SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52 número1Mais além do déficit intelectual: uma perspectiva psicanalítica sobre a demência, a debilidade e a psicoseTrauma e lesão: algumas articulações em psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Um Édipo sem fronteiras: a insistência do arcaico no sex-addict1

 

An Oedipus without borders: the archaic's insistence on the sex addict

 

Un Edipo sin fronteras: la insistencia del arcaico en el sex-addict

 

 

Ney Klier*; Marta Rezende CardosoI**

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na adicção sexual, a realização do ato sexual se impõe ao sujeito de modo compulsivo. A sexualidade perde grande parte de seu potencial fantasístico, passando a servir como motor de uma busca desmedida e destrutiva de prazer que não comporta a possibilidade de vínculo libidinal com o outro. Este artigo, fundamentado no saber psicanalítico, tem por objetivo explorar o papel do complexo de Édipo nas determinações da situação clínica em questão, aspecto teórico de fundamental importância para a compreensão dos impasses que entravam a relação do sex-addict com seus parceiros e com sua própria sexualidade. A problemática edípica não se reduz à clássica descrição freudiana do complexo de Édipo, mas abarca uma série de condições e circunstâncias que precedem o ingresso do infante nessa etapa, sendo a construção da cena primitiva o fator decisivo que viabilizará ou não a entrada do sujeito num efetivo sistema de triangulação. Dedicaremos, portanto, particular atenção à vertente originária do Édipo, a qual tem na construção da cena primitiva o seu núcleo essencial. Esse eixo de trabalho nos conduzirá, por fim, a refletir sobre a adicção sexual em suas manifestações mais radicais e extremas, nas quais a crescente adesão a situações de risco por parte do sex-addict se torna paradigmática de uma busca sem limites e perigosa que, em seu sentido mais profundo, revela determinadas contingências de uma tumultuada história relacional.

Palavras-chave: adicção sexual, complexo de Édipo, cena primitiva, situações de risco.


ABSTRACT

In sexual addiction, the performance of the sexual act imposes itself on the subject compulsively. Sexuality loses much of its potential of fantasy, starting to serve as the engine of an excessive and destructive search for pleasure that does not include the possibility of libidinal bond with the other. This article, based on psychoanalytical knowledge, aims at exploring the role of the Oedipus complex in the determinations of the clinical situation in question, a theoretical aspect of fundamental importance for understanding the impasses that interfere with the sex addict relationship with his/her partners and with his/her own sexuality. The oedipal problem is not reduced to the classic Freudian description of the Oedipus complex, but it encompasses a series of conditions and circumstances that precede the infant's entry into this stage, the construction of the primal scene being the decisive factor that will enable or not the entrance of the subject into an effective triangulation system. We will therefore devote particular attention to the original aspect of the Oedipus, which has its essential nucleus in the construction of the primal scene. This axis of work will ultimately lead us to reflect on sexual addiction in its most radical and extreme manifestations, where the increasing adherence to risky situations by the sex addict becomes paradigmatic of a limitless and dangerous search that, in its deepest sense, reveals certain contingencies of a tumultuous relational history.

Keywords: sexual addiction, Oedipus complex, primal scene, risky situations.


RESUMEN

En la adicción sexual, la realización del acto sexual se impone al sujeto de modo compulsivo. La sexualidad pierde gran parte de su potencial fantasístico, pasando a servir como motor de una búsqueda desmedida y destructiva de placer que no comporta la posibilidad de vínculo libidinal con el otro. Este artículo, fundamentado en el saber psicoanalítico, tiene por objetivo explorar el papel del complejo de Edipo en las determinaciones de la situación clínica en cuestión, aspecto teórico de fundamental importancia para la comprensión de los impasses que entraban la relación del sex-addict con sus parejas y con su pareja propia sexualidad. La problemática edípica no se reduce a la clásica descripción freudiana del complejo de Edipo, pero abarca una serie de condiciones y circunstancias que preceden al ingreso del infante en esa etapa, siendo la construcción de la escena primitiva el factor decisivo que viabilizará o no la entrada del sujeto en un efectivo sistema de triangulación. Dedicaremos, por lo tanto, particular atención a la vertiente originaria del Edipo, la cual tiene en la construcción de la escena primitiva su núcleo esencial. Este eje de trabajo nos conducirá, por fin, a reflexionar sobre la adicción sexual en sus manifestaciones más radicales y extremas, donde la creciente adhesión a situaciones de riesgo por parte del sex-addict se vuelve paradigmática de una búsqueda sin límites y peligrosa que, en su sentido más profundo, revela ciertas contingencias de una tumultuosa historia relacional.

Palabras clave: adicción sexual, complejo de Edipo, escena primitiva, situaciones de riesgo.


 

 

O quadro psicopatológico da adicção sexual pode ser definido como o apelo desmedido à prática sexual que, em última instância, causa uma série de prejuízos psíquicos para o sujeito. O adicto sexual ou sex-addict sente-se incapaz de conter certos padrões de atuação: busca desenfreada por parceiros; sexo anônimo; consumo de produtos e serviços (pornografia, prostituição); masturbação incessante; tomadas de risco (sexo sem proteção, assédio frenético) etc. A economia psíquica da sexualidade assume, de diferentes formas, teor compulsivo e nocivo (McDougall, 1995/1997; Estellon, 2014).

No que tange à dimensão especificamente objetal envolvida no quadro, o parceiro sexual, ao mesmo tempo que é procurado para uma interação íntima, tende a ser desinvestido em sua singularidade, em seus aspectos alteritários, afetivos ou subjetivos. Essencialmente, o sex-addict é impelido a buscar um objeto sexual de modo parcializado e desumanizado. Os pilares simbólicos que sustentam a psicossexualidade aproximam-se de um colapso, já que a prática sexual assume gradualmente uma condição crua e abrasiva. Para se compreender parte dos elementos que fundamentam tanto a dinâmica psíquica quanto a modalidade de relação objetal predominantemente implicadas nesse fenômeno clínico, pensamos ser necessária uma análise aprofundada da vertente originária do complexo de Édipo, a qual teria na construção da cena primitiva o seu núcleo essencial.

