão individual ou coletiva, uma apresentação psicanalítica de paciente, um estímulo à adesão a uma oficina, etc, que muitas vezes não vêm sem certa resistência do analista. Há uma tensão sempre presente entre o que é coletivo e o que é individual, que pode ser pensada numa continuidade a partir do modelo do oito invertido.

Isso nos previne de sermos tomados pelo que Quinet conceituará como furor includenti, assim como uma leitura dos matemas dos quatro discursos poderia levar a crer que o psicanalista seria o único competente para tratar as psicoses. Ao realizar uma leitura aprofundada dos matemas dos quatro discursos, Quinet (2006, p. 41) conclui que o discurso do Psicanalista "é o único que trata o outro como um sujeito". Desde nossa experiência institucional, afirmamos que cabe aos membros da equipe, posicionados desde o discurso do psicanalista, cada um a seu tempo, sustentá-lo.

De acordo com Quinet (2006), o laço social do psicótico se refaz a partir da estabilização, e não o contrário. Assim, o movimento de inclusão, apesar de ser fundamental, não basta, sendo necessário acompanhar o sujeito no tratamento que ele dá aos fenômenos que o acometem (Quinet, 2006, p. 50) e propor-lhe um lugar de endereçamento. É necessário, sim, dedicar-se ao tratamento do Outro social para torná-lo mais inclusivo em relação ao fora-do-discurso; isso, porém, é insuficiente. Portanto, seja a partir de relações indiretas e sistemas de mediação, seja a partir do endereçamento a um analista, o que mais importa é a abertura de um espaço de enunciação ao sujeito.

Entendemos que o tratamento do Outro social equivale, em certa medida, ao trabalho que visa fazer falar aqueles que fazem parte da constelação do paciente, incluindo a equipe. Nesse sentido, há uma proximidade, ainda que não uma correspondência, com a pratique à plusieurs cunhada por Jacques-Alan Miller (Abreu, 2008), pois o trabalho em nossa instituição é orientado no sentido da prática feita por muitos. No entanto, estamos advertidos de que é preciso manter o Outro social em constante tratamento, como nos transmite Oury com a noção de "função coletivo". Ou seja, o trabalho com a constelação: fazendo as pessoas, incluindo a equipe, falarem entre si para que se possa escutar algo que diz do funcionamento psicótico no paciente, trabalhando a transferência.

Ressaltamos essa questão à medida que destacamos na tese de doutorado de Zanchettin (2014, p. 396-422), na parte dedicada aos casos clínicos, que Paula se utiliza de seu espaço de análise, se assim podemos chamá-lo, a partir do oferecimento de alternativas por parte de sua analista, alternativas que, ao mesmo tempo que guardam uma grande semelhança com o trabalho de artesania, próprio às oficinas terapêuticas, parecem indicar a necessidade de um trabalho prévio à inclusão em uma oficina terapêutica. Consideramos, assim, de suma importância que não percamos de vista que a adesão a um tratamento individual também é da ordem de uma socialização.

Festas e eventos

O último dispositivo que aqui destacamos são as festas do "hospital-dia", em geral realizadas duas vezes por ano. Nessas ocasiões, abre-se a possibilidade de um incremento da vinculação social dos pacientes em relação à comunidade, pois se tem a oportunidade de expor algumas das produções realizadas pelos oficinantes nas Oficinas terapêuticas. Esse é um momento de grande importância para os pacientes e para a equipe, sendo inclusive uma das "portas de entrada" de novos participantes para o "hospital-dia", pois dentre os convidados não é raro que haja amigos dos pacientes cuja amizade tenha sido fomentada anteriormente em serviços da rede de saúde. Assim, é bastante comum que nos dias posteriores às festas surjam solicitações de participação no "hospital-dia".

A atmosfera diferenciada que envolve esses momentos muitas vezes permite, a partir de algo que é dito ou mostrado por algum dos pacientes, que haja um reposicionamento da equipe em relação a estes, ou que se recoloque em circulação na equipe questões relativas a algum dos pacientes. A atmosfera amena e comemorativa também tem efeitos que não são desprezíveis nas relações entre os membros da equipe, o que é de suma importância em termos transferenciais.