Inspirados em algumas formulações de autores vinculados à psicanálise francesa - entre eles, especialmente, André Green (1980/1988) - a propósito dessa questão nos estados limites, defendemos que o sex-addict ascende ao Édipo, mas permaneceria retido em suas etapas originárias. A travessia deste complexo, articulada à elaboração de uma perda objetal e à interdição de metas sexuais infantis, se mantém, de algum modo, prejudicada. Haveria acentuada fragilidade na operação do recalque de moções incestuosas, culminando na captura do sujeito por uma situação edípica arcaica, cujo poder de atração constituiria verdadeiro obstáculo a uma efetiva separação dos primeiros objetos edípicos. Essa observação nos conduz a realizar uma análise depurada da noção de cena primitiva - pois, como iremos argumentar, nela parece residir a chave para a compreensão do Édipo e seus desdobramentos patológicos na situação clínica à qual nosso artigo é dedicado. Posteriormente, analisaremos como esse desfecho edípico mal solucionado se reflete não apenas através do apelo incessante ao sexo anônimo, mas se apresenta também por meio de progressiva adesão do sujeito a situações de risco, colocando em séria ameaça a sua integridade física e psíquica. Na ausência de limites internos bem estabelecidos, o sex-addict precisaria testar os limites da realidade externa, confrontando-se ao risco de vida.

 

A dimensão do Édipo na adicção sexual

Etapa crucial do desenvolvimento libidinal, o Édipo se configura na teoria freudiana clássica como uma das estruturas organizadoras da vida psíquica e da relação do sujeito com seus objetos internos e externos. As escolhas sexuais e destinos da vida amorosa resultariam de múltiplos investimentos identificatórios e circunstâncias do encontro com os objetos primordiais, que consolidam determinados esquemas na dinâmica psíquica (Freud, 1912/1996, 1923/2007). A travessia do Édipo pode ser bem-sucedida, como pode também sofrer significativos impasses.

Mostra Estellon (2014) que a lógica dos parceiros "em série" na vida do sex-addict é ancorada em certas determinações inconscientes, relativas, muitas delas, ao registro edipiano. O autor questiona qual rosto se esconderia sob a máscara anônima da série interminável de parceiros sexuais. De quem o sujeito buscaria tornar-se violentamente independente? Para o autor, como pano de fundo da incapacidade de se vincular afetivamente ao parceiro estaria o apego fetichista a um objeto único e intocável, profundamente conservado. A dependência ao objeto da adicção sexual poderia ser entendida, dentre outros aspectos, como tentativa de se eximir da fixação extrema a um objeto de amor infantil, que hipoteca a vida amorosa do adulto.

Através da interiorização do interdito do incesto o sujeito conquista progressiva autonomia em relação aos objetos parentais como objetos de desejo inconsciente (Freud, 1912/1996). É nesse ponto de passagem que não somente o sex-addict - mas o adicto, em geral - parece sofrer importantes dificuldades. O desejo incestuoso é interditado, mas a barreira do recalque não vem a se consolidar suficientemente, de modo a permitir o efetivo acesso a novos objetos. Com a fragilidade do processo de interiorização da interdição, a instância egoica permanece em situação de permanente vulnerabilidade.

Sobre essa vertente de questões ligadas à travessia do Complexo de Édipo, indica Chabert (2014) que, em muitos trabalhos dedicados ao campo dos estados limites - no qual podemos situar as adicções -, o papel da dimensão edipiana tende a ser negligenciado, como se não demandasse grande atenção para o entendimento dos fatores de determinação nessas situações clínicas. Para ela, os problemas referentes à constituição narcísica, à perda do objeto, à separação eu/não-eu - certamente de grande peso nos estados limites - são indissociáveis da problemática edípica. Nos fronteiriços, a travessia do Édipo comportaria certos entraves. Isso resulta, em grande parte, da precariedade do processo de triangulação edípica, em que a entrada do terceiro viria a limitar e organizar o gozo infantil. A interdição do desejo se relaciona rigorosamente com a entrada de um terceiro, vinculado à figura, à função paterna, colocando limites na relação primordial entre a mãe e a criança. "De maneira geral, pode-se dizer que não há Édipo sem que um terceiro esteja presente, um terceiro que se oponha à realização dos desejos incestuosos" (Estellon, 2014, p. 94; tradução nossa).

O fronteiriço ascende ao Édipo, mas permaneceria fixado, de certo modo, em sua lógica primária, não fazendo bem a passagem ao seu desfecho, referente à elaboração de uma renúncia, de um abandono bem-sucedido dos primeiros objetos de investimento libidinal. Essa travessia edipiana vê-se emperrada em algum ponto, aspecto que nos leva a investigar a noção de cena primitiva, como núcleo arcaico do complexo de Édipo. Como iremos argumentar, consideramos aí residir uma espécie de chave para a compreensão da singularidade do Édipo e de seus desdobramentos patológicos nos estados limites e, em especial, na adicção sexual.

 

A dupla face da cena primitiva

A construção da cena primitiva pode ser compreendida como o núcleo que circunscreve o longo, e muitas vezes tortuoso, processo edípico, ordenador subjetivo das relações. Assim, a função que a cena primitiva desempenha na dinâmica psíquica do sex-addict é valioso eixo de investigação em nosso trabalho.

Segundo a lógica freudiana, a cena primitiva implica a descontinuidade entre sexualidade parental e infantil; ela instaura a diferença de sexos e de gerações, permitindo assim a elaboração da bissexualidade psíquica (Freud, 1918 [1914]/1996; Bertrand, & Papageorgiou, 2010). Trata-se de uma cena cuja matéria prima são fantasias elementares, inferências ou fragmentos de recordação. Surge em resposta à excitação gerada pelo contato da criança com seus objetos primários (adultos cuidadores) e o enigma abissal que a sexualidade adulta representa para ela. É também um elemento primordial concernente à questão das origens e, consequentemente, à produção das teorias sexuais infantis.

Para René Roussillon (2004), a noção de cena primitiva merece ser retomada no panorama teórico e clínico da psicanálise contemporânea. Apesar de ser uma noção bastante utilizada, clássica, pouca atenção é dada ao papel fundamental que possui na estruturação psíquica. Ao ganhar estatuto nocional e não apenas o de uma fantasia isolada, essa noção é entendida como um organizador privilegiado na constituição da vida subjetiva.

Bertrand e Papageorgiou (2010, p. 965; tradução nossa) definem a expressão cena primitiva da seguinte forma: "A Urszene (cena primitiva, primordial, originária) designa a cena de relações sexuais dos pais (ou das figuras parentais), observada ou fantasiada, construída e interpretada pela criança em termos de violência exercida pelo pai. Representa um enigma, e gera grande excitação sexual".

Apesar de não ter usado o termo Urszene, Freud (1900/1996) em "A interpretação dos sonhos" já ressalta o quanto a "observação" do coito parental, mesmo quando confinada ou restrita à fantasia, produz intensa angústia. "A experiência cotidiana confirma [...] que a relação sexual entre adultos se afigura a qualquer criança que a observe como algo estranho [...] o que está em pauta é uma excitação sexual com que a compreensão das crianças é incapaz de lidar" (Freud, 1900/1996, p. 612). Devido à ausência de recalcamento em períodos primitivos da vida, as excitações dirigidas ao adulto expressam-se livremente. No entanto, a angústia que emerge é tributária do repúdio que o infante sente ao confrontar-se à própria excitação e perplexidade diante da imago do intercurso parental.

Subsequentemente, a experiência analítica levou Freud (1918 [1914]/1996) a conceder crescente importância a impressões infantis primitivas e seus efeitos duradouros sobre a organização psíquica. Quanto à cena primitiva, tratar-se-ia de um elemento que aparece regularmente nas análises, fazendo parte do arcabouço de fantasias - sejam elas conscientes ou inconscientes - de todo ser humano, não apenas dos neuróticos. É no caso do "Homem dos lobos" (1918 [1914]/1996) que a observação do coito parental é descrita por Freud com o termo Urzene. O infante que dormia no quarto de seus pais teria sido, supostamente, testemunha de um coito a tergo entre eles. Freud infere essa cena a partir de dados estritamente clínicos, baseando-se em relatos exaustivos e sonhos do paciente. Estaria em jogo no sujeito forte excitação sexual frente a uma cena demasiadamente estimulante e traumática, assim como intensa depressão, ligada ao sentimento de exclusão do enredo conjugal.

Nesse texto, Freud discute a questão da "verdade" da cena primitiva, se estaria em jogo a recordação de um acontecimento efetivamente vivido ou se estaríamos diante de pura fantasia. As conclusões que ele esboça giram em torno da seguinte conjectura: "trata-se realmente de uma cena observada, a partir de traços e de índices, mas que o psiquismo deve reconstruir como testemunha a evolução da teoria" ( Bertrand, & Papageorgiou, 2010, p. 966; tradução nossa). Nas palavras do próprio Freud (1918 [1914]/1996, p. 61-62): "essas cenas da infância não são reproduzidas [...] como lembranças, são produtos de construção [...] - a partir de um conjunto de indicações". Ele ressalta que a criança, do mesmo modo que o adulto, só pode produzir fantasias a partir do material que foi adquirido em suas experiências, percepções e interações com o ambiente. Todavia, deve-se levar em consideração que esse conjunto de traços e índices não proviria necessariamente do coito parental stricto-sensu, o que complexifica a questão. Na obra freudiana, esta estaria situada entre dois tempos:

[...] na primeira redação de O homem dos lobos (1914), em que ele insiste em provar a realidade da cena originária, acentua já o fato de que ela só é compreendida e interpretada pela criança a posteriori (Nachträglich) e, inversamente, quando sublinha o que nela entra de fantasias retroativas (Zurückphantasieren), afirma que o real forneceu, pelo menos, índices (ruídos, coito animal etc.) (Laplanche, & Pontalis, 1982/2010, p. 63; grifos dos autores).

Apesar de dar suporte à angústia de castração e propiciar a montagem de uma teoria sexual infantil, a carga excitatória em jogo na cena irrompe, desestabilizando a organização libidinal do infante. O exame do "Homem dos lobos" já sugere a dupla valência que a cena primitiva vem a assumir na teoria psicanalítica: uma vertente estruturante e outra desestruturante (Bertrand, & Papageorgiou, 2010). O interesse da criança pelo coito parental é indissociável de suas experiências corporais pré-edipianas com o objeto primário, e de todo o conjunto de satisfações, anseios e privações que daí resultam. A cena primitiva, em vista disso, corresponderia ao momento crucial que determina a entrada do infans numa trama edípica.

Sustenta Roussillon (2004) que a questão da cena primitiva tem especial relevo na problemática da dependência ao objeto, por se tratar de dimensão articulada não somente à diferença de gerações, dos sexos e da própria sexualidade (infantil/adulta), estando igualmente relacionada à matriz da atividade representacional. Essa cena teria papel organizador, o que se articula com a questão da representação do objeto ausente - questão que, como detalharemos adiante, foi profundamente trabalhada por André Green. A representação do objeto ausente é a formação-pivô engendrada pela organização da cena primitiva.

A dependência, de caráter patológico, tem a ver com a incapacidade de elaboração do luto referente à perda objetal. Nessa direção, Roussillon (2004) propõe a ideia de que a cena primitiva deve assumir uma forma transicional em que a criança simultaneamente está e não está presente na cena - ela não está presente fisicamente, mas está presente em pensamento. É imprescindível que o infans, em sua construção imaginativa, não esteja radicalmente ausente do pensamento do objeto, mesmo este estando em outro lugar e com um "outro". A exclusão que a percepção da sexualidade adulta implica é apenas tolerável caso seja neutralizada por alguma modalidade de inclusão fantasística. "No mínimo, a curiosidade e o investimento da criança pelo "objeto-casal" supõem que o casal a observa, olha-a, que essa estrutura comporta um lugar que reflete parte da atenção que a criança lhe dirige, que o investimento não está, no fundo, perdido" (Roussillon, 2004, p. 424; tradução nossa).