 

Considerações finais

Ao longo deste artigo estivemos destacando a contribuição do psicanalista argentino José Zuberman no tocante à sustentação de um tratamento possível das psicoses no hospital-dia. Tais contribuições levam em consideração a especificidade da transferência, bem como a especificidade da capacidade singular de cada um desses sujeitos. Assim, Zuberman propõe o tratamento a partir de uma equipe que possa pensar o caso, interpretá-lo analiticamente e modular intervenções que tenham incidência no funcionamento da própria equipe, no funcionamento dos dispositivos do hospital-dia e, em última instância, no âmbito social do paciente, que muitas vezes pode ser tornado mais facilitador para a inclusão desses sujeitos.

O delineamento de uma proposta de tratamento por uma equipe não significa prescindir da figura do terapeuta de referência. Para além da escuta individual, esse terapeuta terá um papel fundamental de "centralização" do que ocorre na constelação de um determinado paciente para, a partir de uma comunicação efetiva na equipe, tornar possíveis as intervenções.

Para que tais comunicações sejam de fato efetivas, dando ensejo às intervenções terapêuticas, não bastará a "boa vontade" e o idealismo da equipe. Pelo contrário. Será fundamental a eficácia de uma função que Oury (2009) chamou de "coletivo", que somente se estabelecerá por uma contínua análise de implicação, que o autor chamou de "reversão". Será somente a partir do processo de "reversão" - que coloca em questão uma e outra vez o desejo de cada membro da equipe de estar ali - que cada um será capaz de suspender minimamente as certezas imaginárias oriundas da tecnocracia, promovendo um ambiente favorável à abertura de "espaços do dizer", sem os quais, dirá Oury, o tratamento das psicoses é uma ilusão.

Como apresentamos na introdução, a reticência inicial quanto à questão da transferência nas psicoses ainda produz vacilações. Perguntávamos, então, quanto às condições requeridas para que se considerasse como psicanalítico o tratamento no hospital-dia.

Atualmente, damo-nos conta de que tal vacilação se revela muito mais em termos teóricos do que em termos da sustentação de uma prática, o que possivelmente se dá pelo caráter singular de cada estruturação psicótica e, portanto, ao desafio sempre renovado, para além dos saberes instituídos, que cada "tratamento" demanda.

A necessidade de determinar categoricamente a ocorrência da transferência na psicose não se afigura como um tema absolutamente neurótico? Não nos remete, uma e outra vez, aos temas da instância paterna, da filiação, da afirmação primordial, etc? Lembremos que Calligaris (1989, p. 70) afirma que " A experiência da psicanálise pode levar à desnecessidade da instância paterna, posto que é uma defesa contra uma demanda do Outro cuja realização é impossível, por não existir este Outro".

Ao questionarmos o estatuto psicanalítico de uma ou outra intervenção, de um ou outro dispositivo, não estaremos tomando a Psicanálise na via de um ideal, e mesmo invocando a proteção de um Pai? "A psicose é aquilo frente a que um analista não deve retroceder em nenhum caso" (Lacan, 1995-1996/1992, p. 9). Se levarmos em conta esse dito lacaniano, deveremos considerar que, perante os sujeitos assim estruturados, o desejo do analista deve ser levado às últimas consequências. O desejo de ser analista (Bataille, 1988), por outro lado, aqui terá como consequência um arrasamento sobre a subjetividade do indivíduo que será mais significativo do que em outras estruturas clínicas.

 

 

Referências

Abreu, D. N. (2008). A prática entre vários: a psicanálise na instituição de saúde mental. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 8(1). Recuperado em 24 abri. 2019, de <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812008000100008&lng=pt&tlng=pt>         [ Links ].

Alencar, M. L. O. A., & Silva, T. J. F. (2009). Invenção e endereçamento na oficina terapêutica em um centro de atenção diária. Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental, 12(3), 524-538.         [ Links ]

Allouch, J. (2015). Ustedes están al corriente, hay transferencia psicótica. Littoral, 21. Toulouse: Editorial Erès. Recuperado em 10 jan. 2018, de <https://unoaunoblog.wordpress.com/2015/08/28/ustedes-estan-al-corriente-hay-transferencia-psicotica-jean-allouch>. (Original publicado em 1986)        [ Links ]

Bataille, L. (1988). O umbigo do sonho: por uma prática da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Original publicado em 1987)        [ Links ]

Broide, J. (2014). A construção de dispositivos clínicos. In Giorgio Agamben e a Psicanálise. Correio da APPOA, 240. Recuperado em 10 jan. 2018, de <http://www.html2pdf.it/?url=http://www.appoa.com.br/correio/imprimir/edicao=240->         [ Links ].

Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Fleig, M. (2013) A clínica das psicoses nos diferentes dispositivos - Parte I: Apresentação clínica de pacientes psicóticos. In B. Martha (Org.), Psicose e emergência do sujeito: leituras psicanalíticas em uma clínica-escola. Porto Alegre: Evangraf.         [ Links ]

Freud, S. (2006). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia. In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XII. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1911)        [ Links ]

Freud, S. (2006). A dinâmica da transferência. In S. Freud [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XII. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1912)        [ Links ]

Freud, S. (2006). O inconsciente. In Freud, S. [Autor], Escritos sobre a psicologia do inconsciente, v. II: 1915-1920. Coord. da Tradução L. A. Hanns. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (2006). Psiquiatria e psicanálise (Conferência XVI). In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVI. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1916-1917)        [ Links ]

Freud, S. (2006) Rascunho H. In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. I. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1950)        [ Links ]

Gleich, P., & Rickes, S. M. (2009). Letras em oficina: a afirmação retumbante do "não". Psicologia e Sociedade, Edição Especial, 21(112-122).         [ Links ]

Guerra, A. M.C. (2004). Oficinas em Saúde Mental: percurso de uma história, fundamentos de uma prática. In C. M. Costa, & A. C. Figueiredo (Orgs.) Oficinas Terapêuticas em Saúde Mental. Rio de Janeiro: Contra capa Livraria.         [ Links ]

Hermann, M. C. (2010). Acompanhamento terapêutico e psicose: articulador do real, simbólico e imaginário. São Bernardo do Campo: UMESP.         [ Links ]

Iuorno, R. (2004). En el hospital. Buenos Aires: Catálogos.         [ Links ]

Lacan, J. (1978). Tempo lógico e a asserção de certeza antecipada, um novo sofisma. In J. Lacan [Autor], Escritos. São Paulo: Perspectiva (Original publicado em 1966)        [ Links ]

Lacan, J. (1987). De una cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis. In J. Lacan [Autor], Escritos II. Buenos Aires: Siglo Veintiuno. (Original publicado em 1966)        [ Links ]

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1964)        [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1955-1956)        [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1960-1961).         [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário de 1969-1970)        [ Links ]

Lacan, J. (1992). Abertura da seção clínica. Ornicar? 9, 1977, 7-14. Reproduzido e traduzido em TRAÇO, setembro-outubro, 1992, 1(0). Recuperado em 10 jan. 2018, de <http://www.traco-freudiano.org/tra-lacan/abertura-secao-clinica/abertura-clinica.pdf>         [ Links ].

Lacan, J. (2008). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar. (Seminário original de 1959-1960)        [ Links ]

Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário original de 1958-1959)        [ Links ]

Miller, J. A. (1985). Psicosis y Psicoanalisis. Buenos Aires: Manantial. (original publicado em 1982)        [ Links ]

Oury, J. (2009). O Coletivo. São Paulo: Editora Hucitec.         [ Links ]

Pommier, G. (1997) La transferencia en la psicosis. Buenos Aires: Ediciones Kliné.         [ Links ]

Quinet, A. (2006) Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Zanchettin, J. F. (2014). La invención de nuevos dispositivos: el "montaje del marco da la escena" en una clínica de la "esquizofrenia". Tese de Doctorado, Facultad de Psicología, Universidad Nacional de La Plata. La Plata, Argentina.         [ Links ]

Zuberman, J. (2014). A clínica psicanalítica: seminários na clínica-escola. Editora Evangraf: Porto Alegre.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 08/12/2018
Aprovado para publicação em: 26/11/2019

Endereço para correspondência
Luiz Octávio Martins Staudt
E-mail: luizstaudt@hotmail.com
Marta Regina de Leão D'Agord
E-mail: marta.dagord@ufrgs.br

 

 

*Psicólogo, especialista em atendimento clínico com ênfase em Psicanálise pela Clínica de Atendimento Psicológico do Instituto de Psicologia da UFRGS, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura, do IP-UFRGS. Atualmente é coordenador do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Clínica das Psicoses da Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
**Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura. Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bolsista Produtividade CNPq. Porto Alegre/RS, Brasil.

Creative Commons License