A cena primitiva serviria como "organizadora" do processo identitário, quando opera não apenas a dialetização entre a alteridade da diferença dos sexos e de gerações, mas também a similaridade que deve ser refletida pelos objetos primários, à medida que estes espelham identificações. Trata-se de uma estrutura que envolve o encontro com a diferença, com o "outro" - outra geração, outro sexo, outras formas de prazer -, e também com o "mesmo", o similar, o duplo. A dimensão transicional que a cena pode assumir evidencia o sucesso ou o fracasso da reflexividade, da possibilidade de a criança se assegurar narcisicamente no encontro com o objeto. Tanto o encontro com a diferença quanto o encontro com a similaridade só podem ser propriamente pensados numa relação dialética. Diferença sem similaridade aparece como algo intrusivo e estranho, empurrando o ego em direção à cisão, à fragmentação; similaridade sem diferença leva à confusão, seja na direção de uma adesividade engolfante, seja na direção de uma rejeição reativa ( Roussillon, 2004).

Segundo André Green (1980/1988), o complexo de Édipo deve ser mantido como matriz simbólica essencial do funcionamento psíquico, o que implica a constante referência a uma triangulação axiomática mesmo em casos nos quais a regressão é dita pré-genital ou pré-edipiana. O que está em jogo, sobretudo, é a concepção do Édipo como estrutura no psiquismo e não como mero estádio de desenvolvimento da libido. Em sua concepção, independentemente da estrutura psicopatológica, o sujeito sempre alcançaria o Édipo. E, antes mesmo de ter a sua própria experiência subjetiva, a criança ocuparia lugar no Édipo dos pais. "Por mais evidente que seja que a relação principal do bebê é inicialmente com a mãe, a situação é triangular: o pai inscreve-se como figura de ausência" - escreve Urribarri (2012, p. 150), em seu cuidadoso exame das proposições de Green no artigo "André Green: o pai na teoria e na clínica contemporânea".

O papel essencial do pai está relacionado com o lugar que este ocupa no psiquismo da mãe, em sua constelação de fantasias edípicas. Já no que concerne ao psiquismo infantil, "tudo o que antecipa a existência de um terceiro, cada vez que a mãe não estiver totalmente presente, [...] será, après coup, vinculável ao pai" (Green, 1980/1988, p. 244; grifo do autor). O pai, terceiro da relação, situa-se entre a mãe e a criança desde a origem. Trata-se do "outro do objeto", que poderá ou não assumir a função paterna no Édipo, que tem o seu ponto de partida nesse "triângulo aberto com o terceiro substituível" (Urribarri, 2012, p. 151). A função do pai diz respeito à boa ocupação do lugar de terceiro, o que dependerá, igualmente, do lugar que este ocupa no psiquismo da mãe, conforme mencionado anteriormente.

Acrescenta Green (1980/1988) que a cena primitiva constitui o núcleo da etapa que origina o Édipo, sobre a qual o complexo de castração deverá articular-se posteriormente. Se, em sua concepção, o Édipo permanece como referência estrutural indispensável para a organização psíquica, as suas condições de determinação devem ser procuradas especificamente na fantasia isomorfa a ele: a cena primitiva. O que importa não é o fato de o sujeito ter sido ou não testemunha de determinada contingência sexual entre os pais, mas, sim, precisamente o contrário, que a situação tenha se desencadeado em sua ausência e ele precise imaginá-la, construí-la no plano da fantasia.

Nessa construção, há o "reconhecimento de organizações triangulares, nas quais se inscreve um terceiro [...], onde existe separação primária e alteridade, mas não uma estruturação ou organização edípica (com reconhecimento estável da diferença entre sexos e de gerações)" (Urribarri, 2012, p. 151). No caso dos fronteiriços, o desafio principal seria o de transição do estado de "terceiridade" potencial ao de "terceiridade" efetiva. Nesses casos, haveria um empecilho no percurso entre a construção da cena primitiva e a consolidação do Édipo através do complexo de castração.

 

Impacto da cena primitiva

Para Figueiredo (2004), a dificuldade essencial nos casos limites estaria referida às questões de vida e morte, ser e não ser, em contraposição à importância da sexualidade, dos conflitos e da estruturação edípica nas neuroses e na perversão. "Trata-se, nos casos limites, de estruturações pré ou, mais precisamente, anti-edipianas" (Figueiredo, 2004, p. 506). A sexualidade recusada e rejeitada nesses casos seria aquela que existe como "princípio de diferenciação", mesmo quando o sexo é exercido de forma promíscua e compulsiva.

Nessa direção, Figueiredo (2004) dedica atenção particular à tese de Phyllis Greenacre em que a cena primitiva, seja ela observada, inferida ou imaginada, tem efeitos bem distintos conforme a etapa de constituição psíquica do infante. Antes de seu ingresso efetivo na triangulação, a cena tem notável dimensão traumática,

seja porque impõe ao bebê uma experiência de exclusão radical (nem ao menos compreende o que se passa, mas "vê" os pais em um estreito, intenso e violento conluio que o deixa de fora e desamparado), seja porque o sobrecarrega com uma excitação intolerável de caráter libidinal e, principalmente, agressivo (Figueiredo, 2004, p. 510).

A dimensão traumática adviria justamente da impossibilidade de exercer o papel de observador na cena, de ocupar o lugar de terceiro. Ou a criança está totalmente fora, inexistente como objeto de investimento dos pais, vivenciando a exclusão como puro aniquilamento, ou passa a estar totalmente dentro, sendo literalmente um dos participantes da cena. A vivência de absoluta exclusão, sem espaço para a mínima inserção no enredo conjugal, assim como a de inclusão desenfreada, sem os limiares salutares de uma consistente separação do casal parental, estabeleceria o solo traumático cujas repercussões na constituição narcísica tendem a ser desastrosas.

A impossibilidade de eficaz ingresso na triangulação torna o sistema egoico extremamente suscetível à violência que a cena primitiva veicula, dando margem a defesas radicais contra ela - defesas mais primitivas que o recalcamento, que atacam ou neutralizam a capacidade imaginativa do sujeito, acometendo o funcionamento psíquico enquanto tal, conforme assinala Figueiredo (2006). "Nas estruturas não neuróticas, as forças pulsionais destrutivas visam particularmente à cena primitiva, objeto de ataque, de desligamento, de negativização, de alienação" - escrevem Bertrand e Papageorgiou (2010, p. 967; tradução nossa). Para corroborar esse postulado, as autoras mencionam as noções de bitriangulação (Donnet e Green), de autoengendramento e Anti-Édipo (Racamier), e a proposição de Bion de ataque aos laços, que pode se estender ao desligamento da cena primitiva, afetando de modo profundo as associações representativas e o pensamento.

Para Chabert (2014), o vazio representativo usualmente encontrado em sujeitos fronteiriços não seria um fator constitutivo, mas procederia justamente desse enfraquecimento severo da atividade fantasística, matriz das representações e de seus afetos correspondentes. Esse vazio serve como contraponto defensivo de um excesso aniquilador que provém de determinadas fantasias, especialmente a da cena primitiva. Ao invés de se ver excluído do intercurso parental e colocado numa posição exterior, protegida, o sujeito se percebe dentro da cena, atribuindo a si próprio um lugar ativo nos movimentos incestuosos da relação sexual que se desencadeia. Se Chabert, em seu exame, atribui ao excesso de inclusão o caráter traumático da cena, pensamos que essa dimensão da inclusão irrestrita e ativa, como já sugerimos anteriormente, é apenas uma parte do problema, não podendo de modo algum ser destacada como única vertente da questão.

No que concerne à complexidade do tema e no extremo oposto do excesso de inclusão, Green (1980/1988), ao descrever o complexo da mãe morta, oferece pertinente ilustração de uma situação cujo teor de exclusão absoluta do enredo conjugal causa prejuízos inestimáveis à elaboração da cena primitiva. O traço essencial do complexo em questão não é a perda real do objeto materno, mas a presença totalmente desinvestida deste na relação, por estar ele próprio absorto em luto. A mãe se deprimiu por uma razão ou outra, podendo ser grande o número dos motivos. De objeto vivo e fonte de vitalidade, passa a ser uma figura distante, inexpressiva e quase inanimada.

O súbito e violento desinvestimento do objeto materno leva à constituição da entrada de um terceiro, "outro do outro", a ser vinculado posteriormente à figura paterna. O objeto indefinido do luto da mãe e o "pai" condensam-se para a criança, criando um Édipo precoce, por meio de uma cena primitiva na qual o infans está, no plano da fantasia, radicalmente excluído do intercurso que se desencadeia entre a mãe e o "pai". "[...] É na hora do encontro de uma conjuntura e de uma estrutura que põe em jogo dois objetos que o sujeito vai se confrontando com os traços mnêmicos relacionados com o complexo da mãe morta" (Green, 1980/1988, p. 257-258).

O confronto à cena primitiva é capaz de ocasionar tamanho trauma narcísico, pois nela o infante experimenta a medida da distância abissal que o separa da mãe, assim como a sua impotência para reavivá-la. O infans adquire assim a capacidade de se abstrair da realidade afetiva de maneira repentina e inexplicável. O desinvestimento, agora por parte da própria criança, não é apenas afetivo, mas também de ordem representacional. A queda que sofre de seu pedestal narcísico resultaria em extrema fragilização da confiança em si e no outro e, por conseguinte, na perda de sentido do laço objetal (Estellon, 2014).

Essa situação repercutiria numa segunda frente de possíveis defesas. Entre elas, interessa-nos uma em particular: haveria dissociação precoce entre ternura e sensualidade, entre afetividade e corpo sensorial. Isso potencialmente acaba por culminar no bloqueio dos sentimentos em relações objetais posteriores que envolvam aproximação sexual. "O objeto é procurado pela sua capacidade de desencadear o gozo isolado de uma zona erógena ou de várias, sem confluência num gozo compartilhado por dois objetos mais ou menos totalizados" (Green, 1980/1988, p. 250). O objeto sexual reduz-se a um objeto parcializado, anônimo e desumanizado. No pano de fundo disso, estaria o aprisionamento do sujeito a uma vertente inicial do Édipo, em que o trauma narcísico consecutivo aos primeiros confrontos com a triangulação atua de modo devastador no curso das relações objetais posteriores.

Podemos questionar até que ponto esse paradigma introduzido por Green não se aplica também a outras contingências particulares do encontro objetal que não se reduzem à descrição do complexo da mãe morta. O apelo desmedido ao prazer sensório da sexualidade, dissociado do amor objetal e da construção de sentido, não viria responder ao fracasso de elaboração da cena primitiva, onde o sujeito experimenta de formas variadas e singulares as intensidades excitatórias do excesso de exclusão ou do excesso de inclusão?

 

Um Édipo à beira dos limites

O fracasso de elaboração da cena primitiva, concomitante à precariedade de instauração da triangulação edípica, culminaria, em última instância, na fragilidade da interdição dos desejos incestuosos, exigindo o esboço de outras saídas para a dissolução do Édipo. A esse respeito, afirma Chabert (2014) que, em configurações fronteiriças, o estabelecimento precário de diques psíquicos não dá suporte ao isolamento do Édipo em sua dupla vertente libidinal e agressiva. As proibições permanecem sem estável interiorização, fazendo com que os impulsos incestuosos e assassinos permaneçam invasivos no plano intrapsíquico. Um movimento maciço de contrainvestimento faz-se necessário para lutar contra a excitação e a angústia que a dupla ameaça incestuosa/agressiva engendra.

Nossa hipótese é de que, na adicção sexual, esse contrainvestimento de uma realidade interna demasiadamente excitante e sem contenções se apresentaria não apenas por meio do apelo desmedido ao sexo e aos excessos hedonísticos, mas, principalmente, através de progressiva adesão a situações de risco, na qual a busca irrefreável e descomedida por atividades sexuais coloca o sujeito frequentemente no limite do perigo, sendo este significativo fator de excitação. "Em uma sexualidade arriscada e controlada, ela pode ser colocada sob a égide do perigo, consoante com o ambiente perigoso da primeira infância, mas aqui, é o próprio sujeito que lança mão do risco com a finalidade de controlá-lo" - pontuam Blanchard e Decherf (2002, p. 67; tradução nossa). Mas de que modo isso ocorreria?

No que tange a essa jouissance mortífera, o sex-addict pode, por exemplo: desfazer-se totalmente do uso do preservativo, com a finalidade de potencializar o prazer sensorial e o contato físico com o parceiro, expondo-se deliberadamente a doenças sexualmente transmissíveis; consumir drogas diversas, lícitas ou ilícitas, que atuam no organismo intensificando as sensações experimentadas, impedindo-o de avaliar certos riscos vitais; buscar práticas sexuais pesadas - sadomasoquismo, fist-fucking, bondage, urofilia, escatofilia etc. -, algumas delas podendo resultar em lesões corporais; colocar-se em situações e lugares de risco, ao não medir esforços e projetar-se num movimento desenfreado de conquista, abordando pessoas anônimas sem qualquer tipo de cautela ou precaução; ultrapassar os limites do organismo, não respeitando as necessidades básicas de sono e de alimentação, chegando frequentemente a estados de extrema exaustão física e esgotamento; entre outras circunstâncias que implicam reais ameaças à preservação de sua integridade física e psíquica.

Consideremos então neste ponto o retraimento absoluto da relação objetal implicado nos casos de adicção sexual, em que o parceiro sexual não seria investido em sua condição de objeto alteritário, mas, ao mesmo tempo, é procurado incessantemente para uma interação sexual, esta assumindo progressivamente proporções radicais e perigosas. O paradoxo dessa busca sem limites teria como uma de suas bases a dimensão desestruturante da cena primitiva, o que nos parece de especial importância como elemento de determinação na gênese da sexualidade adictiva.

Como foi visto, segundo Bertrand e Papageorgiou (2010) , quando se trata de estruturas não neuróticas, os obstáculos em torno da cena primitiva e o seu potencial desorganizador estão plenamente em vigor. Em análise, esses pacientes demonstram notória dificuldade em historicizar o seu percurso objetal, colocar em perspectiva seus desejos e em poder articulá-los com diferentes momentos de sua história. Os impasses e lacunas na narrativa desses sujeitos levam, de fato, a uma interrogação mais rigorosa sobre esse aspecto da questão. O poder desorganizador da cena viria do enigma que ela representa, da incapacidade do infante de lhe atribuir sentido?

O sex-addict, em seu comportamento, parece exteriorizar compulsivamente aquilo que em outras circunstâncias se apresentaria prioritariamente através do enigma, da fantasia e do investimento na relação objetal. Ao praticar o sexo de modo desenfreado, desumanizado e arriscado, é como se não houvesse uma representação da cena primitiva regendo e organizando o seu mundo interno, mas sim uma apresentação incessante da mesma no mundo externo, sob a forma de sucessivas atuações. O sujeito se entrega a múltiplas façanhas sexuais, de modo parcializado e fragmentado, em que não há investimento no laço objetal, apenas uma troca limitada aos aspectos vorazes, práticos e concretos da sexualidade. É como se não houvesse enigma, apenas literalidade.

 

O extremo do "sexual": extremo do risco

Estellon (2012) articula a problemática da adicção sexual à noção de extremo, concernente não apenas, do ponto de vista fenomenológico, à questão das condutas de risco, mas, em primeiro lugar, a um modo particular de funcionamento psíquico. A noção de extremo, segundo o autor, convoca a ideia de um limite além do qual alguma coisa se rompe ou se quebra. "Do ponto de vista da psicopatologia da vida cotidiana, a transgressão brinca com esse limiar, no sentido de que desafia esse limite" (Estellon, 2012, p. 109; tradução nossa). O autor retoma a etimologia latina do termo "risco", que remete ao verbo resecāre, cujo significado é literalmente "cortar". A cronificação da sexualidade adictiva leva o sujeito a não conseguir mais satisfazer-se com as práticas e vivências habituais, o que o conduz à busca de sensações mais puras e mais fortes.

Essa propensão ao risco pode ser considerada uma modalidade de dependência, concomitante e subjacente aos casos de adicção sexual. No circuito repetitivo da sexualidade compulsiva, há quase sempre um vivido acentuado de vazio e de depressão abissal. A "caça" por potenciais parceiros e os riscos implicados vêm tentar injetar vida e ânimo num sujeito embotado afetivamente. O colorido da vida e das relações permanece sem força, sem vigor, o que parece ser contornado apenas transitoriamente, quando ele se entrega à "adrenalina" e à excitação da perspectiva de concretizar alguma situação sexual almejada (Deloupy, & Varescon, 2007).

A exposição ao risco não se reduz a um simples obstáculo a ser ultrapassado, uma experiência circunstancial, mas constitui verdadeiro estilo de vida, impondo-se como necessidade para vários dos sujeitos inseridos nesse contexto. A questão da tomada de riscos seria intrínseca à problemática da adicção sexual, apresentando-se em formas e graus variados nos sex-addicts. Inspirando-se no trabalho de David Le Breton, "Passions du risque", Deloupy e Varescon (2007, p. 119-120; tradução nossa) indicam: "A tomada de riscos teria por função encontrar um limite psíquico, onde os limites simbólicos se fazem ausentes. Trata-se [...] de tornar a ameaça de morte potencialmente acessível, mas, em última instância, evitando-a, tomando as precauções usuais".

Todavia, muitas vezes essa circunstância atinge proporções radicais e perigosas. O sujeito se inscreve em outra relação com o risco na qual as precauções são significativamente reduzidas, tendendo a ficar à mercê da sorte ou da casualidade. A partir desse momento, está "além da simples tomada de risco; a metáfora do contato com a morte é levada mais próxima ao último limite" (Deloupy, & Varescon, 2007, p. 120; tradução nossa). Quando isso se apresenta, estamos diante de uma conduta ordálica, própria ao registro do "extremo".

De acordo com Charles-Nicolas e Valleur (1996), o comportamento ordálico seria o engajamento repetitivo do sujeito em circunstâncias possivelmente mortais. No caso da sexualidade, esta pode adquirir o valor de conduta ordálica principalmente no contexto de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis. A prática do bareback, sexualidade voluntariamente não protegida entre duas ou mais pessoas que consentem, conscientes ou não dos riscos infecciosos a ela ligados, torna-se uma figura emblemática desse panorama no qual exigências sexuais imperiosas, múltiplos parceiros e uma espantosa erotização do perigo levam a crescentes tomadas de risco.

Mostra Estellon (2012) que o bareback, termo cujo significado é literalmente montar ou cavalgar sem a sela, é cada vez mais frequente no meio dos sex-addicts, especialmente no universo homoerótico masculino. O malefício mais notável que envolve é o da propagação ilimitada de doenças graves como a AIDS, além de outras como sífilis, hepatite b etc. - doenças que podem se tornar fatais se não forem detectadas a tempo e devidamente tratadas. Indo na contramão de práticas sexuais qualificadas de higiênicas ou de "sexualidade kleenex", a troca ilimitada de substâncias corporais como a saliva, o sangue e, sobretudo, o esperma durante a cópula torna-se condição sine qua non para a fruição do prazer sexual.

Qualquer tipo de prevenção se apresenta para os barebackers como ruptura em sua expressão sexual, o preservativo aparecendo como freio à liberdade procurada. "A troca de fluídos corporais aparece como elemento fundamental do erotismo no bareback. Troca essencial, pois é o sinal, a prova de uma fusão com o outro, na qual o preservativo se apresenta como uma barreira" (Deloupy, & Varescon, 2007, p. 125; tradução nossa). Relacionar-se sem proteção constituiria uma relação mais íntima com alguém, pois haveria comunicação completa, sem obstáculos ou impedimentos para o corpo do parceiro. Nos locais de encontro, muitos vislumbram a almejada possibilidade de extinguir momentaneamente os limites entre si próprios e o outro, reconstituindo-os apenas após o contato íntimo.

Nestes backrooms, acrescenta Breton (2005), há uma dupla atitude, ativa e passiva, em que todas as posições remetem a uma condição indefinida, masculina e feminina, sem clara delimitação. Quando sentimentos de vazio se tornam extenuantes, insuportáveis, o impulso que surge é o de "partir para a caça", o de procurar uma re-asseguração no contato com o outro - que, nesse caso (meio homoerótico masculino), é um outro similar. O coito não apenas preencheria, mas "criaria" o sujeito, em vias de desintegração narcísica. Com o olhar e o sexo do outro, ele poderia ter certeza de si próprio. Deste modo, esses sujeitos precisariam recomeçar inúmeras vezes uma relação física com alguém para ter certeza de sua própria identidade, de sua própria existência.

Em sua experiência clínica, Breton (2005) veio frequentemente a se deparar com uma circunstância psíquica específica: para esses homens, era extremamente difícil conceber uma origem fundamentada num casal parental, não havia em seu mundo interno uma clara inscrição psíquica dessa relação. No decorrer do tratamento, em sua memória do infantil, muitos têm acesso à existência de uma ligação primitiva e simbiótica com a figura materna: "relação simbiótica mortífera com a mãe, que eles tentam repetir numa relação sem limites com o outro e ainda sem preservativo, num encontro necessariamente efêmero, mas destrutivo" (Breton, 2005, p. 102; tradução nossa). O que se apresenta em muitos casos é um pai desvalorizado, enfraquecido, seja aos olhos do sujeito, seja, supostamente, aos olhos da mãe. A constatação tardia de um terceiro elemento na díade primordial vem acompanhada de sentimentos de aflição e desamparo, resultantes de uma ferida narcísica associada a sentimentos de exclusão do enredo libidinal e conjugal. Pode-se observar que o sujeito viveria, de algum modo, os extremos da inclusão e da exclusão, onde não há meio-termo, ambos coexistindo em sua história relacional: ou está engajado numa relação sem limites, destrutiva, com a figura materna, afogado em extrema confusão de papéis; ou se encontra radicalmente isolado, excluído dos movimentos amorosos e sexuais do casal parental.

Nesse fracasso de elaboração da triangulação edípica, Breton (2005) vislumbra a origem da sexualidade compulsiva e o posterior aprisionamento do sujeito nos imperativos dessa modalidade de adicção. E é também nesse fracasso edípico que ela vai situar a fantasia singular que permeia a vida desses sujeitos, de que eles seriam os reis absolutos da sexualidade. À medida que o outro na relação sexual existe predominantemente em sua materialidade corporal e não em suas demandas subjetivas e desejantes, dificilmente a prevenção entra em jogo, pois um corpo sem rosto - e, aparentemente, sem alma, sem psique - dificilmente poderia ser atingido por um vírus mortal. Nessa lógica tortuosa, um corpo que serve como máquina sexual, máquina de gozo, não receberia nem transmitiria o vírus HIV ou qualquer doença sexualmente transmissível. Qual dano ou prejuízo um corpo sem alma poderia sofrer ou causar?

Pode-se dizer que a concretude e a literalidade da busca sexual no sex-addict possivelmente mascaram as fendas no processo de constituição dos objetos internos - seja a representação do objeto paterno, seja a do objeto materno, seja a de si próprio como sujeito desejante e separado dos objetos primários fundamentais. Conforme exploramos neste artigo, a construção da cena primitiva, etapa precursora de instauração do Édipo, constituiria o vivido subjetivo crucial onde reside a base para que o sujeito possa não apenas figurar, mas estabelecer os contornos e a elaboração dos papéis sexuais e de seu próprio lugar no feixe de relações que se estabelecem entre o eu e o outro. Com a ausência de uma construção simbólica crível e estruturante, ele precisaria encontrar outros meios para fazer frente à violência que o confronto incestuoso e ilimitado com os primeiros objetos veio a suscitar em seu psiquismo.

Ao repudiar o outro, à medida que repudia a si próprio, o sex-addict esforça-se ativamente para não despertar o seu desejo, tentando assim escapar da ameaça de se ver passivamente como seu objeto. Está aí o paradoxo: a sedução que exerce é radicalmente parcial, não pode ser estendida ao conjunto de sua subjetividade, nem à do parceiro. Ele regularmente busca apenas fragmentos do outro, à medida que lhe oferece apenas fragmentos de si próprio. A fusão de corpos que procura na relação sexual não se transpõe em uma verdadeira relação de intimidade com o parceiro. Aprisionado a um vivido arcaico de "violência sexual", em que fantasias edípicas elementares imperariam de modo ilimitado, onipotente e devastador, o sujeito permanece condenado à colocação em ato de uma cena sexual sem clara demarcação entre seus personagens.

 

Considerações finais

Parece possível sustentar que a não elaboração do Édipo no universo psíquico do sex-addict seria decorrente, em grande parte, da violência excitatória da cena primitiva, levando a um movimento maciço de contrainvestimento de uma realidade interna demasiadamente excitante e perigosa. Essencialmente, o sujeito se veria confinado a um intercurso violento no qual está, ou completamente excluído, incapacitado de existir narcisicamente na relação objetal e moldá-la simbolicamente a seu favor, ou se encontra terrivelmente incluído, numa posição de vítima ou agente da violência incestuosa, impossibilitado de fazer parte dessa relação como terceiro observador.

Portanto, defendemos o postulado de que, na adicção sexual, a espetacular esfera de atuação no campo da sexualidade, em detrimento da capacidade erótica de metaforização, remeteria a uma exteriorização de elementos psíquicos, condizente com a hipótese de ataque à cena primitiva na condição de fantasia elementar e inconsciente (Figueiredo, 2006; Bertrand &, Papageorgiou, 2010). A fantasia arcaica de uma cena primitiva na qual o sujeito experimenta as intensidades excitatórias elevadas de uma interação violenta, confusa, entre personagens mal delimitados, em vez de ser elaborada e integrada ao mundo representativo, seria exteriorizada por meio de sucessivas passagens ao ato, cuja conotação sexual revelaria espantosas semelhanças com a fantasia recusada.

 

 

Referências

André, J. (2011). Les 100 mots de la sexualité. "Que sais-je?". Paris: P.U.F.         [ Links ]

Bertrand, M. & Papageorgiou, M. (2010). Argument: Scène primitive. Revue française de psychanalyse, 74(4), 965-968.         [ Links ]

Blanchard, A-M. & Decherf, G. (2002). Sexualité narcissique, sexualité génitale. Le Divan familial, 9(2), 61-70.         [ Links ]

Breton, C. (2005). La transmission sexuelle du VIH, figure de la transgression?: Interview Marie-Claire Célérier. Champ psychosomatique, 38(2), 93-107.         [ Links ]

Chabert, C. (2014). Œdipe aux frontières. In Estellon, V. [Org.], Actualité des états limites (p. 91-107). Toulouse: ERES.

Charles-Nicolas, A. & Valleur, M. (1996). Du sens dans la prise de risque: les conduites ordaliques. Neuro-Psy, 8(11), 324-330.         [ Links ]

Deloupy, J. & Varescon, I. (2007). Le bareback, un corps à corps énigmatique. Psychotropes, 13(1), 115-129.         [ Links ]

Estellon, V. (2012). Sexualités extrêmes. Les sexualités mélancoliques. In Marty, F., & Estellon, V. [Orgs.], Cliniques de l'extrême (p. 109-129). Paris: Armand Colin.         [ Links ]

Estellon, V. (2014). Les sex-addicts. "Que sais-je?". Paris: P.U.F.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. (2004). Os casos-limite: senso, teste e processamento de realidade. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(3), 503-519.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. (2006). A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. Jornal de Psicanálise, 39(71), 125-150.         [ Links ]

Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. IV-V. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1996). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II). In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XI. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1912)        [ Links ]

Freud, S. (1996). História de uma neurose infantil. In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1918 [1914]         [ Links ])

Freud, S. (2007). O Eu e o Id. In Freud, S. [Autor], Escritos sobre a psicologia do inconsciente, v. III. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Original publicado em 1923)        [ Links ]

Green, A. (1988). A mãe morta. In Green, A. [Autor], Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta. (Original publicado em 1980)        [ Links ]

Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (2010). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1982).         [ Links ]

McDougall, J. (1997). As múltiplas faces de Eros: uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Original publicado em 1995)        [ Links ]

Roussillon, R. (2004). La dépendance primitive et l'homosexualité primaire en double. Revue française de psychanalyse , 68(2), 421-439.         [ Links ]

Urribarri, F. (2012). André Green: o pai na teoria e na clínica contemporânea. Jornal de Psicanálise, 45(82), 143-159.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 08/07/2018
Aprovado para publicação em: 04/05/2020

Endereço para correspondência
Ney Klier Padilha Netto
E-mail: neyklier@gmail.com
Marta Rezende Cardoso
E-mail: rezendecardoso@gmail.com

 

 

*Psicólogo; Doutor em Teoria Psicanalítica - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ex-Bolsista (Doutorado) da CAPES.
**Psicanalista; Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise - Universidade Paris Diderot (Paris 7 - França); Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica e Departamento de Psicologia Clínica); Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Pesquisadora do CNPq (Bolsista de produtividade em Pesquisa).
1Este artigo é derivado da tese de doutorado "Adicção sexual: um combate contra Eros?" (2017) de Ney Klier, realizada no programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o auxílio financeiro da CAPES, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Marta Rezende Cardoso. Apoio e financiamento: CAPES e CNPQ.

Creative Commons License